A luta, uma das glórias de Maria

Concebida sem pecado original, Nossa Senhora esmagou e esmagará para todo o sempre a cabeça da maldita serpente. Agindo assim, Ela acrescenta às suas extraordinárias e singulares prerrogativas a glória da luta. Ela combateu, opôs um esforço a outro, despendeu todas as energias necessárias para aniquilar o adversário, derrotou-o e o tem a seus pés.

Esse combate aumenta a glória da Filha do Padre Eterno, da Mãe do Verbo Encarnado, da Esposa do Divino Espírito Santo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1991)

Finura no trato e santidade

A civilização cristã, nascida do Preciosíssimo Sangue de Cristo, produziu frutos em abundância. Um deles foi o trato cavalheiresco.

 

Para se entender as relações entre finura no trato e santidade, deve-se compreender bem o que significam trato e finura.

O trato é um conjunto de fórmulas por onde expressamos para com os outros a nossa atitude de espírito, interior. Quer dizer, o trato envolve de fato duas coisas: em primeiro lugar uma conduta e depois maneiras.

Há um modo de tratar que não é apenas feito de maneiras, mas de elevação de espírito. Por exemplo, tratar os outros com benignidade, força, fidelidade, nobreza; isso não é exatamente igual à maneira.

Imaginemos um homem que deve dinheiro a seu amigo. O modo pelo qual esta relação de crédito e débito se desenvolve diz respeito ao trato. O lidar de um com outro em torno de uma situação naturalmente tensiva pode ser mais elevado ou menos, mais generoso ou menos, independente das maneiras de cortesia que nesse trato se empregam.

Os modos de cortesia são as fórmulas, a linguagem, as expressões do rosto, os gestos das mãos, a atitude de toda a pessoa; isso constitui um elemento secundário e extrínseco do trato.

A santidade necessariamente conduz a um trato muito elevado, no sentido fundamental da palavra, ou seja, no seu aspecto profundo. Uma pessoa que é santa — a santidade é a raiz de todo procedimento perfeito — tem em relação aos outros uma conduta e um trato exemplares. Ela trata os outros com toda a distinção, com todo o esmero, respeito, afeto, ou com toda a força e energia que as circunstâncias exigem. Sob esse aspecto, a santidade é co-idêntica com a perfeição no trato.

Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens

No sentido profano, pode haver pessoas não santas que tratam os outros eximiamente.

Isso ocorre quando há uma grande tradição de civilização católica, a qual não morre de um momento para outro. Embora a moralidade possa cair muito rapidamente, a tradição do trato ainda continua. Usando uma imagem de São Pio X, que ele aplicava a outra coisa, não podemos pôr rosas num jarro sem que este se impregne do perfume e continue perfumado, mesmo depois de serem retiradas as flores.

Assim também, certo cavalheirismo e certa fidalguia de trato, no sentido mais profundo da palavra, podem subsistir como uma tradição católica num ambiente que é pouco católico, ou deixou de ser católico. Por exemplo, alguma coisa da nobreza de trato de certos lordes ainda é uma remota tradição da Inglaterra, proveniente do tempo em que era católica.

Mas essas boas tradições vão morrendo. Um homem pode ser muito elegante no trato, em matéria de negócios comerciais, porém deselegante quanto ao modo de adquirir dinheiro, ou em assunto de adultério, ou qualquer outra matéria. Ele, por exemplo, julgará que é um defeito de trato ir à casa de um amigo e roubar uma colherinha, mas rouba a esposa do amigo.

Quer dizer, são tradições que ficam meio hirtas e têm uma vida artificial. Aos poucos vão minguando e acabam desaparecendo.

Tendo cessado o estado de graça, a finura do trato é como uma trepadeira da qual se corta a raiz. Durante algum tempo algumas flores, que tinham começado a desabrochar, se desabrocham inteiramente. Pode haver, portanto, uma ilusão de vida naquela trepadeira. Mas é uma pós-vida, porque ela morrerá mesmo. Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens. Não havendo amor a Deus nem amor aos homens, o trato, neste sentido elevado da palavra, evidentemente tem que desaparecer.

Na natureza há símbolos magníficos dessas situações. Contaram-me que em certos cadáveres a barba ainda cresce um pouquinho. É um resto do desenvolvimento vital num corpo que está morto. Assim também pode haver aparente florescimento de maneiras numa civilização já sem vida. Sob certo ponto de vista, podemos dizer que o trato continuou esplêndido, cristão, aristocrático e acidental na Europa até há pouco. Mas era uma coisa defectiva, tendente a cair, o resto de algo magnífico que tinha existido.

A perfeição no trato gera maneiras esplêndidas

Qual a diferença entre trato e maneiras?

As maneiras são fórmulas, gestos, atitudes, que têm muito de natural, mas também alguma coisa de arbitrário, convencional, pelas quais os povos chegam a exprimir, por um consentimento geral, os seus estados de espírito e o seu bom trato.

Os povos podem ser muito virtuosos antes de terem maneiras perfeitas. Têm um trato muito elevado e maneiras apenas corretas, suficientes, às vezes até com um resto de barbárie, não com selvageria; mas algo de trivialidade, banalidade, falta de elegância, pode ser que exista.

Um santo pode, portanto, ter menos boas maneiras do que uma pessoa não santa. As maneiras são elaboradas lentamente pelas civilizações; constituem o produto de toda uma sociedade. E existe sempre a seguinte relação: a perfeição no trato acaba gerando ao longo do tempo maneiras esplêndidas. Estas são uma espécie de fruto remoto do trato. E, portanto, um fruto um pouco mais remoto ainda, da virtude. E vivem necessariamente só da virtude. De maneira que se virtude não houvesse, as maneiras seriam também muitíssimo inferiores. E quando a virtude morre, o trato vai se deformando; as maneiras ainda continuam, porque é uma coisa externa, material, cujo desaparecimento choca mais.

Na França, nas vésperas da Revolução, havia maneiras requintadíssimas, mas já indicando que iriam desaparecer.

O trato decorre, então, necessária e imediatamente das virtudes. As maneiras provêm necessariamente das virtudes porque decorrem do trato, mas não imediatamente quanto às maneiras requintadas, esplêndidas, que são fruto de uma civilização.

É claro que uma pessoa sem virtude pode ter bom trato em alguns pontos, e a “fortiori”(1) boas maneiras. Porém, com o tempo isso desaparecerá.

Como são as maneiras de uma civilização sem Deus?

Para terminar, eu gostaria de dizer apenas o seguinte. O histórico das civilizações, se fosse bem feito, mostraria que as maneiras perfeitas só existiram como fruto da civilização católica; mas não antes. Havia povos cujas aristocracias, sob alguns aspectos, tinham maneiras excelentes e de certa forma até insuperáveis. O povo chinês, por exemplo, e mesmo romanos, gregos etc., debaixo de alguns pontos de vista tinham um direito bom, uma arte, uma cultura, uma literatura boas. Mas nunca com a elevação que as coisas atingiram com a civilização católica.

Fala-se de civilização clássica, romana. Vejamos, porém, como era um banquete em Roma. Os convivas, deitados naqueles triclínios, comiam e bebiam desbragadamente, de um modo indecente, com uma glutonice sem igual, e se embriagavam de tal modo que eram levados para fora da sala. Quando alguém se sentia — a expressão é muito prosaica, mas afinal temos que empregá-la — cheio demais, levantava-se e ia para as salas contíguas, onde havia escravos com a habilidade de provocar, por meio de penas de aves, cócegas no palato; ele, então, restituía tudo o que havia comido e bebido. Depois vinha outro escravo trazendo vasilhas com água; a pessoa lavava as mãos e, se quisesse, secava-as nos cabelos do próprio escravo, que serviam de toalha. O escravo ficava, portanto, todo emporcalhado.

Imaginemos a cena nos seus pormenores. O glutão ou a glutona de bocarra aberta e o escravo fazendo cócegas na garganta: surge a ânsia e, afinal, a explosão gástrica. A pessoa anda de um lado para outro, cambaleia, para com disparos de coração etc. Por fim, equilibra-se o monturo, oscila mais um pouco e volta para comer. E tudo recomeça.

Isto é o horror em matéria de maneiras. Eu poderia citar cem outras coisas em cem espécies de civilizações.

Hoje em dia, quando uma pessoa recebe outra em sua casa, a fórmula polida, o dito elegante, interessante, a atitude rasgada e gentil são substituídos por uma acolhida parda; há uma frieza recíproca, indicando a completa decadência em matéria de trato. Isso tudo é efeito de um desbotamento de alma, o qual tem uma raiz moral; e esta última possui uma causa religiosa.

Em suma, o trato e as maneiras “pocas”(2) são consequências da tibieza.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1965)

 

1)   Com maior razão.

2)  Dr. Plinio assim denominava as pessoas ou as coisas inexpressivas, medíocres.

A felicidade de fazer o bem

Cortesia, polidez, gentileza, amizade… são conceitos muito afins com Dr. Plinio.

Quando menino, eu possuía colegas com os quais, de vez em quando, estabelecia amizade. No primeiro período da amizade havia simpatia mútua, interesse, agrado. Mas, em determinado momento, parecia-me perceber o fundo da mentalidade de meu companheiro, e com isso sua companhia ficava sem graça, perdia a atração.

Vinha-me, então, uma sensação frustrante: “À distância, as pessoas dão-nos uma boa impressão, mas quando as conhecemos de perto, percebemos algo que repele”.

Isto, naturalmente, quando não dava em ruptura, gerava pelo menos um trato tenso.

Qual seria, entretanto, o fundo deste desapontamento? O que faltaria para a continuidade dessa amizade? O próprio Dr. Plinio responde:

Lendo fatos relativos ao “Ancien Régime”— onde a cortesia estava presente no trato, e correspondia a um hábito social —, eu percebia como as pessoas daqueles tempos viam-se numa perspectiva completamente diferente: elas possuíam alegria por causar alegria, satisfação por causar satisfação. O convívio era outro, a “douceur de vivre” estava implantada entre os homens…

Esta ideia levou‑me à seguinte pergunta: No tempo pagão, isto era assim?

A resposta era clara, bastava olhar para a História. Tomemos, por exemplo, um romano que manda chamar o escravo, e lhe diz: “Quero matar um inimigo, e para isso preciso testar este veneno. Você vai, então, tomá-lo para que eu possa ver se ele é forte o suficiente”. E o escravo morria em meio a contorções terríveis, diante de seu dono.

Quer dizer, os pagãos importavam-se apenas com suas vantagens próprias; a felicidade dos outros não lhes interessava.

Ora, em comparação com os antigos tempos, nas pessoas de minha geração, por mais que o trato não fosse igual ao dos romanos, a cortesia era meio cinematográfica. Pode‑se dizer que ela estava morrendo para dar lugar ao trato correto, mas que não possuía mais as doçuras de outrora.

Eu pensava: “Se eu conhecesse alguém capaz daquela dedicação, daquela solidariedade, eu começaria a achar sua companhia interessante e teria alegria em me dedicar também a ele”.

***

Quatro palavras explicam a história da doçura entre os homens: Nosso Senhor Jesus Cristo!

Ele veio à Terra quando o mundo estava imerso na noite das mais densas trevas. Então a alegria de ser bom, de fazer o bem começou a fulgir entre os homens.

“Pertransivit benefaciendo” — passou pela vida fazendo o bem. O tempo inteiro, desde o começo até o fim, Nosso Senhor fez o bem. E com o transbordamento, com a abundância que conhecemos: por mais que os discípulos tivessem dormido no Horto das Oliveiras, quando Ele foi preso deu ordem aos carrascos: “A estes, deixai‑os ir em paz”.

Para termos a verdadeira alegria na alma, para termos a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo diante dos olhos, saibamos nos sacrificar pelos outros sem esperar retribuição. Quando nos dermos conta, o aroma do convívio entre nós estará embalsamado, perfumado e agradável. É Cristo Nosso Senhor que estará presente.

 

Plinio Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 1/6/1985)

A Igreja, mãe da formosura

Perante um mundo penetrado pela feiura, Dr. Plinio comenta o papel da beleza e da formosura na vida do homem e mostra como a Igreja elevou a arte ao seu píncaro de esplendor.

 

Há um “ídolo” que começa a ser adorado na atual era histórica. Trata-se da funcionalidade, segundo a qual é necessário que todas as coisas existam em razão de sua função prática.

O que quer dizer funcionalidade? É a acomodação de todas as formas de existência, costumes e mentalidades à preocupação dominante de que tudo deve ser fácil, simples, direto, sem gastos desnecessários nem esforços para manter a formosura na vida.

Opta-se assim pelo hediondo sob o pretexto da funcionalidade, como se as coisas não pudessem ser ao mesmo tempo belas e funcionais. Então, a era da funcionalidade eliminará a era da formosura.

Forma-se assim um mundo fabricado pelo homem com a intenção de fazer abstração do seguinte princípio: Deus quer que as coisas sejam funcionais e formosas; se não o são, a alma humana fica exilada.

Ora, a alma humana foi feita para a beleza que leva a Deus, e não para um mundo sem formosura, de inexorável feiura, inexpressivo, onde qualquer coisa poderia servir para qualquer destino, qualquer povo e em qualquer lugar. E quando o mundo em que tudo o que existe é tão sem expressão, esse mundo é um horrível nada, um cárcere para o espírito humano.

As criaturas são imagens e semelhança de Deus Nosso Senhor. Tudo que há de belo na vida é um reflexo do Criador. Todas as instituições, todas as almas segundo Deus são geradoras de formosura. Em sentido oposto, as contrárias a Ele são, a prazo maior ou menor, causadoras de hediondez.

Um exemplo característico é a Santa Igreja de Deus, na qual existe ordem e formosura. Ela é o esplendor da ordem. Pelo contrário, a desordem é feia, hedionda, porque resulta das deformações da alma pelo pecado.

A Igreja Católica, que é uma obra-prima de Deus, imediatamente depois de nascer começou a se adornar, se embelezar com a arte. Vêem-se formosas manifestações de arte nos primeiríssimos templos, inclusive nas catacumbas. Nestas, os católicos – entre o drama da manhã quando amigos foram devorados pelas feras, e o do dia seguinte em que outros amigos ou eles mesmos serão trucidados – pensavam em termos de religião. E por isso colocavam obras de arte, muitas de bom gosto, nas mesmas catacumbas tão obscuras e feias.

Cada etapa da vida da Esposa de Cristo é marcada por um estilo artístico próprio, o qual reflete à sua maneira o espírito da Igreja, que é o Espírito Santo. Houve grandes Papas, bispos, fundadores de ordens religiosas, imperadores e reis, nobres, aristocratas, e até pessoas de condição humilde, que modelaram coisas formosíssimas sob o influxo do espírito católico.

Nota-se isso, por exemplo, no Brasil e em quase toda a América do Sul. O Aleijadinho, grande artista católico brasileiro, era um homem do povo que nunca fizera estudos de caráter escolar, mas no terreno da escultura e da pintura produziu obras mestras, hoje notáveis no mundo inteiro.

Ele só tratou de temas religiosos; sua alma cheia de Fé lhe inspirou o sentido da formosura.

Tenho visto um álbum com fotografias de quadros feitos por pintores populares bolivianos, quase todos versando sobre assuntos religiosos. Que piedade, recolhimento, elevação de alma, arte, bom gosto!

De onde vem isto?

Não só de sua natureza, porque enquanto não eram católicos não haviam produzido tais coisas. O influxo da Religião Católica sobre suas aptidões, suas capacidades naturais, inspirou a tendência, a possibilidade de fazer aquelas obras de arte. Nota-se assim que por toda parte a Igreja, por uma propriedade que lhe é intrínseca, gera a arte e a formosura. 

 

(Extraído de conferência de 14/1/1974)

 

Esplendor áureo

Transportemo-nos com a imaginação até as primeiras eras da humanidade. Indivíduos e comunidades vagueiam pela Terra, ainda despoluída, embelezada por uma natureza virginal, pouco tisnada e desfigurada pelos nossos pecados. Pensemos numa tribo em cujo seio já se nota, em gérmen, a grandeza e a bondade de um povo que deve surgir. Essa tribo cruza as vastidões dos territórios livres, conduzindo seus rebanhos, suas tendas, caminha enfrentando as intempéries e outros perigos, recolhendo‑se em grutas, galgando e descendo montanhas, rezando e cantando.

De súbito, depara-se com novo panorama. Digamos, o mar, estendendo-se à frente daqueles homens numa paisagem maravilhosa. Eles se detêm e aguardam a chegada do chefe, do patriarca. Este se aproxima: ancião robusto, barba e cabelos brancos, trajando túnica igualmente branca. Enquanto ele considera aquele cenário, seus seguidores procuram o reflexo do mar no olhar do patriarca… Até os animais cessam de mugir e de se agitar. Faz-se profundo silêncio. O sol está se pondo sobre o oceano e cobrindo as águas de jóias e cintilações.

A vista daquele espetáculo cumula de encanto quase paradisíaco a alma de todos.

O patriarca se levanta com dignidade, majestoso, imponente, sublime, e sem mais comentários entoa um improvisado hino de louvor a Deus. Cântico que os vários segmentos de sua tribo vão parafraseando e desdobrando em melodias e poesias mais simples, enquanto montam o acampamento e se dispõem ao repouso noturno.

No dia seguinte, eles sairão da poesia e do sono para ingressar novamente na luta e no trabalho cotidianos, sob a venerável orientação do seu líder. Como é bela a condição de patriarca!

Entretanto, essa beleza, tão alta e grandiosa, é insignificante se comparada com o esplendor do patriarcado dos patriarcados: o papado.

Pois a instituição pontifícia se desenvolve inteira numa atmosfera áurea, ela vive numa esfera do dourado. De dentro desse áureo, ele impulsiona e se debruça sobre todas as coisas, sejam as mais complexas, sejam as mais triviais e terrenas, sem deixar de ser ele, sem receio de se deteriorar, de quebrar-se ou de perder a sua própria lógica. Age e existe com uma “aisance” que lhe vem, não de uma virtude acima do comum, mas de um elevadíssimo grau de sobrenatural. É de uma perfeição e excelência que só têm paralelo com o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, seu Fundador. O Papa no seu dia-a-dia é o Divino Mestre andando na banalidade da Judeia daquele tempo, detendo-se junto a esse mendigo, àquele cego ou àquele leproso, conversando com um servo, dirigindo a palavra ao homem mais insignificante, afagando e ensinando às criancinhas…

Imaginamos um patriarca. Imaginemos um Papa santo no Vaticano.

A noite vai cedendo lugar às incipientes luzes da aurora. Toda a Roma dorme. Os 400 sinos das suas igrejas ainda não começaram a tocar. O Sumo Pontífice desperta, consulta o relógio. Dentro em pouco o sol estará raiando e a cidade emergirá do repouso. Ele sabe que a dois passos de seus aposentos se acha a capela com o Santíssimo Sacramento. Nosso Senhor, que o constituiu seu pastor e representante, o espera para uma primeira adoração.

O Papa se apronta e se dirige à capela, onde se preparará para o augusto sacrifício da Missa. Enquanto caminha em direção ao Senhor, renascem na sua alma as preocupações da véspera, os pesados fardos do governo da Igreja, assim como animam seu espírito a imagem de muitas almas boas que a Providência tem suscitado pelo mundo, nas quais se depositam as esperanças e a glória da Esposa Mística de Cristo.

Antes de entrar no oratório, ele pára e deita a vista através de uma das grandes janelas do Vaticano. À frente, os primeiros fulgores de sol osculam a imponente cúpula da Basílica de São Pedro. Na praça vazia, ergue-se o famoso obelisco que sempre nos faz lembrar do lema dos cartuxos: “a cruz está de pé, enquanto o orbe todo gira”.

Das duas grandes fontes que ladeiam o obelisco, eleva-se o ruído harmonioso das águas a jorrarem e caírem nas suas bacias. A luz do dia começa a se refletir mais intensamente na cúpula. E o Pontífice pensa: “A Santa Igreja Católica Apostólica Romana! O Papado!” E o seu Anjo da Guarda lhe sopra na alma: “Tu es Petrus!”

De um modo particularmente vivo e tocante, ele se sente identificado com seu papel, com sua missão.

O Vigário de Cristo compreende que suas meditações atingiram o auge, e ele deve  se entregar aos seus afazeres. O mundo inteiro o espera. Porém, não começará lendo relatórios nem assinando decretos ou tomando conhecimento dos jornais. Ele iniciará seu dia rezando, pedindo por todos os homens, pela Igreja universal.

Entra na capela devagar, caminha até seu genuflexório e se ajoelha. A lamparina do Santíssimo corusca e tremeluz, lançando fulgores avermelhados sobre o tabernáculo. E de dentro do sacrário, o amor do Homem‑Deus pelo pontífice Santo se irradia plenamente. E ele começa a rezar, rezar, rezar…

Como essa situação é mais esplendorosa do que a do patriarca pastor, no começo da humanidade, muito embora algo do patriarcado primeiro esteja contido nesse patriarcado espiritual e supremo. O Papado: como é belo, como é maravilhoso!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 91 (Outubro de 2005)

 

As escadas e a dignidade humana

Com aquela penetração de olhar que lhe era característica, Dr. Plinio costumava contemplar tanto as coisas elevadas quanto as corriqueiras. Quem teria pensado em analisar o que as escadas significam ou ocultam, como se as sobe com elegância ou deselegância, e como elas devem respeitar a psicologia do homem? Acompanhemos a primeira parte de um saboroso comentário.

 

O  homem contemporâneo, ao contrário do antigo, quase não tem ideia do verdadeiro significado de uma escada. Esta pode ser assim definida: uma série de degraus que nos permitem passar de um andar para outro, por via não mecânica. Através do elevador(1) tal acesso é feito de modo mecanizado, enquanto o realizamos de forma natural pela escada, como pitorescamente se diz em latim: “calcantibus pedibus” — calcando os pés.

Duas concepções de escadas

Por não se compreender seu autêntico sentido, na arquitetura moderna as escadas raramente são postas em relevo. A tendência é até ocultá-las o quanto possível, eliminando seu papel ornamental.

Consideremos uma bela escadaria, como a existente na sede principal do nosso movimento(2). Trata-se do prédio residencial mais antigo do Bairro de Higienópolis. O arquiteto, segundo a concepção artística de outrora, procurou dar ao giro da escada uma certa nobreza, e a revestiu de bonitos lambris, mais graciosos que a colunata do corrimão o qual possui pelo menos este aspecto interessante: faz parte da coleção dos objetos que, com suas formas e cores, ilustraram a moda de fins do século XIX.

Numa concepção diversa, não é difícil nos lembrarmos dos exemplos de escadas sem tradição, servindo puramente como acesso entre níveis diferentes. Muitas se apresentam como cascatas de degraus em linha reta, tendo em ambos os lados uma espécie de corrimão fixado nas paredes, sem beleza alguma, apenas o essencial para ser utilizado como apoio a quem sobe ou desce. Correspondem à noção moderna de escada.

Idéias distintas sobre o próprio homem

Por detrás dessas duas concepções há duas idéias a respeito do agir humano e do próprio homem.

De acordo com o reto conceito, a escada — tanto quanto possível e sensato — deve ser algo ornamental, decorativo. Pois tudo aquilo que serve para o homem agir, precisa dissimular ou fazer olvidar alguma coisa da miséria de sua condição decaída e, de outro lado, realçar algo de sua personalidade.

Ora, a mais elementar ideia de escada é a de um meio empregado pelo homem para subir ou descer. Porém, essas duas operações acabam por patentear algo de nossas debilidades, assim como evidenciam nossa grandeza. Tudo quanto cerca o homem — mesmo mais modesto — deve respeitá-lo. O respeito é um dos maiores bens da vida, e ser acatado pode valer mais do que ser querido. Não existe genuína benquerença sem respeito. A escada, portanto, deve ser construída para honrar o homem, realçando algumas qualidades, excelências de sua natureza e disfarçando debilidades de sua condição.

Vitória sobre o princípio da gravidade

Ao subir uma escada, o homem se depara com alguns problemas que eu chamaria de teatrais, quase de encenação, pois ele luta contra a lei de Newton: quanto mais se afasta do solo, menor é a força da gravidade e maior o cansaço de seus músculos. Se bem que possa ganhar alguma coisa distanciando-se do chão, ele perde algo de sua elasticidade, e no topo de uma alta escada aparece o sinal — embora às vezes discreto — da miséria: a fadiga.

Antes do pecado original, o homem se exercitava sem cansaço, o trabalho lhe era indolor, agradável, interessante. Porém, depois da queda de nossos primeiros pais, tornou-se difícil. A força da gravidade começou a agir contra ele, o chão o atraindo para deitar-se, e ele se esforçando para se firmar e pisá-lo.

De passagem, apesar de nada ter lido acerca do assunto, pergunto-me se um modo de interpretar o sapateado espanhol não seria a vitória do homem sobre o princípio da gravidade. Tomado pela ideia da supremacia do espírito em relação à matéria, ele sapateia, e como que não sente a ação da gravidade. Seus músculos vencem a lei de Newton.

Cada nação tem seu esplendor, gênio e modo de ser. Outra manifestação da vitória sobre a força da gravidade é o minueto francês, com aquela maneira de se movimentar delicada, em que o cavalheiro e a dama pisam o solo como se fossem plumas, conferindo ao chão a honra de ser tocado por eles. E para ostentar sua indiferença ao princípio da gravidade, executam longas reverências diante de pessoas às quais respeitam, depois se aprumam com altanaria e continuam a dançar com destreza, sem demonstrar cansaço. É uma linda expressão da “douceur de vivre” [doçura de viver] francesa, e um exemplo do papel do princípio da gravidade na conduta humana, dando-nos a oportunidade e o gosto de refletir.

Aliás, para mim, raciocinar de modo agradável — compreendo que haja preferências diferentes — não consiste meramente em compulsar um tratado de teoria e pensar, mas passar da prática para a doutrina, galgando-a até o ponto mais alto. E depois fazer uma imersão até o fundo mais miúdo da experiência, procurando ali a confirmação ou ilustração das elevadas cogitações doutrinárias. Esse “subir e descer escadas” mental tem a leveza de um minueto.

Tal exercício não é simplesmente deleitável, mas faz bem à alma. O homem se sente assim mais espírito, acentua-se nele o por onde é mais semelhante a Deus. E parecer-se com Deus é a honra suprema, o bem extremo, o fim último.

Tributo pago ao pecado original

Retornando ao nosso tema principal, cumpre considerar o seguinte: num homem ou numa dama, de qualquer idade ou condição social, ao terminar de subir uma escada, devido ao esforço, aparece alguma coisa que os diminui, algo do viço deles murcha.

Alguém poderá dizer: “Dr. Plinio, o senhor não me conhece. Subo escadas de dois em dois degraus…”

Não devemos nos iludir. Ainda que seja no arfar ou na pisada final, nota-se algo do tributo pago pela natureza, mesmo na flor da juventude. Além disso, visto do topo da escada, quem a sobe parece muito pequeno, e não é grato ao homem ser observado de cima para baixo. Os personagens que respeitamos, agrada-nos vê-los no alto. E assim, muitas outras considerações poderíamos fazer a respeito do “subir”.

Analisemos, porém, o “descer”. Também nesta operação, como em tudo que o homem faz por si próprio, aparece a nossa miséria, a qual devemos saber disfarçar.

Tal sucede nas mínimas coisas. Por exemplo, no momento em que lhes dirijo a palavra, apoio de modo ligeiro meu queixo sobre minha mão, enquanto faço um pequeno esforço de espírito para ordenar as idéias a serem expostas. Esse gesto é discretamente interrogativo, indicando que estou “emparafusando” um pensamento. Ou o faço com instintiva leveza, ou me degrado, porque a sensação de peso da queixada cansada é feia.

Alguns espíritos talvez julguem inútil, uma bagatela, a observação desses aspectos do nosso cotidiano. Para mim, isso é saber tirar todo o proveito da vida. É viver. O contrário é vegetar.

Então, se uma pessoa não descer uma escada com dignidade, dará a impressão de que está decaindo, degringolando. Pois a descida significa diminuição. Por exemplo, descer na saúde, na agilidade de inteligência, na arte de conversar, na virtude, no amor de Deus, etc.

Razão pela qual não devemos julgar que seja fácil descer uma escada de maneira a nobilitar-se. Trata-se antes de uma arte, sobre a qual falaremos em outra oportunidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Entende-se que, para os efeitos dessa exposição, a chamada “escada-rolante” se equipara ao elevador.

2) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341.

Importância do olhar

O homem não se exprime apenas pela palavra pronunciada, mas também pelo tom de voz, pela posição do pescoço e do tronco, pelo movimento das mãos. Entretanto, o mais importante é o olhar. Eis um dos elementos da verdadeira educação que deverá nascer no Reino de Maria, pela ação do Espírito Santo.

 

A  palavra dá o exprimível daquilo que a pessoa possa estar desejando dizer, enquanto o olhar proporciona o inefável, o inexprimível do que se está querendo dizer. Assim, há uma porção de coisas que o olhar diz e que daquele modo a palavra não conseguiria dizer.

Obra-prima de retórica

Por exemplo, um homem está precisando de pão; entra numa padaria e fala para o padeiro: “Quer me dar um pão?” A palavra diz: “Estou precisando de um pão, não tenho dinheiro para pagar, você quer me dar?” Mas o olhar diz uma série de coisas a respeito do próprio sujeito; o que ele está sentindo, como está sofrendo, como quem afirma: “Olhe para minha alma, veja a necessidade pela qual estou passando, olhe a minha tristeza a esse respeito, a humildade com que estou lhe pedindo, e que dureza de sua parte haveria em me recusar. Queira-me bem, porque estou necessitado!” É o que diz o olhar.

Então o olhar traz uma porção de conhecimentos por conaturalidade que acompanha aquele simples pedido de pão, e é uma justificação desse pedido, e nem adiantaria a palavra, por exemplo, se esta fosse dita por detrás de um biombo.

É curioso que toda atitude da pessoa constitui uma espécie de obra-prima de retórica, da qual ela não se dá conta. É uma coisa confusa, mas uma obra-prima: o pouco que o indivíduo pode dar de retórica, ele apresenta assim, porque também a voz modula, um pouco cantando, o que os olhos dizem olhando. E há inflexões de voz que dizem mais do que as meras palavras. Por exemplo: “O senhor queria me dar um pouco de pão?” Há mil modos de modular este pedido de maneira a, sem que o sujeito perceba, ser dito de tal forma que o tom de voz completa o que o olhar disse, e que está na linguagem da conaturalidade, não na linguagem do sentido lógico da palavra.

Elementos complementares dentro disso são a posição do pescoço sobre o tronco e a do tronco sobre as pernas. E a ponta do poder convincente está na atitude das mãos. Se pedir com a mão colada às costas, ele encaminha para uma recusa, é quase insolente.

A curvatura: quem pede, raramente entesa o tronco para pedir. Não entesa a cabeça, nem o corpo; é preciso ser um alto jogador para entesar as duas coisas e pedir. Tem um certo sentido quando o sujeito sabe dizer: “Veja o que está na miséria; veja o clamor desta injustiça que eu esteja sem pão: dê-me!” E isso pode ter seu valor cogente, conforme a circunstância.

O mais interessante são as riquezas da conaturalidade, por onde o homem não percebe isto e faz esse jogo com maior ou menor êxito.

O regionalismo europeu

E aqui entra uma questão complexa: como formar as pessoas para isso? Qual a medida, o ponto para tratar as coisas a partir das quais se consegue formar sem tirar a autenticidade do formando? Portanto, civilizar sem extrair a autenticidade do povo a ser civilizado, educar sem fazer do indivíduo um autômato. Há algo que estimula a aseitas(1) e a orienta, mas segundo um movimento que é dela; o ideal é extrínseco a ela, mas o tropismo por onde ela se volta para o ideal é dela.

Utilizando um exemplo do reino vegetal, tratar-se-ia de estimular a planta a tonificar seu tropismo mais do que torcê-la ou esticá-la numa determinada direção. É um problema muito delicado que se aplica até aos povos.

Dou um exemplo. Antes da Primeira Guerra Mundial, o que teria sido possível ou conveniente dizer para o mundo europeu a respeito da questão do regionalismo?

Se prestarmos atenção em como era o mundo europeu daquela época, em função do centripetismo nacional que vinha tomando aqueles Estados cada vez mais centralizados, e o centrifugismo regionalista de todas aquelas velhas regiões da Europa que estavam sendo trituradas, o que seria possível dizer para dar um golpe nesse centralismo e indicar o ponto de equilíbrio entre uma coisa e outra?

Consideremos um bretão. Segundo minha ideia, um bretão é um francês, mas de um tipo tal como nenhum outro é, e que deve ir engendrando notas características cada vez mais. Qual o ponto ideal onde o bretão é suficientemente francês para haver uma França verdadeira, mas suficientemente bretão para ser inteiramente um cidadão da Bretanha?

Que divagação agradável e interessante daria se pudéssemos lançar naquele tempo um mapa com todos os regionalismos, que são incontáveis! Na Espanha, por exemplo, pegue-se o país Basco; eu garanto que no país Basco existem particularidades, singularidades, etc., só falta ter de bairro a bairro na mesma cidade. E entre um granadino e um bilbaíno quantas diferenças há! Isso se ocultou, não se falou, a literatura não tratou disso; essas diferenças eram tidas como deformidades que  deveriam ser rapadas e liquidadas, e seria preciso tornar Castela o “monstro” que engoliu a Espanha inteira.

Assim foi Lisboa e toda a Europa que estava passando por esse processo. Com a guerra, naturalmente, isso se precipitou muito mais. E que coisa magnífica seria indicar o ponto de equilíbrio para que fosse a verdadeira Europa; que isso que nasce da base continuasse a florescer, a vicejar, segundo modelos locais, mas tendo algo de comum entre si que, isto sim, competiria ao país destilar. E isso mesmo que estou dizendo é mais didático do que real, porque é um pouco bonitinho, arranjadinho demais para a sociedade orgânica. A sociedade orgânica é menos simples do que isso; é mais emaranhada, mais mesclada do que essa realidade que estou pintando. E ali está a vida.

Então, como seria preciso tomar cada um desses povos como um maestro, toca ali, lá, acolá, para a sinfonia dos regionalismos autênticos se desprender de uma Europa verdadeira? É um muito bonito problema.

Eu estava imaginando, então, um arquiduque da Áustria que escrevesse um livro para justificar a monarquia dual, e jogasse na cara da Europa o seguinte: “A nossa monarquia é mais diferenciada do que os países de vocês. Vocês dizem que somos uns tiranos porque esmagamos os países, não permitindo que se separem os que estão sob nossa hegemonia. Vocês impediram os nascimentos; são necrópoles de crianças! Coordenar adultos que nós soubemos conservar livres é muito mais difícil do que ser administrador de um cemitério de crianças”.

A essência da amizade é metafísica e sobrenatural

No tocante ao olhar, aos gestos, o homem deve ser educado como essas nações, nessa correlação entre um tema e outro. E se um menino tiver, por exemplo, uma governanta que afirme — a minha me disse várias vezes —: “Um homem educado não gesticula com as mãos e, portanto, você não é educado, mas não diga, pelo menos, que não lhe avisei.” Pensei com meus botões. “Eu não sou eu se não gesticular. Então prefiro ser um mal-educado do que um bem-educado que não sou inteiramente eu mesmo. Depois, ela mesma quando se deixa tomar por determinado tema gesticula também, porque todo mundo gesticula. E, portanto, essa ‘boa educação’ não serve, saberei mexer com minhas mãos como eu quero”. Enquanto estou dizendo isso, eu as movimento.

Eu temeria muito escolas assim: “Três bolos na mão porque gesticulou”. Então eu passo o tempo inteiro sem gesticular, mas sinto que, irremediavelmente, sou um piano no qual uma nota ficou quebrada. Vê-se, portanto, a dificuldade de educar.

Tudo isso no Reino de Maria tem que nascer pelo efeito do Espírito Santo. Saber educar debaixo desse ponto de vista é muito delicado.

Portanto, o olhar não pode ser considerado isoladamente das outras formas de expressão, pois o corpo inteiro, às vezes sem percebermos, completa a sua retórica. Contudo, as outras expressões sublinham o olhar, mas este é o dado-mestre por onde todas as coisas falam. Quer dizer, todo o resto se ordena ao olhar.

Agora, qual é a relação do olhar com a palavra expressa? Um homem que canta, sua laringe é um instrumento musical, mas o olhar é propriamente a partitura daquilo que é cantado. O olhar acrescenta à palavra o que a partitura adiciona à escrita; não é só o olhar, mas é preponderantemente o olhar.

O que tem de curioso é o seguinte: os homens foram feitos — eu encontro dificuldade em convencer os outros a respeito disso, mas é uma verdade que está no fundo da cabeça de todo mundo — para se quererem, amarem uns aos outros, porém de um amor metafísico e sobrenatural, que é o único verdadeiro, por onde as almas se conhecendo profundamente umas às outras, notando consonância e harmonia, se querem porque desejam a coisa em torno da qual são consonantes. Quer dizer, o fundo da amizade é metafísico e sobrenatural.

Pode haver amizade natural, mas quando ela existe verdadeiramente é construída em torno de princípios metafísicos inexpressos. E a amizade entre dois indivíduos que foram educados juntos, por exemplo, de fato tem um sentido principalmente porque houve consonância entre ambos.

E, involuntariamente, dois mercadores que estão tratando no mercado, ou um homem num banco que apresenta um cheque e outro lhe entrega o dinheiro, portanto, operação puramente mercantil, sem se darem conta, quando eles se olham, um procura no olhar do outro o que se encontra em todo mundo.

Diafragma da máquina fotográfica

O ponto de partida de toda a nossa sociologia está nisso: quando olhamos assim, cada um de nós tem um ponto que é metafísico. O sujeito não sabe que é metafísico; apresenta-se a ele como um sentimento de alma. E, realmente, esse ponto metafísico produz um certo sentimento de alma, mas atrás deste há uma coisa metafísica em que se sente um certo isolamento, porque toda alma padece de viver isolada neste ponto profundo, e passa a existência olhando para os outros e perguntando: “Você é assim? Você é quem eu procurava”?

É uma coisa muito interessante observar duas pessoas que se veem pela primeira vez. A vida, para quem sabe observá-la, é interessantíssima.

Será alguém que está fazendo plantão numa sede nossa e toca a campainha um membro do Movimento residente em outro país; os dois nunca se viram. No primeiro olhar, o que se passa? É sempre uma procura.

Às vezes também a hostilidade nasce logo porque houve uma recusa. A hostilidade vem do fato de encontrar o contrário e, às vezes, acontece o seguinte: o sujeito está particularmente desprevenido e com uma esperança subconsciente de que no próximo toque de campainha ele vai encontrar uma coisa mais afável. Aparece um dinossauro, isso pode traduzir-se num… “Logo você?”

Mas essa procura é assim: há uma abertura análoga a um diafragma de máquina de fotografia que fecha e abre, conforme o sujeito puxa uma peça. No olho, a procura é o diafragma que se abre.

Imaginemos um indivíduo que, ao receber a visita de outro, pensa: “Esse faz parte do mundo do anonimato para mim”, e pergunta:

— O senhor o que deseja?

O outro responde;

— Vim cobrar uma conta.

— Sei. O senhor tem o recibo?

Está acabado. A conversa começou com os dois diafragmas abertos, como todas as conversas iniciam, e terminam tantas vezes com os diafragmas fechados.

No fundo, tudo aquilo de que eu falava há pouco, a sinfonia toda dos gestos, do tom das palavras, da inclinação, etc., visa esse ponto metafísico.

Assim, para aqueles que desejamos que tenham conosco o diafragma fechado, porque não há comércio possível, em toda a nossa atitude tomamos oposição. E para aqueles em que nós procuramos alguma coisa, assumimos uma atitude diferente.

Os restos da inocência

E eu não acredito, por mais incrível que seja em pleno século XX, no puro interesse. As pessoas podem de fato tratar-se segundo um objetivo, mas essa procura, no fundo, condiciona — embora nem sempre de um modo decisivo — o trato humano de ponta a ponta.

Mesmo um egoísta não visa o mero interesse. Ele resolveu entregar sua vida a um interesse, mas no fundo de sua alma tem embolada, sofrida como uma zona da alma que levou uma pancada e está começando a ficar infeccionada, gangrenada, a dor daquilo que ele queria ter sido e não foi, que desejava ter feito e não fez, e uma certa procura de alguém que seja consonante com ele, com o que ele quereria ter sido.

O sujeito pode, pelo mais vil dos movimentos, pegar uma pessoa com quem ele é inteiramente consonante, meter-lhe um pontapé e dizer: “Se eu ficar seu amigo, deixarei de ser um homem de interesse como quero. Você, para mim, é uma tentação, vou te desprezar.” Ele não dá esse pontapé à toa, em vão, porque acaba doendo nele.

E um indivíduo que pauta toda a sua vida de acordo com seus interesses, e pode chegar a ser um banqueiro ideal, de repente ele faz uma loucura; é a explosão daquela zona maltratada, colonizada e enxovalhada da alma, que muitas vezes não é o lado ruim que se revolta, mas é o lado bom que sofre; são os restos da inocência.     v

(Extraído de conferência de 5/6/1986)

 

1) Do latim: asseidade. Termo usado pela Filosofia escolástica significando o atributo divino fundamental que consiste em existir por Si próprio. Dr. Plinio o utiliza aqui em sentido analógico. Ver Dr. Plinio n. 140, p. 16 e n. 141, p. 20.

 

Meu filho, não duvides jamais!

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou! Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 43 (Outubro de 2001)

Como grandes vôos de espírito…

Entre as belas e atraentes realizações do engenho humano, notadamente aquelas cuja arte reflete uma inspiração católica, sempre me aprouve contemplar as fontes e chafarizes que encontramos, ridentes e convidativos, em incontáveis praças e jardins. Quantos bons sentimentos e retas disposições de alma eles despertam!

Suas águas, ora surdem murmurantes e cristalinas, ecoando sons prateados, suaves como os de um cravo a tocar minueto, e transmitindo uma sensação de castidade e de pureza ao ambiente por elas adornado; ora se projetam em jatos vigorosos e imponentes, a nos falar de cogitações elevadas, de vôos de espírito, de pensamentos que partem de pequenas para maiores considerações; do mesmo modo como o filete líquido, que atravessa encanamentos, parece confiscado e chupado pelas trevas, mas, ao atingir a extremidade do condutor, é lançado para o mais alto dos ares.

Esse encanamento é, outrossim, imagem das tubulações em que canalizamos nossos entusiasmos, nossos fervores de alma. Na aparência, destituídas de beleza, elas têm, entretanto, na ponta a força de um maravilhoso e esfuziante golpe de água.

Os jorros de fontes e chafarizes podem ser ainda comparados a outro aspecto do espírito humano, quando este atinge o máximo de sua capacidade empreendedora. Levando o esforço ao ápice, o homem sente que, por uma nobre ascensão interior e uma extraordinária mobilização de suas energias, vai tirando de dentro de si vastidões e amplitudes, amplitudes e vastidões, até chegar à ponta de si mesmo e dizer: “Meu Deus, eu agora desfaleço, mas é para aquele supremo lance de realizações desejadas por Vós!” Esse convocar de forças nas profundidades de seu ser para projetá- las, rebrilhando, à luz dos acontecimentos, faz com que um homem se sinta como um chafariz das volumosas águas de Versailles, que emergem das entranhas da terra para povoarem as alturas, osculadas pelos raios do sol. É bonito, é grandioso!

Além disso, as cortinas líquidas, transparentes e luminosas dos chafarizes, rorejando miríades de gotinhas ao seu redor, revestem-se de um “verum”, um “bonum” e um “pulchrum” que, longe de  dissiparem o espírito contemplativo, convidam-no para maiores e mais compenetradas considerações sobre as infinitas maravilhas de Deus.

O homem cujo pensamento tiver uma dimensão mais vasta, ao ver o chafariz, pode perfeitamente cogitar em coisas e temas superiores, elaborar planos, decidir sobre situações, solucionar problemas, etc., movido por uma acuidade especial que essa vista favorece.

Pode, ainda, experimentar uma peculiar alegria do equilíbrio, da objetividade, da tranqüilidade. Ele observa as águas subirem e descerem numa profusão calma e constante, volta-se para os movimentos de seu coração e pensa: “Sinto que dentro de mim as coisas estão em ordem; vejo tudo o que me cerca nas devidas proporções, catalogo tudo segundo os predicados e circunstâncias inerentes a cada objeto de minhas ponderações; distingo o que é bom do que é mau, o falso do verdadeiro, o belo do feio, sem mexer em ninguém, mas simplesmente observando e formando o  meu universo interior, imagem fiel do universo exterior analisado”.

Esse sentimento confere ao homem uma plenitude de satisfação pela qual ele passa a exprimir a si próprio, com as idéias claras e, por isso mesmo, encontrando as palavras adequadas para se expressar. Palavras que saem cristalinas e fluentes, não como um esguicho, mas como a fonte cujas águas brotam puras, generosas, abundantes, cheias de donaire e serenidade.

Enfim, as comparações e analogias poderiam se estender e se multiplicar. Encerro-as, lembrando apenas que a água de um chafariz que bate no chão e depois respinga para o alto numa porção de gotas é, também, símbolo da gratidão do beneficiário sobre o qual recaem os favores celestes e que lança para cima, de novo para o Céu, a sua filial e jubilosa ação de graças…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Ó Senhora Aparecida!

Neste momento rico em esperanças e glória, ó Senhora, vimos agradecer-Vos os benefícios que, Medianeira sempre ouvida, nos obtivestes de Deus onipotente.

Agradecemo-Vos o território de dimensões continentais, e as riquezas que nele pusestes.

Agradecemo-Vos a unidade do povo, cuja variegada composição racial tão bem se fundiu neste grande caudal étnico de origem lusa — e cujo ambiente cultural, inspirado pelo gênio latino, tão bem assimilou as contribuições trazidas por habitantes de todas as latitudes.

Agradecemo-Vos a Fé católica, com a qual fomos galardoados desde o momento bendito da Primeira Missa.

Agradecemo-Vos nossa História, serena e harmoniosa, tão mais cheia de cultura, de preces e de trabalho, do que desavenças e de guerras..

Agradecemo-Vos as nações deste Continente, que nos destes por vizinhas, e que, irmanadas conosco na Fé e na raça, na tradição e nas esperanças do porvir, percorrem ao nosso lado, numa convivência sempre mais íntima, o mesmo caminho de ascensão e de êxito.

Agradecemo-Vos nossa índole pacífica e desinteressada, que nos inclina a compreender que a primeira missão dos grandes é servir, e que nossa grandeza, que desponta, nos foi dada não só para nosso bem, mas para o de todos.

Agradecemo-Vos o nos terdes feito chegar a este estágio de nossa História, no momento em que pelo mundo sopram tempestades, se acumulam problemas,  terríveis opções espreitam, a cada passo, os indivíduos e os povos. Pois esta é, para nós, a hora de servir ao mundo, realizando a missão cristã das nações jovens deste hemisfério, chamadas a fazer brilhar, aos olhos do mundo, a verdadeira luz que as trevas jamais conseguirão apagar.

PRECE

Nossa oração, Senhora, não é, entretanto, a do fariseu orgulhoso e desleal, lembrado de suas qualidades, mas esquecido de suas faltas.

Pecamos. Em muitos aspectos, nosso Brasil de hoje não é o País profundamente cristão com que sonharam Nóbrega e Anchieta. Na vida pública como na dos indivíduos, terríveis germes de deterioração se fazem notar que mantêm em sobressalto todos os espíritos lúcidos e vigilantes.

Por tudo isto, Senhora, pedimo-Vos perdão.

E, além do perdão, Vos pedimos forças. Pois sem o auxílio vindo de Vós, nem os fracos conseguem vencer suas fraquezas, nem os bons alcançam conter a violência e as tramas dos maus.

Com o perdão, ó Mãe, pedimo-Vos também a bênção.

Quanto confiamos nela!

Sabemos que a bênção da Mãe é preciosa condição para que a prece do filho seja ouvida, sua alma seja rija e generosa, seu trabalho seja honesto e fecundo, seu lar seja puro e feliz, suas lutas sejam nobres e meritórias, suas venturas honradas, e seus infortúnios dignificantes.

Quanto é rica destes, e de todos os outros dons imagináveis, a Vossa bênção, ó Maria, que sois a Mãe das mães, a Mãe de todos os homens, a Mãe Virginal do Homem-Deus!

Sim, ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças, e mais do que todas, concedei-nos a graça das graças. Ó Mãe, uni intimamente a Vós este Vosso Brasil.

Amai-o mais e mais.

Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes.

Tornai sempre mais largo e mais misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

Fazei-nos sempre mais amantes da paz, e sempre mais fortes na luta pelo Príncipe da Paz, Jesus Cristo, Filho Vosso e Senhor nosso.

De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina, do cêntuplo nesta terra e da bem-aventurança eterna.

*    *    *

Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil! Com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece de ação de graças e súplica? Onde encontrá-las, senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superior a qualquer louvor humano?

De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito, palavras que amorosamente aqui repetimos:

— “Tu gloria Jerusalem, tu laeticia Israel, tu honorificentia populi nostro”.

Sois Vós a glória, Vós a alegria, Vós a honra deste povo que Vos ama.

(Plinio Correa de Oliveira, Folha de São Paulo, 16/1/1972, Prece do Sesquicentenário)