Maria Santíssima, nossa âncora nas nuvens

Favorecido pela Providência com o dom de se expressar  de modo muito claro e com beleza literária, Dr. Plinio utilizou largamente esse predicado  para fazer o bem ao próximo. Nesse apostolado, um dos recursos mais atraentes de que se valia era o uso das  metáforas, por meio das quais ilustrava seus ensinamentos e os tornava de fácil compreensão. A seguir, inaugurando esta nova seção,  recordamos a imagem concebida por Dr. Plinio para salientar o indispensável auxílio da Mãe de Deus em nossa vida espiritual.

 

Ao longo dos nossos anos de apostolado, analisando a ação da graça nessa e naquela alma, dir-se-ia que, para um católico dos dias de hoje — e, de maneira especial, para um membro do nosso movimento — a fidelidade à vocação consiste em desejar um retorno dos melhores frutos da Civilização Cristã que foram sendo destruídos pela incorrespondência dos homens.

A confiança de um navegante em situação desesperadora

Tal anelo, parece-me, seria compreensível e justificável noutra época. Porém, após tanto tempo de dita incorrespondência e, por conseguinte, de pecados e ofensas cometidos contra a bondade divina, a fidelidade se nos apresenta de modo diverso: exige-se de nós que sonhemos, no sentido mais nobre da palavra, com uma ordem de coisas na linha do que teria sido aquela anterior se não tivesse sido destruída e, mais ainda, que a supere totalmente.

Como sonhar? Como confiar nessa superação?

Creio que a única solução para quem se encontra em situação semelhante a essa em que estamos, e na qual provavelmente estaremos cada vez mais imersos, é lançar uma âncora. Contudo, fazê-lo à maneira de um navegante que se acha numa circunstância tão desesperadora que, ao invés de deitar a âncora no fundo do mar, arroja-a em direção às nuvens, esperando que o Céu a segure por ele. Ou seja, é preciso chegar até essa ousadia de confiança.

Quanto mais generosa a alma, mais ela acredita no socorro de Maria

 E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, seria uma atitude racional. Com efeito, sendo a voragem da água tal que o próprio fundo do mar se descobre aos olhos do navegante, ele não tem outro recurso senão lançar a sua âncora para o Céu. E é tanto mais provável que o Céu atenda seu apelo, quanto mais terá sido sua confiança na hora de jogar a âncora.

Noutras palavras, quanto mais a alma for própria a dar‑se, quanto mais for generosa em dedicar-se ao serviço de Deus e de Maria Santíssima, tanto mais ela acreditará, no momento da provação e da angústia, que Nossa Senhora fará por ela o inconcebível em matéria de socorro, de amparo, de solicitude.

Nossa Senhora segura a âncora no Céu

Alguém poderia me perguntar, muito a propósito: como se joga uma âncora para o Céu?

Responderia eu que há determinadas circunstâncias nas quais percebemos claramente que uma ação nossa corresponde ao plano da Providência para conosco, mas, ao mesmo tempo, de acordo com as disposições humanas, tal realização é por inteiro improvável. Ora, nós nos engajamos nessa obra porque percebemos tratar-se do desígnio da Providência, e só por isso, pois do contrário seria uma temeridade e uma loucura. A âncora foi jogada para o Céu.

Importa notar o seguinte aspecto: não é tanto algo que resolvemos fazer, mas uma situação que aceitamos com confiança, por discernirmos que Nossa Senhora colocou por nós a  âncora nas nuvens.

Por exemplo, aqueles que me acompanham há mais tempo em nosso apostolado nunca me viram traçar um plano com este estado de espírito: “Tal lance é uma loucura, mas vamos fazê-lo porque a Providência quer”. Porém, ouviram incontáveis vezes eu dizer: “Tal situação está perdida, mas vou me manter em paz porque a Providência nos ajudará”.

Essa, repito, é a âncora nas nuvens. Nossa Senhora a colocou ali por nós. Percebemos que o navio desapareceu, o mar corre por debaixo dos nossos pés, estamos pendurados numa corda, presa não sabemos onde. Olhamos para cima: está numa nuvem e com uma âncora na ponta. E o mais extraordinário: está ventando de tal maneira que o vento pode levar a nuvem a qualquer hora… Entretanto, Nossa Senhora quer que permaneçamos tranquilos, pendurados na âncora como se estivéssemos com o chão sob nossos pés.

Sei que não é uma atitude fácil de ser adotada. Mas, pela minha própria experiência, posso afirmar que ela é, ao mesmo tempo, terrível e altamente deleitável.

Confiança na gloriosa mediação da Virgem

Cumpre, pois, que nos formemos nessa generosidade de alma e, quando for preciso, lancemos a âncora para o Céu com toda a segurança. Preparemo-nos para jogá-la às nuvens, pedindo a Nossa Senhora que nos alcance uma virtude da confiança semelhante à d’Ela.

A abundância da misericórdia de Maria sobrepuja tudo quanto qualquer um de nós possa excogitar. Deixemos nossas apreensões inteiramente nas mãos de Nossa Senhora e Ela tudo resolverá. Essa certeza não é gratuita: baseia-se na mediação onipotente da Mãe de Deus em nosso favor. Mediação, aliás, belamente assinalada na oração final da Ladainha Lauretana, que me apraz muito recitar: “Pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria”.

Ou seja, de tal modo uma súplica de Nossa Senhora é atendida por seu divino Filho que seus pedidos podem ser qualificados de gloriosos. Isso deve nos entusiasmar e cumular de confiança n’Aquela que incansavelmente está disposta a nos socorrer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 1 e 2/3/1980)

Força e doçura

Objeto de nosso enlevo e admiração, a extraordinária figura do Imperador Carlos Magno se destaca na história da Cristandade, por ser ele o grande protetor da Igreja no seu tempo, e um dos fundadores da Europa católica. Já tive ocasião de externar o quanto seu exemplo se fez valioso em minha formação, desde aqueles remotos dias em que o “encontrei” pela primeira vez, numa revista comprada na estação ferroviária de São Paulo(1).

Entre outras inestimáveis marcas deixadas por ele na cultura e na arte da Civilização Cristã, temos o legado de sua presença em Aix-la-Chapelle (a atual cidade alemã de Aachen), aonde fazia tratamento com águas minerais e ali residia num palácio do qual restam lindos vestígios. Foi igualmente de sua iniciativa a construção da esplendorosa catedral da cidade.

Como se sabe, a escultura foi uma das manifestações artísticas mais desenvolvidas pela Idade Média, de modo especial cultivando e desenvolvendo o estilo gótico. Na Catedral de Aachen, assim como em outros importantes templos medievais, percebemos isto de curioso: nas imagens que adornam os pórticos e as fachadas há sempre uma junção de paz e serenidade profundas. Sobretudo em se tratando de personagens masculinos, temos homens grandes, fortes, vigorosos, dando-nos a impressão de serem netos ou bisnetos de um bárbaro. Ou serão protagonistas de cenas bíblicas, patriarcas veneráveis, de barba possante e a coragem de guerreiros.

Entretanto, neles transparece a doçura e a tranqüilidade. É a nota componente da Idade Média, um tanto esquecida no mundo contemporâneo: a ligação harmoniosa entre a fortaleza e a doçura. Homens fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos bárbaros — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E dão origem a esse ambiente de suavidade, nascido de um passado repleto de lutas e sofrimentos, mas também pleno de oração, de piedade, de obras de caridade e misericórdia. Foi na Idade Média que se construíram os primeiros hospitais no mundo.

Tudo isso se eternizou nas pedras e nas recordações históricas, como as da Catedral de Aachen. No seu interior, ela nos mostra altas arcadas, com dois andares de colunas, atrás das quais reluzem bonitos vitrais, e o majestoso lustre, acrescentado no século XII pelo Imperador Frederico I, como símbolo da Jerusalém celeste, pendendo do teto adornado de mosaicos com cenas sacras.

Na catedral se conservam dois objetos de imenso valor. Um, a mais bonita peça de ourivesaria por mim conhecida, é o relicário contendo os restos mortais de Carlos Magno.

O desenho é de uma basílica, toda lavorada com aplicações de prata dourada, verniz, filigranas com pedras preciosas e esmalte. Circundam-na as imagens de oito reis do Sacro-Império, sucessores do grande Carlos, desde Luís o Piedoso até Frederico II. Na parte da frente, sobre a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo triunfante, vê-se o Imperador no seu trono. Na face posterior aparecem a Santíssima Virgem com o Menino. Além disso, os relevos do teto representam cenas da vida de Carlos Magno. O conjunto desta peça impressiona pela proporção e a harmonia perfeitas dos seus vários elementos.

O outro objeto de que falamos é uma gloriosa reminiscência do Sacro-Império: o famoso trono de Carlos Magno, sobre o qual, a partir de meados do décimo século, os reis medievais recebiam a dignidade de soberanos.

Do ponto de vista estritamente artístico, é mais rústico e, portanto, menos bonito que o relicário. Porém, a preocupação de se produzir algo belo e nobre está presente na quantidade de mármores de que é feito. Como esse gênero de pedra não era achado na região de Aachen, era preciso importá-lo de outros territórios, transportando-o a dorso de mulas por estradas difíceis, escoltadas por grupos armados, enfrentando-se o perigo de saques e de acidentes provocados pelas intempéries e precipícios.

Depois dos longos trajetos, o mármore afinal chegava e vinha enriquecer o trono do magno Imperador. Uma vez terminado, Carlos o mandou instalar no andar superior da catedral, num ponto de onde ele, assentado, podia ver o altar e assistir à Missa. Então, posto nessa conveniente eminência, o monarca acompanhava o Santo Sacrifício que se celebrava.

E nós nos comprazemos em imaginar o que seria essa linda catedral repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando cânticos religiosos, ou aguardando num silêncio meditativo a hora da Consagração. E o grande Carlos sentado em seu trono, resplandecendo de piedade e de glória…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

¹ ) Cf. “Dr. Plinio” número 8.

Uma conversa de Jesus…

Imaginando a vida quotidiana de Jesus, Dr. Plinio realiza como a Alma de Nosso Senhor se elevava às mais altas cogitações, sem entretanto abandonar a proporção normal de um homem.

 

Suponhamos que o Redentor estivesse descansando em casa de Lázaro; Ele comia e mantinha uma conversa normal, quer dizer, propriamente conversa à “bâton rompu”.

Nosso Senhor deveria dar um discreto valor à comida. Então, nesta perspectiva, como seria o trato com Ele, que impressão causaria?

Parece-me que todas as suas expressões seriam sumamente coerentes umas com as outras, em que o olhar, a voz, os gestos, o porte, a atitude da cabeça e o modo de se dirigir às pessoas, ou de ouvir o que elas Lhe falavam, tudo isto deveria apresentar um “unum” perfeito, dando a ideia de uma harmonia completa. De maneira que Jesus devia causar aquela impressão vitorina de emoção estética total, porém ainda mais alta porque não era só a estética física, mas através desta, a estética psicológica, moral. Quer dizer, com uma proporção, uma beleza perfeita, e a Alma que se via por detrás era incomparável, causando a impressão de se tocar no divino, no inefável, embora não fosse a visão beatífica. Era propriamente a ética estética total.

Figuremos Nosso Senhor à mesa, comendo um cordeiro que Lhe tivessem preparado. Ele faz um comentário qualquer: “Este cordeiro foi alimentado com tal coisa assim, na perspectiva de nosso encontro.” E alguém diz: “Aliás, foi difícil laçá-lo, o cordeiro saltava muito”, e conta que o cordeiro pulou do colo de um escravo para fugir. E o Redentor, na sua natureza humana, ouve entretido a narração desse fato.

E no entretenimento veríamos aquela espécie de bondade, do enormemente maior que sente coesão e continuidade com o tema pequeno, e não julga que este seja indigno d’Ele.

Pelo contrário, Nosso Senhor, tomando conhecimento do fato, compreenderia. Durante a conversa se perceberia que ora sua humanidade santíssima transparecia mais, quer dizer, subia em considerações comunicadas pela natureza divina, ora transparecia menos, mantendo, entretanto, uma proporção com a conversa. De maneira que no ambiente havia um fundo discreto, que não convidava a fazer Teologia, mas a sentir o tema concreto do cordeirinho, túmido de outras coisas nas quais o Redentor não entrava, mas apenas — para usar uma expressão que não indica bem o que eu quero dizer — aromatizava. Ele punha molho naquilo, mas não deslocava o assunto, e a conversa continuava caseira.

Noção divina das correlações

Notar-se-ia a transição suave, harmônica da Alma do Divino Mestre para o mais elevado, com lampejo do mais alto, e depois voltar ao comum, a propósito das várias coisas tratadas na conversação. Uma flexibilidade de alma e uma noção divina das correlações: o modo pelo qual um tema encaixa, imbrica com outro; o valor simbólico das coisas; tudo posto tão bem, e correlacionado com tanta suavidade, harmonia, facilidade — todas as palavras são impróprias para falar d’Ele, por causa da excelsitude —, com tanto “dégagé”, que nossa alma ficaria simplesmente encantada de sentir os espaços interplanetários que separam um assunto do outro, transpostos por Nosso Senhor com tanta facilidade e conduzidos de um lado para outro com uma naturalidade, sem deixar as pessoas propriamente — note-se bem — extasiadas e fora do teor da conversa privada.

O êxtase viria pouco depois que o Redentor tivesse ido embora, quando as pessoas se sentissem sem Ele e percebessem o diferente de tudo. Teriam vontade de dizer: “Por que fiquei aqui e não fui atrás de Jesus, uma vez que viver é estar ao lado d’Ele?” E se alguém levanta um assunto prático, nem se interessam.

Todo mundo está discretamente deliciado, mas é uma autêntica conversa doméstica, na superfície.

As várias teclas através das quais Jesus tratava os assuntos

O melhor dessa conversa seria os momentos nos quais se percebia que a Alma de Nosso Senhor tocava nas mais altas cogitações. Era um olhar, um timbre de voz, talvez um comentário ligeiro, deixando entrever outras ideias, mas sem nada da indireta de salão, que é trabalhosa, porque nada disto deve ser imaginado trabalhoso. Tudo normal, magnífico e facílimo, que é o próprio d’Ele, evidentemente.

E as pessoas ficavam verdadeiramente maravilhadas pelo seguinte aspecto, entre mil outros: sentir como Jesus tomava o tamanho das várias teclas por onde fosse tratando os assuntos; quando falava de um tema comum, Ele tinha uma proporção do auge da beleza daquilo, deixando apenas entrever muito vagamente outros auges, que na Alma de Nosso Senhor residiam.

Quando Ele falava apenas de raspão do maior dos assuntos, sentiriam que tratava aquilo de igual a igual. De maneira que aquele Homem, há pouco tempo tão igual aos outros, de repente aparecia como num píncaro de uma montanha, mas por instantes, e logo depois estava de novo misturado com as pessoas. Em seguida, tratando de alguma coisinha, o Divino Mestre ficava de tal maneira comprazido, condescendido, que se diria que Ele descia até a coisa e esta se elevava até Ele. Por exemplo, se enquanto Nosso Senhor falava entrasse um passarinho na sala — aquelas salas eram muito abertas — e pousasse perto d’Ele, sem milagres, cena comum, o Redentor acharia graça em ver o passarinho comer uma migalha de pão.

Ele sorriria com isto, de tal modo que tudo aquilo que simboliza o passarinho comer a migalha de pão se perceberia que Ele relaciona com o mais alto, mas achava interessante ver o mais elevado enquanto simbolizado no menor. Não é de nenhum modo, portanto, efetuar uma abstração, e passar a fazer Filosofia ou Teologia, mas comprazer-se em ver o mais alto simbolizado, alojado, se quiserem, dentro do menor e como que um com o menor.

Então, Jesus diria uma palavra encantadora qualquer, mas também não de arrebentar.

Insinuando que era o Cordeiro de Deus

De repente, a respeito do cordeiro, tema da conversa, Nosso Senhor faz uma insinuação de que Ele era o Cordeiro de Deus, um dia seria morto, e que todos se preparassem. Mas, digamos, durante a conversa, talvez falasse disso uma só vez.

Os Evangelhos não fazem referência a uma conversa assim. Acho que cinco quintilhões de livros não dariam para registrar uma conversa com Ele, porque tudo era memorável, com o ar mais natural do mundo. Tenho a impressão de que isto é muito mais reconstituível pela piedade do que escrevível e legível.

Então, quando Jesus fizesse tal afirmação, haveria um frêmito, mas não à maneira de uma cena renascentista: uma pessoa se levanta, outra faz não sei o quê. Não. Todo mundo continua a conversar. Penetrou-se até ao fundo, ao extremo de Nosso Senhor; depois aquilo passa e fica uma tinta depositada nas almas.

Alegria, seriedade, tristeza

Jesus dava assim uma noção conjunta de sua divindade — a conaturalidade d’Ele com o divino — e a relação de todas as coisas com Ele, como se tudo existisse apenas para ser relacionado com Nosso Senhor. Aqui está o que eu quereria exprimir, mas não sei se conseguirei fazê-lo.

Tal era seu modo de ser que se notaria uma hierarquia de valores harmônica e sumamente bem encaixada, procedente do mais alto, com uma gravidade extraordinária e uma luminosidade impossível de ser qualificada; e descendo depois degrau por degrau, de maneira que em cada degrau por onde passasse, a Alma d’Ele deitasse outro reflexo de si mesma, mas não se sentisse esgotada; manifestando-se nos mais altos e deitando um reflexo novo e adequado em cada degrau menor até o último, formando propriamente no contraste entre o maior e o menor e todos os pontos intermediários, certa forma de imbricamento e de harmonia que fosse no mais alto cheia de gravidade e, ao mesmo tempo, de uma felicidade transbordante. Jesus não devia irradiar só tristeza; de vez em quando Ele transluzia um fulgor de felicidade.

Se, por exemplo, na sala onde Nosso Senhor estivesse comendo entrasse uma brisa refrigerante, Ele faria um comentário, com um gáudio apenas insinuado; aquele zéfiro era apenas um símbolo de uma alegria fulgurante: a visão beatífica. Mas tudo nas proporções de uma conversa comum; não são de nenhum modo os grandes momentos do Evangelho, mas os momentos normais da vida d’Ele.

Então haveria esse entrelaçamento de alto a baixo. No alto, a alegria esplendorosa e seriedade enorme, acompanhada de uma tristeza noturna, que era uma espécie de prenúncio do Calvário.

Nos graus intermediários, a conaturalidade com o homem: a seriedade, as alegrias e as tristezas proporcionais a nós. E nos graus menores, a alegria de todas as coisas pequenas e graciosas com aquela forma de dor e de sofrimento própria da inocência da criança.

E notar isto passando de um lado para outro daria uma espécie de noção de hierarquia, como nenhuma ordem social, nem política, nem estética, ou qualquer outra pode dar. Tal noção seria transmitida pela voz, pelo olhar, pelo modo de ser de Nosso Senhor, com uma espécie de plenitude do que o homem deve sentir a cada momento.

Após a saída de Nosso Senhor, recordar as diversas cenas

Em qualquer dos estágios se notaria a tristeza, a seriedade, a proporcionalidade e também a alegria, que a tudo acompanhava. E quando Jesus saísse, uma pessoa que tivesse critério se destacaria cuidadosamente da roda e, andando sozinha pelo jardim, se sentaria no beiral de um poço; não faria nenhuma reflexão, mas deixaria aquelas cenas voltarem ao seu espírito e, à tardinha, depois de esgotados os últimos reflexos, ela começaria a pensar. Ou seja, muito depois de degustar é que viria a reflexão.

E no final da reflexão, esta ideia: “Eu vou deixar tudo e segui-Lo. Não quero mais saber daquele plano de passar uma quinzena em Jerusalém na minha bonita casa. É verdade que estou precisando comprar uma túnica nova, mas deixarei isto para depois. Onde é que Ele está?” E possivelmente o indivíduo não esperaria a aurora para ir ao encalço de Nosso Senhor.

Continuidade entre os pequenos e os grandes momentos da vida de Jesus

Embora não escrito, algo disso ficou transmitido e permanecerá até o fim do mundo. Sempre que um católico verdadeiro, um bom professor de catecismo, um bom sacerdote, bons pais pronunciam a palavra “Jesus” ou “Jesus Cristo”, todos esses imponderáveis, por uma tradição meio avivada por carismas, continuam e caminham nesta linha.

Falando a respeito de Jesus, o protestantismo toca com o piano quebrado, faltam sempre algumas notas. O calvinismo faz hipertrofia da seriedade e o luteranismo da bonomia d’Ele, não um simples exagero, mas uma hipertrofia leprosa.

A “heresia branca”(1) julga que essas pequenas coisas da vida de Nosso Senhor são impróprias de serem contadas, porque toldam a atmosfera dos grandes momentos. Pelo contrário, tudo isto está numa espécie de continuidade com os grandes momentos.

 Se de repente Nossa Senhora entrasse na sala…

E a cena que eu não ousaria imaginar: Nossa Senhora entrando de repente na sala. Quando Ela se dirigia ao local, Jesus em sua humanidade acutíssima, capacíssima, sem revelação dos Anjos nem manifestação do sobrenatural, sentiria de longe que Maria Santíssima para lá caminhava.

Nosso Senhor vai Se iluminando para a chegada d’Ela, tomando um ar de quem entra em contato com a companhia das companhias; é o mundo inteiro para Ele. Em certo momento, Ele se levanta e vai de encontro a Ela.

Também Nossa Senhora já O pressentiu e, quando Ela se aproxima, os dois Se olham e Se saúdam. Mas acho impossível descrever, eu ao menos não consigo. Todos os encontros de Jesus com sua Mãe não são descritíveis. Ora, só em função da descrição desses encontros, digamos comuns, é que se compreende o relacionamento d’Ele com Ela durante a Paixão, quando se encontraram, e até a morte de Nosso Senhor.

Tenho a impressão de que as sete palavras d’Ele na Cruz, exceto as últimas, foram de um sofredor nesta clave. Mesmo quando Jesus disse: “Mãe, eis aí teu filho; filho eis tua Mãe”, o fez com a tal naturalidade que acabo de referir. Apenas o último grande brado d’Ele e depois o ato pontifical — “Meu Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” — devem ter sido ditos com uma solenidade, uma grandeza dentro do gemido. Aqui seria preciso mais se tocar música ou pintar do que falar.

Também a atitude de Nossa Senhora, creio que se deduz adequadamente a partir da imaginada conversa comum.

Nesta Terra, não devemos querer viver apenas de apogeus

Repito: o convívio quotidiano com Nosso Senhor era proporcionado à capacidade receptiva da natureza humana, como será no Céu. Digo mais. Acho que há algo de enfermiço no fato de uma pessoa só se sentir bem nos apogeus. Na realidade, devemos ter fome e sede dos apogeus, mas não de viver em apogeus, porque não é de acordo com a nossa natureza; e estas situações intermediárias precisam suceder-se aos apogeus e precedê-los, numa sucessão que só Deus mede adequadamente. A Providência gradua através dos fatos.

Suponho que no Céu, pela ação da graça, a alma está elevada a tal estado que é conatural com ela o pináculo permanente. Isso se fará de um modo que não podemos entender, porque o Paraíso celeste vai ser infinitamente repousante.

Voltemos ao tema da vida quotidiana de Nosso Senhor. Se uma pessoa que tivesse assistido à refeição de Betânia desta maneira e depois pensou em Jesus, vendo alguém que lançasse contra o Divino Salvador uma ironia ou chacota, sua reação normal seria a bofetada. Isso só se compreende devido ao efeito que o Redentor causou a uma pessoa que O viu. E a reação dela foi à maneira da desintegração do átomo.

As perfeições de Nosso Senhor na mais eleita das criaturas

Toda criatura, individualmente, é incapaz de refletir adequadamente todas as perfeições de Deus. Daí a necessidade de haver várias criaturas, como sabemos.

E a recíproca disto é que Deus não pode, nesta Terra e nesta ordem, fazer aparecer todas as suas perfeições aos homens num grau que vá além do que a natureza humana comporte, porque, por assim dizer, lota demais as pupilas dos olhos.

Por causa disto, há certas perfeições em Nosso Senhor que, sem dúvida, se notam n’Ele, mas com a seguinte circunstância: se o Redentor fizesse perceber mais ainda, o olhar humano como que estalaria. Então, Ele faz notar estas perfeições na mais eleita de suas criaturas. E esta criatura é como que um desmembramento — como que, entenda-se bem, porque é uma criatura, não o Criador —, um suplemento de Nosso Senhor, fazendo notar algo que no texto principal não caberia pela diminuição de olho do indivíduo que lê.

Então, tudo quanto se diz de maravilhoso sobre a bondade de Nossa Senhora, seu amor materno, seu ódio ao mal — entretanto não é a principal missão d’Ela, ao longo da História, exprimir este ódio, mas a bondade materna, a afetividade — e cem outras coisas, tudo isto Maria Santíssima, como que, exprime em separado de Nosso Senhor, num grau menor do que Ele, forçosamente, mas insondável para nosso olhar, para termos uma ideia ainda mais global do que é Jesus. Tudo quanto estou dizendo aqui fica naturalmente sujeito ao julgamento da Teologia.

Parece-me que, de algum modo, olhando-se para Ela, veem-se excelências que não se percebem tão claramente n’Ele.

Entretanto, como pintá-las? Em que grau? De que modo? Sob que formas? No momento eu quase não teria o que dizer, porque são de algum modo coisas quintessenciadas de Nosso Senhor, as quais, não permitindo que apareçam tão claramente, Ele as exprime por meio de um ser inferior, o qual, por mais alto que seja, é uma criatura.

Correlação entre a Cristologia e a Mariologia

Seria preciso tomar uma clave em extremo delicada para considerar a relação exatamente em sua nota, pois na verdade nenhuma meditação cristológica poderia ser feita em completo sem uma espécie de superposição de Nossa Senhora; sobretudo nenhuma meditação mariológica seria adequadamente feita sem ter a Ele como fundo de tudo quanto se dissesse. E à falta de estabelecer essa correlação, tornam-se muitas vezes pobres a Cristologia e a Mariologia na piedade popular,

A Santíssima Virgem é, sob certo ponto de vista, o lago no qual se mira o castelo. Toda a beleza que o lago mostra, de fato reside no castelo, mas a pulcritude da água se soma para embelezar a figura do castelo. Pode-se dizer também que, de certo modo, a pulcritude da criatura se soma à do Criador, mas a desproporção é muito maior, evidentemente.

Aqui está a imagem da piedade como nós a entendemos. Quer dizer, densa de reflexão e inteiramente equilibrada, em que o homem não precisa se espremer para adquirir piedade, mas ele se põe na boa natureza que Deus lhe deu, na tranquilidade e no bem-estar de sua alma.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/5/1978)

 

1) Ver nota 1 no artigo “São Vicente de Paulo, perfeita harmonia de espírito”, página 17.

 

A Idade Média em todo o seu esplendor

Ávila, em Espanha, onde nasceu a grande Santa Teresa de Jesus, é uma maravilhosa cidade medieval.

É muito agradável, ao contemplar a cidade durante a noite, notar o contraste entre a cidade que dorme — lembrando uma vida calma, tranquila, pacata, sem as excitações da vida contemporânea, séria, mas ao mesmo tempo cheia de bonomia — e a muralha magnificamente iluminada, onde se nota a beleza do gótico e do medieval.

A iluminação faz sentir muito a força da muralha e qualquer coisa de épico, de heroico que nela existe. Imaginamos de bom grado essa muralha e os muros que ligam as torres guarnecidos de guerreiros, com couraças, elmos, estandartes, instrumentos de música e que ali estão postados para homenagear algum personagem ilustre que chega, ou para receber na ponta da lança adversários que podem querer tomar Ávila.

Essas muralhas falam de toda a beleza da firmeza de alma, da coerência, da seriedade e da sacralidade. Está tudo representado aí, de um modo verdadeiramente magnífico. Em suma, é a Idade Média.

Em ambos os aspectos há muita harmonia. Temos a guerra e o direito, a legítima defesa de uma população que na guerra é protegida, a quem suas muralhas amparam, e por isso pode tranquilamente dormir. A muralha garante o sono, como o guerreiro garante a ordem, o direito e a paz. É verdadeiramente esplendoroso.

Nessa síntese entre a guerra e a paz, o direito e a luta, o repouso e a batalha, há algo de síntese celeste que nos deixa verdadeiramente maravilhados. É a Idade Média em todo o seu esplendor.

Devemos notar que suas muralhas foram construídas com preocupação exclusivamente estratégica. Quer dizer, o intervalo entre as torres não foi feito com o objetivo de ficarem bonitas, mas calculado para que o adversário atacante pudesse ser atingido de vários lados. Primeiro, pela reação que vem dos defensores do muro. Depois, dos defensores das torres, de maneira que se torna difícil tomar as muralhas.

A torre é muito mais forte do que o muro. Ela se defende por si mesma. E pelo seu feitio redondo, ela de certo modo dispersa o adversário. Por outro lado, o muro, que é mais fraco, fica defendido pela muralha. Tudo foi estritamente calculado de acordo com o necessário e ficou lindo. Ao contrário do que se faria hoje, a forma da muralha é meio indecisa, não retilínea, e abrange como uma cintura o povoado que está dentro.

Tem-se a impressão de que cada torre é uma garra que segura o monte e domina a terra; é uma verdadeira beleza.

Com a solidez de suas portas, a entrada da cidade estava bem protegida. E com que robustez! Tratava-se de duas portas, uma frente à outra, que protegiam a passagem. Quem conseguisse entrar — debaixo de uma saraivada de pedras, de azeite fervente, etc. — esbarrava com a outra porta, onde havia outro passadiço para jogar pedras e flechas sobre os atacantes.

Muitas vezes, quando o adversário passava pela primeira porta, descia uma grade e ele ficava encurralado, porque não podia mais voltar para trás. E aí era pancadaria grossa. Compreendemos o senso de defesa que isso traduzia.

No topo da muralha estão as ameias, tão bonitas! Tudo estritamente técnico. Um homem lançava uma flecha e, quando o assaltante respondia com outra flecha, ele ficava escondido. Percebendo que o inimigo estava mais ou menos desprotegido, dava nova flechada.

Compreende-se o quanto era duro invadir uma cidade assim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/5/1972)

O Coração de Jesus no interior do Coração de Maria

Na época histórica em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, Nossa Senhora apresentava-Se geralmente como a Rainha da Contra-Revolução. A nós foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

 

Nós, seres humanos, estamos colocados na junção entre o mundo material e o mundo espiritual; vemos abaixo de nós o mundo material em várias gamas e sabemos pela Fé da existência do mundo espiritual em muitas outras gamas. Temos ciência de que participamos do grão de areia, como da própria vida divina pela graça. Percorremos com nossa natureza todas as escalas.

Superioridade participada

Se temos um senso do ser inocente, este nos dá uma noção de nossa própria dignidade que nos faz medir, em nós mesmos, a superioridade de nossa alma sobre nosso corpo, e tudo quanto temos de mais digno por possuirmos alma, sem que sintamos vergonha por termos corpo. Mas notamos tudo quanto há de belo em possuirmos uma alma, e como ela é um céu em comparação com nosso corpo.

Nós sentimos a superioridade de nosso corpo sobre os animais, as plantas e os minerais. Percebemos que é uma superioridade participada. Eles e nós temos algo de tudo quanto existe, mas estamos no ápice da matéria, a tal ponto que somos uma montanha no alto da qual arde a chama denominada alma.

Estamos, portanto, num ápice, mas por cima dessa chama há o céu inteiro. Então a montanha é ao mesmo tempo altíssima, porém se medirmos a distância com as estrelas veremos que é um “formigueiro”. Tendo o senso do ser reto a pessoa sente ordenadamente tudo isso em si, todas essas grandezas, como todas essas pequenezes, proporcionando-lhe uma espécie de maravilhamento discreto, interno.

Lembro-me de que isso se deu em mim, por exemplo, quando pela primeira vez comecei a pensar a respeito do olhar humano, o que é o olho humano e tudo quanto confere de dignidade ao corpo o fato de ter olhos.

Acho que realmente a parte mais sensivelmente nobre do corpo humano são os olhos. Não se pode negar. E como o olho é bonito, quanta coisa exprime! É o único traço que o homem tem o qual nunca é feio! Pode existir um olho machucado, doente, mas um olho feio não há! A fisionomia, o porte, o passo e tantas outras coisas são reflexos da alma no corpo; os olhos espelham a alma.

Consideremos os bichos. Deus quer que alguns animais inferiores a nós sejam mais bonitos do que nós; mas são de uma beleza de segunda classe. De beleza de primeira classe somos nós.

O pavão, por exemplo, como ele é distinto, diplomata, se mexe com jeitos! Um certo modo que tem o pavão de jogar para trás a cabeça e o pescoço; os olhos  quase que se dilatam, e ele olha de frente e de cima, com nobreza. Ele de certo modo finge não estar vendo bem as coisas que se encontram diante dele, como se estivessem distantes. Depois ele se volta bem devagarzinho para receber o aplauso das multidões… É muito bonito!

As mais marcantes diferenças existentes entre os homens

Possuindo um senso do ser bem construído, nós sentimos essas hierarquias e compreendemos que umas estão para as outras numa forma de relação que deve encher de admiração as menores, porém de uma admiração grata! Porque sempre que a maior toca na menor não a humilha, mas a beneficia e honra.

Prestando bem atenção, ao considerarmos a relação entre nós e os Anjos, põe-se muito clara a seguinte pergunta: Como é o Anjo em face de quem é superior a ele? Ora, superior a ele, enquanto natureza, só Deus. Como natureza, Nossa Senhora não é superior ao Anjo, e nem sequer a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

As mais marcantes diferenças que há entre os homens são de ordem sobrenatural. É o batizado para o pagão, depois o clérigo para o leigo. São relações como que divinas.

Somos membros do Corpo Místico de Cristo e em nós vive a graça de Deus; somos templos do Espírito Santo, escravos de Maria Santíssima, filhos d’Ela, portanto, a um título e de um modo todo particular.

Nós estamos para um pagão, na ordem da graça, mais ou menos como na ordem da natureza o Anjo está para nós. Somos “anjos” para um pagão. E um pagão que dissesse a um de nós: “Vou dar-lhe uma bofetada porque você é batizado”, ele esbofetearia em nós o sacramento do Batismo conferido indelevelmente. Sobretudo o bispo, que possui a plenitude do sacerdócio, é como que Deus para nós. Ele ensina, governa e santifica. Todos os sacramentos, toda verdade, a direção de nossos passos no rumo da vida eterna vêm por ele. É como que Deus presente entre nós, e algo de divino habita o bispo.

Na ordem natural há algo disso na relação pai-filho. Mas a Doutrina Católica sempre entendeu que honrar pai e mãe é honrar adequadamente todas as autoridades, na medida em que elas tenham um poder análogo à paternidade, por exemplo, o patrão, enfim, todos os superiores devidamente. Porque quando a autoridade é de um certo gênero, ela participa, na ordem natural, de uma superioridade análoga — não idêntica — à superioridade existente nas relações Deus-homem.

É isto que devemos saber reconhecer nos nossos superiores, e tocá-los, inclusive fisicamente, com respeito, porque neles habita isso.

Respeitabilidades amigas, o contrário da luta de classes

Dou um exemplo claro de ver: o professor e o bedel num colégio. O professor, enquanto está dando aula, tem uma superioridade pura e simples sobre o aluno. O bedel possui uma superioridade, mas uma superioridade que até é um título de inferioridade. Ele é um empregado do colégio para tomar conta dos alunos e, portanto, não imita, a não ser de um modo muito indireto, um vislumbre, o poder de Deus. Mas o poder do professor imita o poder de Deus, e um aluno que esbofeteasse seu professor, enquanto este ensina, pecaria contra Deus.

Sirvo-me, agora, de uma metáfora muito familiar: a nata e o leite.

Uma quantidade abundante de leite de alta qualidade posta numa panela, por exemplo, dá origem, por um lento, discreto e nada artificial processo de diferenciação, à nata que fica acima dele e constitui uma camada. Se cada gota de leite pudesse falar, diria para a dona de casa: “Olhe a nata!” E se a dona de casa sorrisse para a nata, esta falaria: “Mas olhe também de que leite eu fui formada!”

Disseram-me — e me parece bem provável — que as qualidades do ar têm algum efeito para a formação da nata. Logo, o céu atmosférico, a seu modo, age sobre o leite para que destile a nata. Portanto, esta não é puro produto do leite, mas do leite “tocado” pelo céu.

E notem: isso ocorre na ordem meramente natural, mas que nos ajuda a ter uma ideia do que significa essa superioridade divina, do que é Deus em relação a nós, e o que é um de nós perto de Deus, para compreendermos todos os abismos onímodos de inferioridade e de hierarquia e, depois, os graus intermediários como são.

Tomemos outro exemplo: o mármore. Dir-se-ia que o mármore é nata da terra, reservada por Deus em blocos e dada aos homens para fazerem suas igrejas, seus monumentos, palácios etc. Por isso eu falo do mármore com respeito.

Esta visão do mundo como uma espécie de jogo de respeitabilidades amigas, que se perdem quase ao infinito, é o contrário da luta de classes.

Respeitabilidades amigas que a mil títulos reluzem aos olhos do homem, fazendo entender tudo quanto vai desde a pequena respeitabilidade do bedel, quando ele transitoriamente dirige a fila, até a autoridade de um reitor de universidade. Há mil aspectos da superioridade que ficam cintilando como estrelas no céu, cada uma com um brilho próprio e, no fundo, cantando a glória do Superior dos superiores que é Deus.

Resolvendo um problema até o fundo

Tive um professor que, em certa ocasião, pôs a seguinte questão, de um modo inteligente e atraente:

“Nós existimos para Deus, mas hoje em dia não se tem uma ideia clara do que significa existir para alguém. Por isso, vou dar-lhes um exemplo. Se uma galinha tivesse inteligência, ela de tal maneira saberia ter sido criada para ser comida por um homem que, enquanto estivesse no galinheiro, ficaria frustrada de ver as outras galinhas irem para a panela e ela não. Agora, qual seria a reação dessa galinha inteligente quando fosse chamada para a panela? Seria uma reação de pavor, porque nenhum ser escapa ao instinto de conservação; ou uma sensação de alegria, porque afinal seria comida por um homem?”

Ele dizia que a galinha, ao se imaginar comida, sentiria ao mesmo tempo o horror e o gáudio da imolação, e desaparecia num sentimento contraditório.

De fato, ele não resolveu o problema até o fundo. O professor imaginava uma hipótese absurda de um ser que, ao mesmo tempo, é inteligente e mero animal. Daí as reações são contraditórias, porque o ser inteligente existe para Deus, mas não para ser comido por Deus. Aquele que é o fim do ser inteligente é tão superior a este que não o mata, mas lhe dá a vida. Isso o professor não soube dizer; donde um certo mal-estar que a pergunta causava.

Entretanto, este ponto me parece que ele viu bem: se a galinha fosse capaz de conhecer o homem, ela reconheceria nele, com encanto, o seu dono.

Quando o homem, por exemplo, agrada um cachorro, o animal toma, muitas vezes, uma atitude deliciosamente submissa, o que é um símile da posição que tomaríamos em relação a um Anjo. Um vegetal que pudesse sentir e compreender faria o mesmo com um animal, e um mineral a mesma coisa com um vegetal. Há uma regra que forma um certo gênero de relação que, conservadas as proporções, é sempre de sentir-se pequeno, mas repleto de honra.

Subindo ao ápice da Criação, vemos isso até nas relações de Nossa Senhora com Deus. Convidada a um título muito especial para ser Filha do Padre Eterno, Mãe do Verbo e Esposa do Espírito Santo, a resposta d’Ela foi: “Ecce ancilla Domini — Eis a escrava do Senhor” (Lc 1, 38). Ela Se sente muito pequena, porque, de fato, diante de Deus ainda que seja Ela, é-se infinitamente pequeno. Então um gesto, uma postura de respeito deliciado é uma atitude de alma que hoje as pessoas quase não sabem mais medir.

O Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes

Ora, o Sagrado Coração de Jesus tem algo que predispõe o espírito em todas as gamas para essa posição.

Evidentemente, as pulsações mais sublimes do Sagrado Coração de Jesus eram quando Ele rezava. As orações d’Ele citadas no Evangelho eu acho tudo quanto há de mais bonito!

Sempre o modo de dizer “Pai” sai com uma grande doçura e, ao mesmo tempo, tão honrado de ser Filho d’Aquele Pai. Ele, como Homem, dizendo “Pai” é quase que rezando para a sua própria natureza divina. É uma coisa tão bonita que prepara a alma para receber essas superioridades genéricas com uma espécie de devoção carinhosa e cheia de veneração.

É interessante notar que no período em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, em suas manifestações Nossa Senhora apresentava-Se menos como Mãe de Misericórdia do que como a Rainha da Contra-Revolução e preparando a batalha. Ela é “castrorum acies ordinata”(1).

Com exceção de duas aparições d’Ela no século XIX — uma enquanto Nossa Senhora das Graças, em Paris, para Santa Catarina Labouré, e outra na Igreja do Miracolo, que é uma reversão, corresponde à mesma devoção, mas são dois milagres diferentes —, essa sensação de misericórdia requintada Maria Santíssima dá menos do que manifestava aos medievais, a São Bernardo, por exemplo.

Mesmo em Lourdes, onde a Santíssima Virgem difunde a misericórdia como sabemos, a nota dominante é a apologética. Diante dos séculos de ateísmo, Ela entra em luta contra este produzindo milagres a jorro e confirmando a Imaculada Conceição.

A nós, porém, foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

Certa ocasião observei uma pintura representando Santa Gertrudes em cujo coração se via o Menino Jesus, o que deveria fazer referência a algum fenômeno místico que se deu com ela.

Se é legítimo apresentar o Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes, a um título muito mais literal, muito mais cogente, com outra ênfase, é legítimo mostrar o Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria. É claro! E nós encontraremos tudo quanto estou dizendo — e muito mais — emoldurando o Sagrado Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria.

De todas as boas imagens de Nossa Senhora que conheço, nenhuma delas me satisfaz inteiramente, porque não visam apresentar Jesus vivendo em Maria, concebendo tanto quanto possível a Santíssima Virgem como parecida com Nosso Senhor, fisicamente, mas de uma semelhança que era apenas uma imagem da similitude espiritual.

Sabe-se que muitos cristãos queriam conhecer São Tiago porque era primo de Jesus e muito parecido com Ele. Ora, se assim ocorria com São Tiago, primo em segundo ou terceiro grau de Nosso Senhor, imagine com Nossa Senhora o que era essa semelhança!

Eu me pergunto se não seria uma graça do Reino de Maria algum artista ou algum místico chegar a imaginar, na perfeição, uma imagem de Nossa Senhora inteiramente “cristiforme”, mas conservando toda a delicadeza da natureza feminina. Porque nós vemos isso pelo Santo Sudário: Ele era Varão, no sentido mais nobre da palavra; Ela, Mãe e Senhora, Dama e Rainha. Saber representar essa variedade em uma versão marial de Nosso Senhor!…

Assim, mesmo cenas da vida de Nosso Senhor se tornam muito mais cheias de vida e muito mais explicáveis. Por exemplo, os dois se abraçando na hora do encontro da Via Sacra, com essa semelhança de corpo e de alma entre ambos. Ele com a face como que d’Ela, desfigurada; e Ela com a face como que d’Ele, íntegra. De maneira que se olhava e percebia-se o contraste. Ela nobremente invadida pelo pranto sem que nada A descompusesse, e Ele aviltado pelas bofetadas e pela dor sem que nada Lhe diminuísse a majestade.

Um ósculo de Nosso Senhor na França

Quando falo com calor de Luís XIV e da devoção que ele deveria ter tido ao Sagrado Coração de Jesus, há pessoas que julgam entrar nisso uma espécie de atitude mundana, ou pelo menos terrena. Mas não é. A razão é que eu vejo nele o lampadário perfeito onde a lamparina do Sagrado Coração de Jesus deveria ter sido acesa.

Se ele fosse o devoto perfeito do Sagrado Coração de Jesus, nós teríamos tido uma figura de homem como não houve na História.

Para compreender o “meu” Luís XIV, a “minha” Versailles e o “meu” Ancien Régime é preciso entendê-los enquanto o Rei-Sol tendo sido fiel. E mais: foi no reinado de Luís XIV que São Luís Grignion de Montfort construiu o calvário dele, pregou aos camponeses e que Marie des Vallées(2) fez a troca de vontades com Nosso Senhor. Isso tudo tenderia a uma só coisa.

Então, era preciso concebê-lo criando uma atmosfera pela devoção ao Coração de Jesus, onde a escravidão a Nossa Senhora tivesse voado como uma águia em céu próprio.

É uma coisa maravilhosa! Não se tem ideia do que a infidelidade de meia dúzia de almas rateou na ocasião… Não se tem ideia da oportunidade perdida!

A partir disso fica compreensível também o meu furor contra a Revolução Francesa.

O Dauphin Luís(3) mandou colocar atrás do altar da capela do palácio uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. Ele não teve a audácia de colocar na frente…

Mas isso significa durante quantas gerações se manteve a ideia de que uma consagração ainda salvaria a França. E a consagração que Luís XVI fez da França ao Sagrado Coração de Jesus, na Torre do Templo, prova que ele ainda levava no espírito essa ideia de que, se correspondesse, poderia ter salvado o país.

Durante todo esse tempo, a Casa Real e o “Ancien Régime” conservaram uma capacidade de receber. Essa receptividade era um ornato, e aquela possibilidade, naquele tempo, um “lumen”.

O grande pranto pela Revolução Francesa era o da esperança que não se realizaria mais, e pela extinção desse “lumen” que acompanhou a Casa Real até o fim.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus ficou com uma ligeira nota francesa, é um ósculo de Nosso Senhor na França.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/9/1980)

 

1) Do latim: exército em ordem de batalha (Ct 6, 10).

2) Mística francesa (*1590 – †1656).

3) Luís Fernando de França, Delfim de França (*1729 – †1765), filho de Luís XV e pai de Luís XVI.

Medianeira da Luz

Mês especialmente caro aos devotos de Maria Santíssima, setembro refulge com as comemorações da Natividade de Nossa Senhora e com a festa do seu santíssimo nome. Para Dr. Plinio, o advento d’Aquela que estava predestinada a ser a Mãe do Salvador, “conferiu particular nobreza ao gênero humano, e surgiu neste mundo como a suave e amena luminosidade da lua. Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do astro-rei. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. Assim a vinda de Nossa Senhora foi, para toda a humanidade, como um magnífico nascer da lua”.

Lua que brilha da luz do Sol da Justiça, Cristo Senhor nosso, e que se compraz em espargi-la sobre a face da Terra, isto é, em distribuir para os homens a superabundância de graças que seu divino Filho depositou nas suas mãos maternais. Ouçamos novamente Dr. Plinio, comentando uma coletânea de textos acerca do papel de Nossa Senhora nos primórdios da Santa Igreja:

“Maria foi o oráculo vivo que São Pedro consultou nas suas principais dificuldades. A estrela para a qual São Paulo não cessou de olhar, para se dirigir em suas numerosas e perigosas navegações.

“Temos, então, esse belo panorama: a Igreja nascente — com todos os lances maravilhosos da história do cristianismo nos seus passos iniciais  — inspirada e dirigida por Nossa Senhora. Sem dúvida, São Pedro era o Papa e detinha o poder sobre a Igreja, que lhe fora conferido por Jesus. Contudo, não deixa de ser igualmente verdade que o Príncipe dos Apóstolos se submetia às disposições de Maria, atendendo-as com devoção e reconhecimento. Por sua vez, São Paulo sempre recorria a Ela, a fim de ser bem orientado nas suas navegações, isto é, no seu apostolado com os gentios.

“É então que Ela preencheu a significação de seu nome simbólico. Pois, diz São Boaventura, o nome de Maria pode traduzir‑se por essas palavras: Maria é a criatura iluminada por cima e que espalha, por todas as direções, a luz que lhe vem do alto. Ela é, verdadeiramente, a medianeira da luz. Toda a sabedoria e toda a luz nos vêm, para todos os homens, através d’Ela.

“Eis, portanto, uma linda interpretação do nome de Nossa Senhora, como sede da sabedoria, como foco da ortodoxia e da boa doutrina. Quem deseja progredir na virtude da sabedoria, deve recorrer a Ela que é, por definição, pelo próprio conteúdo de seu nome, essa fonte de luz celeste que se espalha para a humanidade inteira.

“Se os evangelistas querem recolher os principais fatos da vida de Jesus e seus ensinamentos mais importantes, para transmiti-los nos seus escritos autênticos, eles recorreram a Maria. Foi a Ela que pediram os esclarecimentos necessários sobre a Encarnação, a infância e a juventude do Homem-Deus, assim como sobre o modo perfeito de exprimir os dogmas que Ele trouxe do Céu. Pois, disse o Cardeal Hugo, Ela fez de seu coração o tesouro das palavras e das ações de seu Filho, a fim de os comunicar em seguida aos escritores sagrados.

“Temos, novamente, a figura de Nossa Senhora como o vaso de eleição que recolheu todos os ensinamentos e atitudes de Jesus, para distribuí-los aos Apóstolos, à Igreja nascente e à Igreja de todos os tempos. Foi Ela, não só a informante, mas a inspiradora da mentalidade com que os evangelistas escreveram seus livros sagrados; Ela esteve ao lado de São Pedro, São Paulo, São João Evangelista, deste e daquele, contando-lhes, explicando-lhes, ajudando-os a interpretar as palavras e os atos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela era uma fonte de aroma divino perfumando a Igreja inteira.

“Tal é o esplendor da alma santíssima de Nossa Senhora, apenas vislumbrado por nós e que nos deve levar a amá-La e imitá-La, cada dia mais e mais.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 7/9/1965 e 11/7/1967)

 

Elevação e bondade

Pelas descrições do Evangelho se percebe em Nosso Senhor uma elevação tal que ­suas palavras mais breves, seus gestos mais comezinhos externavam uma perfeição, um significado e uma manifestação do divino, indizíveis.

Por exemplo, ao partir o pão diante dos discípulos de Emaús: pelo modo todo característico e nobre como Jesus o fez, os dois O reconheceram. Quer dizer, uma maneira única e sublime, na qual transparecia toda a excelência d’Ele. Mas, compreendamos: essa elevação era, ao mesmo tempo, repassada de tanta bondade, meiguice e acessibilidade, que Nosso Senhor atraía as almas e as elevava consigo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência em 20/12/1986)

Meu filho, pare e contemple

Momento precioso é aquele em que, a propósito de algum reflexo criado da incriada beleza divina, a graça nos toca e nos dirige este convite: “Meu filho, pare e contemple! Através dessa maravilha, Deus toma contato com sua alma, lhe diz algo, e é todo um mundo do sobrenatural que se lhe torna sensível. Na consideração e na degustação deste mundo você terá, meu filho, os melhores instantes de sua existência. Viva para essa contemplação, esperando encontrar na eternidade a plenitude dela.

“Do amor a esses esplendores faça suas delícias e seu repouso nesta Terra. Ouça-os, observe-os: eles afirmam verdades que dizem mais do que qualquer palavra; eles brilham de um fulgor que nenhuma luz terrena pode igualar. Junto deles você pode encontrar Deus que o procura, pode escutar a voz de Nossa Senhora que o chama. Pense nisto e se deixe ficar diante dessa maravilha…”

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – III Um nome mais brilhante que o sol

O Amigo da Cruz é um escolhido entre mil, apartado das coisas naturais e entregue à contemplação das sobrenaturais, colocando o seu amor naquilo que todos desprezam: o sofrimento, em união com o Divino Mestre. Dr. Plinio prossegue seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Com seu fervor característico, São Luís Grignion continua a escrever:

Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o nome inequívoco de um cristão.

Exclamações contagiantes

Cumpre considerar que São Luís Grignion escreveu essa obra numa época em que — não tanto como na Idade Média — os títulos ainda tinham muita importância, e por meio deles se definiam as pessoas com o direito de usá-los. Então o Santo utiliza o valor da titulatura, conforme à ordem natural das coisas, para mostrar como o título de amigo da Cruz é elevado. Nesse intuito, registra várias exclamações que traduzem o fogo de sua alma, com possibilidade de um contágio extraordinário.

Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra.

Não se trata de expressões lançadas ao léu. Encantar não é o mesmo que deslumbrar. O encanto assemelha-se à ternura, e o deslumbramento, à admiração. O que me encanta, de certo modo me pertence profundamente. E aquilo que me deslumbra desperta em mim admiração, veneração. Talvez sem intenção de fazê-lo, São Luís Grignion de Montfort aponta aqui os dois elementos característicos do enlevo: a veneração e a ternura.

É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores.

As duas primeiras comparações me parecem muito felizes, e na pena do Santo adquirem um calor, uma força de atração, uma refulgência extraordinários. Como que sentimos a sua alma de insigne teólogo, de inspirado literato, de varão católico, vibrando de emoção diante do título “Amigo da Cruz”.

Ternura e veneração pela Paixão de Cristo

É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

Tal é o valor de ser Amigo da Cruz, que esse título equivale ao nome d’Aquele que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pensamento lindíssimo e acertado, pois ao longo de toda a História a piedade católica elegeu a Cruz como símbolo do próprio Redentor.

Nota-se, ainda, que ele não se refere apenas à cruz como sofrimento, aceito e levado até seu termo em união com os méritos infinitos de Nosso Senhor, mas considera filosoficamente a forma de uma cruz como símbolo que traz consigo algo de santo, pelo vínculo que adquiriu com a Paixão. São Luís deseja nos comunicar, assim, ternura e veneração pelo holocausto redentor de Jesus, bem como pela santa Cruz considerada como tal, conforme, aliás, ensina a teologia. E como o ratifica a mesma piedade popular, ao erguer cruzeiros ou plantar cruzes nos mais variados locais, aonde vão em peregrinações, ou simplesmente depositar um punhado de flores junto a elas, num singelo e sincero testemunho de sua devoção.

Escolhidos entre milhares

Continua São Luís Grignion:

Entretanto, se seu brilho me encanta, seu peso não me espanta menos. Quantas obrigações indispensáveis e difíceis contidas nesse nome, e expressas por estas palavras do Espírito Santo: “sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa e um povo que Deus formou” (1 Pd 2, 9).

Quer dizer, a cada Amigo da Cruz corresponde essa definição: pertence ele a uma raça eleita, possui um sacerdócio real, é filho de uma nação santa e membro de um povo que Deus formou.

Um Amigo da Cruz…

Faço notar que São Luís escreve Amigo da Cruz com “A” e “C” maiúsculos, pois não se refere a todo e qualquer católico, mas especialmente àqueles que se consagraram na associação por ele fundada para propagar o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. A essa fundação ele fará elogios magníficos, por causa dos seus objetivos. Para nós significa algo pleno de ensinamento, pois nos mostra como o valor de nosso movimento provém igualmente do fato de amarmos a Cruz, e esse amor sobrepuja a qualidade individual de seus membros ou a consistência de sua estrutura jurídica.

Um Amigo da Cruz é um homem escolhido por Deus entre dez mil que vivem segundo os sentidos e apenas da razão, para ser unicamente um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentidos por uma vida e uma luz de pura fé e um amor ardente à Cruz.

Então, sentir uma vocação especial para uma vida e uma luz de pura fé, bem como de um ardente amor à Cruz, é graça invulgar que Deus concede a um entre dez mil que “vivem segundo os sentidos e a razão”. Já naquele tempo se estabelecia oposição entre a fé e a razão, esta última entendida no sentido do racionalismo cartesiano(1). Donde, aqueles que vivem de acordo com a pura razão natural, recusando o sobrenatural, só têm luzes proporcionadas por aquela. São os racionalistas — que de fato claudicam também em matéria de razão — e os que vivem de acordo com os sentidos.

Espírito metafísico e amor ao sublime

Um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentidos.

A linguagem de São Luís é frisante: não é contra a razão, mas acima dela. E quanto aos sentidos, refere-se à desordem deles. Está subjacente nessa afirmação a ideia de que o pecado original abalou de modo tão profundo o homem que seus sentidos se tornaram desordenados.

Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói triunfante do demônio, do mundo e da carne em suas três concupiscências. Pelo amor às humilhações, esmaga o orgulho de Satanás; pelo amor à pobreza, triunfa da avareza do mundo; pelo amor à dor, amortece a sensualidade da carne. Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado de todo o visível, cujo coração está acima de tudo quanto é caduco e perecível, e cuja conversa está no Céu (Fl 3, 20); que passa pela Terra como estrangeiro e peregrino; e que, sem lhe dar o coração, a contempla com o olho esquerdo e com indiferença, calcando-a com desprezo aos pés.

Trecho muito bonito, que exprime o amor aos imponderáveis e, de certo modo, ao sublime, ao maravilhoso. Para estar “separado de todo o visível”, ou seja, afastado das coisas materiais e voltado para as invisíveis — mormente as sobrenaturais — importa ter um feitio de espírito contrário ao materialismo, bem como à concepção racionalista e cientificista da existência humana. Para os adeptos dessa mentalidade, apenas o material é atingível pelos sentidos, é confiável e desejável, constituindo a finalidade da vida terrena. Tudo quanto é metafísico, que vai além dos sentidos, deve ser evitado como quimera do espírito e, portanto, inconsistente.

Devido à decadência da civilização, os homens cada vez mais adotaram essa postura de alma, que certas escolas filosóficas do século XIX levaram ao apogeu. São Luís Grignion de Montfort prevenia seus discípulos contra esses desvios. Para ele, o Amigo da Cruz não é apenas o que se enternece com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o que possui alguns pressupostos mentais para esse enternecimento, e um deles é o espírito metafísico, interessado no espiritual.

Em suma, para se compreender o valor do sofrimento, a pessoa deve apreciar os bens do espírito e estar desapegada da matéria, o que envolve um padecimento especial, pois significa disciplinar seu próprio ser. Tal disciplina, que exige certa renúncia — e, portanto, dor — é inerente ao autêntico Amigo da Cruz.

Desejar mais o “beau” que o “joli”

Os franceses fazem uma interessante distinção entre “joli” e “beau”. O primeiro vocábulo significa “bonito” e se aplica a coisas pequenas. Já o segundo quer dizer “belo”, um conceito mais elevado e corresponde à beleza da alma. É preciso ter algo de ascese para se conservar a posição do “beau”; querer exclusivamente o joli importa em escravização à matéria. Então nosso Santo mostra que o Amigo da Cruz deve ter como pressuposto uma forma de mentalidade metafísica visando mais o “beau” do que o joli. Este deve ser apenas pequeno acessório daquele.

Somente uma alma assim é capaz de compreender inteiramente a grandeza do sofrimento, da dor e, portanto, da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.  

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 6/6/1967)

 

 

1) Referência à filosofia do autor francês René Descartes (1596-1650) que, rompendo com a escolástica, coloca como base do pensamento o que ele chama a “dúvida metódica”.  Teve grande influência no racionalismo dos tempos posteriores,  notadamente na França e nos países que ela inspirou culturalmente.

 

Inscrita na História

Costuma-se exaltar o esplendor dos ocasos. E com razão. Quem só conhecesse o meio‑dia não poderia se gabar de conhecer bem o sol, pois este possui belezas de crepúsculo como as possui de aurora, e é o conjunto desses encantos que compõe a beleza global do nosso astro soberano.

Isso que se aplica ao sol, pode-se dizer também dos povos e das nações. Passam eles por períodos que parecem de decadência e não o são: as coisas param, mas vão se revestindo da prestigiosa pátina do tempo, situam-se meio fora do movimento terreno e meio se confundem com a eternidade.

Esse pensamento me veio especialmente ao espírito quando me caíram sob os olhos algumas fotografias de Veneza. Por exemplo, a Catedral de São Marcos, que, a meu ver, é o ponto auge e central da cidade. Mais do que isso Veneza não realizará.

Entretanto, imaginemos a Rainha do Adriático parada na História como ela foi no seu apogeu, antes de ser invadida pelas ondas de turismo inimagináveis que, de um jeito ou de outro, modificaram o seu ritmo de vida.

Imaginemo-la, pois, no seu quotidiano normal, comum e tranqüilo, com aquelas seculares famílias nobres habitando seus palácios, o povinho esparso aqui e ali, as gôndolas deslizando através dos canais. Seis horas da tarde, o campanário de São Marcos toca o Ângelus, as pessoas se persignam, rezam as ave-marias. Uma hora depois, novo toque de sino, a noite já se abraça ao dia, o canal imerge pouco e pouco na neblina, o Palácio dos Doges parece dormir. No interior da igreja acende-se uma vela, outra, depois outra. Em certo momento, todos os sinos e carrilhões repicam festivos: é mês de Maria e haverá uma festa daquele povinho em louvor de Nossa Senhora.

Os fiéis começam a chegar, vêem-se senhoras idosas com suas cabeças cobertas por véus de renda, personagens influentes acompanhados de seu séquito, matronas em liteiras, e todos, calmamente, vão ocupando o recinto sagrado. Mais alguns instantes, e um coro — que já tem 300 anos de existência — entoa com suas vozes quintessenciadas os mais belos hinos em honra da Mãe de Deus.

Mas, ao cabo de algumas horas a cerimônia termina, as luzes se apagam, a praça se cobre de penumbra e cada um se dirige para a respectiva casa.

Como não perceber nisso a pátina do tempo que acrescenta outros aspectos aos esplendores de Veneza e confere a esta uma espécie de nota de eternidade que seria um erro confundir com decadência?

Pelo contrário, é a inscrição de Veneza na História, a saída dela de dentro dos acontecimentos humanos para se tornar um elemento de admiração dos povos, sempre bela e fixada na glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/2/1989)