Corpo humano e sistema feudal

Dr. Plinio não tinha uma mentalidade livresca, mas analisava detalhada e profundamente a realidade, para depois elevar-se à teoria. Comentando diversos aspectos de regiões da Espanha, ele tira luminosas conclusões a respeito da sociedade, a qual, assim como o corpo humano, deve ser organizada feudalmente.

 

Para considerarmos os diversos regionalismos espanhóis, tomemos como exemplo a Galícia. No meu modo de entender, existe uma forma de ser, uma espécie de alma galega, distinta da alma espanhola. Nessa espécie de espírito regional de um órgão da Espanha, chamada Galícia, existe uma mentalidade, uma peculiaridade própria feita para se desenvolver de um modo incompleto com vistas a se fundir num todo maior denominado Espanha.

Galícia, Catalunha, Guipúscoa

Qual o valor, o alcance ontológico da autonomia dessa região? É uma vida própria de um povo que deveria, normalmente, ter chegado a ser independente e autônomo, e sobre o qual a Espanha pesa como um manto de chumbo?

Ou, pelo contrário, a Espanha é um rio do qual a Galícia é um confluente? E esse confluente é feito para morrer no rio principal, fundir-se com ele? Então estes regionalismos não seriam feitos para ter todo o seu desenvolvimento, mas para possuírem uma vida meramente local, fundida numa vida geral?

Todo o problema das autonomias na Espanha tem sua raiz nesta questão. E quando isso não é devidamente considerado, nascem os mal-entendidos.

É possível que alguns desses regionalismos tivessem se desenvolvido quase a nível nacional, fazendo de certas regiões quase nações, e outras que realmente não tendiam a isso. Por exemplo, a Catalunha tem, mais do que a Galícia, ares de uma nação que não chegou a se realizar inteiramente.

Há, portanto, regiões da Espanha que dão a impressão de que talvez, no curso normal da História, deveriam ter tido um desenvolvimento para se tornarem quase completamente nações independentes, com cultura, vida, autonomia quase próprias. Quanto a outras regiões, entretanto, tem-se a impressão de que dariam para uma coisa menor, com formas ou graus de vitalidade diversos.

Por exemplo, Guipúscoa(1), uma região tão pequena, mas com autonomias próprias. Quem julgasse que isso não deve ser assim, faria o papel de alguém que achasse feio o miosótis. Esta é uma flor naturalmente pequena, o que é muito diferente de uma flor que por natureza deveria ser grande, mas nasceu doente. A saúde do miosótis consiste em ter aquele tamanho, com aquele azul forte por onde ele afirma sua presença na ordem do real, de um modo encantador.

Guipúscoa é um miosótis dentro do jardim que é a Espanha.

A alma de uma nação

Essas considerações nos colocam diante do seguinte problema:

Aquilo que nós chamamos a alma de uma nação, ligada à sua psicologia, constitui um todo. A língua e a cultura dessa nação são a expressão da existência real desse todo. Essa alma não existe no sentido pampsiquista ou panteísta da palavra, mas também não se trata de uma mera figura. Há algo próprio a todos os espanhóis no sentido físico, e até étnico da palavra, que constitui um traço comum, orgânico, formando uma psicologia comum.

Essa alma formaria uma cultura, uma civilização, e tem diante de Deus um quê de comum pelo qual ela é capaz de pecar ou praticar virtudes. E isso se deve ao fato, não de que há uma alma ontologicamente distinta das outras, mas é porque esse traço comum existente em toda a nação faz com que esta, às vezes, pratique solidariamente uma virtude ou um pecado. E haja então uma punição ou um prêmio para a nação nesta Terra, pois esse todo não vai ser premiado nem castigado na eternidade.

Temos, assim, a ideia de um certo modo de encaixe da vida. Seria muito útil, debaixo do ponto de vista didático, se pudéssemos mostrar que algo de análogo se dá entre as células e os órgãos, e entre estes e o organismo, porque convenceria muito mais as pessoas da realidade do quadro que acabo de traçar.

Creio que levaria até mesmo os cientistas a explicarem melhor as inter-relações existentes entre as células, órgãos e organismo, e chegaríamos a uma explicação melhor do feudalismo, e do que teve de errado o Estado unitário inaugurado pela monarquia absoluta no “Ancien Régime”(2).

Duas sinfonias

Existe um “principium vitæ”(3) próprio a cada célula. Este princípio corresponde a uma alma, não espiritual, mas biológica. Assim, um órgão seria uma “sinfonia” de milhões de princípios de vida menores, autônomos que, criados por Deus de um modo especial, fazem uma “sinfonia” correspondente ao tipo de vida próprio do órgão, que não é inteiramente o mesmo tipo de vida próprio ao organismo. Este, por sua vez, tem uma espécie de “principium vitæ” atuando em cada célula. De maneira que cada célula seria portadora de seu próprio princípio de vida e de algo do “principium vitæ” do organismo.

Aliás, a possibilidade de se fazerem transplantes de órgãos e de se conservar com vida um membro amputado, por algum tempo, fora do corpo, depõe a favor da existência desse outro “principium vitæ”, além da alma espiritual. Um princípio de uma qualidade tão inferior que o membro ou o órgão não resiste muito tempo fora do organismo, mas este princípio existe.

Isto serve para exemplificar como é o feudalismo e a sua necessidade, pois sendo a natureza tão bem constituída por Deus e havendo no corpo humano tantos elementos análogos à sociedade humana, é compreensível que esta peça para ser organizada feudalmente, por uma razão científica semelhante àquela pela qual o corpo humano constitui um sistema feudal.

Erraria quem visse o feudalismo apenas nobiliarquicamente. Sem dúvida, ele é um conjunto que possui a sua parte nobiliárquica como um componente muito importante, mas contém um mundo de outros corpos, mais ou menos autônomos, com vida própria. Por exemplo, as universidades.

A Igreja é a vida dos Estados

O grande organismo que permanece fora, acima e no fundo dessa estrutura, é a Igreja com sua influência. Ela é uma entidade tão soberana quanto o Estado, mas de uma soberania mais augusta, porque sobrenatural, enquanto a soberania do Estado vem de Deus, mas por ordem da natureza, e não da graça.

A Igreja vive dentro de todos os Estados ao mesmo tempo, e o Estado, enquanto tal, não vive dentro da Igreja, embora possa ser um Estado católico. Por exemplo, não posso dizer: a Espanha é membro da Santa Igreja Católica. Enquanto nação, não é. Os espanhóis, sim, são membros da Santa Igreja Católica.

Então, os Estados não vivem na Igreja, mas esta vive nos Estados e é a vida dos Estados. E a Igreja, que bem compreendida é inimiga da República Universal, é, entretanto, uma sociedade internacional sobrenatural imensa que realiza a mais radical e perfeita universalidade que se possa e se deva desejar. Daí o fato de toda a estrutura hierárquica da Igreja não estar sujeita às leis penais do Estado.

Contudo, isso é assim em certos pontos, em outros não. Por exemplo, numa igreja em torno da qual haja um jardim onde, de vez em quando, se faça uma festa beneficente e outros atos do gênero, o Estado tem o direito de exigir da Igreja que mantenha limpo, decoroso e belo esse jardim. Nesse pormenor, a Igreja não é independente. É uma das razões pelas quais o clero fazia parte dos Estados Gerais(4). É uma complexidade lindíssima, e que é preciso saber admirar. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1991)
Revista Dr Plinio 198 (Setembro de 2014)

 

1) Província do País Basco, localizada no Norte da Espanha.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do latim: princípio de vida.

4) Órgão político de caráter consultivo e deliberativo constituído por representantes do clero, da nobreza e do povo.

Nossa Senhora das dores e o amor à incomodidade

Apresentamos aos leitores um comentário de Dr. Plinio acerca de um trecho de D. Guéranger, abade beneditino de Solesmes, a propósito da festa das Sete Dores de Nossa Senhora. Assim se denominava então a comemoração do 15 de setembro, que hoje se chama “Nossa Senhora das Dores”.

D. Guéranger mostra como Deus envia sofrimentos àqueles a quem ama, e como entre todas as  almas, depois da de Jesus Cristo, a mais amada por Deus foi a de Maria Santíssima, sujeita aos mais indizíveis padecimentos. Referindo-se às Sete Dores de Nossa Senhora, explica D. Guéranger que a Igreja se deteve no número sete pelo fato de este exprimir sempre a ideia de totalidade e universalidade, ou seja, todas as dores.

 

Hoje é festa das Sete Dores de Nossa Senhora, colocada com muita propriedade logo depois da festa da Exaltação da Santa Cruz. Essa festa mariana foi estendida a toda a Igreja por Pio VIII, em agradecimento pela intercessão da Santíssima Virgem na libertação de Pio VII.

A principal prova do amor que Deus tem por nós são os sofrimentos que nos envia São tantos os pensamentos que nos vêm a propósito do texto de D. Guéranger, que seríamos tentados a desenvolver excessivamente estas palavras. Parece-me entretanto oportuno concentrarmo-nos somente em duas idéias.

A primeira delas é esta: que Deus, tendo amado com amor infinito ao seu Verbo Encarnado, a Nosso Senhor Jesus Cristo, e tendo amado com amor inferior a este, mas superior a todos os outros amores, a Nossa Senhora, deu-lhes tudo quanto há de bom. E por isso, deu-lhes também aquela imensidade de cruzes que, no caso de Nossa Senhora, é representada pelo número sete. Sete dores é também o símbolo de todas as dores. E Nossa Senhora poderia ser  chamada perfeitamente Nossa Senhora de Todas as Dores.

Por causa disso, se é verdade que todas as gerações a chamarão Bem-Aventurada, a um título menor, mas imensamente real, todas as gerações poderão também chamá-la “infeliz”.

Se isso é assim, nós deveríamos compreender melhor que quando a dor entra em nossa vida, estamos recebendo uma prova do amor que Deus tem por nós. E que enquanto a dor não penetrar em nossa existência, nós não temos todas as provas desse amor de Deus. E eu acrescentaria que não temos a principal prova do amor de Deus para conosco.

O que isto significa? Há membros de nossa família de almas para cujas fisionomias eu olho e, depois de analisá-las, sou levado a pensar: a este, falta-lhe ainda sofrer, falta no fundo uma nota de maturidade, uma nota de estabilidade, uma nota de racionalidade, uma elevação que só tem aquele que sofreu, e que sofreu muito. Quem leva uma vida sem sofrimentos, leva uma vida em que essas notas não transparecem na fisionomia. E o que é muito pior: não transparecem na alma.

Nós devemos nos convencer de que isso é assim, ou seja que sofrer é um dom de Deus. E que quando começam acontecer os contratempos — as dificuldades com o apostolado, os mal-entendidos  com os amigos ou com nossos superiores, a saúde que anda mal, os negócios que dão errado, as encrencas dentro de casa — não devemos tomar tudo isso como um bicho de sete cabeças. Nós não devemos, imitando a mentalidade holywoodiana, exclamar impacientes: “Como foi que uma coisa dessas pôde acontecer?”

Não, essa não deve ser nossa atitude! Quando não sofremos, aí então é que devemos nos perguntar perplexos: “Como é que está acontecendo isto: eu não estou sofrendo nada!?” Pois o normal é  sofrer. Aquele a quem Deus ama, aquele a quem Nossa Senhora ama, esse sofre! Deus não pode recusar a um filho a quem ama aquilo que Ele deu em abundância aos dois entes que mais amou, que são Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.

Devemos pois nos imbuir bem da ideia de que o normal na vida é sofrer. Sem dúvida devemos pedir à Providência que nos livre das privações, das provações, das crises nervosas e de toda espécie  de coisas penosas, mas se estiver nos planos da Providência que sejamos submetidos à prova, devemos bendizer a Deus, bendizer a Nossa Senhora por estar sofrendo.

São Luís Grignion chega a dizer que quem não sofre deveria fazer peregrinações e orações pedindo o sofrimento, embora ele condicione tal pedido à aprovação de um diretor espiritual, porque se trata de uma súplica muito séria. Mas ele diz isso porque sabe que quem não sofre não vai indo tão bem na vida espiritual quanto poderia ir, e às vezes vai indo inteiramente mal.

Todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor são incômodos

Bossuet tem uma expressão estupenda a respeito de Nosso Senhor Menino: “Aquele Menino incômodo”, que se aplica a todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor: são incômodos eles também.. Às vezes, tenho a seguinte sensação experimental: começo a dar um conselho, a dar um exemplo, a pedir um sacrifício, e no semblante do interlocutor vai aparecendo algo que revela serem incômodas as minhas palavras para ele. Como seria mais fácil para mim contar uma piada, fazer uma brincadeira, acabar a conversa com um tapinha nas costas e dispensar o outro de uma  obrigação! Como o mando seria agradável se fosse isso!

Mas mandar é o contrário. Mandar é estar exigindo que o subordinado tome as coisas a sério, que as olhe pelo seu lado mais profundo, mais alto e mais sublime. Que veja de frente sua própria alma, que se examine a si mesmo detidamente, procure corrigir efetivamente e seriamente seus defeitos. Mas como isso é incômodo! Pois bem, o peso de sermos incômodos é um dos maiores pesos que existe e também este nós devemos carregar.

Nossa Senhora teve um filho que lhe trouxe tantos divinos incômodos. Quando meditamos sobre a dor d’Ela, sobre a seriedade e a sublimidade da existência d’Ela e de nossa própria existência, Nossa Senhora das Dores também se torna para nós maternal e estupendamente incômoda.

A resignação alegre diante dessa incomodidade, a coragem de sermos incômodos em todas as circunstâncias, o amar de preferência aos nossos amigos incômodos, que nos lembram oportuna ou importunamente o dever: essas são as virtudes que no dia das Sete Dores de Nossa Senhora devemos pedir a Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira

A beleza da luta – I

Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, precisam compreender a beleza da luta.

 

Devemos fazer algumas considerações à vista de ilustrações representando cenas de batalhas medievais, desenhadas pelo famoso desenhista francês do século XIX, Gustavo Doré.

Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente o assunto.

A paz é a tranquilidade da ordem

Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.

São desenhos da escola romântica, com os defeitos desta escola, mas também com algumas qualidades que existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais para o sentimento. Doré procura impressionar a fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa levar apenas pela impressão.

De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar, elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É o que acontece com as batalhas medievais.

Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando aquilo em que o homem da Idade Média era muito sensível, que era o “pulchrum” do combate. Como o combate é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos estados de alma do católico, em que a virtude católica se faz sentir de um modo excelente.

Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea, essencialmente pacifista, mas pacifista de um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um conceito errado de paz.

Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem, reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia é a paz.

Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz, mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo, numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá: “Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela desordem não proporciona a verdadeira paz.

A tranquilidade da desordem é o contrário da verdadeira paz

Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é, a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem. Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade da desordem é nojenta, porque é o contrário da paz verdadeira e incute desprezo.

Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975. Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas. Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes das portas do estabelecimento, para atrair mais os clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.

Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11 horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns caminhões com o que havia de mais jovem no exército comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando ordens superiores.

Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada: “Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida vai continuar na mesma.”

Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina gritou para o “barman”: “Traga-me uma “champagne!” O “garçon” trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a quem bebia a “champagne”:

— Mas o senhor está festejando o quê?

Ele respondeu:

— Eu estou festejando minha última “champagne”. Os comunistas vão entrar, não vou ter mais “champagne”. Não sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber minha última “champagne” na paz!

Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.

Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem que amamos, porque amamos o Altíssimo.

Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos, mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca, chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação de uma desordem: marido e mulher estão brigados, quando deveriam estar unidos.

O verdadeiro heroísmo é um dos garbos da Idade Média

Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes luta-se de modo terrível para conseguir a paz!

Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa, que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!

Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora um esteja errado e outro não.

Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro depende da interpretação de tratados que, por vezes, são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro não está de acordo. Então se combatem.

Há um modo nobre de combater de ambos os lados que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles que lutam. Aquele que combate admite que o outro esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está de boa-fé.

Portanto, não é como quem avança em cima de um bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro, ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas não tem remédio: vão para a guerra!

E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo, é a varonilidade de um que se choca com a do outro.

Mas como do choque de duas pedras muito duras parte uma centelha, assim, do choque de dois homens muito duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a manifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado, nobre é um dos garbos da Idade Média.

Gustavo Doré soube representar a beleza do heroísmo

Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.

É muito importante que os contrarrevolucionários, os que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, compreendam seriamente a beleza da luta.

Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos de Gustavo Doré.

Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha. Na primeira fileira se discernem mais facilmente os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes, espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos que mostrassem por que eles lutavam.

Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele combatente; e que esse exército deu um primeiro choque, reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e está avançando sobre cadáveres.

O campo de batalha é representando num dia bonito e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim, uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem. Daí não resulta choradeira, e sim a glória.

A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro é o da “bataille rangée”, e depois, da “bataille mellée”. A “bataille rangée” era em filas. Antes de começar a luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes, um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito. Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor, o ataque de cavalaria de lado a lado.

Episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados

Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo movimento. Ali está um homem que quis atentar contra o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro, com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.

Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto principal do quadro. O aspecto principal da cena é a admiração, portanto a coragem, a glória.

Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para outro e, em certo momento, encostavam na muralha e saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada na mão, está lutando e descendo magnificamente.

No lance aqui representado, os maometanos que dominavam Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados. Mas houve um determinado momento onde, por disposição da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente, os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram. Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em primeiro lugar.

Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros. Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para lá, e eles ficam sentados, numa tenda.

Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos. E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita de ouro.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1988)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)

Um grande ato de Fé

Ao comentar a cerimônia de coroação do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, realizada na Basílica de São Pedro e narrada em tom declamatório, Dr. Plinio faz reviver um passado tão amado por ele.

 

Diz-se que o tempo irreparável foge, e é verdade. Mas nas páginas da História, debaixo de certo ponto de vista, ele para.

O passado não morre

Embora, na aparência, o passado seja objeto dos esquecimentos mais monumentais, ainda que ele possa parecer morto, enterrado e sepultado completamente pela avalanche dos fatos novos que vêm, há em certos aspectos do passado qualquer coisa que lhe assegura a perenidade e faz com que, por exemplo, no tempo em que a cerimônia aqui descrita se realizava, neste lugar onde nos encontramos — talvez sede de uma taba de índios ou um matagal, não se sabe que espécies de onças, tatus, insetos, serpentes rondavam e rastejavam por aqui —, ninguém haveria de imaginar que, passados tantos episódios, ocorridas tantas revoluções, de tal maneira convulsionado o curso da História, no ano de 1984 a cerimônia renasceria lindamente declamada para uma juventude que ouve entusiasmada!

Passou o tempo para esta cerimônia? Sim e não. Ela não se realiza mais, está nos arquivos e, de algum modo, misturada com a poeira do passado. Sobre ela poder-se-ia dizer, meneando a cabeça: “fugit irreparabile tempus…” Mas, de outro lado, “non fugit”! Ficou uma nostalgia, uma saudade, a afirmação de algo de perene que existe nesta cerimônia.

Assim, quando ouvi, narrado há pouco, o cerimonial da coroação do Imperador do Sacro Império, e evocadas, com uma saudade cheia de apetência, as cerimônias das repúblicas aristocráticas ou burguesas e corporativas da Idade Média, pensei: “O passado não dorme, não morre! Ele é como um rio que, às vezes, afunda na terra, como se desaparecesse, mas renasce mais adiante!”

Todas essas recordações reaparecem, não é possível estancá-las, pela graça de Deus. Uma das riquezas do passado está nisto: a declamação. Paulo VI disse que estávamos na civilização da imagem, e para tal civilização esta declamação poderia parecer uma coisa envelhecida, pois todo mundo quer ver, ninguém deseja ouvir.

Entretanto, é feita aqui a declamação segundo os cânones antigos, para descrever uma cerimônia antiga, e todos prestam mais atenção do que se presenciassem um espetáculo de televisão. Quem ousa dizer que todo o passado morre, que para tudo foge o tempo, e que não há valores perenes na História dos homens? Ó ilusão! “Non fugit irreparabile tempus!”

Feitas essas considerações, passo ao comentário que me pediram.

Vivacidade do povo italiano

Roma, a cidade dos Papas, gozava de certa autonomia municipal em relação ao Sumo Pontífice. Por isso, sob certo ponto de vista, poderia ser comparada a uma república municipal. Iam, portanto, de encontro ao Imperador do Sacro Império os dignatários do que poderíamos chamar, para simplificar, de república municipal romana.

Consideremos os pormenores do cerimonial.

“Em breve, o longo e lento cortejo cruzará as muralhas da cidade de Roma. Cerca de duas ou três horas antes do momento marcado para o encontro com o Imperador, já o cortejo está organizado dentro da cidade.”

A Itália sempre vivaz, alegre e cheia de meninos dispostos a exclamar, a bater palmas, a vaiar, enfim, a se manifestar. No meu modo de sentir, as velhas loquazes e os meninos manifestativos marcam especialmente a vivacidade italiana.

E enquanto tudo se organiza dentro da seriedade, com as pessoas vestidas em trajes próprios às suas funções, perfilando-se e alinhando-se, podemos imaginar no meio disso o pitoresco da vivacidade romana:

Uma menina que grita para o pai:

— Não deixe de pedir ao Papa tal coisa!

Ele, solene, faz um sinal para não perturbar a cerimônia…

Ela, correndo, leva uma florinha a um senhor e diz:

— Leve para o Imperador de minha parte.

O homem sorri, e guarda a flor no bolso.

Mais adiante, um indivíduo cobra uma dívida de outro que está montado a cavalo. Pouco mais à frente, antes de iniciar-se o cortejo, está um, por via das dúvidas, acabando de comer um pedaço de pão com queijo.

Afinal, os sinos começam a tocar e o cortejo lentamente se põe em marcha através da cidade. As velhas portas se abrem — sérias, solenes, veneráveis — e o cortejo penetra no campo.

Juramentos prestados pelo Imperador

“Do Monte Mário partiu o Imperador, acompanhado dos seus guerreiros germanos, bem como seus prelados, abades e bispos. Os dois cortejos se encontram a certa altura do trajeto. Do lado da municipalidade de Roma, todos apeiam. O próprio Imperador desce do cavalo para saudar o povo romano que veio a seu encontro.”

São gentilezas: o Imperador não apeia do cavalo para saudar algumas pessoas, mas para saudar o povo romano que vai hospedá-lo!

Os representantes da cidade de Roma tiram seus grandes chapéus de veludo, bordados a ouro, com pedras preciosas e fazem uma profunda reverência. O Imperador os recebe com uma bondade monumental!

Na continuação da cerimônia, o Imperador deverá entrar com suas tropas na cidade de Roma. Ora, nem sempre a recordação das tropas imperiais é muito pacífica… A nação alemã é valente, intrépida e muito empreendedora. Tropas armadas, numa cidade desarmada, podem levantar interrogações…

“A municipalidade, na pessoa de seus representantes, avança com uma linda almofada sobre a qual está um belo ritual, contendo um juramento que o Imperador deve prestar antes de transpor os umbrais das portas de Roma.”

É o juramento de respeitar as liberdades da cidade de Roma, ou seja, não empregar a força e permitir que Roma continue a se reger de acordo com os seus privilégios.

O Imperador sabe que isso é uma formalidade, pois ele entra em Roma sem qualquer intenção de atacá-la. Durante séculos seus antecessores foram obrigados a prestar este juramento, no tempo em que ele era indispensável. Criou-se, assim, um hábito, e pela força do costume, com o passar do tempo, os imperadores já não podiam sequer pensar em violar esses privilégios. A tradição amarrava o braço forte do maior monarca da Terra!

Vamos supor que ele não jurasse. O cortejo voltaria e as portas de Roma se fechariam. E era preciso começar a guerra. Mas, se houvesse guerra, não haveria coroação. E, se não houvesse coroação, os seus vassalos não lhe prestariam obediência. Ele tinha, portanto, interesse fundamental em prestar o juramento.

O Imperador transpunha aquelas portas e provavelmente a cidade inteira o recebia cantando “viva o Imperador!” etc., até chegarem à ponte do Castelo de Sant’Angelo, antigo sepulcro do Imperador Adriano. Atrás daquela fortaleza, o Papa recebia o Imperador que, de joelhos, prestava outro juramento de fidelidade.

O Imperador é elevado à condição de subdiácono

Depois, o cortejo seguia para a Basílica de São Pedro e começava a cerimônia, que tinha por eixo o Santo Sacrifício da Missa. Nada é mais razoável, nada está mais de acordo com a Doutrina Católica do que isto. Por ocasião da posse, da investidura do Imperador, como em todas as grandes ocasiões da vida, uma Missa.

Daí o costume de, por exemplo, celebrar-se o Matrimônio durante uma Missa; Missa para Bodas de Prata, Bodas de Ouro, para solenidades, como uma formatura, e outras semelhantes. Algo desta tradição permanece até hoje: alguma coisa é grande, liga-se à Missa. Porque a Missa, sendo a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, tem papel central, é o ato mais importante em todo o culto católico.

Então, a Missa é celebrada, mas não sem algumas cerimônias iniciais. Em certo momento dá-se um fato muito importante: O Imperador é elevado à condição de clérigo.

Quer dizer, tinha-se em tão alta consideração o clero que, para honrar o Imperador e lhe assegurar a invulnerabilidade, ele — o maior hierarca da sociedade temporal — era honrado ao receber um lugarzinho nos degraus da hierarquia eclesiástica, ocupando o posto de subdiácono. É uma pequena participação, mas honra o Imperador. Vestido de clérigo, ele entra na Basílica para, então, ser coroado Imperador. Vemos como o clero é colocado num píncaro que indica bem o caráter sacral dessa civilização.

Solenidade e grandeza

Um indivíduo “modernizado” poderia objetar: “Por que isso não se fez depressa? Por que não se ganhou tempo? Não se poderia fazer com que ele, ao mesmo tempo em que recebesse a condição de clérigo, fosse coroado ato contínuo? Dispensasse os cânticos, a entrada lenta em cortejo, a capela onde ele punha aquela roupa pomposíssima?”

A resposta é muito simples. Essas diversas fases da cerimônia devem se realizar em atos separados, lentamente e com solenidade.

A solenidade é um modo de fazer as coisas, por onde a grandeza delas aparece por inteiro. Por exemplo, uma Missa solene é um modo de cantar ou de rezá-la pelo qual a grandeza intrínseca dela transparece de modo sensível. A posse solene de um chefe de Estado, a coroação de um rei ou de um imperador é solene porque faz aparecer, aos olhos do povo, a grandeza da condição que aquele homem vai assumir naquele momento.

Poderia nascer outra pergunta: Para que revelar a grandeza intrínseca das coisas?

A resposta, ainda mais uma vez, é muito simples. Deus quis que sua glória fosse revelada aos homens de inúmeros modos sensíveis. “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”, diz a Escritura(1). Portanto, o Criador quer que suas criaturas conheçam a grandeza d’Ele; e para que esta grandeza seja conhecida, é preciso que ela se manifeste.

A solenidade, por sua vez, tem que ser séria, compenetrada, vivida por almas ávidas de grandeza e contentes por ver a grandeza reluzir em quem é mais do que elas e vê-la reluzir, participativamente, nos menores.

Não há o que não tenha grandeza, em grau maior ou menor. Um lixeiro, um sapateiro: suas tarefas têm grandeza. E é preciso que essa grandeza reluza aos olhos dos homens. Então, daí a solenidade.

Por que a lentidão? Porque nada que se faça com grandeza pode ser executado depressa. A pressa é inimiga da grandeza.

Assim, é preciso que os vários atos de que consta a coroação sejam separados uns dos outros, e que se sinta, se manifeste a grandeza própria do fato de o Imperador tornar-se clérigo. O império cresce e a Igreja manifesta o seu esplendor. Por isso é mister haver uma cerimônia específica para esse ato.

União entre a Fé e o poder

É necessária outra cerimônia para o momento em que o Imperador se reveste das suas insígnias, quando se manifesta a beleza da ordem temporal e não mais a da ordem espiritual. Pulcritude menor em relação à beleza espiritual, mas uma grande beleza, pois Deus é Autor também da ordem temporal.

Depois, o hierarca temporal, em solene cortejo dentro da Basílica, vai até o trono do Papa. A grandeza das grandezas está lá: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”(2). Magnífico!

Assim, o povo vai olhando e compreendendo cerimônia por cerimônia. O canto, o órgão espalham suas harmonias pela Basílica, as velas brilham, o incenso se faz sentir, os sinos tocam; é um mundo de harmonias dentro do qual o povo contempla a grandeza do Papado, a grandeza da Igreja, a grandeza do Império.

O Imperador avança e chega junto ao trono do Papa. Primeira coisa: ajoelha-se. Aquele César, cercado de tropas, se curva reverente!

O Papa lhe dá um anel, símbolo da Fé e do poder. Que linda conjugação: a Fé e o poder! Como fica bonito o poder a serviço da Fé! Como fica faltando alguma coisa a todo o bem-estar da Fé, quando o poder não está a serviço dela! Que coisa bruta e ameaçadora o poder nas mãos do homem que não tem Fé! A Fé e o poder se unem; começa a Missa…

O Rei da França canta a Epístola, o Rei da Alemanha canta o Evangelho. França e Alemanha junto ao altar de São Pedro, unidas pela participação comum dos respectivos chefes de Estado numa cerimônia incomparável!

Esta cerimônia, ápice de todas as cerimônias, é a Santa Missa. Se esse símbolo tivesse sido tomado a sério, e se os dois monarcas depois se amassem como deveriam se amar; se ao longo da História a França tivesse sabido ser sempre a irmã da Alemanha, e a Alemanha a irmã da França, como o curso da História teria sido diferente! E como a civilização humana estaria mais alta!

Magnífica afirmação da solidariedade, da complementaridade destas duas nações, que em determinado momento histórico representavam o verso e o reverso da medalha, o lado direito e o lado esquerdo da fisionomia humana.

Eloquente sinal de unidade

Mas algo de muito mais augusto estava para se passar ainda nessa cerimônia. Era a união entre a Igreja e o Estado, que é simbolizada deste modo estupendo: o Santo Padre fragmenta a Hóstia em duas partes iguais. Comunga uma, e dá a outra ao Imperador para comungar. Eu não conheço um sinal mais tocante de unidade do que este.

A cerimônia chegou ao auge; e tudo quanto chega ao auge, termina. É a tristeza das coisas desta vida. Os sinos da Cidade Eterna começam a tocar, o Papa retira-se antes, carregado na sua Sede Gestatória porque ele vale mais do que o Imperador, acompanhado pelo amor de todos os que ali se encontram, deixando no meio do povo os maiores potentados da Terra: o Rei da França e o Imperador do Sacro Império; fecha-se com Deus em seus aposentos e se entrega a seus trabalhos e a suas cogitações, para governar a Santa Igreja.

Os séquitos dos dois monarcas, por sua vez, saem da Basílica, separam-se e se dirigem pomposamente para as residências deles na cidade de Roma. Aos poucos o povo escoa. Na Basílica fica apenas uma ou outra luz acesa, uma ou outra pessoa rezando — alguma mãe de família, algum oficial, algum clérigo, alguma freira —, com a alma cheia daquilo que viu.

Aos poucos esses também saem, e se fecham as portas da Basílica. É noite sobre a cidade de Roma… Nos conventos de oração perpétua ainda se reza; nos outros, todos dormem. Sobre a urbe vela apenas o Anjo de Roma.

Mas nas almas de todos reluzem mil policromias, cantam mil polifonias, mil harmonias, sobretudo canta um grande ato de Fé! Está coroado o Imperador do Sacro Império Romano Alemão! v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/11/1984)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)

 

1) Sl 19, 1.

2) Mt 16, 18.

Senhorio, patriarcado e profetismo

Muitos afirmam que o quarto Mandamento se aplica tão somente aos filhos em relação aos pais. Entretanto, ele se refere também a toda autoridade legítima, a qual deve ter algo de paterno e precisa ser honrada; a tintura-mãe de todas as autoridades é o patriarcado.

 

Pediram-me que falasse sobre o senhorio do ponto de vista sobrenatural, e depois profético.

A ser dada uma definição filosófica do senhorio, provavelmente se diria o seguinte:

Senhorio e tendência para o mais elevado

Todo ser, para sustentar-se na própria existência, tende à consideração de um outro ser mais elevado, que é mais plenamente ele, e representa aquilo que ele deveria ser.

E na constatação de que encontrou um mais pleno, o indivíduo que está abaixo recebe uma espécie de corroboração de todo o seu ser e, melhor dizendo, de todas as suas profundidades. Ele, por assim dizer, floresce e frutifica com mais riqueza, mais abundância, etc., por causa desse contato. E, com isso, é levado naturalmente ao respeito e à obediência. Porque o menos que encontra a plenitude é levado ao respeito desta. Respeito se define como sendo a atitude, a disposição de alma daquele que é menos em relação àquele que é mais.

E aquilo que quem é mais possui não ficou amaldiçoadamente ingurgitado dentro de si, mas ele soube dar de acordo com a ordem que é interna nele, como ele de outrem recebeu. Aquilo que recebeu, ele entende que deve dar, que, na ordem do ser, ele deve fazer isto.

De maneira que, falando de um modo inteiramente teórico, isso chega até ao trabalho manual, onde o homem, que é senhor da natureza, acaba fazendo a esta o bem que recebeu de um que, na ordem das relações humanas, é superior a ele. E, no tapete da natureza, podemos deixar essas relações paradas; de fato, elas não morrem, mas, para nossa análise no momento, como que morrem.

O patriarca e a primogenitura

Consideremos o patriarca, que deve ser em tese o ponto de partida genealógico da tribo. Aí ele é patriarca no sentido pleno da palavra. E num sentido menos pleno, mas real, digno, autêntico, quando ele é primogênito de uma série de primogênitos.

Qual é a razão pela qual o patriarca deve ser a plenitude dos que dele descendem? Pelo fato de ele ser a origem genealógica. Além de outras superioridades, ele deu a transmissão da vida, a qual é uma ação que tem semelhança com a criação e, portanto, enquanto tal, é análoga, semelhante a Deus de um modo esplêndido.

Naturalmente, o patriarca tem por isso uma plenitude a um título especial. Mas, acho que há um carisma ou uma graça especial no patriarca, por onde ele fica com uma plenitude maior do que todos os outros, pelo fato de ser fundador daquela família. Há algo que parte dele e se distribui aos outros pelos desígnios da Providência, e que não é apenas na hereditariedade física, mas também nas relações das almas, por onde ele é a pessoa por excelência da raça que ele fundou. E na qual os outros se miram como na sua plenitude, ainda na ordem natural, mas de um matiz vivo muito especial.

Sente-se bem isso considerando a questão dos primogênitos.

O primogênito é o elemento mais nobre da família porque, com a primogenitura, entra uma participação mais nobre no patriarca, e há uma espécie de herança patriarcal que, de fato, é uma fonte de plenitude e de nobreza maiores por essa razão.

No episódio narrado no “Êxodo”, aquilo que o Egito tinha de mais nobre, inclusive os primogênitos dos escravos, foi dizimado. E para mostrar como existe algo de físico nisso, até os primogênitos dos animais foram exterminados. Quer dizer, há uma certa excelência na primogenitura até enquanto animal, que coexiste no homem com outras excelências. Isso torna o patriarca especialmente sagrado, do sagrado natural.

Toda autoridade deve ter algo de paterno

A autoridade do patriarca não encontra na autoridade do rei senão a plena expressão de si própria, como o Estado e a sociedade humana são expressões inteiras da tribo primitiva. Mas, todas as autoridades têm alguma coisa de paterno. A autoridade que não tenha algo de paterno não é verdadeira autoridade.

Neste sentido é que honrar pai e mãe significa honrar toda autoridade. Segundo o que corre por aí, honrar pai e mãe só se aplica aos pais, de maneira que quem tratar, por exemplo, o prefeito, o delegado ou o diretor do colégio como se trata um colega, não pecou contra o quarto Mandamento. Essa é a interpretação miserável, a versão simplista que se propaga.

Mas de tal maneira o princípio “princeps” está no patriarcado, que a tintura-mãe de todas as autoridades está no patriarcado. E toda autoridade é, por si, paterna.

O sobrenatural é um reflexo do esplendor de Deus

Podemos agora passar para o plano sobrenatural.

O sobrenatural é uma participação na vida divina, que nos foi obtida mediante a Redenção feita por Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta participação eleva o homem a um grau de vida que ele não tem, mais ou menos como se um animal tivesse participação na inteligência do homem.

Não é um grau de vida a mais, como a participação da condição angélica, mas é participação na vida de Deus, que tem uma perfeição maior do que qualquer outra; é a suma perfeição. Nosso Senhor disse: “Eu vim para que tenham a vida, e para que a tenham abundantemente”(1). Então, o sobrenatural confere ao homem um esplendor de vida, uma irradiação, uma força que o comum não tem, e que é um reflexo do esplendor de Deus.

Originariamente falando, o patriarcado teria dois sentidos: o patriarcado de Pedro, o qual, por razões óbvias, tem o poder das chaves e está na regulação de toda economia que diz respeito à salvação dos homens, através da Igreja. Depois o do bispo, do vigário, da Hierarquia Eclesiástica.

Assim como a ordem sobrenatural é lesada por qualquer violação da ordem natural, ela é propícia a toda observância da lei natural. E as obrigações naturais entre o patriarca católico e o membro de sua grei, também católico, passam, portanto, a ter um caráter sobrenatural porque são operações que a graça favorece; a má ordenação dessas operações pode determinar a cessação do estado de graça, e sua boa ordenação pode ocasionar o incremento da graça. E, portanto, isso se envolve completamente com a graça e tem algo de participativo na graça, como toda ação moral do homem é um elemento de sua moralidade. E isso transparece nas relações.

O patriarca católico de uma tribo católica

Então, tomando, por exemplo, um patriarca antigo que, em virtude dos meros princípios da revelação primitiva e da lei natural, é um patriarca, ele pode ser muito venerável, mas não é um patriarca naquela plenitude em que o é um patriarca católico de uma tribo católica. É completamente diferente.

Esse poder patriarcal como que deixa transluzir, aparecer, a graça em tudo, mais ou menos como muitas vezes se nota numa igreja a presença do Santíssimo. Assim também é essa graça nas relações patriarcais.

Depois, por transposição, tudo isso se diz de todas as outras autoridades. Daí a unção do rei — a qual é um sacramental ­­— ou de quem governa o Estado em outras formas de governo; este último não é ungido, mas poderia ser se ele fosse pelo menos vitalício. Aliás, certos sacramentais não são vitalícios. Daí o caráter patriarcal e nobre de todas as relações superior-súdito dentro da Cristandade.

O Fundador de uma família de almas

O que é Cristandade?

É uma sociedade na qual as relações sociais têm essa infusão do sobrenatural e reluzem com esse esplendor sobrenatural a um título especial. Aqui entra a questão da chave de prata, e tudo que consta do livro sobre a Cristandade(2). E a um outro título é patriarca quem funda uma família de almas. É até mais nobre do que ser patriarca, no sentido genealógico da palavra.

Eu acabo de fazer os maiores elogios do patriarcado, no sentido genealógico. Mas ser ocasião para que se forme uma família de almas e atrair essas almas para esta família, é muito superior. Basta ver as cartas dos jesuítas do tempo de Santo Inácio — São Francisco Xavier, por exemplo —, a seu Fundador, para se compreender bem o que representava e o que representa o patriarca de uma família espiritual.

A respeitabilidade suma de São Bento…

Qual é o papel do senhorio dentro disso? É o mesmo sobre o qual falei no começo; a irradiação dessa plenitude, desse vínculo patriarcal, leva ao respeito e à obediência. É por excelência o senhorio.

Profetismo

Profeta não é apenas, nem principalmente, aquele que prevê o futuro, mas quem abre uma via pela qual os povos devem seguir, porque ele recebe de Deus uma missão para isso. Neste sentido, ele prevê o futuro, quer dizer, intui, discerne, ainda que passo a passo, o que tem que ser feito no momento em que cada parcela do futuro vai se tornando presente; ele sabe qual é o passo que deve ser dado.

Profetismo, no que diz respeito à salvação, é um carisma sobrenatural. É, digamos, a plenitude do patriarcado espiritual quando o patriarca é profeta também. Porque nesse caso ele abre as vias, na ordem espiritual, muito mais do que o simples patriarca. E o profetismo tem, evidentemente, a tal título, um senhorio ainda maior do que a paternidade espiritual, quando ela não é acompanhada do profetismo.

No profeta, ainda que seja um homem não bom, mas se tem o carisma profético, nele, enquanto profeta, reluz algo especial de Deus. Portanto, daquela plenitude venerável, que é senhorial e ocasiona o senhorio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/2/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)

 

 

1) Jo 10, 10.

2) Cristandade, a chave de prata. Obra cuja redação foi iniciada por Dr. Plinio em 1950. Ver Revista “Dr. Plinio” n. 18, p. 18-21; n. 32, p. 5; n. 45, p. 23-26; n. 46, p. 19-24.

A Cruz, glorioso símbolo da vitória

As  festas litúrgicas, sabiamente instituídas pela Santa Igreja, nunca carecem de profundo significado e inestimável riqueza. Dessa forma, a doutrina católica explica que mais valem as cerimônias do que até mesmo os documentos pontifícios, alegando serem elas mais marcantes e benéficas às almas que nelas tomam parte.

Entre tais cerimônias, distingue-se a da Exaltação da Santa Cruz. A cruz, na qual morriam os condenados por graves delitos, era por esse motivo símbolo de ignomínia e repulsa por parte dos antigos, como bem expressou São Paulo em sua carta aos Coríntios: “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cf. Cor. 1,23). Foi esse o instrumento pelo qual o Redentor abriu ao gênero humano as portas do Céu, transformando-a em sinal de nossa Fé.

Vejamos o significado e a riqueza dessa festa, como explica Dr. Plinio a seguir:

“Hoje, 14 de setembro, comemora-se uma das mais bonitas festas como título e significado: a Exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Exaltar quer dizer tornar alto. E neste dia a Igreja proclama e lembra ao mundo que Ela levanta acima de todas as coisas, pondo na maior de todas as alturas possíveis, a Cruz de Nosso Senhor.

“A Cruz é o símbolo da Paixão de Cristo, de todo sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em união com o Redentor, as portas dos Céus.

“Colocar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo no ponto mais alto foi uma constante preocupação da Civilização Cristã. Antigamente, os edifícios mais elevados de uma cidade eram as igrejas, em cujas torres colocava-se a cruz; o mesmo se fazia no alto das coroas dos reis. Quando se queria elaborar um documento muito importante, em seu início se inscrevia a cruz. Enfim, em tudo aquilo que o homem concebia de mais elevado, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual trazia consigo a ideia de que a missão d’Ele, não se esgotando na Cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central; e entre todas as coisas que o Divino Salvador tinha feito, o mais admirável e adorável era ter sofrido e morrido na Cruz.

“A aceitação do sofrimento é uma imolação e representa um ato de fidelidade do homem à sua própria vocação, em função da qual ele enfrenta as lutas, os tormentos e as dificuldades.

“Nosso Senhor Jesus Cristo, para redimir o gênero humano, aceitou a morte. Manteve a luta no Horto das Oliveiras, depois caminhou até o alto do Calvário e foi crucificado, para realizar a sua missão. E a Cruz é a afirmação de que nós, católicos, aceitamos ser humilhados, odiados, combatidos, isolados, escarnecidos, perseguidos de todos os modos, não como um armazém de pancadas, mas caminhando de encontro ao sofrimento como um cruzado.

“A verdadeira alegria da vida não consiste em ter prazeres, mas sim na sensação de limpeza da alma que temos quando olhamos nossa cruz de frente, e dizemos “sim” para ela. Fazemos, assim, como Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual não apenas permitiu que o tormento caísse sobre Ele, mas caminhou em direção ao tormento. O Redentor previu, entregou-se porque quis e, com passo valoroso, levou sua Cruz até o alto do Calvário e ali se deixou crucificar.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/9/1964)

Perfeição do universo: unidade e variedade

Apresentando diversos e significativos exemplos, Dr. Plinio mostra que há duas formas de beleza: uma proveniente da unidade e outra da variedade. Deus, tendo feito a Criação, quis que alguns seres representassem sua unidade, e outros, pela variedade, exprimissem sua beleza. Por isto, a unidade e a variedade são muito bonitas, sobretudo quando se harmonizam entre si.

 

A hierarquia angélica não é formada apenas de uma série de seres distintos, mas esses seres constituem uma escala de poderes, mantendo uma relação de mando entre si. Portanto, tendo criado tantos seres desiguais, Deus os relacionou entre si em uma escala admiravelmente organizada.

Contudo, surgem as seguintes perguntas: Não seria mais perfeito se Deus criasse um único ser? Uma vez que Ele criou vários, não seria melhor tê-los feito iguais?

Nos seres existentes podem-se considerar duas formas de excelência, de beleza ou de perfeição. Há alguns dotados de um “pulchrum” inerente a eles e que reside propriamente na unidade. Existem outros nos quais a beleza não está na unidade, mas na variedade.

Unidade e simplicidade, uma forma característica e inconfundível de “pulchrum”

Por exemplo, um monólito como aquele obelisco localizado no centro da Praça de São Pedro. Ele possui uma forma elegante, mas sua beleza não está apenas na elegância. Imaginem que aquilo fosse constituído de quatro ou cinco pedras cortadas e colocadas uma sobre a outra de maneira a dar aquela configuração. Não perderia o mérito? A excelência do obelisco está em ser uma só pedra daquele tamanho. Logo, o elemento principal de sua beleza é a unidade.

Em Campos dos Goytacazes fui visitar um velho solar, hoje transformado em asilo. O assoalho da sala de jantar, de grandes dimensões, era constituído de tábuas enormes que percorriam a sala quase de ponta a ponta. Cada tábua media cerca de meio metro de largura por quase dez de comprimento. Sem dúvida, isso conferia uma beleza peculiar àquele chão. Se aquelas tábuas inteiriças fossem substituídas por tacos, a majestade daquela unidade ficaria destruída.

Outro exemplo do “pulchrum” inerente à unidade é o Lago Léman, na Suíça. São águas muito paradas, tranquilas, que nunca sofrem agitação, de um azul delicado e permanente, uma placidez absoluta. Aquela uniformidade e invariável serenidade da superfície constitui a beleza específica daquela paisagem.

Nota-se também esse tipo de beleza em panoramas como o de Copacabana ou da Praia Grande – próxima a Santos –, onde a linha do horizonte apresenta uma unidade muito grande. Não se vê o espigão de uma ilha quebrando aquilo. Em certos pontos nem mesmo se divisa a ponta de uma montanha que avance no mar e rompa o paralelismo daquelas linhas. Aliás, o “pulchrum” do Saara está nisto: um areal que não acaba mais.

Na pérola, a formosura está exatamente em sua uniformidade. Se ela tiver algum caroço ou mancha, não será bonita. Ela deve ser de uma esfericidade e brancura invariáveis e perfeitas em todos os seus pontos.

A unidade tem uma beleza característica que pode até ser superada, mas que qualquer enfeite ou modificação prejudica ou elimina.

Imaginemos que alguém quisesse fazer do já referido obelisco da Praça de São Pedro uma coisa feérica e recamasse todo ele com pedras preciosas. Ficaria coruscante de cores, talvez como uma árvore de Natal sem galhos e com bonitos efeitos de luz; mas a majestade própria ao monumento desapareceria. A seu modo, também no Asilo do Carmo, de Campos, se resolvessem serrar aquelas tábuas e substituí-las por um “parquet” lindo, formando desenhos, quiçá ficasse mais bonito e ornamental; porém, perder-se-ia o belo característico da unicidade.

Não estou comparando estilos de beleza, mas mostrando haver na unidade e simplicidade uma forma característica e inconfundível de “pulchrum”. Assim, encontramos certos seres que precisam de uma apresentação muito cuidadosa e simples.

Suponhamos que um joalheiro tenha um lindo brilhante para expor na vitrine. Como deveria apresentá-lo? Ficaria bem colocá-lo numa caixa de brocado todo trabalhado, ou em meio a uma multidão feérica de joias? Para fazer sobressair a simplicidade do brilhante seria melhor arranjar um bonito veludo de fundo sobre o qual se pusesse uma caixa muito simples, e expô-lo sozinho na vitrine. Esta apresentação realçaria a beleza desse diamante único, toda feita de simplicidade. A unidade acentua muito a grandeza, põe em evidência a homogeneidade da substância, regularidade da forma e formosura do aspecto.

Beleza específica da variedade

Outra forma de beleza é a inerente à variedade. Por exemplo, o chão da capela de Versailles para mim é um dos mais bonitos que existem no mundo. É um mosaico de várias cores e formas que dá uma impressão maravilhosa. Alguém poderia sugerir que aquilo fosse substituído por uma imensa uniformidade de mármore branco. Ali não serviria porque a beleza específica do lugar é a da variedade.

No tocante a paisagens, opondo-se à uniformidade de Copacabana, poder-se-ia citar o Flamengo, com sua variedade de montanhas, ilhas, etc.

Já no mundo das pedras, a ágata é avermelhada, cheia de veios, estrias, e o bonito está na diversidade de cores que se confundem e interpenetram. Muito característica também é a diferença entre a opala e a pérola. Esta é toda branca, enquanto aquela é multicolor. A beleza da opala encontra-se na variedade.

Estamos, assim, colocados diante de duas formas de beleza: uma proveniente da unidade e outra da variedade. Alguém poderia levantar o problema sobre qual delas é a mais excelente, e chegar a uma das seguintes conclusões. Se a beleza derivada da variedade é superior, a arte deve tender a extinguir as manifestações provindas da unidade e estabelecer, por toda parte, a variedade. Mas se é verdade que a unidade é a forma de beleza mais perfeita, então se deve perseguir a variedade e estabelecer a unidade.

Encontramos essa dicotomia na arte contemporânea, com a tendência cada vez mais frequente de impor a unidade como a beleza suprema. Não quero dizer que seja esta a tendência de todos os artistas modernos, porque há também algumas variedades desordenadas em certas manifestações da arte moderna. Mas quero afirmar que muito frequentemente esta posição se demonstra. Podemos dizer, portanto, que certos artistas e certo espírito moderno aceitaram esse problema tomando posição frente a ele e afirmando ser a unidade intrinsecamente superior à variedade.

A Criação precisa ter unidade e variedade

Isso se liga à primeira questão posta inicialmente, pois se a unidade é o supremo bem e na variedade existe algum mal, então Deus deveria ter feito uma só criatura ao invés de várias.

São Tomás de Aquino analisa três argumentos a favor da unidade. Parece que Deus deveria ter feito um só ser na Criação:

1) Todo efeito tem as qualidades inerentes à causa. Ora, Deus é uno; logo, o efeito de Deus, que é a Criação, deveria ser uno também. A Criação ser variada enquanto Deus é uno corresponde a fazer com que a ela não seja um reflexo do Criador. Logo, a variedade de seres é um mal.

2) Deus é uno; ora, se o mundo é a imagem de Deus, o mundo deveria ser uno também; se o mundo não é uno, é diferente de Deus. Tudo que é diferente de Deus é ruim; logo, o mundo é ruim.

3) O fim de todas as coisas que existem é Deus. Ora, Deus é uno; logo, todas as coisas deveriam tender para a unidade; se não tendem, elas são más e, portanto, a diversidade não deveria existir porque afasta de Deus.

A estes argumentos São Tomás responde: Deus, de fato, criou o universo para comunicar às criaturas sua bondade e representar-Se nelas. Mas nenhuma criatura, por mais excelente que seja, pode representar em si todas as bondades de Deus. Portanto, por mais que Ele fizesse perfeita uma criatura, criando mais outra além dessa primeira, haveria a possibilidade de a Criação ser mais perfeita, porque teria uma semelhança ainda maior com o Criador.

Digamos que Deus houvesse criado só Nossa Senhora, que é o mais alto de todos os seres na ordem moral; ou então um único Anjo, o qual na ordem ontológica é a mais elevada criatura. Por mais perfeita que fosse a representação de Deus contida nesse ser, ele seria uma mera criatura; assim, caberia sempre uma representação de Deus em outro ser. Portanto, dois seres representam melhor o Criador do que um; três O representam melhor do que dois; quatro, melhor do que três e mil representam melhor do que novecentos e noventa e nove. A variedade, portanto, tem uma representação de Deus melhor do que a unidade; a variedade é um bem.

É certo, diz ele, que a bondade em Deus é simples e uniforme. Mas acontece que Deus é um Ser supremo, perfeitíssimo, n’Ele a bondade pode ser simples e uniforme. Não é o que acontece nas criaturas, que não têm a mesma perfeição de Deus. Por isto, elas não podem ter uma bondade simples e uniforme. Nelas a bondade tem que ser variada. De maneira que, embora a unidade, em si, seja mais perfeita, para as criaturas ela não é assim. É preciso que elas, de fato, tenham a variedade.

Chegamos, então, à conclusão de que a alternativa unidade-variedade é mal posta. Deve haver seres que por sua esplêndida unidade sejam um reflexo da unidade divina; mas também seres que por sua variedade reflitam melhor a Deus do que pela unidade. E propriamente o que a Criação precisa ter é unidade e variedade.

Cores, música e a fachada de Notre-Dame

Todos os modernos que procuram a unidade em tudo andam mal, como andariam mal os que só buscassem a variedade. É preciso que ambas existam, seres excelentes por sua unidade e por sua variedade. É por esta forma que podemos compreender a perfeição do universo.

Isto se torna mais claro quando tomamos certas formas de arte, por exemplo, a pintura. Ticiano(1) pintava quadros de cores maravilhosas. Eu vejo uma beleza dos quadros de Ticiano, se tomar cada cor e analisar. É claro que cada cor é muito bonita. Mas ao lado da beleza de cada cor eu noto que é mais bonito ter várias cores do que uma só. E há uma terceira forma de beleza que não consiste na variedade das cores, mas no contraste e na harmonia entre elas.

Então, temos três formas de beleza: a de uma cor, a pulcritude especial que vem da existência várias cores, e outra proveniente da combinação das cores entre si. Ora, essas formas de beleza vêm da variedade.

A música, por exemplo. O universo musical tem uma particular beleza que corresponde a cada nota. Contudo, é mais bonito que haja sete notas do que uma só; e é mais belo ainda que se possa fazer uma música e um jogo entre essas sete notas. Temos assim três gamas de beleza, que fazem a pulcritude do universo musical.

Deus, tendo feito a Criação, quis que alguns seres representassem sua unidade, e que a variedade de outros significasse sua beleza. Por isto, a unidade e a variedade são muito bonitas, sobretudo quando se harmonizam entre si. Temos assim seres com grande variedade e, ao mesmo tempo, com grande unidade.

É característica disso, por exemplo, a fachada de Notre-Dame: formigando de pequenos desenhos, mas com uma linda unidade nas linhas essenciais. Prova-se por aí que Deus, para fazer o universo com o grau de perfeição que Ele quis, teria que fazer um universo variegado. Não teria atingido esse grau de perfeição se houvesse feito um só ser.

A questão seguinte seria: tendo Deus estabelecido a variedade, deveria estabelecer, necessariamente, a desigualdade? Mas esta é matéria para uma próxima conferência.         v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1957)

Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

 

1) Ticiano Vecelli (*1488 – †1576). Pintor renascentista veneziano.

 

Uma síntese do imenso e variegado Brasil

Discernindo a harmonia e a afabilidade nos contrastes geográficos mais surpreendentes, Dr. Plinio apresenta duas fisionomias do Brasil, pouco ressaltadas nos discursos patrióticos, e que nos apresentam uma síntese a respeito deste imenso país, tão rico em variedades.

 

Há um contraste entre a fisionomia espiritual, psicológica, do Brasil marítimo e do Brasil do interior. Quando se presta atenção, nota-se que isto forma dois Brasis diferentes.

A peleja harmoniosa entre as ondas do mar e os rochedos

Um Brasil claro, luminoso, diáfano, branco, cristalino, refulgente com todas as luzes do mar, cujas ondas investem continuamente contra os grandes rochedos. Mas, quando bate no rochedo, a onda se espatifa e dir-se-ia que sorri antes de cair; e o rochedo, ao receber o golpe da onda, parece condescendente com ele.

É uma peleja, mas que peleja! E quanta harmonia nessa peleja! A muralha de pedra resiste, mas quando a onda se esvai, dir-se-ia que aquela tem saudades da maré montante. A muralha fica esperando outra maré e outros impactos.

É algo que precisa ser visto! Essas águas que se movem, mas não chacoalham; essa espécie de doçura dentro da natural e digna ferocidade do mar, de força dentro da doçura do ambiente; a vegetação discreta de fundo de quadro, que timbra em não ser muito grande e não chamar muita atenção — apenas uma moldura verde em torno do panorama para completar o quadro —, e deixando ao mar as honras da sala.

Tudo está feito de modo especial, ao longo de todos os litorais brasileiros que tenho visto. Lembro-me, no Rio, da mata da Tijuca, por exemplo. Que mata linda, encantadora, suave! Que mata que sorri! Acho que é o único matagal sorridente existente no mundo. Na cascata da Tijuca, a água vem deslizando ao longo da pedra… Dir-se-ia os babados de uma cortina! Dali pode-se ver, a certa distância, o mar e a mata, amiga do mar, constituindo com este um só panorama. Pensamos um pouco e dizemos: Brasil!

Serranias majestosas, imponentes, mas afáveis

Como isto é diferente do interior do Brasil! Vastidões enormes, do tempo em que elas me entraram na retina, quando eram ainda desocupadas. Às vezes, planícies e mais planícies a perder de vista, com uma vegetação bastante grande para atestar a fecundidade da terra, mas não tão grande que tolhesse a expansão da vista. Não há um lugar onde não haja o verde em qualquer canto. Tudo dá; tudo corresponde à descrição de Pero Vaz de Caminha: “Senhor, a terra é dadivosa e boa, em se plantando dá”! Porque isso significa futuro indefinido e sem obstáculos. De repente umas montanhas que encrespam, serranias que crescem, se tornam majestosas, imponentes, nem uma vez ameaçadoras, sempre afáveis, amáveis.

Consideremos uma montanha original, a qual todos que estão neste auditório conhecem pelo menos por fotografia, se não viram pessoalmente: o Dedo de Deus, na estrada de Teresópolis, meio irmão do Pão de Açúcar, só que colocado a caminho da região montanhosa. Ele é tudo, mas não arrogante nem ameaçador; não diz a nenhum monte vizinho: “Por que você não chegou até onde estou?” Não empurra o mar com o pé, nem despreza a floresta. Ele se ergue no meio da floresta, como um jato de seriedade e de alegria.  Assim é em geral a serrania brasileira.

Sobrevoei todo o Estado de Minas Gerais, quase de ponta a ponta; Estado de minério e, portanto, muitas vezes com metal no subsolo — a terra é pouco fértil. E acompanhei aquelas ondulações a perder de vista, que caracterizam certa zona do Estado de Minas Gerais. Era dia claro, o sol incidia no solo e eu, num avião particular que me levava, olhava para aquilo com atenção e pensava: “Mas que panoramas! Que cenas bíblicas poder-se-iam ter dado nessas serranias! Que revelações, que acontecimentos, que milagres! Para que foi feito tudo isto?”

Os homens veem o tesouro que isso contém por debaixo, e contam com isto. Está bem, porque lhes foi guardado aí por Deus. Por que eles não veem o tesouro ainda maior, o valor simbólico, a expressão de alma de tudo isto? A única ideia deles é rasgar o solo para tirar o metal que contém. Está bem, digo mais uma vez, mas não está bem que seja só isso. É possível que algum comentador mineiro tenha cantado isto, tenha feito poesias. Não chegou ao meu conhecimento! Portanto, posso dizer, sem presunção, que não é conhecido pela média dos brasileiros. É um valor que deveria estar ao alcance de todos os brasileiros.

A treva verde

Vi alguns matagais. Como são belos! Mas dir-se-ia que a vegetação é tão exuberante que ela procura fugir de dentro da terra; que as árvores estão sem ar e sem espaço para se desenvolver; que elas lutam umas com as outras; que a luz não consegue entrar e há uma treva verde ali, a qual lateja no meio de miasmas, pantanais, madeiras podres, de cobras que silvam, de bichos esquisitos que correm de um lado para outro. De vez em quando, pássaros voam daqui para lá, se fazem ver num raio de sol e de repente fogem para outro rumo.

A pessoa observa aquilo e diz: “Como é verdade que às vezes o deslumbrante, o feérico acompanha o horror!” É uma dura regra da ordem concreta dos fatos. Ali há uma coisa que pulsa, se esconde, ameaça ciladas, e dentro desse bojo parecem saltar agressões; é inimigo da luz e favorável às trevas.

Aquele acúmulo de restos animais e vegetais de séculos e séculos… Se não aconteceu que uma tribo de velozes índios passou de um lado para outro, numa espécie de terrorismo mútuo, tribo contra tribo numa guerra sem fim…; o que foi a desdita daqueles homens, engaiolados dentro dessa treva verde? O que fez com que isso tenha pulsado assim durante tanto tempo e, sob o olhar de Deus, parecia não se mover?

O bandeirante, o missionário, o agricultor

Em certo sentido, o melhor da História da Nação se passou na mata, com o bandeirante, o missionário, o agricultor que se fixa e vai avançando selva adentro, domesticando a natureza, pondo ordem nas coisas, dando fertilidade ao solo. As missões e as bandeiras conquistaram, sem guerra, um território maior do que Napoleão dominou com guerras. Basta pegar um mapa e ver o que Napoleão conquistou, e depois observar o que obtiveram os homens aqui, andando dentro do horror verde, com uma força de impacto não inferior à dos navegadores portugueses.

Quando se pensa no que restou da conquista dos grandes navegadores — tais como Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque — e no que sobrou da conquista dos desbravadores, que diferença!

Não se trata apenas de perguntar quem conquistou tanto, mas quem fez uma conquista tão durável. Qual foi o inimigo desses desbravadores? Conforme acabo de descrever, foi o escuro, a podridão, a agressão, o disfarce, a vegetação tão espessa que — exagerando um tanto — era uma montanha vegetal para ir abatendo, a fim de prosseguir. Quantas e quantas vezes a picada tomava as características de um túnel dentro da vegetação! Era preciso perfurar esse túnel, no tempo em que o mundo quase não conhecia túneis, e ali foi traçada esta enorme fronteira, que todos conhecem. Isto foi uma grande conquista, com a qual se fez uma História que deve prosseguir.

Temos aí dois aspectos do Brasil, que não vejo serem realçados em geral nos discursos patrióticos, com esses matizes e essas circunstâncias. Mas que a mim me satisfazem, não por ser a minha pátria, mas porque é uma tradução, uma expressão fiel da realidade; e toda expressão da realidade encanta quem é filho da luz, de maneira que isso me encanta.

Vejam a diferença entre essas duas fisionomias! A praia fácil, na qual se poderia fazer uma estrada… E se tomarmos a força da serrania e a coordenarmos com a suavidade das praias, o glorioso da luta contra a vegetação e a pujança da natureza, temos uma síntese que nos pode dar uma ideia daquilo que é o Brasil.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1981)

 

Trono da misericórdia

Na imagem de Nossa Senhora de las Lajas, a Santíssima Virgem está com um olhar sério e investigador de quem quer ser obedecida. Ela tem fisionomia de Mãe, mas não está sorrindo; e embora não esteja olhando com expressão de ameaça ou repreensão, seu semblante é de alguém que, se houver algo errado, passa um pito ou faz uma ameaça.

O Menino Jesus está muito amavelmente voltado para quem reza. Em lugar do quadro clássico do Divino Infante sério e Nossa Senhora sorrindo para o pecador, indicando que Ela obtém d’Ele a misericórdia e o beneplácito, temos o contrário: Ele se volta sorridente para o pecador, Ela está séria. Quase se diria que Ele está distribuindo favores sem que Ela tenha entrado muito no assunto.

Parece até inverter o papel da Medianeira.

Na realidade, o pensamento é muito profundo: Ele Se manifesta tão misericordioso, com essa alegria de dar, porque está sentado no trono da misericórdia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/10/1974)

Mãe de Deus e nossa

A devoção à Santíssima Virgem foi, durante toda a vida de Dr. Plinio, a estrela que o guiou em meio a inúmeras “procelas”. Acompanhemos alguns comentários que deixam transparecer o que sempre transbordou de seu coração: a confiança em Nossa Senhora.

 

Devemos tomar em consideração que a “batalha” a ser enfrentada por cada homem no decorrer de sua vida, é verdadeiramente uma dura batalha. Mas essa batalha pode ser ganha por uma razão fundamental: é que ninguém luta a sós.

O que significa não lutar a sós?

A necessidade de uma ajuda sobrenatural

Temos em nosso auxílio uma proteção sobrenatural, sobre-humana, que é a proteção de Nossa Senhora.

A Ela foi dado conhecer a alma de cada homem de uma forma que ninguém jamais conheceu. A Santíssima Virgem vê até o mais íntimo da alma de cada um de nós, com tal amor, bondade e desejo de ajudar, que isso A levou a consentir nos padecimentos pelos quais seu Divino Filho passou.

Como Nosso Senhor era filho de Nossa Senhora e do Divino Espírito Santo, o Padre Eterno pediu o consentimento d’Ela para a consumação da Paixão de seu Divino Filho. O Padre Eterno não quis fazer algo sem atender ao consentimento d’Ela.

A pergunta feita por Ele a Nossa Senhora possivelmente foi a seguinte:

“Esse Filho, a quem quereis tanto e que é o Filho do próprio Espírito Santo, vai ser morto para a salvação de todo o gênero humano. Vós quereis entregá-Lo para a salvação da humanidade? Se quiserdes, Ele sofrerá como nunca ninguém antes, nem depois d’Ele, terá jamais sofrido. Uma enormidade de tormentos e de aflições se abaterá sobre Ele. Mas se Vós quiserdes, Ele não passará por essas dores, mas os homens não se salvarão e irão para o Inferno. Quereis?”

E Ela respondeu: “Quero!”

Respondeu tendo em vista cada homem, seus pecados e ingratidões.

Para que fôssemos limpos de nossos pecados e resgatados da culpa original, o Filho d’Ela padeceu enormes  tormentos, também para que tivéssemos a força necessária para nossa “batalha” no decorrer da vida.

Sempre que pedirmos a proteção d’Ela, obteremos

Nunca nos faltarão as forças, pois sempre que peçamos a proteção d’Ela, obteremos.

É preciso pedir, pois é insuficiente cobrar a Deus: “Vós prometestes que a tentação nunca seria maior do que as forças para combatê-la, porém agora eu não tenho forças”. A resposta de Deus será: “Esforce-se apenas um pouco que o resto virá”.

Além de esforçar-se é preciso pedir forças a Nossa Senhora.

Portanto, é preciso ter em relação a Ela uma devoção comparável à de São Luís Grignion de Montfort, compreendendo que Ela é medianeira de todas as graças, e todos os pedidos feitos ao Padre Eterno Lhe são agradáveis quando feitos por meio da Santíssima Virgem.

Quando Deus atende a um pedido feito por qualquer homem, Ele o faz através de Nossa Senhora, porque o pedido foi endossado e feito por Ela. Esta é a causa pela qual somos atendidos.

Há uma oração lindíssima — a qual recomendo rezarem — que recorda o desvelo e a mediação de Nossa Senhora para com todos os homens: é o Memorare (Lembrai-vos).

A lindíssima oração do Memorare

“Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria…”

Cada palavra tem sua aplicação. O que quer dizer, “piíssima”? Piedosa, tem como superlativo piedosíssima. Mas resume-se dizendo “piíssima”. “Piedosa”, neste caso, não quer dizer rezar muito, mas sim, ter largamente piedade e compaixão dos outros. Poder-se-ia dizer: “Lembrai-Vos, ó compassivíssima Virgem Maria”, que tem muita compaixão, que perdoa muito.

“…que nunca se ouviu dizer…”

A oração começa por essa afirmação, “nunca se ouviu dizer”, ou seja, em nenhum tempo ou lugar, em toda a Terra, alguém, tendo pedido alguma coisa a Ela, foi desamparado.

“…que tendo alguém recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado…”

Ou seja, “quem, pedindo vossa proteção, implorando que Vós o acompanheis, que olheis para ele, que o sigais, Vós sempre atendeis. Lembrai-Vos disso no meu caso, para que não seja eu a primeira exceção na história de vossa glória.” É uma linda proclamação. Em nenhuma época do mundo a Virgem Maria deixou de atender àqueles que pedem a Ela, em nenhum caso, em nenhuma circunstância.

Se alguém tem a infelicidade de pecar, ou de possuir um vício, ou uma atitude moral — ou imoral — que se repete, não há problema: basta rezar e pedir, porque Nossa Senhora acabará tendo pena.

“Animado eu, pois, com tal confiança, a Vós, ó Virgem entre todas singular…”

Quer dizer: “Vós sois mais Virgem do que todas as virgens, sois a Santa Virgem das virgens”. Pois Ela está para as virgens como as virgens estão para as que não são virgens. Nenhuma virgem do mundo teve a virgindade d’Aquela que foi virgem, antes, durante e depois do parto.

Como pôde Nosso Senhor ter nascido sem violar a virgindade de sua Mãe?

É um mistério que a Onipotência de Deus pode fazer facilmente.

“…como a Mãe recorro e de Vós me valho…”

É como dizer: “Eu me dirijo a Vós como a minha mãe”.

Há algo emocionante, que não raras vezes se dá: os feridos no campo de batalha durante uma guerra padecem, muitas vezes, durante horas e horas, com dores, sangrando, sentindo fome, sede e cansaço. Ficam abandonados. Naturalmente, nesse apuro eles gritam. A maior parte dos gritos é pela mãe! São homens às vezes que perderam a mãe quando eram pequeninos, porém, na hora da morte, é pela mãe que eles bradam.

Ninguém é capaz de amar tanto a alguém, quanto uma boa mãe ama o seu filho.

Mesmo sendo o último dos homens, não há problema, pois Nossa Senhora é a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. A compaixão d’Ela vale mais do que os castigos merecidos por nossos pecados. Se nossos pecados são um abismo, a compaixão de Nossa Senhora é uma montanha muito maior do que esse abismo.

“…e gemendo sob o peso dos meus pecados, me prostro aos vossos pés…”

O Memorare é, por definição, a oração de um pecador. Por isso a oração termina dizendo: “…gemendo sob o peso de meus pecados me prostro aos vossos pés”. É um pecador que está gemendo sob o peso de seus pecados, mas posto aos pés da Virgem Santíssima. Portanto, se temos a desgraça de estar em pecado, não deixemos de rezar essa oração com confiança, porque é a oração do pecador: “E gemendo sob o peso dos meus pecados me prostro aos vossos pés”.

“Não desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus humanado…”

O coração da mãe está sempre aberto para perdoar e afagar o filho.

“Minha Mãe — Vós sois a Mãe de Jesus Cristo, o Verbo que se fez homem, mas a minha também —, não desprezeis as minhas súplicas. Elas bem podem ser desprezadas, pois são súplicas, por si mesmas, inválidas. Porém, não as desprezeis, porque sou vosso filho e um filho pode pedir isso a sua mãe.”

“…mas dignai-Vos de as ouvir propícia…”

Tem-se a impressão de que Nossa Senhora vai se inclinar bondosamente e ouvir a oração.

“…e alcançar o que Vos rogo. Assim seja.”

O que se está pedindo? Pode ser a emenda de um defeito, de um vício, a aquisição de uma virtude. Tomando em consideração tudo quanto a Igreja ensina sobre Nossa Senhora, temos todos os motivos para crer que Ela vai obter o que rogamos. Devemos pedir tudo à Santíssima Virgem com muito empenho e ardor, mas, sobretudo algo que sobremaneira A agrada: a graça de sermos bons.

O que Ela quer de nós é que estejamos na graça de Deus e cheguemos ao Céu.  Pedir forças para nossa salvação é pedir aquilo que as santas mãos de Maria estão transbordando para nos conceder.

Nossa Senhora é a Onipotência Suplicante

Pelo que foi dito sobre Nossa Senhora, conclui-se que a devoção a Ela é de suma importância. Se Deus é tão perfeito, tão supremo, e nós, homens, tão insignificantes, caso não houvesse uma ligação entre Deus e os homens — que é Nossa Senhora — Ele não nos ouviria. A Justiça, a Pureza, a Santidade d’Ele, postas em contato com as misérias humanas, Lhe causariam horror.

Mas Ele mesmo, com suma bondade, criou vínculos que nos atariam a Ele. Encarnando-se no claustro virginal de Maria Santíssima, Ele se fez homem. Sendo Nossa Senhora Mãe espiritual de todos os homens, pedindo a Ele por nós, Ela assemelha-se a uma mãe que pede a um irmão, em benefício do outro. O irmão não pode resistir. Desta forma, Nossa Senhora é chamada pelos teólogos: “Onipotência suplicante”.

Ela suplica. Porém, sendo sua oração sempre atendida, ao mesmo tempo em que suplica, é onipotente.

É notório que ela atende ao que pedimos. Desta forma, nós, que não mereceríamos ser ouvidos por Deus em nossos pedidos, por causa d’Ela acabamos por merecer.

Mãe de compaixão sem limites

Torna-se muito clara a doutrina acima exposta, tomando em consideração, por exemplo, uma mãe que tenha dois filhos: um filho juiz e um criminoso. Se coubesse ao filho juiz julgar o que é criminoso, a boa mãe certamente se dirigiria ao juiz e diria: “Meu filho, sei que tu és juiz e a ti cabe aplicar a justiça. Os defeitos deste teu irmão são tais que merecem a pena de morte. Entretanto, em justiça — tu, juiz, me deves a vida — poupai a vida deste meu filho que merece a morte, por pedido daquela que te deu a vida”.

A maior das prerrogativas de Nossa Senhora é ser Mãe de Deus. Tudo aquilo que um filho possa dar à sua mãe, Deus deu a Ela.

O valor da súplica de Nossa Senhora é tão grande que os teólogos afirmam: todas as orações de todas as criaturas devem passar por Nossa Senhora, caso contrário, não chegam a Deus. De modo que — dizem eles — se todos os anjos e santos do Céu pedissem algo a Deus sem ser por intermédio d’Ela, não seriam atendidos. Entretanto Nossa Senhora, pedindo sozinha, é atendida.

Essa é a Mãe de uma doçura sem nome e uma compaixão sem limites. Uma mãe que tem tanta pena de seus filhos que, na hora de um filho ruim ser julgado, obtém para ele a salvação.

Aos pés da cruz, intercedendo pelo bom ladrão

É célebre a tocante passagem do Evangelho na qual Nosso Senhor crucificado está entre dois ladrões. Estes últimos conversavam entre si, e o mau ladrão blasfemava contra Nosso Senhor.

O bom ladrão replicou: “Nós merecemos o castigo que estamos sofrendo e por isso vamos morrer. Mas Este é um justo e não merece tal suplício. Por isso, não fales mal d’Ele”.

Pediu a Deus perdão pelos pecados que cometeu.

Jesus disse a ele: “Tu, hoje, comigo estarás no Paraíso”.

Foi a primeira canonização da História! “Hodie mecum eris in Paradiso”.

Nossa Senhora estava aos pés da cruz. Certamente Ela estava rezando pelos ladrões. Nosso Senhor, do alto da cruz, recebeu essa oração e deu graças extraordinárias a ambos. Um deles, por ser ruim as rejeitou; o outro, porém, correspondeu a elas e pediu perdão. A graça da conversão que o bom ladrão recebeu foi tão abundante que Nosso Senhor, ao descer para o limbo a fim de levar para o Céu as almas dos justos que lá se encontravam, levou também a alma dele.

Eu julgo que, se não fosse a oração de Nossa Senhora, nada teria acontecido.

Assim é possível compreender a importância da devoção a Nossa Senhora. Tal devoção é leve, cheia de esperança, de perdão e de afeto materno; constitui a alegria de nossas almas. Sem a devoção a Nossa Senhora, nossa vida de católico seria soturna.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 21/9/1991 e 3/3/1992)