Santa Teresinha do Menino Jesus

Eis que minha amargura transformou-se em paz. (Is 38,17)

“Ecce in pace amaritudo mea amarissima” (Is 38,17). Quem sabe vislumbrar através dos traços de uma fisionomia um estado de alma, não pode deixar de pensar que essas palavras mereceriam estar escritas ao pé desta fotografia, que nos mostra uma figura sorridente mas indizivelmente dolorosa.

O sorriso não procura esconder a dor, mas afirmar-se por um prodígio de virtude, de fidelidade à graça, apesar da dor. Os lábios sorriem só porque a vontade quer que eles sorriam, e a vontade o quer porque essa alma tem fé, e sabe que depois das provações e das trevas desta vida terá como prêmio Aquele que disse de Si: “Serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande” (Gen. 15,1).

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, n° 111, março de 1960)

Santa Teresinha: Vida de epopeia

A respeito da devoção a Santa Teresinha, houve muita incompreensão, pois foi entendida num sentido contrário ao da epopeia: fazer os pequenos sacrifícios para evitar os grandes. E transformar a existência numa vidinha que, levada sempre com um sorrisinho, resultava numa saída muito cômoda para o caminho da cruz do católico.

Sua espiritualidade é muito vasta, tendo  ela defendido duas teses: Uma pessoa pode levar uma existência de epopeia, mesmo quando as circunstâncias não lhe proporcionem gestos de audácia,  ou não  exponha diretamente sua vida.

E, mesmo para as almas fracas,  a realização da epopeia é possível. Isso explica o fato de que ela — uma mulher, carmelita reclusa, vivendo numa França na qual não havia circunstâncias para reproduzir o feito de  Santa Joana d’Arc — realizou tanto quanto esta última.

Por essa razão, embora sendo uma alma não destinada a enfrentar grandes lances, ela transformou, pelo auxílio da graça, em grandes, os pequenos fatos da vida cotidiana. Levou uma existência de tão contínuos sacrifícios que, em seu conjunto, sob esse ponto de vista, foi uma epopeia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/7/72)

São Jerônimo

Num período onde o patriciado e a nobreza romana ganharam novo brilho devido à influência monástica, São Jerônimo mostrou-se um zeloso apóstolo e um exímio lutador pela glória virginal de Maria. Dotado por Deus com o carisma da polêmica, ele apontou o mal que há na heresia para depois falar a respeito da verdade.

 

A respeito de São Jerônimo, Confessor e Doutor da Igreja, Dom Guéranger, no “L’Année Liturgique(1), diz o seguinte:

Estranho fenômeno para o historiador sem fé: eis que em torno deste dálmata, na hora onde a Roma dos Césares agoniza, se irradiam subitamente os mais belos nomes da Roma antiga. Crer-se-ia que eles estavam extintos, desde o dia onde se tornou obscura entre as mãos dos “parvenus” da glória a cidade rainha.

Nos tempos críticos em que, purificada pelas flamas que os bárbaros incendiaram, a capital que eles deram ao mundo vai retomar seus destinos e reaparece, como por seu direito de nascimento, para fundar novamente a cidade eterna. A luta se tornou outra, mas seu lugar continua à testa do exército que salvará o mundo. Raros são entre nós os sábios, os poderosos, os nobres, dizia o Apóstolo, quatro séculos antes. Numerosos eles são em nosso tempo, protesta Jerônimo, numerosos entre os monges.

O patriciado e a nobreza ganham novo brilho na Roma Eterna

O pensamento está expresso com uma complexidade um pouco século XIX e, portanto, creio que não muito clara para a geração atual. Mas, em duas palavras, quer dizer o seguinte:

Roma estava decaindo. As antigas famílias, às quais Roma devia a sua antiga glória política, não a estavam mais dirigindo devido ao seguinte fenômeno: o pessoal adventício, que dominara Roma, havia deixado numa certa penumbra as famílias antigas; mas essas famílias — que no começo do Cristianismo, quando elas dirigiam a sociedade civil, eram pouco numerosas entre os católicos —, na época de São Jerônimo, no fim do Império Romano, eram muito numerosas entre eles.

Quer dizer, a nobreza e o patriciado romanos tinham um papel de vanguarda na direção dessa segunda Roma, que não era mais a Roma dos Césares, que estava morrendo, mas a Roma dos Papas, que estava nascendo. E eles se encontravam na liderança da vida religiosa e da expansão católica no mundo.

A falange aristocrática constituiu o melhor do exército monástico.

Ou seja, o melhor das vocações para monges era de nobres.

Nesses tempos de sua origem no Ocidente…

Em que o monaquismo, que já existia no Oriente, começou a nascer no Ocidente.

… ela lhe deixará para sempre seu caráter de antiga grandeza.

O caráter da antiga grandeza nobiliárquica comunicou algo para a dignidade do monaquismo.

Mas nas suas fileiras, a título igual de seus pais e de seus irmãos, se veem a virgem e a viúva, ao mesmo tempo o esposo e a esposa. É Marcela, que será para ele o auxílio na tradução das Escrituras. E, como ela, Fabíola, Paula e outras que lembram os grandes ancestrais, os Camilii, os Fabii, os Scipiones.

Camilos, Fábios e Cipiões eram grandes famílias nobres. E, em linguagem mais simples, Dom Guéranger menciona nobres — como viúvas, virgens, ou esposo e esposa, sendo separado o casal — que iam viver no estado monástico, conferindo-lhe algo de sua antiga grandeza.

São Jerônimo, vingador da glória virginal de Maria

Nesta altura, a refutação de Elvidius, que ousava pôr em dúvida a perpétua virgindade da Mãe de Deus, revelou em Jerônimo o polemista incomparável, do qual Joviniano, Venâncio, Pelágio e outros ainda teriam que experimentar o vigor.

Eram hereges que São Jerônimo fustigou vigorosamente.

Como recompensa, entretanto, de sua honra vingada, Maria conduzia a ele todas essas almas nobres. Ele as dirigia no caminho da virtude e, pelo sal das Escrituras, as preservava da corrupção da qual morria o Império Romano.

Então, aqui se completa esse bonito pensamento que explica a tarefa de São Jerônimo.

Um apóstolo da alta aristocracia

Ele não era apenas o grande herói que lutava contra os hereges, mas também salvava da podridão o que Roma tinha de melhor, as antigas famílias aristocráticas, e as conduzia para a conquista do mundo, para a Roma dos Papas, e não mais para a Roma dos Césares. O santo realizava isto por meio de assistência espiritual à alta aristocracia romana, que já não tinha poder político, mas ainda era fabulosamente rica naqueles tempos.

Qual é a consideração que isto nos traz ao espírito?

São Jerônimo tinha em mente a importância das elites para a direção da sociedade. E ele soube compreender que um movimento católico que vise levar o mundo inteiro para a Igreja, a cristianização do mundo, deve contar com todas as classes sociais, levando cada uma a dar o contributo que lhe é específico. Portanto, a classe aristocrática deve prestigiar a expansão apostólica com o valor do nome, da fortuna, mas sobretudo com o valor de certo prestígio indefinido, que se ligava merecidamente às grandes famílias da aristocracia romana.

Quer dizer, ele compreendeu que, acionando as classes mais influentes, havia um meio para acionar toda a sociedade e para obter a cooperação dela para a luta pelo Reino de Cristo.

Austero, polemista e zeloso pela glória de Deus

No breviário antigo consta um elogio a São Jerônimo, que convém comentar:

Molestou os hereges com acérrimos escritos.

Existiram santos dotados de carismas extraordinários para a posição polêmica. Um deles foi São Jerônimo. De fato, ele representa, por excelência, na Igreja, o espírito da polêmica. Os seus escritos são de uma energia, para não dizer de uma violência, que pareceria desabotoada se não fosse ele um santo. E para as menores questões ele dava respostas de fogo tremendas, e deixava todo mundo tremendo diante dele.

Certa ocasião, Santo Agostinho chegou a escrever-lhe uma carta muito engraçada, dizendo que, com metade da energia empregada, já cederia diante de São Jerônimo. Li uma missiva de São Jerônimo a uma dirigida dele, uma santa, que lhe mandou, aliás, um lindo presente: pombinhos e cerejas; e ele respondeu perguntando se ela queria corromper a austeridade dele, e afirmou que imediatamente deu aquilo para os pobres, porque era um homem penitente.

Isto é o zelo da Casa de Deus, que devora o homem, uma das formas mais características, portanto, das mais santas, mais legítimas dessa virtude. Desde que seja feito por amor de Deus, e não por ressentimentos pessoais — porque com ressentimentos a coisa muda de aspecto —, isto é uma coisa santíssima, é ser um gládio vivo de Deus. Não conheço elogio maior do que dizer de alguém que ele é a espada viva de Deus.

A polêmica visa sobretudo influenciar os indecisos

Em matéria de polêmica, é preciso sempre prestar atenção no seguinte: os espíritos modernistas consideram a existência de duas figuras, uma que diz “A” e outra que diz “B”; eles não tomam em consideração um terceiro elemento, que é talvez o mais importante no caso: o público que assiste à discussão.

Toda polêmica, ainda que seja feita a portas fechadas, vai repercutir fora e atuar sobre pessoas que estão na dúvida, e que se trata de convencer.

Quando se discute, por exemplo, com um pastor protestante, o mais importante não é convertê-lo, mas evitar que os católicos fiquem protestantes. Em segundo lugar, converter os protestantes menos empedernidos que ali estão. E por fim converter o pastor.

Ao homem em risco fala-se usando a linguagem do medo

Imaginemos que um amigo nosso esteja se debruçando perigosamente sobre um parapeito pequeno que dá para um abismo. Nós não lhe diremos: “Fulano, venha para cá, porque o chão é de mármore!” Mas falaremos: “Cuidado! Caindo nesse abismo você arrebenta a cabeça!” Porque o modo de afastar um indivíduo imediatamente do perigo e da imprudência é mostrar-lhe o mal que lhe sucederá e não o bem.

Quem de nós haveria de dizer para uma pessoa que, por exemplo, está brincando com um revólver imprudentemente: “Fulano, você quer ir jogar xadrez?”, para ver se ele tira o dedo do gatilho e depois lhe tiramos o revólver. Seria de nossa parte uma atitude idiota. Poderíamos falar-lhe: “Fulano! Olhe esse revólver! Você pode se ferir gravemente ou me ferir!”

Quer dizer, normalmente, ao homem em risco, tentado, deve-se falar usando a linguagem do medo. Isto é, sobretudo, verdadeiro no que diz respeito à Doutrina Católica, porque os homens, pela sua maldade, são mais fáceis de se mover pelo medo do Inferno, do que pela apetência do Céu; pelo temor das más consequências, do que pelo bem que pode acontecer. E é preciso, portanto, como remédio de urgência, apontar o mal, a falsidade, que há no erro para depois falar a respeito da verdade.

Assim se compreende a posição polêmica de São Jerônimo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/9/1964 e 29/9/1966)

1) GUÉRANGER, Prosper. L’Année Liturgique. 14. ed. Tours: Alfred Mame et fils, 1922, v.V, p. 327-339.

Beleza perfeita, alegria do mundo inteiro

Uma das mais lindas relíquias da Idade Média francesa é, sem dúvida alguma, a Catedral de Notre-Dame de Paris. Dificilmente alguém olhará o esplendor religioso desse monumento gótico, sem sentir por ele verdadeira veneração. Quer nos seus aspectos externos, quer nos internos, é uma tal obra-prima de bom gosto, de ordem, de sobriedade, que sempre me leva a parafrasear em seu favor as palavras da Escritura: é a igreja de uma beleza perfeita, glória e alegria do mundo inteiro!

Perfeita em cada pormenor, em cada seqüência de suas colunatas e arcarias góticas, assim como nas suas galerias de imagens de reis ou de santos, dispostos em tamanhos, alturas e distâncias irretocáveis. Perfeita na grande rosácea central de sua fachada, que outra coisa http://p1.storage.canalblog.com/17/89/1178853/102576262.jpgnão é senão uma auréola magnífica para a mais magnífica de todas as criaturas, Maria Santíssima, cuja imagem ali se apresenta à devoção e contemplação do povo fiel.

Maravilhosa na profusão de grupos esculturais espalhados ao redor de todo o seu gigantesco corpo, talhados em pedra que, de longe, mais parece tingida de ouro, e tão cuidadosamente cinzelados que mereciam maior realce: cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o Natal, a Apresentação no Templo, a matança dos inocentes, a fuga para o Egito, a Coroação da Rainha do  Universo…

Episódios do quotidiano medieval, fatos edificantes daquela época incomparável da Cristandade, como a história do Monge Teófilo, ludibriado pelo demônio e socorrido pela Mãe de Misericórdia, etc., etc. Bela, ainda, a nos tolher a palavra, na riqueza de seu interior recortado de colunas e ogivas, resplandecente na gloriosa policromia de seus vitrais, ou nos encantadores frisos de baixos relevos que ornam o coro, os quais, numa exuberante sinfonia de cores e detalhes, retratam os mais significativos momentos da vida de Jesus. Só por esse Evangelho esculpido em madeira já  valeria a pena viver em Notre-Dame!https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSFdxH5gJZe3I2fXOqtbGmAtK1nCFLbEoPuqBdXVgvv_Zx0vD1r

E o requinte da arte cristã, acentuado pelo “savoir-faire” único da alma francesa, transborda para os jardins que envolvem o maravilhoso templo, para os canteiros bem calculados e bem cuidados, para a vegetação que serve de moldura às enormes ogivas e à elegante, fabulosa agulha central que se lança para o céu. É a célebre flecha concebida por Viollet-le-Duc no século XIX, numa espécie de realização saudosa, nostálgica, do acabamento perfeito que não estava inteiramente na consciência dos medievais, mas foi explicitado pelos seus descendentes, homens de uma post-Idade Média baseada na História. E sempre me pareceu sublime a ideia de acrescentar essa flecha a Notre-Dame, coroando a silhueta de uma catedral  imortal.

No seu conjunto, a beleza de Notre-Dame refulge de uma luz excelente, completa, contínua e tranquila, que cativa nossa admiração e eleva nosso espírito à seguinte reflexão: o amor e o entusiasmo que temos pelos tesouros da Civilização Cristã seriam incompreensíveis, se não partissem da consideração de Nosso Senhor padecendo e morrendo por nós na Cruz.

Sim, na Paixão e nos acerbíssimos sofrimentos d’Ele, a cada lanho que os flagelos cruéis arrancavam de seu corpo sagrado, a cada gemido que Ele exalava, estava-se preparando todas as pulcritudes que a alma católica engendraria ao longo dos séculos. Sem o holocausto de Jesus, a Europa medieval não teria tido virtude nem elevação de espírito para realizar monumentos tão extraordinários como esse.

Lembremo-nos então disso: quando as carnes e o sangue preciosíssimos do Divino Redentor caíam e se derramavam pelos chãos de Jerusalém, Ele estava construindo a beleza do reino d’Ele na terra, como Profeta que realiza sua própria profecia, pensando num Carlos Magno, numa Sainte-Chapelle, numa Notre-Dame de Paris…

Plinio Corrêa de Oliveira

Espelhos da quintessência divina

Ao lado da bonomia e da doçura de viver que fazem dele um dos encantos desta terra de exílio, envolto por uma natureza risonha, bela e amiga, que parece cantar ao som das célebres melodias dos seus gênios musicais, o povo austríaco se caracteriza de modo muito particular pela grandeza de alma com que conserva os esplendores aristocráticos herdados de seu passado.

Como nostálgica dos gloriosos dias da monarquia dos Habsburgs, a pompa imperial ainda lateja em muitos monumentos, edifícios, costumes e instituições dessa Áustria que não nos cansamos de admirar.

Por exemplo, o Castelo do Belvedere ou o Palácio de Schoenbrunn, construções de linhas clássicas e majestosas, refletindo-se plácida e feericamente nos seus “bassins”, evocam a Viena das galas e requintes do “Ancien Régime”.

Mais recuado no tempo, o Paço Municipal da metrópole austríaca ostenta sua magnífica arquitetura gótica, podendo ser contemplado através de folhagens tingidas de um verde delicado e bonito, circundado por canteiros em que flores variegadas abrem suas lindas pétalas para receberem as gotas de água que respigam de elegantes chafarizes. No secular edifício nota-se toda a força e leveza do gótico: nas torres erguidas sem dificuldades para o céu, nas janelas e arcarias ogivais, na beleza do teto, na nobreza das pedras e em muitos outros de seus extraordinários aspectos.

O que há de velho e perene no prédio é harmonicamente completado pelo que há de novo e fresco em toda a vegetação e nos jorros de água ao redor dele. Enfim, poder-se-ia mesmo adorná-lo com este título: “Tradição sempre viva”…

Mencionemos também a Hofburg, contemporânea, no seu estilo, do Belvedere e de Schoenbrunn, marcada de maneira especial pela presença de dois soberanos que, jovens, mais pareciam personagens de um conto de Fadas. Apesar dos seus defeitos e frivolidades para os quais não se deve fechar os olhos, Francisco José e a Imperatriz Elizabeth — a legendária Sissi — eram entretanto símbolos vivos do que a Civilização Cristã havia engendrado de mais excelente. Daí terem escrito uma das páginas imorredouras da história austríaca.

Daí, igualmente, o aroma de suas personalidades arquetípicas ainda se fazer sentir naquele esplêndido edifício imperial, impregnando os salões que se sucedem de modo agradável e acolhedor, iluminados ora pela luz intensa que atravessa suas largas janelas, ora pela incidência tamisada dos raios de sol contidos por delicados voiles.

Vastos espaços ornamentados com móveis nas cores austríacas — vermelho, branco e dourado —, harmonizando-se belamente com o ouro das molduras, das “boiseries”, das pinturas que cobrem seus tetos.

Os assoalhos são verdadeiros mosaicos de madeira, engenhosamente traçados, formando lindo conjunto com a suntuosidade dos salões ou com a simplicidade e o bom gosto de muitas daquelas salas, apenas com suas mesas de tampo envernizado, uns poucos vasos, algumas cadeiras, castiçais dourados e, a um canto, o aquecedor revestido de porcelana branca com apliques folheados a ouro. Nada é excessivo, nada sobrecarregado nem empetecado. Nos salões mais frequentados pela Imperatriz domina qualquer coisa de graça feminina, distinta, suave, com ornamentos bem apropriados e lustres que dão quase a ideia de uma flor de cristal suspensa ao teto… Facilmente imaginamos ali a delicada soberana, num daqueles momentos informais em que ela recebia suas amigas para o chá da tarde ou para conversar na intimidade com seu esposo, o Imperador. Este também tinha seus salões reservados, com decorações mais adequadas ao gosto masculino, sóbrias, com molduras menos trabalhadas, lustres menos floridos e o dourado mais discreto.

Graça, aconchego, sobriedade e majestade que iam se reunir, todas, na sala dos grandes banquetes que o casal imperial oferecia a monarcas, dignitários e personalidades da Europa e do resto do mundo. Acomodados nas cadeiras de veludo vermelho, sentavam-se à mesa reis e rainhas, ministros e chefes de Estado, cardeais e bispos, diplomatas e altas patentes militares, nos seus trajes suntuosos realçados por alamares, jóias e condecorações. A refeição solene transcorria à luz das velas cintilando em candelabros de ouro e nos imponentes lustres de cristal, sob o olhar dos personagens estáticos nas telas imensas que dominam as paredes. Quadros de tonalidades profundas, contrastando com aquilo que a sala poderia ter de etéreo e ligeiro, e lhe conferindo, por isso mesmo, a gravidade mais condizente à majestade imperial.

Imagine-se uma orquestra tocando numa sala vizinha, de maneira que os seus sons harmônicos tornassem ainda mais agradável o banquete, enquanto os servidores enchiam as taças com um vinho capitoso do Reno e guarneciam os pratos com incomparáveis “pâtisseries” vienenses — e então nos é dado compreender que esplendor se reunia nesta sala!

* * *

Cumpre considerar como essas belezas nos falam de um poder régio, augusto, tão seguro de si que pode viver na alegria de ser o que é. Ao mesmo tempo, um poder que se encontra nas mãos de gente ultracivilizada, ultra quintessenciada, a quem fica bem a prática de todas a virtudes. Trata-se, pois, de uma forma de majestade que não é apenas o mando, mas o direito de governar por causa da posse de qualidades super-eminentes, entre as quais os predicados morais devem ter a primazia absoluta.

E nisso vemos um reflexo da própria majestade de Deus imersa na segurança eterna de sua felicidade perpétua, inteiramente garantida na despreocupação e na alegria perfeitas do Céu.

Em suma, a contemplação desses esplendores nos deve fazer pensar no tipo humano para o qual eles foram feitos. Esse tipo humano atrai a nossa atenção para a superioridade que foram chamados a representar. E esta superioridade, por sua vez, deve elevar nosso pensamento até Deus, criador e fonte de todas as majestades e belezas.

Balduíno IV, o protótipo do católico – II

Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentar Saladino, que se retirou. Talvez essa vitória tenha sido, sob algum aspecto, mais bonita do que a alcançada pelo rei leproso quando rezou com o rosto na areia. Nesta ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; naquela, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que o famoso guerreiro maometano fugisse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

 

Imaginemo-nos na situação dos soldados de Balduíno IV que combateram na batalha de Montgisard(1), revestidos de armamentos, marchando ou cavalgando às ordens desse rei, e pensando o seguinte:

Epopeia comparável aos episódios sacratíssimos da vida de São Luís

“Do outro lado está o Sultão Saladino, muito famoso, riquíssimo, cercado de todo o fausto do Oriente – o nome dele retumbava por todas aquelas zonas como o de um grande guerreiro –, um homem válido, sadio. Nós não somos senão trezentos, e o nosso rei o que é? Um miserável leproso, um pobre super doente, desfeito em chagas e purulências. E a Providência nos chamou para combater, sob as ordens de um desprezível leproso, todo o exército de Saladino!”

Não é verdade que poderia dar insegurança monumental? O que deveria ter sido esse Balduíno para, sozinho, dar segurança aos trezentos homens! Que canal, que veículo do Espírito Santo! Mais bonito ainda do que pensar em trezentos guerreiros é cogitar em trezentos soldados pernibambos… E o rei, leproso, que se prostra no chão e pede a Nosso Senhor, por meio de Nossa Senhora, força para os seus pernibambos. Ali, de fato, nada é forte a não ser a alma dele; mas esta o era por inteiro! Mais sublime não pode ser.

Eu pergunto: na história das monarquias católicas, há um episódio mais bonito do que esse? Não há. Nem os episódios sacratíssimos da vida de São Luís excedem a esse em beleza. Igualam sim, mas não excedem. É uma verdadeira maravilha!

Eis a epopeia que a História da Idade Média, vista assim, nos apresenta. Continua o autor(2).

No ano seguinte, Balduíno edificou no Gué de Jacob a fortaleza destinada a defender a Galileia dos ataques de Damasco.

Gué é um vale por onde Jacó teria passado. Como é bonita a figura desse rei que vai se desagregando, mas constrói fortalezas. Ele, ao contrário de uma fortaleza que se edifica, é um esboroamento vivo, a cada instante. Mas ele ainda constrói fortaleza para lutar no futuro.

Guilherme de Tiro pretende que isso tenha sido feito pelas permanentes solicitações de Odon de Saint-Amand, Grão Mestre do Templo. Em todo caso, qualquer que tenha sido o inspirador da ideia, não há dúvida quanto à importância estratégica da fortaleza que Balduíno mandou construir.

Um senhor feudal revolta-se contra Balduíno IV

Em 1179, Saladino invadiu a Galileia. Balduíno foi a seu encontro, tentando surpreendê-lo, como tinha feito em Montgisard. Mas, como os muçulmanos não se deixaram surpreender, o jovem rei foi cercado. Muitos foram mortos e presos nesse dia.

Pouco tempo depois, Saladino tomou o Gué de Jacó e mandou executar todos os cavaleiros do Templo que a defendiam.

Sybilla, irmã do rei, acabava de se casar – contrariamente aos interesses do Estado – com Guy de Lusignan, homem de beleza discutível, sem fortuna e sem talento. Balduíno, pressionado pelos seus, minado pela doença, havia consentido nessa união e doado a Lusignan os condados de Jafa e Ascalon.

Tão logo se manifestou a insignificância do marido de Sybilla, atiçaram-se as esperanças dos senhores feudais. Contava-se que o irmão de Lusignan, comentando o casamento, disse: “Se Guy for rei, eu deveria ser deus”.

Nessa mesma ocasião, Isabel de Jerusalém desposava Humphrey de Toron, filho indigno de seu pai, o extinto Condestável de Jerusalém, morto em defesa do rei. O estado de Balduíno IV piorava dia a dia. Foi uma provação para sua mãe, que não tinha boa fama, e para a roda de seus cortesões, ambiciosos e amorais, ver a aproximação de Balduíno com Raimundo de Trípoli, único homem capaz de aconselhá-lo devidamente.

Nesse momento reapareceu, libertado dos cárceres muçulmanos, o antigo Príncipe de Antioquia, Renaud de Châtillon. Este logo começou suas aventuras, assaltando uma importante caravana de peregrinos com destino a Meca.

Tal ato rompia a trégua assinada por Balduíno IV e Saladino, ofendia as convicções religiosas dos muçulmanos, a cujos olhos o atentado afigurava-se monstruoso. Intimado pelo rei a devolver os prisioneiros e o produto da pilhagem, ele recusou-se com arrogância, tornando assim evidente a incapacidade do doente de se fazer obedecer.

Portanto, esse senhor feudal revoltou-se contra o rei. Balduíno deu-lhe ordem de restituir o que tinha tirado aos muçulmanos, e ele não quis. O estado de doença de Balduíno não lhe permitia, naquele momento, manter a autoridade necessária.

Dirigia-se às batalhas, carregado em liteira

Em agosto, o infatigável maometano Saladino tentou tomar Beirute por uma ação combinada por terra e mar. Uma vez mais, Balduíno afastou o perigo.

Então, caminhando para a morte, ele combateu e venceu.

Impediu Saladino de se apoderar de Alepo e conduziu uma expedição até os subúrbios de Damasco.

Que era a capital de Saladino.

Assim, por toda parte, graças à sua energia sobre-humana, e ainda que daí em diante ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heroico leproso levava vantagem sobre o genial muçulmano.

Considerem um rei que não pode mais cavalgar e é levado em liteira para as batalhas, mas que vai animando os seus. Vejam, mais uma vez, a força de alma que renasce, enquanto o corpo cada vez decai mais.

Ele começava, entretanto, a perder a vista, a não poder mais se servir de seus membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar seus afazeres do reinado, e ao mesmo tempo passar parte de suas responsabilidades a Guy de Lusignan.

Pode-se bem imaginar o drama interior desse rei, com apenas 22 anos, corroído por úlceras, semi paralisado e quase cego, cercado pelas sombras da desconfiança e dos maus pressentimentos, atormentado ante as insinuações e sugestões pérfidas dos seus, de um lado, e a alta ideia que fazia de sua missão de rei, de outro lado. Se a lepra o enfraquecia e ele não podia ter esperanças de se curar, sempre, entretanto, encontrava novas forças e resistia da melhor forma às ciladas da camarilha.

É o período de ascensão máxima dele: cada vez mais cercado, ele vai resistindo à camarilha, crescendo em energia.

Pedido de socorro ao Ocidente

Como a doença entrava numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela e, sobretudo, contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.

Foi num desses períodos que ele consentiu, se bem que a contragosto, a investir Guy de Lusignan na regência do reino.

No primeiro encontro com Saladino, Lusignan deixou o exército franco ser massacrado. Recusou com altivez prestar contas a Balduíno, que o destituiu de seu cargo. E para evitar que, pela complacência de Sybilla, Lusignan se tornasse Rei de Jerusalém após sua morte, ele designou seu sucessor: o pequeno Balduíno V, filho de Guilherme Longue Épée.

Ele ainda teve, portanto, um gesto de suprema coragem e energia: vendo que o cunhado não prestava mesmo, destituiu-o da sucessão do reino.

Como a situação da Terra Santa estivesse desesperadora, Balduíno mandou uma embaixada ao Ocidente, composta pelo Patriarca de Jerusalém, pelo Mestre dos Hospitalários e pelo Mestre dos Templários, o velho Arnaud de Torrage.

Era um pedido de socorro ao Ocidente, para ver se mandavam gente limpa e boa para salvar a cidade de Jerusalém.

Agonizante, Balduíno enfrenta Saladino e o derrota

Renaud de Châtillon, que indiretamente tinha ajudado o rei a se desembaraçar de Lusignan, julgou-se autorizado a retomar suas pilhagens, mas agora então na mais alta escala.

Armou uma frota, que foi transportada ao Mar Vermelho em dorso de camelo. Essa frota, devastando portos, interceptando comboios, ameaçou por algum tempo o caminho para Meca.

Saladino, excitado até o cúmulo do furor, destruiu os navios de Renaud e depois sitiou-o em sua própria fortaleza, o Krak de Moab. Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino então retirou-se.

O Mar Vermelho era cheio de sultanatos e de pequenos Estados riquíssimos. Renaud de Châtillon fez transportar os seus navios, a dorso de camelo, pelo istmo de Suez – o canal naturalmente não existia, só foi aberto no século XIX –, entrou no Mar Vermelho e começou a saquear. Saladino ficou indignado. Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentá-lo. Saladino se retirou. Talvez tenha sido uma vitória, sob algum aspecto, mais bonita do que aquela quando ele rezou com o rosto no chão. Na primeira vitória, ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; na segunda, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que Saladino se retirasse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

O último ato de Balduíno IV foi o de reunir em São João d’Acre o Parlamento de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz e rebelde, foi então oficialmente afastado do trono. E a regência foi confiada a Raimundo de Trípoli.

O que era de justiça e sabedoria, porque ele designou um menino para ser seu sucessor, e tinha o direito de nomear o regente. Balduíno chamou então seu conselheiro fiel e designou-o como regente. Vê-se o golpe pelo qual ele não nomeou Guilherme, o Longa Espada, para rei, mas sim o menino. Assim, Balduíno pôde chamar seu conselheiro fiel e passar-lhe o bastão de mando, antes de morrer.

Mais tarde, a 16 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus, em presença de seus vassalos, dignatários e bons companheiros de guerra. Até os infiéis lhe tributaram homenagens.

Pedir a esse herói que nos obtenha a força de alma indomável

Entretanto, os católicos o esqueceram…  Em 1972, ele é lembrado num auditório cheio de pessoas de um continente naquele tempo habitado pelos guaranis, araucanos, tupis, etc. Aqui está um eco da glória de Balduíno IV, Rei de Jerusalém.

Esse é um fulgor da Idade Média. Não sei o que aconteceu, mas uma figura assim não foi dada mais à Cristandade. Esse exemplo impressionante do rei leproso e herói, diante de cujas feridas recuam, cheios de reverência, os filhos das trevas, não nos foi dado depois.

Alguém poderá objetar: “Dr. Plinio, o seu entusiasmo por Balduíno IV é como se ele tivesse sido santo. Mas o senhor não pode ter os olhos fechados para o fato de que esse homem teve fraquezas na vida, como o senhor mesmo observou nessa narração histórica. Como o senhor pode ter tanto entusiasmo por esse personagem?”

A vida tem me mostrado poder haver pessoas com algumas qualidades, mas que, sob o peso de provações muito grandes, embora com culpa, apresentam deflexões, mas a graça depois perdoa, reanima e leva de novo a altos cumes.

Essa foi a história, chagada e dolorosa, de Balduíno IV. Ele teve desfalecimentos, é verdade. Não como Nosso Senhor caiu debaixo da Cruz – perfeito, impecável, divino –, mas como um homem que teve fraquezas, e recebeu graças para não tê-las. Essas fraquezas devem ser julgadas com severidade. Mas os atos maravilhosos de sua vida também precisam ser, por isso mesmo, julgados com a mesma justiça. E esses impõem admiração, como as fraquezas exigem a severidade. Sobretudo, para que esse homem tivesse realizado o último lance de afugentar e impor respeito a Saladino naquelas condições, era preciso que a sua alma estivesse em muito belo estado.

Ele foi ocasião, como uma relíquia viva, para um dos mais bonitos episódios da História das Cruzadas. Como não admitir que a alma desse homem, num grau mais alto ou menos, esteja na presença de Deus? Nós não podemos canonizar ninguém, pois este é um privilégio único e exclusivo da hierarquia católica, mais especialmente do Papa. Porém, podemos pedir privadamente a esse herói que nos conquiste essa força de alma indomável. Que ele nos faça compreender algo desse espírito medieval, do qual ele era dotado em tão alto grau, e que é a luz que nos deve animar no caminho ao Reino de Maria.

Aqui está a grande recordação purulenta, fétida, chagada e maravilhosa de Balduíno IV. Mais do que isso, de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz, pensando em nós, em nossa meditação, abençoando-nos e nos perdoando por todos os defeitos que haja em nossas almas.

Nós nos compadecemos de Balduíno e, sobretudo, d’Ele. Que ambos tenham piedade de nós!

(Continua no próximo número)

 

Plinio  Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 21/10/1972)

 

1) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 245, p. 18.

2) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977, p. 111-115.

Deus ama a oração importuna

No número de agosto publicamos excertos da série de conferências que Dr. Plinio pronunciou em 1957 sobre o livro de Santo Afonso Maria de Ligório — “A oração, o grande meio da salvação”. Continuamos com alguns outros trechos da mesma, dada a grande importância que o tema representa para a vida espiritual de todo católico.

 

Para obter que Nosso Senhor nos abra a porta, basta ser importuno. Isso está dito textualmente e comentado por um Doutor da Igreja do porte de Santo Afonso de Ligório. Devemos considerar, de uma vez por todas que, na oração, não são nossas misérias que entram em linha de conta.

A oração não é um cheque bancário contra Deus

A oração tampouco é um cheque que eu saco do fundo dos meus créditos e compro de Deus um favor. É preciso desfazer tal ideia, pois é um obstáculo para o desenvolvimento da nossa vida espiritual.

Oração é algo diferente. Ainda que eu não tenha nenhuma razão para ser atendido, sê-lo-ei pela minha importunidade. A importunidade do pecador abre as portas do Céu e obtém, afinal, tudo quanto possa desejar. É frisante, nesse sentido, a palavra de Nosso Senhor.

S. João Crisóstomo, grande Doutor da Igreja, comenta no mesmo sentido: A oração vale mais junto de Deus do que a amizade(1).

É uma afirmação que eu não teria coragem de fazer: estabelecer uma distinção entre a oração e a amizade com Deus, para concluir que a primeira vale mais que a segunda. Ora, isso foi dito por São João Crisóstomo, que Santo Afonso por sua vez cita.

A oração vale mais diante de Deus do que a amizade. Entre uma pessoa em estado de graça, mas que não reza, e outra que reza mas não está em estado de graça, quem reza alcança mais favor diante de Deus. Outro argumento interessante, invocado por Santo Afonso para justificar a tese de ser a oração do pecador eficaz e grata diante de Deus, é a passagem evangélica em que Nosso Senhor elogia a oração do publicano: “Assim é que se deve rezar!”

Qual é o título que o publicano apresenta diante de Deus para ser atendido? Não é o “cheque” que os fariseus apresentam: “Agora tu, Deus, que me põe uma barreira, tu tens que me dar um prêmio, porque eu fiz algo. Aqui está o que eu fiz!”

Na sua oração, pelo contrário, o publicano invoca o título de pecador: “Deus, sede-me propício, a mim que sou pecador”.

Ora, tendo alegado esse título de pecador, o Evangelho acrescenta: … este (o publicano) voltou justificado para a sua casa (Lc 18,14).

Quando nós alegamos o título de pecador, somos atendidos. É engano achar que devemos estar num alto grau de virtude para que nossas orações sejam atendidas por Nosso Senhor. É preciso abandonar essa ideia heterodoxa, se quisermos ter verdadeiro espírito católico. Outra frase, também muito interessante, é tirada de uma oração do Profeta Daniel: Inclinai, meu Deus, o vosso ouvido, e ouvi-me (…) porque nós, prostrando-nos por terra diante da vossa face, não fazemos essas deprecações fundadas em alguns merecimentos de nossa justiça, mas sim, na multidão das vossas misericórdias (Dan 9, 18).

Essas palavras, ditas pelo Profeta, não constituem figura de retórica, como quem dissesse: “Vê tudo isto! eu ainda vou pôr mais um enfeite, vou dizer que não tenho nada. Mas, é para mostrar que eu sou humilde e, portanto, não digas que há contrabando na minha mercadoria. Dá-me agora aquilo que tu me prometeste!”

Não se trata disso. A humildade está presente na verdade, e na oração não pode haver mentiras. O Profeta Daniel, realmente, se dirige a Deus em nome do povo judeu, carregado de pecados e prostrado por terra.

Esse povo judeu, prostrado pelo pecado, na condição de pecador, faz uma oração. Ele alega essa condição ao se apresentar ante Deus e é atendido.

É uma oração tirada da Bíblia, inspirada pelo Espírito Santo. Assim, compreendemos quanta confiança também nós devemos ter.

O pior do pecado é o desespero

Há outro trecho, dessa vez tirado  de São Mateus: Vinde a mim todos que andais em trabalho e vos achais carregados que eu vos aliviarei (Mt 11, 28). Segundo São Jerônimo, Santo Agostinho e outros, qual é essa categoria de gente que está em trabalhos? São os pecadores que têm algum pesar de ter cometido pecado.

Esse é o sentido da palavra trabalho, neste contexto. É para esses pecadores que Nosso Senhor disse: “Vinde a mim que Eu vos aliviarei”. Quanta cordura e quanto amor ao pecador! Quanto desejo de atraí-lo! Que absurdo, que aberração comete o pecador se ele se desespera! O pior do pecado dele não é a falta, é o desespero.

Enquanto ele conservar a confiança ele pode voltar, e há torrentes de razão para confiar. Outra citação, também muito interessante: “Não desejas — diz São João Crisóstomo dirigindo-se ao pecador — tanto a remissão de teus pecados quanto Deus deseja perdoar-te”.

São João Crisóstomo, ao ver um pecador querendo sair do seu pecado lhe diz: “Deus deseja mais que tu te convertas, do que tu mesmo o desejas”.

Compreende-se, portanto, quanta confiança deve ter um pecador quando ele pede sua conversão a Deus. Ele pede uma graça que o próprio Deus deseja mais do que ele. Como não ter toda a confiança?

Importunidade, o principal requisito da oração

Ainda São João Crisóstomo, ao comentar São Mateus, diz: “Não há o que não obtenhas pela oração, ainda que estejas carregado de mil pecados, contanto que a oração seja instante e contínua”
(Hom. 23 in Matth.).

Note-se bem que São João Crisóstomo é um dos grandes Doutores da Igreja.

Sua frase condensa o que acima afirmávamos. “Não há o que não obtenhas pela oração”, diz ele. Ou seja, ele inclui tudo. “Ainda que estejas carregado de mil pecados…”, não de um só pecado. Para se obter o que se pede, a condição será ter firme propósito ou qualquer outra coisa? Não, não é. “Contanto que a oração seja instante e contínua”, não é necessário mais nada.

É preciso ser importuno. A oração obtém tudo na medida em que é insistente, caso contrário não é boa oração. Mais claro não podia ser. Ou as palavras humanas não têm sentido, ou o sentido é esse.

Mais adiante é citado um trecho de uma epístola de São Tiago: Se algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá com abundância e não impropera (Tg 1, 5). Sabedoria é juízo, sabedoria é critério, sabedoria é conduzir-se bem, é não ter algum dos defeitos que levam ao pecado. Se alguém precisa disso, peça. Deus dá com abundância a qualquer um que pede.

Como Deus é generoso! Como Ele é misericordioso! E como é taxativo!  “Se alguém precisar, peça, Eu darei”. Ou Deus não existe, ou Ele é mentiroso, ou isso é verdade. Não há outra alternativa. Santo Afonso se pergunta o que querem dizer estas palavras: “Deus dá com abundância e não impropera”.

Citando mais uma vez São João Crisóstomo em abono de suas teses, ele explica que os poderosos da Terra, quando se lhes pede algo, não dão com abundância e ainda por cima improperam. É bem verdade. Quando dão, dão pouco e de má vontade. Com Deus é diferente. Deus não impropera quando se Lhe pede. Santo Afonso demonstra que Deus impropera quando não se lhe pede. O que O ofende — contrariamente ao que se dá com os homens — é não ser importuno com Ele. Sendo importunos não O ofendemos, mas Lhe somos agradá-
veis. Esta é a realidade.

Deus nunca nos acha “”cacetes””

Meu avô costumava dizer o seguinte à minha mãe, que rezava muito: — Deus deve te achar muito cacete, embora você seja uma boa menina. Porque até eu, que te quero tanto bem, se você falasse tanto comigo como fala com Deus, acabava te mandando embora e te achando cacete. E assim eu também acho que você deveria rezar menos. É o contrário! Deus nunca nos julga cacetes. Se há lugar no mundo onde nós podemos ir, certos de não estarmos sobrando, é aos pés do Santíssimo Sacramento. E onde haja uma imagem de Nossa Senhora, ali somos sempre bem recebidos, ainda que nos consideremos os piores mulambos da Terra. Em todos os outros lugares, não devemos ter dúvida nenhuma, sempre há uma determinada situação na qual nós podemos ser cacetes aos olhos de alguém.

E o melhor argumento nessa linha, talvez sejam estas palavras do Evangelho de São Lucas: “Se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial dará espírito bom aos que lho pedem” (Lc 11, 13).

Se um homem qualquer sabe dar um bom presente quando o filho pede, podemos acaso conceber que Deus, quando Lhe pedimos o bom espírito, não nos atenda? Certamente atenderá! É questão de pedirmos.

Nos períodos melhores, pedir graças para suportar os piores

Há um ponto que eu tenho muito empenho em desenvolver: é o problema da oração de quem está em estado de graça para não cair em pecado. Santo Afonso mostra o seguinte: quem está nas alturas, animado, deve rezar pedindo graças para quando estiver na provação e no desânimo. Porque é quando este sobrevém que se corre o risco de rezar menos. O desânimo é um estado de alma que congela toda a vida espiritual de uma pessoa, e no qual a coragem e a resolução de rezar minguam.

Deve-se fazer provisão de orações para quando vier o desânimo. Isso de dizer “eu rezo quando estiver tentado”, é mais ou menos como quem acha que vai converter-se quando estiver para morrer. No momento da agonia a pessoa estará pensando no pé que está doendo, no coração que está parando, na vista que já não está enxergando a não ser à curta distância. Ela estará vendo a morte se aproximar e estará pensando no próprio corpo.

Não estará pensando na alma, ou terá muita dificuldade em pensar nela, e por isso quando se está saudável deve-se rezar pela hora da morte. O mesmo se dá conosco, quando estamos bem na vida espiritual. Devemos nessa hora rezar pedindo proteção para o momento em que vierem as tentações, pois não há homens invulneráveis em matéria de vida espiritual.

E eu tenho visto diminuir o brilho das estrelas no céu!… Não quero dizer apagar-se, mas passar por temporárias eclipses. Ou porque, de repente, a pessoa é afligida por um vendaval tremendo e reage estupidamente, com uma brutalidade idiota; ou então é uma dúvida que começa a surgir, e ela pensa: se houver isto haverá aquilo, se houver aquilo haverá mais aquilo, e eu farei não sei o quê, e de repente se apega a algo a que não deveria apegar-se, e quando se vai tentar ajudar, já é tarde.

Nesta hora, chegar junto de alguém e dizer: “Agora reze!”… É necessário! Mas não seria muito melhor se a pessoa tivesse aproveitado a hora do fervor para rezar?

É muito ruim ser olímpico na hora em que se está num auge de vida espiritual. Devemos, isso sim, nessas horas, armazenar cargas de oração.

Santo Afonso menciona um texto do Concílio de Trento (seção 6ª cap.  XIII): “Não se pode obter essa graça senão d’Aquele que tem poder de conservar a quem está de pé, de sorte que persevere com fé” (Seção 6ª cap. XIII).

Quem está de pé deve pedir perseverança

Àquele que o conserva neste estado. O que é mais importante: rezar para nos levantarmos quando já tivermos caído, ou rezar para não cair quando estamos de pé? Evidentemente, o segundo tipo de oração é o mais importante: rezar para não cairmos.

Ele menciona também outro trecho do Concílio de Trento, no qual é citado Santo Agostinho: “Esse dom de Deus, a perseverança, pode merecer-se suplicando, isto é, se pode conseguir pela oração” (De don. persev., c. 6.).

Se nós queremos perseverar, por mais firmes que nos sintamos, peçamos essa graça da perseverança. Recorrendo à autoridade de São Tomás, Santo Afonso cita a seguinte afirmação do Doutor Angélico. “Depois do batismo, é necessário ao homem a oração contínua para ele poder entrar no céu”.

Depois do batismo, quando todos os pecados do homem foram apagados por virtude desse sacramento, o que é preciso? Oração contínua! Não há o que justifique o não rezar. Outra citação interessante: “Vigiai, pois, e orai em todo o tempo a fim de que vos torneis dignos de evitar todos esses males que têm de suceder — quer dizer, as tentações — e de vos apresentardes com confiança diante do Filho do Homem” (Lc 21, 36).

Portanto, não é sempre no tempo mau, mas em todo o tempo. O mesmo diz o Eclesiastes: “Nenhuma coisa te impeça de orar sempre” (Ecl 18, 22). Não há razão para não estarmos rezando sempre. Outra frase, dessa vez de Tobias: “Bendize a Deus todo o tempo e pede-lhe que dirija os teus caminhos” (Tob 4, 20).

Todo o tempo, quer dizer, no tempo bom também. Ainda, numa epístola de São Paulo: “Orai sem intermissão” (1 Tes 5, 17). Não é, portanto, com as intermissões do tempo de virtude. Outra é da  Epístola de São Paulo aos Colossenses: “Perseverai na oração, velando nela com ação de graças” (Col 4, 12).

Perseverai sempre na oração. Não é só quando se está em pecado, ou se está sem pecado, mas é sempre. Também na Epístola a Timóteo: “Quero pois que os homens orem em todo o lugar” (1 Tim 2,  ). E o próprio Santo Afonso de Ligório comenta: Muitos pecadores com o auxílio da graça chegam a converter-se a Deus e a receber o perdão; mas, porque deixam depois de pedir a perseverança, tornam a cair e perdem tudo.

Ou seja, a pessoa chegou, com a graça, a emendar-se, mas depois não pediu a sua própria perseverança. Não pediu, logo perdeu. Então, quando se está em dificuldade é preciso lembrar-se disso, e rezar para conseguir a perseverança. E quando se vai bem na vida espiritual, é de uma importância capital ter essa humildade, esse medo de cair e implorar a graça da perseverança.

No Padre Nosso, Deus nos ensina a pedir a perseverança

E, por fim, temos a petição do Padre-Nosso: “Não nos deixeis cair em tentação”. É súplica para, na hora da tentação, eu ter o suprimento necessário do que eu pedi quando não estava tentado. Nosso Senhor ao formular a oração perfeita estabeleceu, exatamente, esse pedido de não sermos abandonados no momento da tentação.

Este momento é tremendo. É como um turbilhão pavoroso, ou como uma ideia das mais sedutoras. Nessa hora a pessoa já está, às vezes, quase impossibilitada de rezar. Dois conselhos valiosos Por isso recomendo duas coisas: Primeiro, incluir na nossa rotina uma oração para que Deus nos conserve numa perseverança perfeita.

Em segundo lugar, assegurarmo-nos de uma outra forma, ou seja, pedindo que se celebrem missas e que se façam orações em conventos, por nós.

Deus já estabeleceu que haja freiras, religiosos contemplativos, para recitarem as orações que nós não podemos fazer. Por que não nos munirmos desses recursos incomparáveis? Se desconfiamos que não somos capazes de rezar bastante, por que não recorrer às orações de outrem? Mas, estas práticas devem constituir uma rotina, sobretudo quando se está em perigo, em situações difíceis, mas também quando se está em situações boas. Não há recurso melhor do que recorrer às orações de uma religiosa, para ter uma alma que carregue a cruz conosco, e nos ajude a levar aquilo que pesa demais para nós.

Mas a melhor pessoa para rezar por nós, já sabemos, é Nossa Senhora. Devemos pedir muito à Santíssima Virgem. O alfa e o ômega de tudo isso é a oração d’Ela e a oração a Ela. Nossa Senhora nos concederá tudo de que temos necessidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (Setembro de 2003)

(1) Santo Afonso Maria de Ligório, A Oração, o Grande Meio da Salvação, Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1956, 3ª edição, pgs. 90 e 91.

 

Senso do maravilhoso: padrão para o conhecimento da verdade – II

O desenvolvimento do senso do maravilhoso faz crescer o nível intelectual das pessoas, e até mesmo o moral. Comprimir esse senso, sob a alegação de que é fantasia, torna os espíritos achatados, baixos e sem valor.,

 

Ao considerarmos as grandes civilizações, notamos que todas elas tendem a uma forma de maravilhoso que chegaram a tocar, por assim dizer, com a ponta do dedo, entretanto imaginaram muito mais do que de fato realizaram.

Algumas construções maravilhosas

Tomemos, por exemplo, o famoso Taj Mahal, na Ásia. É perfeito! Olha-se e, no primeiro momento, contenta-se inteiramente. Logo depois, não surgem censuras, porque aquilo é muito bonito, mas a alma pergunta: “Está bem! Mas não haverá mais?” E é imaginando vagamente o mais, que acabamos de entender bem o Taj Mahal.

Outra coisa que eu acho muito bonita é o minarete. Aquelas torrezinhas finas, com terracinho, onde fica um homem sentado e cantando, é de uma elegância, de uma beleza… Imaginar um minarete no Bósforo é uma coisa simplesmente fantástica!

Por exemplo, aquele minarete na Igreja de Santa Sofia não tende para alguma coisa de maravilhoso, de irreal? Como eu gostaria que essa igreja fosse católica! Ela é arredondada, e dentro é lindíssima! Fora, a beleza dela está no contraste daquele arredondado com um minarete esguio que sobe para o céu. Uma verdadeira maravilha!

O pagode chinês é lindo! Mas meu gosto do maravilhoso não se contenta com isso. Por fervor religioso e gosto artístico, eu gostaria de imaginar bem no alto do pagode uma imagem da Imaculada Conceição, com uma lua, verdadeiramente elaborada com prata, aos pés, e esmagando a cabeça de uma serpente feita de jade.

Existe na França uma escola de equitação pertencente ao Exército, que é uma antiga fortaleza medieval, na cidade de Saumur, onde se fazem os exercícios militares.

Eu vi, numa iluminura medieval, uma pintura do Castelo de Saumur, completamente diferente do que é hoje. Tinha uma grande quantidade de torres, e no alto de cada uma figurava uma flor de lis, formando uma espécie de jogo de campanários imaginários, que é uma das coisas mais belas que eu tenha visto na minha vida!

O mais bonito está no seguinte: parece que o Castelo de Saumur nunca foi como esse artista o pintou. O pintor viu o Castelo e imaginou um outro que não existia, mas que correspondia ao maravilhoso que desprendia de seu espírito, a partir daquilo que ele tinha visto!

Se tomássemos essa tendência para o maravilhoso — que a educação moderna comprime o quanto pode, sob a alegação de que não é prático, é fantasia, etc. — e a desenvolvêssemos, cresceria muito em nós o nível intelectual e até mesmo o moral.

O maravilhoso irreal é a ponta da realidade

A meu ver, foi esse desejo do maravilhoso que criou os vitrais. Porque os vitrais apresentam, o tempo inteiro, as coisas com as cores que elas não têm. E isto faz propriamente a beleza do vitral. O artista imaginou um maravilhoso irreal que não é uma mentira, mas a ponta da realidade, e por causa disso os vitrais são maravilhosos; ele imaginou cores de vidros, reflexos, lampejos e, afinal de contas, chegou a um verde, a um vermelho ideal, que nos deixa encantados. Isso porque ele possuía uma alma fecunda em maravilhoso.

Estamos acostumados a ouvir uma comparação exata, mas que a repetição tornou banal: quem entra numa igreja e vê o sol incidindo no vitral, projetando suas mais variadas cores no chão, é levado a dizer que o pavimento encheu-se de pedras preciosas. Realmente, aquelas cores são como que pedras preciosas que ficam pelo chão. Portanto, quem elaborou o vitral pintou a cena com uma atmosfera de pedra preciosa que a realidade não tem.

Ora, o critério hoje em dia é o seguinte: “Se você quer conhecer algo, faça um inquérito, analise sua substância química, a quantidade, a qualidade, e só então o conhecerá.”

Minha resposta seria: “É verdade. Mas enquanto você não vislumbrou o que a coisa poderia ser e não é, você não a conheceu inteiramente.” Essa análise científica é necessária, e deve-se reconhecer sua importância. Entretanto a incapacidade de imaginar alguma coisa acima daquilo é o desastre, pois torna os espíritos chatos, baixos e sem valor.

Uma coisa que toda a vida eu quis conhecer foi a aurora boreal. Porque, pelas descrições que me têm sido feitas, ela representa um céu irreal na aparência, uma fantasmagoria feita por Deus para o homem, como quem diz: “Meu filho, Eu fiz um céu muito bonito para você imaginar um ainda mais belo. Não é para você ficar sentado como um idiota, olhando para aquele firmamento. Imagine outro! E, sendo incapaz de imaginar, para ter ideia de como é isso veja fotografias de auroras boreais. Aí você tem algo mais alto; levante sua alma!”

Equilíbrio entre bom senso e desejo do maravilhoso

Olhando para o Santo Sudário — a respeito do qual não existe no meu espírito a menor dúvida de que é verdadeiro —, percebe-se que Nosso Senhor Jesus Cristo, nas suas condições normais, era um Homem-Deus maravilhoso, como nunca se poderia imaginar. E qualquer rei seria uma ninharia, em comparação com Ele se apresentando e falando.

Mesmo assim, Nosso Senhor, por assim dizer, treinou os Apóstolos para algo mais. Na Transfiguração, no alto do Tabor, Ele não se adornou com elementos externos. O Redentor fez aparecer uma beleza maior, que havia no fundo d’Ele pela natureza divina. E ali apareceu multiplicado por Ele mesmo, produzindo nos Apóstolos o efeito que conhecemos. Quer dizer, mesmo na maravilha das maravilhas, que é Nosso Senhor Jesus Cristo, a graça filtrando faz aparecer uma maravilha ainda maior, inerente a Ele, mas que era sua Transfiguração, a figura multiplicada pela figura, ficando maravilhosa como ficou.

Esse é o sinal de que em todas as coisas devemos procurar seu “trans-aspecto”, com o qual verdadeiramente a nossa alma se forma, desde que tenha um bom senso robusto, porque do contrário isso conduz para o rodopio. Deve haver um equilíbrio entre o bom senso e o desejo da maravilha, que forma propriamente a força da alma humana. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/8/1988)

 

Reflexo da sabedoria cristã

As primeiras impressões sobre a Idade Média que tocaram minha alma — as quais encontrariam mais tarde na palavra “Cristandade” a sua expressão adequada — vieram através de livros para crianças folheados por mim, um ou outro cartão postal que me caía sob os olhos, assim como fotografias e gravuras retratando paisagens e monumentos da antiga Europa, e que produziam no meu espírito verdadeiros frêmitos de entusiasmo na consideração das coisas medievais.

Encantavam-me as catedrais góticas, as ruínas de castelos ou as velhas construções conservadas intactas, admirava o mundo da heráldica que começou a luzir à minha vista como um conjunto de vitrais sem vidro, escudos medievais parecendo rosáceas impressas num papel resplandecente, tudo me falando da mesma época em que floresceu a música sacra, uma época em que a fé católica espargia grande influência sobre a mentalidade e a sensibilidade humanas, dando origem a uma ordem temporal de esplendor incomparável.

Ogivas, torres, campanários, vitrais, armaduras… Detenho-me na contemplação destas últimas.

Poucas vezes o homem se tem revestido, no sentido material da palavra, de tal manifestação de força como quando se cobre de ferro, com pequenas aberturas no elmo que o permitam ver e respirar. De resto, está todo envolto pelo ferro, manifestando um misto de prudência e de coragem que traduz o equilíbrio da sabedoria cristã. Coragem e prudência que indicam, ao mesmo tempo, um amor à vida, uma consciência plena do inestimável preço da existência humana para protegê-la de tal maneira, e uma inteira disposição para sacrificá-la, se preciso for, a serviço de Deus e da Igreja.

O homem se veste inteiro de metal, para se defender e para se lançar no centro do perigo, revelando a magnífica estatura do combatente que soube compreender e amar verdades eternas, preceitos morais, tesouros de fé cristã pelos quais vale a pena não só lutar, mas morrer. É praticar essa mesma fé cristã até as suas últimas e gloriosas conseqüências.

Assim, toda a sua personalidade se acha tão imbuída do espírito católico que ele se apresenta revestido de ferro, afirmando a serena convicção de seu direito e da santidade de sua causa. Na véspera de partir para uma batalha em que lutará pelos interesses da Igreja, ele se entregou à vigília das armas: rezou, implorou o socorro do Céu, pesou e mediu os sacrifícios, as dores e, quiçá, o holocausto supremo que se aproximavam. E ele a tudo aceitou de antemão. Os penachos de seu elmo deixaram de ser meros enfeites, e sua armadura uma simples afirmação de riqueza ou categoria.

Simbolizam, agora, a intrepidez de uma alma heroica. São reflexos da sabedoria cristã. Representam a força a serviço da sublimidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

Secos e molhados…

Desde os meus tempos de menino, percorrendo algumas regiões da capital paulistana, comprouve-me observar o exercício de uma profissão pouco renomada: a de vendeiro. Hoje quase não existem mais aquelas quitandas —  em geral de proprietários lusitanos — como as conheci, substituídas por lojas, bares e outros  estabelecimentos adaptados às conveniências da vida moderna.

Porém, aqui e ali, sobretudo em nosso Portugal avoengo, pode-se encontrar algo dos antigos comércios de “secos e molhados”, com vestígios do sabor e do pitoresco que tanto atraíam minha curiosidade infantil.

A própria expressão “secos e molhados” já nos sorri, gotejando realidade, cheirando a bacalhau defumado e a tragos de vinho para acompanhar os aperitivos, consumidos em animadas rodas de amigos. Pois a venda era também um lugar com mesas ao ar livre, na calçada, para os fregueses se sentarem e colocar em dia a conversa. Portanto, uma espécie de clube da rua, na rua, para os homens de rua, de categoria social menos favorecida.

Ela tinha, inclusive, algo de instituição bancária. As pessoas de trato, clientes do armazém, se não podiam ou não queriam se dar o trabalho de ir ao banco retirar dinheiro, chamavam a criada e lhe davam a incumbência: “Diga lá ao seu Manuel da venda que vou descontar este cheque com ele”. O “seu” Manuel, bonachão, solícito e seguro de suas economias, satisfazia o freguês. No dia seguinte ele mesmo ia descontar o cheque, e embolsava a quantia dispensada na véspera.  Ele havia feito mais uma gentileza ao fazendeiro afidalgado e indolente que morava perto…

A venda não pode ter luxo, mas uma exuberância de produtos, inclusive pendurados no teto, como garrafas de vinhos, queijos, presuntos, linguiças, pernis, etc. Mal iluminada, sem ornatos nem decorações de estilo. Seu grande adorno é a figura do vendeiro, presidindo a vida que ali dentro se desenrola, sob seu olhar acolhedor e vigilante.

A sua família reside nos fundos da loja, numa casa comprida em forma de flauta, um corredor extenso, para o qual se abrem todos os quartos.  E ele, embora estando no balcão, tem um sexto sentido voltado para o que se passa no lar. De maneira que, verificando-se ali qualquer coisa de anormal, ele sabe e toma providências. É o rei de dois reinos — um “reino unido”, como eram Brasil e Portugal: a casa do vendeiro e a venda.

A antiga caixa registradora, atrás da qual ele se instala, eleva-se sobre o balcão, e o seu Manuel a opera com visível satisfação, contente de ouvir os sons daqueles mecanismos repercutirem pela venda inteira. A manivela roda, a gaveta se abre com ruídos de campainha, as notas roçam umas nas outras, as moedas tilintam, e a conjugação desses ruídos constituem a harmonia do progresso dele. Uma prosperidade plebeia no que o plebeu tem de maior suco de vida, de realidade. É pão, pão, queijo, queijo, mas fecundo.

Com seus bigodes “a la Rei Dom Carlos”, ele supervisiona tudo, conversa pouco, mas sabe da existência de todos, porque não perde um detalhe das conversas à sua volta. Seus diálogos são com a gaveta da registradora: o que entrou, o que vai depositar, o que vai ou não recolher, os investimentos com a quantia acumulada, a outra venda que ele pretende abrir, e já pensando em encaminhar o filho mais velho para assumir e continuar os negócios.

Sim, pois ele não tem ambições de que o seu primogênito se torne um médico, advogado ou engenheiro, como aqueles que andam sempre devendo à quitanda. Não. Basta-lhe o seu status, eminentemente abdominal e saudável a ponto de as bochechas serem pontudas, a bigodeira abundante, a voz estentórica, mãos nas quais se nota o proletariado, mas em cujo dedo anular refulge um anel de brilhante usado por ele no dia do casamento da filha.  É tudo o que deseja para si e seu sucessor.

A um canto da loja se vê a imagem da devoção dele, iluminada constantemente por uma pequena luz dourada. Será do seu Santo padroeiro ou de Nossa Senhora, sob alguma invocação venerada na sua aldeia natal. A imagem está lá, intocável como uma preciosa tradição, recebendo de quando em vez um olhar piedoso da velha freguesa, uma súplica dele próprio, quando as preocupações o atormentam.

Em suma, a figura do vendeiro se torna simpática para quem a sabe compreender e admirar no seu peculiar contexto. Foi, aliás, o meu caso. Comecei a frequentar a venda do “seu Manuel” com certa reticência. Em determinado momento, percebi o papel que desempenhavam numa sociedade organicamente estabelecida. E pensei: “Não, mas essa gente é interessante, tem vitalidade, disposições, pitorescos, funcionalidades que desempenham sua missão benéfica e enriquecedora no ambiente social onde se insere.”

E aí passei a compreender melhor o “meu” Portugal…

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 78 (Setembro de 2010)