Recordações de uma visita a África

O avião da “Air France”, no qual Dr. Plinio viajava para Paris, desceu em Dakar, no Senegal, naquele 11 de junho de 1952 – há 50 anos. Por problemas técnicos, foi preciso adiar a partida por várias horas, para uma minuciosa revisão na aeronave. Isto permitiu a Dr. Plinio conhecer e  analisar um pouco daquele continente, e tecer depois inúmeros comentários, alguns dos quais transcrevemos neste artigo.

 

Não posso esquecer-me de uma noite que tive de passar em Dakar, numa de minhas viagens à Europa. Estava viajando pela “Air France”. Em virtude do atraso relativo em que ainda estava a aviação, os aviões destinados à Europa eram obrigados a pousar em Dakar, para se reabastecer. Mas, quando meu voo chegou àquela cidade, avisaram que nosso aparelho estava quebrado, e tínhamos de passar o restante do dia e a noite ali.

A companhia, evidentemente, providenciaria alojamento e, para nos entreter, punha à nossa disposição um ônibus que ia visitar os lugares mais pitorescos da cidade.

Contato direto com o Saara

Eu queria muito conhecer o deserto, e pensei comigo: “Não são só os lugares mais pitorescos da cidade os que quero visitar. Quero ir fora da área urbana e pisar na areia do Saara.

Quero pegar um punhado de areia, fechar num pacotinho e levar comigo para o Brasil, e dizer: Esta é a areia do Saara! Do famoso, poético, terrível e admirável deserto do Saara! ” Meus desejos  começaram a se realizar quando nos levaram para o alojamento. Eram casinhas redondas, de pequeno diâmetro, agrupadas no formado de uma semi-esfera, na boca do deserto, o que é uma coisa pitoresca.

Gostei da ideia. Além disso, tendo ficado receoso quanto à qualidade do hotel ao qual anunciaram que iam nos levar, regozijei-me ao verificar que essas casinhas estavam equipadas do melhor modo possível, bem conservadas e limpas. Entrei no deserto para pegar um pouco de areia. Era para mim um atrativo formidável, e está no meu modo de ser. Não consideraria que a realidade  “Saara” ficasse satisfatoriamente conhecida por mim, se eu não fizesse esse exame: aplicação de todos os meus sentidos ao deserto. É o mesmo que se dá comigo a respeito do mar, por exemplo: eu nunca me daria por suficiente conhecedor do mar sem ter entrado na água. É preciso tocar.

Queria pegar a areia e esfarelá-la na mão, para ver como era. Foi uma surpresa sentir que estava ligeiramente úmida. Ao menos naquela porção de areia que peguei naquele momento. E, pelo menos naquele lugar, a areia não é branca e alva, maravilhosa, como se vê nos álbuns com gravuras para crianças.

Era um pouco avermelhada, não limpa… Pode ser que, mais para o interior, se apresente diferente. Mas, naquela orla do deserta, fiquei meio desapontado.

O passeio pela cidade, no meio da sonolência

Dakar, também, foi uma surpresa para mim. Infelizmente, não a pude observar tanto quanto quisera, por estar tomado de sonolência excessiva. O motivo é simples: no avião, eu não estava conseguindo dormir por causa do barulho do motor. Naquela época, distribuíam a todos os passageiros uns comprimidos para dormir.

Resolvi tomar uma pastilha, pensando: “Acordo onde Deus quiser!” O remédio teve um efeito prodigioso, causando-me uma dessas sonolências invencíveis que durou o dia inteiro. Quando o ônibus  da “Air France” estava ia sair para o passeio pela cidade, pensei: “Vou acabar dormindo no caminho. Porém, tenho tanta vontade de ver um pouco como é Dakar… Vamos lá. Se eu adormecer…”

Com efeito, estava sonolento demais durante o trajeto. O passeio foi, pois, em certo sentido, uma pequena tragédia. Muitas vezes passávamos por um trecho interessante do deserto, e puf! dormia. E nessa situação de despertar diante de panoramas interessantes, e novamente adormecer, fiquei quase durante todo o giro. Um dos lugares aos quais nos levaram foi a praia. Tanto quanto o Saara, eu queria ver também esse meu Oceano Atlântico, tão familiar, para o qual olho quase como para um parente, quando bate nos cais ou nas areias da praia do Zé Menino, em Santos. “Quero ver como ele é quando bate nas penedias e nas praias da África. Como é esse Oceano, quando ele acaba a viagem Brasil–África, e se quebra de encontro ao litoral africano?” Era uma de minhas grandes curiosidades.

Ora, o mar no Senegal é absolutamente igual ao de Santos, sem diferença alguma. É muito agradável de ver. Gosto de Santos. Mas, ficar na África para ver a mesma coisa que se vê em Santos, para mim, que não gosto de  viajar, foi outra decepção.

A grande recompensa: ver os africanos

Minha grande recompensa foi ver os africanos. As Áfricas são muito diferentes entre si. Um mundo que teria de ser reinterpretado, porque há certos tipos de negros que fazem pensar em civilizações ignotas, enigmáticas. Dakar, uma grande cidade, sob influência da França, modelou-se muito, sem deixar de ser uma grande cidade africana. O talento francês arranjou um jeito de fazer a moldura para os negros de Dakar, e eles ali são mais civilizados do que no restante do continente. Quando meu sono passou, o ônibus havia parado no jardim zoológico, e desci com os  outros passageiros. Vi que era mais ou menos como os daqui. Parece que a Arca de Noé parou entre o Brasil e a África: saíram os mesmos bichos em ambas as direções.

Caminhei com um certo tédio. Mas o zoológico estava cheio de visitantes, e, como gosto muito de analisar as psicologias… De repente, notei um certo movimento, e percebi que era uma celebridade que estava chegando. Realmente, cercada de um grande grupo de africanos, vinha caminhando uma mocinha, de uns dezoito a vinte anos, na flor de sua juventude, e negra como ébano.

Estava vestida de um modo que, creio, nunca me esquecerei na vida: uma saia meio rodada, de cor-de-rosa muito mimoso, muito leve, muito seco; um cor-de-rosa de sonho, parecido com uns esmaltes franceses que se faziam antes da Revolução Francesa, uma espécie de aurora imaginada que só eles eram capazes de fazer. E com panejamentos abundantes e um turbante da mesma cor.

Dir-se-ia que o cor-de-rosa delicado faria um contraste violento com o negrume, e poderia parecer esquisito. Mas não. Combinava maravilhosamente! Pendentes sobre o colo, ela trazia uma porção de colares, miçangas com vidros coloridos – via-se que ela sonhava com jóias mitológicas – com as quais brincava meio distraidamente, com muita graça. Modo indireto de chamar a atenção.

Caminhava e tomava atitudes com muita graça, mantendo uma postura graciosa, e com modos dignos e distintos, sem arrogância . Seu desembaraço e afabilidade, sabendo manter os outros a distância (pareceu-me bem moralizada), criava em torno de si uma atmosfera de gracejo leve, inocente, como uma brisa vinda do mar. Tinha um grande poder de expressão. Seu sorriso era como um perfume que, sem ser importuno, era penetrante, irresistível. Perfume de bom humor,  de graça. Era literalmente encantadora, e tinha alguma coisa quase como o charme francês.

No seu rosto redondo, uns olhos redondos também às vezes olhavam para além da realidade material, exprimindo uma forma peculiar de refletir. Era uma sonhadora. Refletia olhando para cima,  diferentemente dos brancos, que refletimos olhando para baixo. E havia nela uma doçura que os brancos não têm. Foi só ela aparecer no meio dos  passageiros da “Air France”, que todos tiraram suas máquinas fotográficas e só se ouvia o barulho dos “clics” dos botões disparadores. Só faltava subirem uns nos ombros dos outros para poder fotografá-la. Ela, com muita categoria, olhava para um quati qualquer, preso lá numa jaula, e, fingindo que prestava atenção no animal, se punha numa pose de três quartos  para os fotógrafos.

O quati fazia qualquer movimento, e ela dava risada, pegava o maço de colares e sacudia como quem se diverte, olhando para os que estavam mais distantes, sorrindo também, como que perguntando: “Não é mesmo engraçado?” E as miçangas fazendo seu ruído característico. Resultado: ficava interessantíssima! E tinha a amabilidade de deixar-se fotografar por todo mundo que quisesse levar dela uma recordação.

Professores catedráticos e janízaros

Chegamos ao centro da cidade, e eu estava muito interessado em observar o povo. Os negros do Senegal são altos, verdadeiras torres humanas, bem constituídos e com cara séria. Portavam fez,  um chapeuzinho em forma de cone, truncado bem perto da base, mas o qual, se fosse comprido, tenderia a se fechar numa ponta. A cor era de um vermelho um pouco escuro, e alguns homens, talvez os mais cotados, traziam no alto um pompom preto.

Não sei se era moda, tradição ou um dia de festa, mas todos estavam vestidos de um mesmo modo: esse fez, e uma túnica que chegava até os pés, de diversas tonalidades da cor creme, e listas verticais um pouco espaçadas e de cores diferentes, mas muito discretas, através das quais víamos o fundo bem claro da túnica. Esse traje acentuava a altura deles, e lhes dava uma distinção e um  ar de quem olhava de cima para baixo, inclusive para nós, brancos. À distância, os tecidos me pareciam feitos de lã, no meio daquele calor tremendo. Fiquei sem uma explicação. Além do mais, por  cima da túnica tinham outra cobertura, sem mangas, e não fechada na frente. Era uma espécie de colete.

Tudo lhes dava a atitude meio de professor catedrático de uma grande universidade, meio de janízaro. Na maioria, os senegaleses são maometanos. Em certo momento, às seis horas da tarde, hora do Angelus, ouço um sinal qualquer, e percebo uma movimentação entre os homens que andavam por ali. Todos pararam, e pareciam guardas colocados à porta do palácio de um rei.

Não tinham espadas, mas espiritualmente estavam com um iatagã na mão, para abater qualquer um que tentasse entrar sem licença. Deitaram-se no chão, literalmente, e começaram a rezar, com gestos de mãos, e curvaturas, etc. A mim me cortava o coração vê-los rezar algo que não era católico. Mas, é preciso dizer, a cerimônia era bonita.

Todas essas cenas que vi em Dakar mostram que os africanos são capazes de construir uma realidade parecida com a fantasia. O ônibus seguiu e eu pensei em três coisas: “Se pudesse, faria tudo para convertê-los já!” Segundo: “Como é pitoresca a raça negra!” E, por fim: “Como é grande a França, que soube emoldurar tudo isso!” O charme da tulipa negra Saí de Dakar, pois, com o espírito repleto de observações, que deram origem a uma série de reflexões. Por exemplo, tendo em vista as qualidades que os africanos demonstram hoje, pode-se perguntar: se o continente inteiro fosse convertido, e sofresse a influência civilizadora da Igreja, como brilharia? Temos a esperança de que, um dia, Nossa Senhora reine sobre toda a terra. Numa era assim marial, que papel  representaria a raça negra no conjunto dos povos? Poeticamente, a pergunta poderia ser feita assim: no conjunto das flores que Deus criou, como conceber uma flor negra? E que relação ela teria com as harmonias do universo?

Certa vez, andando de automóvel em Paris, creio que a caminho do aeroporto, ia atravessando bairros da periferia. É preciso dizer: o centro de Paris tem as maravilhas que sabemos, mas suas periferias deixam muito a desejar.

O comércio vai escasseando, a riqueza das vitrines é menor também, e muitas vezes o bom gosto. Observava isso quando, de repente, dei com a vista num bonito e pitoresco vaso, arranjado com aquela nota picante que os franceses sabem pôr em tudo: no centro, uma tulipa negra, e, em torno dela, tulipas de vermelho cor de sangue, outras de vermelho menos acentuado, amarelas e brancas, formando uma policromia em que a cor preta era a nota firme, dando encanto a todo o resto. Não é de espantar que eu me tivesse lembrado da raça negra.

Em certas circunstâncias e ocasiões, ela manifesta uma capacidade de expressão que não é tanto a da palavra, mas a do porte, do movimento e do gesto, do riso, da compenetração, que lhes dá um poder inigualável. E, pensando particularmente nos negros do Brasil, eles têm uma forma de sentimento, de bondade, de afabilidade, de desejo de servir, que também é inigualável. Deus quis que o gênero humano fosse capaz de conter e desdobrar todas as formas de beleza específicas e próprias, de modo a formar uma coleção completa. A cidade de Dakar, com o que tem de original e característico, ilustra bem como a coleção dos homens ficaria como uma boca na qual falta algum dente, caso Deus não tivesse criado os negros.

Através dos senegaleses, e sobretudo daquela moça do jardim zoológico, cresci na compreensão daquilo que os negros podem produzir de elevado, e que por muitos lados seja supremo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

E ASTUTOS COMO AS SERPENTES

Para muitas pessoas, a mera suspeita a respeito de alguém já constitui juízo temerário. Trata-se de um equívoco, que Dr. Plinio procura esclarecer.

 

Grande número de incompreensões a respeito do assunto “juízo temerário” provém de uma análise superficial da palavra “juízo”. Muitas são as pessoas que receiam fazer uma suspeita desfavorável a terceiros, porque, caso a suspeita  não seja comprovada ulteriormente, terão cometido um juízo temerário. Mas uma suspeita poderá ser considerada juízo?

Para decidir a questão, basta recorrermos às noções correntes. O juízo, ou sentença, implica uma afirmação.

Só fazemos um juízo acerca de alguém quando chegamos a uma certeza a respeito desse alguém. Uma suspeita não constitui um juízo, e, assim, quem suspeita de outrem não pode, propriamente, formar um juízo temerário, e isto pela simplicíssima razão de que não chegou a estabelecer juízo algum.

Com efeito, a suspeita é uma hipótese que formulamos a respeito de uma pessoa. E a hipótese evidentemente não é uma certeza.

Assim, ainda que tenhamos feito sobre uma pessoa uma suspeita infundada, não teremos com isto cometido um juízo temerário. …

Virtude, e não fraqueza de princípios

Andam erradamente, e muito erradamente, os que dizem que não querem formar juízos ou suspeitas sobre os outros, porque a tal não têm direito. Distingo. É inconveniente que andemos a fiscalizar as pessoas cuja conduta não se encontra sob o raio de nossa autoridade. Mas que sejamos obrigados a não formar impressões sobre aquilo que naturalmente nos salta aos olhos, na vida  de todo dia, quem ousará sustentá-lo? … Um homem de caráter firme e varonil sente uma dissonância interior cada vez que nota que, em torno de si, as coisas se passam de modo contrário à glória de Deus, à exaltação da Santa Igreja, e da doutrina católica. …

Assim, formar juízo e formar suspeitas, quando isto é dirigido pelas virtudes cardeais, e não se orienta pela ação de qualquer inclinação viciosa, é virtude e alta virtude. E deixar de formar juízo ou suspeita quando o caso se apresenta, pode ser defeito, e grave defeito.

O irretorquível exemplo dos Santos Liricamente, muita gente costuma sustentar que “isto compete à autoridade, e que, como não tenho autoridade, posso dispensar-me dessa tarefa ingrata”. E muito tolo comentará de si para si: “Que coração generoso é esse, como lhe dói ver a maldade do próximo!”

Certamente, há muita generosidade em doer-se alguém da perfídia do próximo. Mas haverá generosidade em fechar os olhos à evidência, para não sentir essa dor? Ah, como os Santos abriram e até escancararam os olhos a essas dolorosas evidências! Como lhes cortava o coração ver a malícia, a ingratidão, a perfídia, a lascívia dos homens! Quantos juízos encontramos, nas obras dos Santos, juízos severíssimos e tremendos, não só a respeito de um ou outro indivíduo nominalmente considerado, mas ainda a respeito de cidades, povos e países inteiros!

Os Santos se doíam, mais do que ninguém, dessa realidade. Mas, em vez de lhe fechar estupidamente os olhos, abriam os olhos para as misérias da terra e o coração para o Céu, em magníficos atos e reparação e desagravo a Deus.

Como está longe da conduta dos Santos certo romantismo piegas com que, tantas vezes, nos defrontamos na vida! … Quando Nosso Senhor Jesus Cristo chamou os fariseus sepulcros caiados, o que fez senão juízo? E quando aconselhou que tomássemos cuidado com os falsos profetas e os lobos metidos em pele de ovelha, o que fez senão impor-nos a suspeita como importantíssimo meio para a nossa salvação?

Uma vítima da Revolução Francesa teve a exclamação famosa: “Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!” Com quanto direito poderíamos dizer por nossa vez: “Ó caridade, quanta sandice e quanto crime em teu nome se tem praticado!”

Inocentes como pombas, mas astutos como serpentes

Mas, sobretudo, o que importa notar é que um observador sagaz não se improvisa. Que espécie de autoridade será quem esteve de tapa-olhos, ininterruptamente, durante todo o tempo em que foi súdito? Não é, porventura, quando se é súdito que se deve adquirir as qualidades de um chefe? A tal ponto é isso verdade, que todos os exércitos e todas as engrenagens das empresas comerciais,  etc., têm sua linha fixa de promoções. Não valerá isso para nós? Ingênuos como crianças de berço até o dia em que não cai sobre os ombros uma função de responsabilidade, o que faremos quando depender de nós a defesa dos mais importantes interesses espirituais ou temporais, contra os lobos disfarçados na pele da ovelha? …

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo do “Legionário”, nº 476, 26/10/1941. Título e subtítulos nossos.)

Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

A IGREJA: FORMADORA DE UMA CIVILIZAÇÃO

Dulcificação do trato humano, harmonização do relacionamento entre grandes e pequenos, extinção da escravidão na Europa e elevação das classes sociais mais modestas. Estes sãos alguns dos benefícios conquistados pela Igreja nas áreas sob sua influência, fazendo daquele mundo pagão cruel e impiedoso uma comunidade de nações cristãs regidas pela lei do Evangelho. É o que veremos ao terminar a série de artigos extraídos de aulas e conferências de Dr. Plinio sobre o mundo antigo.

 

Todas as civilizações anteriores a Nosso Senhor Jesus Cristo foram caracterizadas pelo predomínio do egoísmo. Se bem que, de vez em quando, os povos da Antiguidade tenham podido contar com grandes heróis que sacrificavam seus interesses individuais ao amor da Pátria, era o egoísmo que inspirava a organização política, social e as relações internacionais antes da vinda do  Redentor.

Tudo o que temos estudado nas últimas aulas sobre o poder despótico dos reis, a crueldade com que o exerciam, a depravação, o excesso de riqueza, o ócio e o brutal desprezo professado pelas aristocracias em relação à plebe; o espírito de revolta furioso da plebe, que explodiu em Roma, na Grécia e na Fenícia em sanguinolentas revoluções populares; o horror ao trabalho, a indisciplina agressiva e o insopitável ódio das classes pobres contra toda e qualquer instituição ou classe social que trouxesse consigo a ideia da autoridade; a crueldade inenarrável com que aristocratas e plebeus tratavam os escravos, aos quais era dada uma sorte não reservada nem aos animais — tudo isso é, em última análise, fruto do egoísmo.

Uma renovação do mundo

Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, pregou no mundo o amor ao próximo. E, sobre esta base inteiramente nova, Ele renovou a terra, a tal ponto que a história ficou dividida em dois grandes  períodos: a era anterior ao nascimento d’Ele e a Era Cristã.

Qual foi a doutrina política e social pregada por nosso Salvador?

Certos escritores que não O compreendem costumam chamá-Lo de revolucionário. Ora, revolução é, por definição (no sentido sociológico do termo), uma insurreição de súditos contra a autoridade, uma luta entre inferiores e superiores em que, ou saem vencendo os primeiros ou os segundos.

A transformação que Nosso Senhor veio trazer ao mundo não foi uma revolução, porque não implicou em revolta contra qualquer autoridade, nem levantou os oprimidos contra os opressores. O Cristianismo não trouxe uma revolução, mas uma renovação. Também não tomou partido pelo despotismo contra os oprimidos. Em lugar disso, transformou oprimidos e opressores, fazendo cair-lhes das mãos as armas com que se feriam reciprocamente, e unindo-os num afetuoso abraço de irmãos.

Essa transformação moral e essa reconciliação entre classes sociais que pareciam irremediavelmente desunidas foi, na realidade, a base da grande mudança política e social que Jesus Cristo trouxe ao mundo. Mas essa transformação não era a finalidade da missão d’Ele. Seu fim era essencialmente religioso. E as outras transformações que o cumprimento dessa obra acarretou não foram senão conseqüências da doutrinação religiosa.

O equilíbrio trazido pelo Cristianismo

O mundo antigo parecia vacilar entre excessos igualmente reprováveis. De um lado, o despotismo excessivo, de outro a anarquia demolidora. De um lado, a exagerada concentração de riquezas, e de outro a sua conseqüência indireta, uma plebe paupérrima e revoltada. Finalmente, de um lado, impérios poderosíssimos que viviam na opulência a mais completa, e de outro lado povos que gemiam na miséria, sob o jugo de sua opressão. A todos estes excessos, a pregação da Igreja Católica veio trazer uma solução que representou o equilíbrio.

No terreno político, o Cristianismo afirmou a autoridade, mas condenou o despotismo. No terreno econômico, afirmou a propriedade, mas condenou a excessiva concentração de haveres nas mãos  de poucos proprietários. No terreno familiar, afirmou a monogamia contra a poligamia e, sujeitando embora a mulher e os filhos ao marido, proclamou a sua dignidade eminente, proibindo o chefe da família que os tratasse como escravos ou criados.

O caso da escravidão

Aliás, foi também o Cristianismo que mudou a sorte dos escravos, quando a Igreja começou a se espraiar pelo mundo antigo. Em primeiro lugar, recomendando muito que a escravidão não poderia chegar ao ponto de dar a uma pessoa o direito de vida e de morte sobre outra, nem o de feri-la, mas era preciso respeitar os direitos que são naturais ao homem. Isso já representava um  considerável alívio para a condição de escravo.

Mas a Igreja começou também a trabalhar para que os donos libertassem seus escravos em grande quantidade. Começam, pois, a aparecer os testamentos em que o testador declarava que, quando  morresse, tais e tais de seus escravos ficavam livres. Às vezes determinavam que ficavam livres todos os escravos que possuíam na África, por exemplo, ou na Ásia, ou na Europa. A partir da expansão da Religião Católica, portanto, a libertação dos escravos passou a se tornar freqüente, e o número de servidores não-escravos cresceu muito, o de escravos diminuiu e a própria condição destes últimos ficou menos terrível do que era outrora.

O servo da gleba: mitigação da condição de escravo

Com o tempo, entrando pela Idade Média adentro, houve uma atenuação — sempre por efeito da ação da Igreja — ainda mais sensível da qualidade de escravo: foi o estabelecimento de uma condição  chamada servo da gleba.

Servo é propriamente es- cravo. O sujeito era, portanto, escravo da gleba, isto é, de uma certa porção indefinida de terra. Assim, um servo da gleba já não era mais escravo do dono, mas da terra. Acontece, porém, que a terra não mata, a terra não fere, enfim, é uma forma muito adoçada da servidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 41 (Agosto de 2001)

Maternal e Onipotente Realeza

Imaculada pureza, inquebrantável prudência, insondável bondade, sublime sabedoria. Sobre cada uma das qualidades e virtudes da Mãe de Deus, temos visto comentários de Dr. Plinio que constituem verdadeiros hinos de abrasa- do amor. Desta vez, exprime ele seu enlevo e admiração pelo caráter régio da vocação de Maria.

 

Ao instituir a festa de Nossa Igreja glorificar a Deus por meio da realeza de sua Mãe Santíssima, honrando-A e venerando-A com este título, um dos maiores e mais belos que já lhe foram atribuídos. É, portanto, com imenso júbilo que devemos nos associar a essa celebração das prerrogativas régias de Maria, pensando e meditando nelas, não só para crescermos no conhecimento de tão excelsa Soberana, como também e sobretudo aumentarmos nosso amor e nossa devoção a Ela.

Mãe do Rei dos reis

Voltemos-nos em primeiro lugar para os fundamentos dessa realeza, quer dizer, as razões pelas quais Nossa Senhora é chamada de Rainha.

Antes de tudo, por ser a Mãe do Rei, isto é, de Nosso Senhor Jesus Cristo. É Ele Rei  como  Deus,  Autor de toda a Criação. É Rei como Salvador e Redentor do gênero humano, pois este, perdido que estava, foi resgatado pelo sangue infinitamente precioso do Cordeiro Divino, o Qual se tornou assim seu dono e senhor. É Rei por direito de nascença, descendendo da linhagem monárquica de David. É Rei, ainda, como o mais excelente dos homens, no qual nossa natureza atingiu uma superioridade e uma plenitude inimagináveis.

Nossa Senhora o título de Rainha, e não apenas porque convinha a Ele ser filho de uma soberana, mas também porque foi dada a Ela uma participação efetiva no governo de Nosso Senhor sobre todo o Universo.

Com efeito, depois de sua triunfal Assunção, a Santíssima Virgem se viu exaltada pelas Três Pessoas Divinas, recebendo um completo domínio sobre as criaturas visíveis e invisíveis, os Anjos e os Santos no Céu, os homens vivos, as almas do Purgatório, bem como sobre os réprobos e demônios do Inferno. De tal sorte que, a partir de então, Deus executa todas as suas obras e realiza todas as suas vontades por intermédio de sua Mãe. Esta não é apenas o canal por onde passa o império do Rei, mas é a Rainha que decide por alvitre próprio, consoante os desígnios d’Ele.

Medianeira universal de todas as graças

Essa sapiencial disposição da Beatíssima Trindade, concedendo tal poder a Nossa Senhora, nos leva a considerar outro precioso fundamento da realeza mariana: a prerrogativa de Medianeira universal de todas as graças.

É sentença estabelecida na Teologia que, igualmente por vontade divina, todos os dons celestiais nos são outorgados por meio de Maria Santíssima, assim como todas as nossas súplicas e orações só chegam ao trono de Deus se apresentadas pelas maternas e compassivas mãos de sua Mãe.

Ele A constituiu dispensadora de seu inextinguível tesouro de graças e favores, e é por meio d’Ela que deseja atender nossos pedidos. Se todos os Anjos e Santos reunidos suplicassem algo em proveito de um fiel, sem invocar a intercessão de Maria, nada obteriam. Ela sozinha, pedindo por nós, tudo alcança.

Nossa Senhora é, em relação às nossas preces, um alto-falante incomparável a ecoar no Céu. Ela transforma nossas palavras, dá-lhes uma melodia, um som, o valor de um hino, purifica a nossa pronúncia de todas as marcas de nosso desregramento e de nossas insuficiências. E não contente com isso, acaba substituindo nossa voz pela d’Ela, pois nosso timbre, tão menos eminente que o de Maria, vale apenas como um sussurro que se une e se perde no cântico d’Ela ao Senhor da Criação. De tal maneira o foco da predileção divina se concentrou inteiro nesta Filha bem-amada.

Desse modo, a realeza de Nossa Senhora está numa conexão íntima com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. Ela é Rainha de tudo, porque tudo é pedido e outorgado por meio d’Ela. Verdade esta corroborada pelo título de Onipotência Suplicante, com o qual os atributos régios da Santíssima Virgem ainda mais se explicam: para ser genuinamente soberana, importa que Ela tenha junto a Deus uma influência sem restrições. Então, porque pode tudo aos pés d’Aquele que tudo pode, por isso Ela é Rainha.

Rainha dos corações

Tomemos, agora, o significado da realeza de Maria vista num ângulo ainda mais acessível à consideração dos homens.

Assim como uma rainha terrena exerce o melhor de seu domínio sobre a parte mais nobre de seu reino, assim também o governo de Nossa Senhora reveste-se de particular excelência quando se trata de seu império sobre o gênero humano, a parcela mais importante de sua universal soberania. E como o que há de mais nobre no homem é a alma, podemos concluir que a plenitude da realeza da Virgem Santíssima se verifica no fato de Ela ser Rainha de nossas almas.

Este maravilhoso predicado mariano foi superiormente exaltado por São Luís Grignion de Montfort, ao invocá-La sob o título de Rainha dos corações. Como coração entende-se, na linguagem das Sagradas Escrituras, a mentalidade do homem, sobretudo sua vontade e seus desígnios, e não a mera sensibilidade, segundo a simbologia moderna.

Assim, Nossa Senhora é Rainha  dos corações enquanto tendo um poder sobre a mente e a vontade dos homens. Este império, Maria o exerce, não por uma imposição tirânica, mas pela ação da graça, em virtude da qual Ela pode liberar os homens de seus defeitos e atraí-los, com soberano agrado e particular doçura, para o bem que Ela lhes deseja.

Esse poder de Nossa Senhora sobre as almas nos revela quão admirável é a sua onipotência suplicante, que tudo obtém da misericórdia divina. Ela nos governa com uma tão extrema suavidade que Ele, como Eterno Juiz, acabaria não podendo fazê-lo em igual medida. Tão augusto é este domínio maternal sobre todos os corações, que ele representa incomparavelmente mais do que ser Soberana de todos os mares, de todas as vias terrestres, de todos os astros do céu. Tal é o valor de uma alma, ainda que seja a do último dos homens!

Reinar nos corações, para reinar sobre o mundo

Dessas consoladoras considerações depreende-se, entretanto, um grave corolário. Se é verdade que Nossa Senhora nunca é mais plenamente Rainha do que quando reinando nos corações e na sociedade humana, cumpre observar que, lamentavelmente, é também verídico que pouco se nota no mundo contemporâneo uma efetiva aceitação dessa realeza. Cada vez mais foi ele rompendo com Nosso Senhor Jesus Cristo, com Maria Santíssima, desprezando e relegando a segundo plano os ensinamentos e ditames da Santa Igreja. O resultado é esse auge de desordem em que hoje vivemos.

Para que Nossa Senhora volte a reinar nas almas e sobre o gênero humano, é necessário que cada devoto d’Ela tenha saudades das épocas católicas em que brilhou essa plenitude da realeza mariana; que tenha, sobretudo, esperança de uma nova era católica que virá, daquele Reino de Maria profetizado e descrito por São Luís Grignion nas páginas de seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, em que todos os corações e toda a civilização de bom grado estarão submetidos ao doce império da Mãe de Deus.

Mas, será só isso? Devemos viver apenas de uma grande saudade e de uma grande esperança?

Não. Temos a possibilidade, cada um dentro de si mesmo, de proclamar o Reino de Maria,  de  dizer:  “Em mim, ó minha Mãe, Vós sois a Rainha. Eu reconheço o vosso direito e procuro atender as vossas ordens. Dai-me lúmen de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas determinações sejam efetivamente acatadas. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço”. Desse modo, haverá sempre no meio dessa torrente de desordem, de pus e de pecado, muitos brilhantes puros e adamantinos, ou seja, almas em que Nossa Senhora continua a reinar, corações que são  outros tantos enclaves d’Ela na Terra, a Ela consagrados e a partir dos quais poderá estender seu domínio uma vez mais sobre o resto do mundo.

Rainha indestronável

Algum espírito cético poderia objetar: “Mas, Dr. Plinio, pelo que o senhor acaba de afirmar, tem-se a impressão de que Nossa Senhora, em relação ao mundo de hoje, faz um pouco o papel de uma rainha no exílio, dessas ex-soberanas que vivem em algum canto, longe de seus antigos reinos. Poderão levar uma existência com certo luxo, com certo esplendor até, porém já não exercem verdadeiro domínio. Se, como o senhor disse, Nossa Senhora é rejeitada por uma grande parcela da humanidade, Ela será portanto uma Rainha destronada”.

Eis aí um grande equívoco. Onipotência suplicante e tesoureira das misericórdias divinas, Nossa Senhora é Rainha indestronável. E quando parece não dominar, é porque, em última análise, está exercendo outra de suas prerrogativas régias: a de censurar e punir aqueles que recusam as suas benevolências. Se qualquer soberana, por mais compassiva e materna que seja, tem o direito de repreender seus súditos rebeldes e infiéis, a “fortiori” o terá a Rainha do Céu e da Terra. E pode haver pior castigo do que este de não estar sujeito ao governo e proteção da melhor de todas as Mães?

Na verdade, Nossa Senhora possui os meios de obter de Deus que sempre A atende graças suficientes e até superabundantes para que todas as almas se salvem. Estas, porém, em virtude do livre arbítrio, conservam a liberdade de não corresponderem a essas graças. E se a Santíssima Virgem, apesar de sua insondável solicitude para com tais almas, permite que d’Ela permaneçam afastadas, há de ser, em última análise, por uma punição inteiramente conforme com o exercício efetivo de seu poder de Rainha. E se somos castigados por Ela, Maria continua a ter sobre nós todo o domínio que Ela entenda. Nosso miserável esperneio, nossas péssimas recusas, não são senão movimentos que têm eficácia na medida em que Ela, por superiores desígnios de sua justiça, o tolere.

“Por fim, meu Imaculado Coração triunfou!”

Contudo como nunca será demais repetir e salientar Nossa Senhora é Rainha e Mãe de inesgotáveis misericórdias. Sabendo, como Ela só, que Deus não deseja a morte do pecador mas que ele viva, a Santíssima Virgem quer a salvação de todos os homens. E pode, por uma dessas maravilhas de sua inesgotável clemência, alcançar de Nosso Senhor uma forma super-excelente e irresistível de ação da graça, por onde as almas rebeldes se deixem tocar e se convertam, como que não querendo, mas de fato completamente livres, à maneira de São Paulo no caminho de Damasco. Tão iluminadas e tão auxiliadas do alto, que não têm sequer a tentação de uma recaída.

Devemos, então, pedir a Nossa Senhora que atue assim sobre as almas duras e empedernidas, para que estas se abram à sua realeza toda feita de suavidade e benevolências. Que Ela quebre e remova, do fundo desses corações rebeldes, as resistências abjetas, as paixões desordenadas, as vontades péssimas.

E tenhamos inteira confiança de que está nas mãos dessa celestial Soberana o conquistar um número assombroso de almas, o submeter os impenitentes, aqueles que até agora se fizeram surdos aos seus apelos. De maneira que, num dia não muito distante, poderá Ela proclamar: “Por fim – segundo a promessa que fiz em Fátima – Meu Imaculado Coração Triunfará”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

REFLEXO DO INESGOTÁVEL ESPÍRITO DA IGREJA

Nascido e cultivado na Cristandade européia, o estilo gótico, em vários dos seus traços, representa de modo muito característico o espírito medieval que o inspirou.

O gótico é forte e, porque forte, tende ao perene. Suas construções têm um visível desejo de durar sempre, de se tornarem algo que nunca mais será substituído. E nisto o gótico bem se mostra um filho da Idade Média, a qual, diferentemente do homem moderno, não era escrava do tempo. Aquela foi uma época em que os edifícios — as catedrais, por exemplo — podiam levar cem, duzentos ou mais anos para serem completados. E as gerações que participavam da edificação de uma catedral, mesmo sabendo que dificilmente a veriam pronta, morriam em paz.

Eram gerações de Fé, imbuídas da noção de que, quando chegassem ao Céu, teriam diante de si uma visão incomparavelmente mais bela do que a catedral: a recompensa da paz com que elas adormeciam em Deus. Nas cercanias do templo, às vezes ainda em construção, os corpos eram inumados com as mãos postas, à espera do juízo e da infinita misericórdia de Nosso Senhor.

Gerações de Fé, numa época de Fé. Além de forte, o estilo gótico tem uma seriedade que confere ao interior de seus edifícios um certo recolhimento, uma compostura própria de quem é profundamente sério. A luz que neles penetra não é comum, mas tamisada pelo colorido feérico dos vitrais, fazendo-nos pensar num dia ideal, num sonho que está do lado de fora.

A esses vitrais deve o gótico a sua capacidade de apaziguar os espíritos, de transmitir serenidade e temperança. Imagine-se uma pessoa muito aflita, tomada por graves angústias e preocupações. Ela passa defronte a uma catedral gótica, resolve entrar e se senta próximo de um vitral. Repara na figura de um santo nele representado, ou numa imagem de Nossa Senhora da qual aquela luz filtrada serve de resplendor.

Começa a rezar. De início, pensa apenas nos seus problemas. Roga à Santíssima Virgem, aos Anjos e Santos que sejam seus intercessores junto ao nosso clementíssimo Salvador, para que a ajude nas dificuldades, obtenha-lhe o perdão de um pecado, a correção de um defeito, etc. Ao cabo de algum tempo de orações, a pessoa passa instintivamente a prestar atenção no vitral. Este, entretanto, antes mesmo dessa observação clara e explícita, já lhe vinha apaziguando a alma, pois nesses vitrais há grande harmonia, vida, riqueza de cores e matizes, abundância de arte nos seus menores aspectos.

Basta a alguém estar perto deles para se sentir tranquilizado. Quando começa uma análise explícita do vitral, a pessoa já está preparada para prestar atenção em algo que não é o seu mero interesse individual. Acalmada, ela volta a rezar, contemplando a imagem de Nossa Senhora, as figuras e as cenas desenhadas no vitral. E assim vai, numa alternância entre a prece, o pedido, a necessidade, e o deixar-se influenciar por uma arte inspirada pela Igreja, que dulcifica a alma e a enche de paz.

* * *

Forte, sério e temperante, o gótico é‚ ao mesmo tempo, delicado. Considerem-se, por exemplo, as formidáveis colunas de uma catedral.

Os medievais lograram atenuar nelas as características que poderiam transmitir a impressão de força quase bruta, dando-lhes o aspecto de um feixe de coluninhas, que parecem amarradas umas às outras para suportarem as grandes abóbadas. E assim, sustentando com toda a firmeza o que lhes vai por cima, esses pesadíssimos pilares góticos dão a ideia de serem leves e elegantes.

Elegância e leveza, entretanto, não dissociada da força. Daí, a extrema beleza das ogivas. De fato, a coluna gótica de grande estilo, ainda que talhada para dar aquela impressão de que acima falamos,
conserva algo de coluna de combate. E do combate medieval, que, quando justo, sempre visava à paz e a uma concórdia equilibrada. Disposição esta muito bem simbolizada pela ogiva: são dois arcos que podemos imaginar opostos, e que se resolvem numa posição de equilíbrio, ou seja, numa reconciliação.

Não é raro existirem florões e adornos no ponto de encontro das duas partes, quase como a festejar a paz.

Presente está também no gótico uma profunda noção do dever. Tal noção se exprime, por exemplo, através das colunatas das abadias e catedrais, que dão ao homem a ideia de um caminho alto, estreito, mas conducente a uma grande solução.

É o caminho do Céu. Uma estrada não larga, não folgada, não espaçosa nem agradável, mas apertada e difícil, sempre a dois passos de precipícios, problemas, tentações e perigos. Representa algo grandioso, metódico, do qual não se pode afastar nem um passo, porque se perderia de vista a meta e se transviaria.

Essa é a imagem da nossa própria existência enquanto vivida à luz dos Mandamentos.

E é precisamente o que nos sugere a colunata gótica: a ideia de um caminho apertado, estreito, sério, reto e, sobretudo, elevado. Quer dizer, se nos sentirmos opressos por estarmos cercados de colunas, nossos olhos e nossa alma encontram os grandes espaços olhando para o alto. O que, em outros termos, significa: “Quando a vida estiver apertada, olhemos para o Céu”. Assim era a alma católica medieval, que deu origem ao gótico.

Na colunata como na ogiva, essa mesma alma, depois de ter explicitado seu desejo e sua afirmação de força, começou a sorrir e a manifestar sua própria doçura, como quem continua a descrever em pedra os diversos aspectos de sua personalidade. Dessa maneira, sem atraiçoar a coluna, que será sempre o objeto do maior entusiasmo, surgem os florões, as figuras esculturais e toda espécie de adornos graciosos do gótico.

E assim, à maneira de alguém que vai retirando de sua arca as mais variadas peças de um opulento tesouro, o medieval foi lentamente manifestando as riquezas de seu espírito através dos requintes da arte gótica.

Esta parece, pois, descrever uma alma profunda e verdadeiramente católica. Sim, porque o gótico é, no fundo, um magnífico reflexo do imenso, inesgotável e fabuloso espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 16 (Julho de 1999)

Não há paz sem a Lei de Deus

A paz — na família, na nação, no plano internacional — todos a desejam. Mas onde e como obtê-la? Dr. Plinio dá-nos a resposta neste artigo.

 

Segundo São Tomás de Aquino, a paz é a tranquilidade da ordem. Esta definição do Santo Doutor deixa entrever que há duas espécies de tranquilidade: a que provém da ordem e a que provém da desordem. A paz, fruto da ordem Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o seu físico está em ordem perfeita.

Todos os órgãos funcionam admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum mal-estar lhe perturba o repouso. A saúde — que é a ordem do corpo — gera nele uma tranquilidade física que se traduz eloquentemente pela placidez do sono. Fisicamente, o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois que é um momento de tranquilidade gerada pela sua ordem orgânica.

O mesmo conceito se pode aplicar a um povo. Suponha-se que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências, pela posse segura e firme da Verdade, que é a Religião Católica; as vontades, pela sua vigorosa adesão à virtude que a Igreja ensina e ajuda a praticar; as sensibilidades, pelo completo domínio a que a sujeitaram a inteligência e a vontade; os corpos, pela existência de um alto padrão coletivo de saúde; a vida econômica, por um perfeito aproveitamento dos abundantes recursos naturais do lugar.

Evidentemente, uma grande e benfazeja tranquilidade reinará sobre toda a sociedade, como fecundo e feliz transbordamento da tranquilidade interior de cada alma. Esta tranquilidade completa, decorrente da ordem intelectual, moral e econômica existente no país, é o que se pode chamar paz: será a paz interior. A paz exterior se somará a esta, se também as relações do país com outros povos estiverem em ordem. Assim, a paz é realmente a tranquilidade da ordem.

Uma caricatura da verdadeira tranquilidade

Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado momento, durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica ocorre: será, digamos, uma nevralgia violentíssima.

Imediatamente, com a cessação da ordem orgânica, desaparecer á a paz: o sono termina, e o paciente começa a dar mostras agudas de sua dor. É a desordem gerando a intranquilidade. Imagine-se, porém, que a dor aumente tanto que chegue a causar um desmaio do paciente. A desordem orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos e a completa tranquilidade do desmaio serão a consumação da desordem física.

Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito aguda e ter com isto suprimido todos os meios de resistência, causará, com a aparente cessação da reação orgânica, uma tranquilidade profunda. Esta tranquilidade será o reinado da desordem, será o cúmulo da desordem, será a desordem erigida em soberana absoluta do corpo. Ela não será senão uma caricatura da tranquilidade da ordem.

Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e saudável, e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida, estão nos extremos opostos. Nos exemplos que figuramos, o maior bem orgânico do corpo terá sido a tranquilidade da ordem; a intranquilidade decorrente da desordem será um mal. Mas o mal supremo será, sem dúvida, a tranquilidade da desordem, ou seja o desmaio, para não dizer a morte.

A tranquilidade da desordem é o pior dos males

O mesmo conceito se pode aplicar à vida espiritual. Tome-se um homem de consciência limpa e reta: sua consciência estará em ordem, e esta ordem gerará nele uma tranquilidade que se chama paz. O que não se tem dito e escrito sobre os encantos da paz de consciência! E no que consistem estes encantos, senão na suave e deleitosa tranquilidade que a ordem origina? Se, por desgraça, a consciência deste homem passa a ser perturbada por uma ação má, esta perturbação suprime a ordem espiritual, e imediatamente a paz desaparece. É a luta terrível dos remorsos que cruciam a alma e, ou a elevam pela humildade e pelo auxílio da graça de Deus até as alturas de uma contrição, ou a abatem, pelo desespero, até os extremos a que Judas chegou.

Imagine-se, entretanto, que nesta alma desgraçada, pouco a pouco, os remorsos vão desaparecendo, até se transformarem em um vago rumor, que só de quando em vez perturba a consciência, logo abafado pelos ruídos das distrações mundanas. Evidentemente, o desaparecimento do remorso gera o desaparecimento da luta espiritual, e uma tranquilidade embrutecida e opaca baixa sobre esta alma em que os últimos lampejos de virtude se extinguiram.

Nesta alma haverá novamente tranquilidade. Mas uma tranquilidade que, sendo o triunfo da desordem, constitui uma desgraça mil vezes maior do que a intranquilidade das torturas de consciência, e se encontra no extremo oposto da tranquilidade ordenada e feliz, em uma palavra, da paz de consciência autêntica, do homem limpo e reto de espírito.

Para resumir: a tranquilidade da ordem é um grande bem, e só ela merece o nome de paz. A luta gerada pela desordem é um mal incontestável; mas o maior dos males será, certamente, a tranquilidade da desordem, a tranquilidade das consciências embrutecidas no vício, dos corpos desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte campeia como soberana […].

Só haverá paz no mundo com a obediência à Lei de Deus

Estes conceitos merecem ser transpostos para o plano internacional. Só merece o nome de verdadeira paz a tranquilidade decorrente da ordem das relações entre as nações. E como a ordem supõe obediência a Deus, só haverá ordem internacional quando houver obediência à Lei de Deus nas relações entre os povos. […]

Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor, na História da humanidade. Mas que se transforme a violação em direito, a desordem em hierarquia legítima e permanente, e se arvore como princípio básico e fundamental aquilo que é a negação radical e absoluta de toda a Lei de Deus, há nisto uma desordem monstruosa e profunda, com a tendência de se tornar definitiva, que deve apavorar todo espírito em que ainda bruxuleiam alguns lampejos, já não direi de senso católico, mas de simples e reta razão natural. Com feito, o risco a que aludimos não consiste em uma simples injustiça. É na glorificação da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça como regra fundamental de ação e norma básica das relações entre os povos.

A paz internacional será uma paz autêntica, se ela for a conseqüência da aplicação dos princípios da Lei de Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida gera a ordem, e a ordem gera a tranqüilidade, e esta tranquilidade da ordem será a paz.

Será uma desgraça, já é agora uma desgraça catastrófica, que a tranquilidade da ordem seja violada, e que esta violação traga lutas cruentas como aquelas que atualmente assistimos. A humanidade contemporânea pode ser comparada a um homem doente que se contorce tragicamente nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode deixar de concitar à piedade e à prece os espíritos compassivos.

(Excertos de artigo publicado no “Legionário” de 29/12/1940. Título e subtítulos nossos.)

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 64 (Julho de 2003)

Rei e centro dos corações – II

A queda singular de uma taça de água, durante a exposição em que Dr. Plinio concluía seus comentários a uma das tocantes invocações da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus, ofereceu a ele a oportunidade de exaltar e recomendar, uma vez mais a seus discípulos, a ardorosa prática da virtude da confiança: confiar contra todas as aparências da derrota, na misericordiosa e infalível assistência de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima.

Após considerarmos os direitos de soberania do Sagrado Coração de Jesus sobre a vontade do homem, simbolizada pelo órgão que lateja em nosso peito, cumpre analisarmos o outro termo da invocação que diz: “centro de todos os corações”.

Eixo do qual tudo se aproxima ou se afasta

A palavra “centro” — não o geométrico, pois se trata de uma metáfora — sugere a idéia de uma multidão de corações com um ponto de atração em função do qual todos se movem para aceitar ou rejeitar algo. Ainda que não percebamos, os movimentos da vida particular de cada um, bem como os da História, se fazem em razão do Sagrado Coração de Jesus.

Imaginemos um ímã gigantesco em torno do qual uma imensa quantidade de limalhas de ferro estivesse disposta, e um vento soprando sobre elas. A viração tende a dispersar as limalhas enquanto o ímã busca atraí-las. Os minúsculos fiapos de ferro estão continuamente solicitados por duas forças distintas: a centrípeta, que os leva a se unirem ao ímã, e a centrífuga, a dele se separarem.

Suponhamos que cada uma das limalhas fosse dotada de inteligência e livre arbítrio, e a todo momento, por causa do vento e da atração, sinta-se obrigada a escolher se irá aproximar-se ou distanciar-se do ímã. Essa é uma metáfora para indicar o significado das palavras “rei e centro dos corações”. Assim, a todo instante de nossa vida, estamos nos acercando ou nos afastando d’Ele. É o sentido de todo ato que praticamos.

Entre Deus e o demônio

A imagem do ímã, da limalha e do vento não apresenta toda a realidade. Por exemplo, não alude à fonte desse vento que tende a dispersar as limalhas. Evidentemente, quem o sopra é Satanás o qual sempre procura nos afastar de Nosso Senhor. Devemos continuamente estar caminhando para o centro, ou seja, para Deus, opondo-nos à pressão e atração exercida pelo demônio. De direito, Nosso Senhor é o ímã.

E também o é no sentido de que efetua um poder atrativo sobre todos os corações. Porém, dá ao homem livre arbítrio. Se este recusar, pecará e, caso não se arrependa, será condenado. Esse é o verdadeiro significado da metáfora.

Tais considerações se aplicam igualmente aos países. Estes têm como que uma inteligência e uma vontade coletivas, as quais constituem a opinião pública. Esta se move como as idéias individuais, pois é a síntese ou a soma delas. Assim, cada um de nós exerce um papel — maior ou menor — na opinião pública, e tem responsabilidade sobre sua orientação para um lado ou outro. De modo especial o têm os que pertencem a um movimento (como o nosso) que visa especificamente atuar no consenso geral para combater o mau “vento” soprado em cima da limalha frágil da opinião dos indivíduos, ou seja, contrariar a ação do demônio sobre as almas.

Em favor do Rei e da Rainha, sua Mãe

Com efeito, visamos criar condições favoráveis para que a atração de Nosso Senhor Jesus Cristo se exerça inteiramente. Nesse sentido, somos os soldados do rei que procuram conquistar limalha por limalha, ou partícula por partícula da limalha, cujo conjunto constitui a opinião pública e levá-la para esse divino centro de todos os corações. E, como antes salientamos, segundo o ensinamento de São Luís Grignion de Montfort, o reinado de Maria se estabelecerá quando, pela intercessão d’Ela, a parte mais poderosa e ponderável, decisiva, da opinião pública tenha conduzido o gênero humano a pertencer efetivamente ao Coração de Jesus.

Há, portanto, uma forte analogia entre esta invocação tão bela, “Nosso Senhor, Rei e centro de todos os corações”, e a devoção a Nossa Senhora Rainha. Queremos que a Santíssima Virgem seja, não só Rainha de direito — pois Ela o é como Mãe de Deus e Co-redentora do mundo —, mas de fato, que as almas Lhe pertençam e, dessa maneira, pertençam a Nosso Senhor.

Numa palavra, o Reino de Maria é um meio necessário para existir o Reino de Jesus, o qual representará uma imensa graça para a humanidade, uma insondável misericórdia para os homens que pouco ou muito pouco têm feito para merecê-la. Esta dádiva somente nos será alcançada pelas mãos de Nossa Senhora, Medianeira de todos os favores divinos.

“Torrentes de graças!”: a taça de água que gira no ar e cai de pé

Compreende-se, assim, como nossa devoção ao Reino de Jesus e a seu Sagrado Coração, ao Reino de Maria e a seu Coração Sapiencial e Imaculado se completam, formando um só todo, propiciando grande alento para nós.

Por fim, se tomarmos em consideração que a vitória pela qual nos empenhamos tanto, depende primordialmente da graça — sem a graça, sem muita graça, sem torrentes de graças nada obteremos…

[NR: Neste exato momento de sua exposição, Dr. Plinio, ao fazer um gesto com o braço esquerdo, inadvertidamente derrubou a taça na qual lhe seria servida a água, colocada sobre uma mesinha ao seu lado. A taça, de fino cristal, bateu no bordo da pequena mesa produzindo um lindo som e projetou-se para o solo caiu com a boca para baixo. Depois de tocar no tapete, saltou ao ar, endireitou-se e finalmente pousou de pé. Não sofreu o menor arranhão, como se fora ali depositada por mão cuidadosa. O fato insólito produziu uma natural reação, misto de surpresa e encanto, em todos que o viram. Dr. Plinio aproveitou a circunstância para tirar dele mais um ensinamento, dizendo então:]

Faço notar a beleza peculiar do fato de esta cena não ter sido registrada em fotografia. Poderia sê-lo, como tantos instantâneos que são colhidos em nossas reuniões. Porém, Nossa Senhora não dispôs que houvesse uma máquina fotográfica preparada neste momento. Por quê? Para que ele ficasse gravado no coração de cada um dos meus ouvintes.

Recordemos: falávamos da necessidade de torrentes de graças as quais dependem da intercessão de Maria Santíssima, que escolhe as ocasiões adequadas para alcançá-las. Às vezes quando a alma, compenetrada de sua miséria, se encontra mais tocada e orientada para a receptividade; às vezes, nas piores horas de sua vida espiritual, quando a graça atua e vence nossa maldade.

Por exemplo, ninguém poderá pretender que São Pedro, quando negou Nosso Senhor durante a Paixão, estava com a alma disposta para receber graças. Entretanto, o dom divino pousou sobre ele e operou sua cura salvadora. O Príncipe dos Apóstolos não cessou de chorar, por assim dizer, até o momento em que morreu crucificado de cabeça para baixo.

História de uma gota d’água, lição de confiança

Insisto, pois, na ideia de que o papel soberano da graça e o de Nossa Senhora em obtê-la do Coração infinitamente misericordioso de seu Filho, são decisivos na História. Nessas condições, não nos devemos importar, de modo cruciante, com os fatores e circunstâncias humanos. O importante é que Deus, na sua clemência, nos seja propício, disposição divina esta que poderemos alcançar por meio de preces a Nossa Senhora. E para nos valermos do fato que acaba de ocorrer, acrescento: se estivermos numa boa situação e cairmos, confiando em Nossa Senhora, cairemos de pé!

Imaginemos que no fundo dessa taça houvesse uma gota de água dotada de pensamento. Estaria contente porque habita dentro de um cristal, com seus reluzimentos próprios. Ela não cogitaria que o recipiente pudesse ser derrubado e diria: “Estou na concha desta taça e nada me sucederá!”

De súbito, o cristal recebe uma cotovelada do orador pouco cauteloso… A gota se assusta, sente um estremecimento e, percebendo que a taça se inclina perigosamente, exclama: “Tenha confiança em Nossa Senhora, não há risco de cair!” Quando o cristal dá uma cambalhota, ela instintivamente se pergunta: “O que me irá acontecer agora? Vou cair…” Mas, continua afirmando: “Confiança em Nossa Senhora!” A taça cai de pé, com a gota ilesa em seu fundo.

Ou seja, a virtude da confiança é, ao mesmo tempo, fruto e condição para a perfeita devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria. Por maiores que sejam os embates que soframos, parecendo estarmos numa sucessão de desastres, devemos confiar em Nossa Senhora. E se os fatos desabonarem nossa confiança, e Ela permitir que passemos por cambalhotas, convém nos lembrarmos da metáfora da gota d’água: ela se agarrou com todas as forças à superfície lisa de um cristal fascinante e, por fim, notou que a taça caiu de pé.

Nada é impossível para o que confia

Quando nos dirigirmos, então, ao Sagrado Coração de Jesus, tenhamos principalmente em vista que Ele é o Rei e centro de todos os corações, centro e Rei da História. Além disso, consideremos a necessidade de cada um possuir uma mente e vontade firmes, uma sensibilidade varonil e forte, que resiste até aos grandes eclipses dos sentidos. E, na pior das aridezes, permanecer com o inabalável desejo de oferecer tudo a Nosso Senhor por meio de Maria, para que venha o Reino do Sagrado Coração de Jesus, através do Reino do Coração Imaculado da Mãe de Deus.

Alguém poderá dizer: “Como isto é penoso!”

Respondo: “A história da gota d’água na taça no-lo comprova: pode ser difícil, mas nada é impossível para quem confia em Jesus e Maria!”

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 100 (Julho de 2019)

Huysmans Retorno ao seio da Igreja

Um dos escritores cuja obra encantou Dr. Plinio nos primeiros tempos de congregado mariano foi Huysmans. O processo de conversão desse grande literato, sublime e espetacular ao mesmo tempo, serviu largamente ao jovem líder católico como instrumento de apostolado. Acompanhemos agora o segundo artigo no qual ele comenta o percurso do neo-convertido rumo à Igreja.

Em um de nossos últimos artigos, consagrados à estupenda obra de J. K. Huysmans, comentávamos seu livro “Là-Bas”, que é o primeiro da série que escreveu sobre sua dolorosa e interessante evolução espiritual, que acabou por conduzi-lo ao verdadeiro porto da salvação, isto é, à Igreja. “Là-Bas”, como os leitores devem estar lembrados, conta como Huysmans, mergulhando no satanismo, nas abominações da magia negra, das missas sacrílegas, das profanações atrozes, viu despertar em sua alma as primeiras inquietações religiosas.

Estas, que encontraram terreno propício em um espírito de escol, trabalhado profundamente pelo horror que lhe causava a época em que vivia (século XIX), e pela solidão que o cercava no domínio sentimental, foram crescendo gradualmente de intensidade, até determiná-lo a ocupar-se decididamente do problema religioso. Nessa altura, termina o “Là-Bas” e começa o “En Route”.

Aproximado pelos acontecimentos de um sacerdote francês inteligente e virtuoso, Huysmans começa a frequentar as cerimônias religiosas católicas, que despertaram nele impressões indeléveis, as quais nos legou em páginas magistrais. Suas descrições da tristeza tenebrosa do “De Profundis”, das imprecações ardentes do “Miserere”, da alegria exultante do “Magnificat”, são páginas literárias que glorificam o idioma em que foram escritas.

Aliás, constitui a obra de Huysmans uma aplicação interessantíssima do naturalismo a assuntos religiosos, aspecto este que a enche de originalidade.

Sob o ponto de vista estritamente religioso, interessava principalmente o gênero novo de apologética que Huysmans tentou instituir. Não o preocupam os argumentos filosóficos, as contendas científicas, em que os silogismos se digladiam pró e contra a Fé. Já dizia o poeta francês que, “à force de raisonner, on perd la raison” (“à força de raciocinar, perde-se a razão”).

Faz da Igreja uma descrição material e objetiva, através da qual procura fazer ressaltar, com inimitável habilidade, os lampejos de sobrenaturalidade que se desprendem da liturgia magnífica, enriquecida por um simplismo comovedor, do cantochão estupendo, nas suas imprecações veementes, no tumultuar de suas contrições, na explosão de seus surtos de confiança na Providência Divina, no lacrimejar harmonioso de seus ofícios de defuntos.

Impressionam-no sobremodo as ordens religiosas, nas quais vê com razão a cristalização do espírito evangélico. Fascinam-no as penitências das carmelitas, as austeridades implacáveis das beneditinas e das sacramentinas, os rigores das regras monásticas em geral. Entre todas, porém, uma Ordem chama sua atenção, pela estupenda beleza de seus princípios constitutivos: a dos trapistas. Resolve-se, então, impulsionado pelos conselhos de seu amigo sacerdote, a fazer em uma Trapa longínqua um retiro de alguns dias.

Entra-se então na parte mais interessante do livro. Cumpre dizer que, à maneira dos antigos cristãos, que proibiam aos pagãos a assistência aos mistérios sagrados, sentimos o desejo de vedar a leitura do que se segue a espíritos incrédulos, que terão provavelmente para a incomparável beleza moral da vida trapista, o riso estulto, ou o trocadilho alvar com que um hotentote comenta a complicação — para ele inútil — de um mecanismo moderno, cujo funcionamento está acima de sua compreensão.

Segundo o dogma da comunhão dos santos, cuja aceitação é imposta pela Igreja a todos os fiéis, os sofrimentos de uma alma podem ser aplicados em expiação dos pecados de outra. Satisfeita assim a justiça divina, pode a misericórdia incitar o pecador à conversão. A importância das Ordens religiosas que, na contemplação de Deus, e na penitência incessante, encerram (deveríamos dizer, sepultam) criaturas durante toda uma vida, em conventos humílimos, para expiar assim as ignomínias do mundo pecador, participa, portanto, de toda a elevação moral do Santo Sacrifício do Calvário.

É certo que os sibaritas, tão freqüentes no século XX, inquietados em seus gozos pela visão de tanta abnegação e de tanto sofrimento, pretenderão qualificar de selvageria desumana tal procedimento. É certo que algumas pessoas, para as quais o ouro é o único ideal da vida e que consideram o homem exclusivamente segundo o que produz, o trapista é um inútil, pois que sua atividade “não rende”. Suas apreciações profanam tais assuntos. Melhor seria que se calassem sobre assuntos alheios à sua compreensão!

Foram tais as considerações que ocuparam Huysmans em sua viagem de Paris para a Trapa. Sua impressão, quando se habituou à vida do convento, foi a de um verdadeiro deslumbramento.

Monges plácidos e austeros, invariavelmente vestidos de branco, se dedicavam, dentro de uma reclusão perpétua, a trabalhos manuais especialmente à oração e à penitência, que lhes consumiam a vida. Só uma voz falava: a da contrição e da reparação, expressas através de todas as atitudes e de todas as ações. Como cama, uma prancha de madeira.

A alimentação, de um rigor extremo, era exatamente o necessário para impedir que os monges adoecessem gravemente, vitimados pela fome. Por toda a parte, o silêncio. As Trapas constituem a mais magistral resposta aos que afirmam que a Igreja perdeu a seiva que alimentava os mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Se é certo que é necessário um heroísmo sobre-humano para que se possa alguém sujeitar-se aos tormentos do Coliseu, também é certo que a agonia de uma vida inteira, escoada lentamente entre os cilícios e as mortificações, constitui tormento que a todos excede pelo rigor e pela provação que impõem à perseverança.

Certa noite, Huysmans, inquieto, não conseguia dormir. Levantou-se então e dirigiu-se à capela, que supunha deserta. Quando entrou, divisou vagamente, através da penumbra que coava pela claraboia de uma cúpula, os vultos brancos dos trapistas, que furtavam às suas poucas horas de sono o tempo necessário para alimentar seu espírito de oração.

Alguns, curvados pela humildade, se prostravam no chão. Outros, como chamas de velas que se dirigem ao alto, erguiam o busto numa atitude de imprecação ardente, de súplica veemente, que só a pena de Huysmans consegue descrever.

Outros, enfim, abatidos pela enormidade dos pecados do mundo que deviam expiar, numa atitude de profunda contrição, gemiam um “Miserere”.

Lentamente, a manhã penetra através da claraboia. As formas brancas precisam seu contorno, ainda banhadas na claridade suave da aurora. Raia enfim o sol. Todos os trapistas se dirigem para os bancos. Toca o sino e irrompe radiosa a “Salve Regina”.

A observação de tais cenas atuou profundamente no ânimo de Huysmans, que, enfim, resolvido a confessar seus pecados, se prostra aos pés de um trapista, a quem, em profunda contrição, confia todos os seus delitos contra Deus e contra os homens. No dia imediato, comunga.

Feita assim sua integração no catolicismo, retira-se da Trapa com recordações imorredouras. E o “En route” cede lugar ao “Oblat”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 94, de 21-2-1932)
Revista Dr Plinio 40 (Julho de 2001)

Santiago, Admirável continuidade de bênçãos

Certos lugares que reluziram com invulgar esplendor nos áureos tempos da Cristandade conservam ainda hoje, e com intensidade por vezes surpreendente, uma admirável continuidade com seu passado. E em se tratando sobretudo de tradições religiosas, a fé muito acentuada pela qual sempre se distinguiu o povo espanhol nos leva a  encontrar, nesta nação, significativos exemplos dessa continuidade.

Talvez o mais expressivo deles seja o Santuário de Santiago de Compostela. Situado na Galícia, ao norte da Espanha, seu nome deriva do latim “Campus Stellae”, isto é, Campo da Estrela. Segundo as crônicas, após o martírio de São Tiago o Maior, ocorrido em Jerusalém, seu corpo foi transladado por discípulos para aquela região hispânica e ali o sepultaram.

Com o passar do tempo, porém, perdeu-se a noção de onde seus restos mortais haviam sido depositados. Até um dia em que, no século IX, alguns camponeses avistaram uma luz inusitada refulgindo sobre o local.

Começaram a escavar e depararam com os ossos do grande Apóstolo. Em breve erguia-se o santuário, que haveria de se tornar um dos maiores centros de peregrinação de  toda a Cristandade. Da Europa inteira se acorria para Santiago de Compostela, e num tal afluxo que, em determinadas épocas do ano, certos trechos dos caminhos transformavam-se em verdadeiras ruas, repletos de peregrinos!

É difícil existir lugar mais sagrado e mais venerável do que Compostela. O devoto que ali se apresente com verdadeiro espírito de peregrinação e a alma voltada para o  sobrenatural, não pode deixar de sentir as bênçãos  inapreciáveis de continuidade com as mais antigas e excelentes graças da Civilização Cristã. Bênçãos peculiares, diferentes das que se nota em outros santuários igualmente  veneráveis como Aix-la-Chapelle ou Genazzano; bênçãos palpitantes num ambiente repassado de fervor e entusiasmo.

A igreja é o maior templo românico do mundo, embora sua fachada obedeça às linhas de um estilo posterior. É grandiosa, magnífica e imponente. À primeira vista, o exterior pode parecer excessivamente sobrecarregado. Mas depois de uma ponderada análise, e tendo nossos olhos se habituado a considerá-lo, percebe-se que essa sobrecarga é  ordenada e muito bonita. As fachadas laterais também se revestem de uma extrema beleza, e todo o edifício compõe um harmonioso, digno e lindíssimo conjunto com os  outros prédios da praça em que ele se encontra.

Internamente, possui a formosura própria da arte românica, com um pormenor bem espanhol: não há vitrais. A luz penetra através de uma claraboia cuja abertura foi cuidadosamente estudada para que todo o recinto receba suficiente iluminação. Em seus corredores laterais abrem-se diversas capelas, consagradas a certas invocações de  Nossa Senhora e a alguns santos.

E no centro, a meio termo entre o altar-mor e a porta de entrada, existe uma capela do Santíssimo Sacramento, bonita e piedosa. Os fiéis que ali se ajoelham para adorar o  Rei dos Reis, perpetuamente exposto, são acolhidos por uma tocante imagem do  Sagrado Coração de Jesus, impregnada de unção e de bondade celestiais.

Entretanto, o local mais abençoado do Santuário é, a meu ver, a cripta onde se encontram os despojos de São Tiago o Maior. A urna funerária em que estão conservados é, na  verdade, uma bela e rica imagem do Apóstolo, lavorada em ouro e pedras preciosas, com traços de inspiração ainda pré-gótica.

Êmula dessa bênção toda particular é a que se sente noutra capela do Santuário, situada embaixo da escadaria principal. Trata-se de uma construção dos tempos de Carlos  Magno, o grande e piedoso monarca do Sacro Império Romano-Alemão, muito devoto de São Tiago e que ali esteve diversas vezes. Ali dentro torna-se ainda mais nítida a noção da continuidade desse presente com as magníficas tradições da Cristandade, e mais viva a ideia de que as graças de hoje e as de ontem se respeitam e se entrelaçam,  constituindo um tesouro espiritual que nada poderá destruir!

Duas coisas merecem especial destaque no conjunto dos atraentes aspectos do Santuário. Uma é o “botafumero”, imenso turíbulo de prata que, em dias de festa, costuma ser levantado para a vasta abertura da cúpula e, lá no alto, descrevendo um gigantesco semicírculo, se põe a espargir o odorífero incenso por todo o recinto sagrado.

Para alguém que o assista pela primeira vez, esse interessante e louvável ritual de incensamento pode tomar um certo ar de exercício de força, como quem observa se os homens encarregados de puxar as cordas têm o necessário vigor para espalhar aqueles tufos fumegantes. E, portanto, no meio desse ato religioso, há algo de campesino e de um pouco tosco. Mas, de um tosco e um campesino saborosos, encantadores, que dão gosto de serem vistos, porque fazem a beleza dos costumes de um lugar como Santiago de Compostela.

Outra coisa que atrai especialmente a atenção, porque imbuída de simbolismo, é a presença dos sinos que tocam nas majestosas torres da igreja. Eles já ressoavam por aquelas regiões, nos dias anteriores à dominação moura.

Quando os invasores chegaram a Compostela, saquearam o Santuário, levando os sinos para uma mesquita de Sevilha. Séculos depois, durante os heroicos feitos da  Reconquista espanhola, São Fernando de Castela recuperou estes mesmos sinos e ordenou que fossem recolocados em seu lugar de origem.

Quando ali estive, eu também como peregrino, ao ouvir o timbre desses bronzes, testemunhas de tantas epopeias, pensei no triunfo daquele grande rei espanhol e no triunfo  ainda maior da Igreja Católica. E os dobrares que ecoavam das torres imponentes encheram minha alma de uma harmonia extraordinária.

Uma vez mais, reluzia a admirável continuidade das bênçãos da Civilização Cristã.

Belezas exemplares

Duas maravilhas produzidas pelo gosto tipicamente francês. Uma, revestida de aspecto encantador, de conto de fadas, é o Castelo de Chantilly. Sua construção iniciouse no século IX, sobre os alicerces de uma fortaleza romana, e recebeu ao longo da Idade Média modificações segundo o estilo de cada tempo. Teve por senhores e convivas as maisilustres famílias de França, cujos nomes soam como envolventes melodias: Condé, Noilles, Montmorency…

Percebe-se a beleza singular de um palácio edificado sem muita simetria, como eram as arquiteturas próxima ou remotamente ligadas à antiga arte da Idade Média. A precisão na harmonia de linhas aparecerá a partir dos séculos XV, XVI e XVII, trazendo requintes ao Chantilly nascido nos distantes albores da Cristandade européia.

Então se nos aparece com seu conjunto de corpos que se sobrepõem como podem, mas que, na soma dos imprevistos e dos esplendores de cada parte, adquire essa feição arrebatadora, transportando nossos espíritos ao mundo povoado de princesas e cavaleiros lendários. Chamam especialmente a atenção suas torres redondas, fortes, porém elegantes, refletindo-se nas plácidas águas do lago que serve de espelho a todo o castelo. E esse pendant de silhuetas movediças, imersas naquela paisagem líquida, redundam num efeito de beleza extraordinária.

Comparável à formosura dos jardins, dos canteiros, dos desenhos formados pelos gramados e flores, e do próprio tra çado da floresta em que estes se prolongam e como que se escondem, perdendo-se mais ou menos no infinito…

Chantilly é, indiscutivelmente, um dos mais lindos palácios da Europa.

*

Assim como a Praça Vendôme, no centro de Paris, é uma das mais belas do mundo, ao lado da Praça de São Marcos, em Veneza, e da de São Pedro, em Roma. Obedece a uma concep ção técnica diversa, e eu diria mesmo que é de uma beleza exemplar!

Nela, apenas se tomaria por deslocada a alta coluna que se ergue no centro, e em cujo topo já triunfaram diferentes estátuas de ilustres personagens históricos. Mais atraente ficaria se houvesse ali um bonito jogo de águas, ou algumas pequenas fontes dispostas com charme e simetria.

As ruas que saem ou chegam cortam as fachadas dos edifícios em três pontos, sem prejudicar a fascinante harmonia do conjunto das construções.

As paredes, de um certo róseo tirante ao carregado, conferem uma nota característica a esse que parece um único e longo edifício. Na verdade, aí se encontram vários estabelecimentos, entre os quais o célebre Hotel Ritz de Paris, e a série de arcos em que se desdobra o andar térreo corresponde a várias lojas de grandíssimo luxo, que constituem um dos elementos da nata do comércio parisiense.

Tudo iluminado, durante o dia, pela luz dourada do sol que oscula as fachadas de grandes janelas e os tetos aligeirados por encantadoras mansardas; e à noite, pelas verberações acolhedoras, amigáveis, dos lindos lampadários de metal espalhados nos largos espaços internos. Elegantes nas suas esguias colunas de metal, abertas no alto em três braços que sustentam as lanternas graciosamente lavoradas.

Creio que seria preciso ver os quatro lados da praça num só olhar, para se compreender a nobreza, a dignidade e a perfeita regularidade da beleza dessa praça.

Ela, como o castelo de Chantilly, é uma expressão toda peculiar do incompará-vel senso artístico da antiga França…

|Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 52 (Julho de 2002)