A beleza e a harmonia

A majestade real resplandeceu num dos atos mais belos da história da Inglaterra quando o Rei Santo Eduardo, cumprindo o desejo do Papa, conduziu em seus ombros um mendigo ao qual curou e uma terrível doença.  Analisando o fato, Dr. Plinio nos aponta, com profundidade, a beleza do princípio de ordem e harmonia que nele está refletido.

Num trecho do livro “La Baja Edad Media”(1), de autoria de Cristopher Bruck, Professor de História Medieval da Universidade de Liverpool, está descrito o seguinte fato da vida de Santo Eduardo, a respeito do qual eu gostaria de fazer algumas considerações.

A imagem medieval da pobreza, a realeza e a vontade divina se ilustram na vida do Rei Eduardo, o Confessor, do século XII.

Essa história narra que Gila Michael, um irlandês, foi a Roma em busca de remédio, mas São Pedro lhe disse que sanaria o mal se o Rei Eduardo da Inglaterra o levasse sobre os ombros desde a Westminster Hall até a Abadia de Westminster.

São Pedro, neste contexto, quer dizer o Papa.

O virtuoso monarca consentiu. Pelo caminho, o intumescido irlandês sentiu que se afrouxavam os seus nervos e suas pernas se distendiam.

O sangue de suas chagas corria pelos trajes reais, mas o Rei o levou até o altar da Abadia. Ali chegando, o pobre doente ficou curado; começou a andar e pendurou as muletas na Abadia, como sinal do milagre.

“Basta o Rei carregar-te aos ombros”

Como lemos acima, um homem vítima de grave e dolorosa enfermidade, a qual fazia com que seus nervos se contraíssem, produzindo, com isso, feridas que dificultavam extremamente seus movimentos. Certo dia, esse homem conseguiu que o levassem até o Papa para que lhe pedisse a cura. Este respondeu ao enfermo que ele seria curado, mas para isso era necessário que o Rei da Inglaterra o pusesse sobre os ombros e o levasse da grande sala de Westminster até a Abadia, onde por fim encontraria a cura do mal que o atormentava.

Voltando à Inglaterra, o pobre homem teve certamente de percorrer longos trajetos, por estradas onde a todo momento estava em risco de cair em mãos de salteadores. Por outro lado, quanto bom trato e hospitalidade não terá o viajante recebido nos conventos pelos quais passava. Talvez as pessoas generosas lhe ofertassem esmolas para assim poder prosseguir a aventura que consistia tal viagem.

A majestade e a repugnância se encontram

Tendo chegado, por fim, à Inglaterra, o doente dirigi-se ao palácio real. Alegando trazer uma mensagem pontifícia, ele conseguiu comparecer à presença do soberano. Imagine-se como terá sido a cena daquele homem chegando diante do Rei, o qual provavelmente se encontrava em seu trono, cingindo o diadema e as vestes reais, resplandecente de majestade, mas ao mesmo tempo de bondade e afabilidade.

— O que quer? Interroga-lhe o Rei.
— Senhor, eu venho da parte do Papa.
— Então, diga-me do que se trata.
— Ele pede que vós me cureis.
— Mas como poderei fazer isso?
— É ordem do Papa…

Quanto contraste nesta cena! De um lado, o pobre homem, provavelmente um mendigo, coberto de chagas sangrentas e repugnantes; do outro lado, o Rei, saudável, presumivelmente jovem e cheio de majestade.

O recado que é transmitido consiste na manifestação do desejo do Papa de que esse grande monarca, glorioso chefe da nação, carregue ao pescoço aquele mendigo chagado e purulento, apresentando-se nessa postura humilhante pelas ruas, ao longo de todo o percurso.

O santo soberano atende o pedido. E, na pequena Londres de então, o Rei sai de seu palácio, enquanto as sentinelas se perfilam e um arauto toca trombeta avisando que Sua Majestade vai passar. Provavelmente, nas ruazinhas estreitas da cidade de Londres, o povo se espanta com a saída do Rei, sobretudo porque ele não está, como de costume, montado em seu magnífico corcel, nem tampouco numa carruagem, mas está a pé, sozinho, sem guardas nem tropas e fazendo-se montar por aquele indivíduo.

Dos mais belos fatos da monarquia inglesa

Naquela cidade pequena, onde todo mundo se conhece, certamente o povo deve ter comentado: Logo Gila Michael, esse mendigo miserável, carregado assim pelo Rei! Nosso augusto Rei, Santo Eduardo, símbolo da Inglaterra e da virtude da Igreja Católica, ele tão majestoso, digno e altivo como um lírio, trazendo um mendigo montado sobre si! Que coisa extravagante!”

Enquanto isso, tanto o mendigo quanto o Rei vão rezando, e pedindo a Nossa Senhora a esperada cura.

Atrás do Rei o povo atônito forma um cortejo que caminha rumo à Abadia de Westminster, a fim de ver qual será o desfecho daquela curiosa cena.

No caminho, porém, as vestes reais vão se enchendo de pus e sangue que começam a verter das chagas daquele homem, o qual ao mesmo tempo começa a sentir que algo nele está se dando. Ao entrar na Abadia, em meio à expectativa geral, talvez devido ao fato de o povo pressentir que uma das mais belas cenas da história daquele recinto estava prestes a acontecer, o monarca dirige-se para junto do altar, lá tira o precioso fardo de seus ombros e o põe no chão. Então, o homem, que montando no Rei, vinha trazendo nas mãos suas muletas, larga-as e começa a andar, pois suas chagas estavam inteiramente secas e ele miraculosamente curado.

Por outro lado, o Rei está com seus trajes gloriosamente cobertos de sangue e pus. Enquanto se operou por seu intermédio um grande milagre através do qual a majestade real resplandeceu esplendorosamente num dos atos mais belos de toda a história da monarquia inglesa.

Belo como fato ou como lenda

Alguém poderia levantar dúvida sobre a historicidade desse fato. A meu ver, isto não tem grande importância, pois ainda que venha a ser um mito ou uma lenda, o importante é ter havido numa determinada época multidões desejosas de que as coisas tivessem se passado deste modo; caso contrário, nem mesmo seriam capazes de inventar algo assim.

Pode tratar-se de uma lenda baseada num fato verídico, o qual foi glosado e embelezado para atender mais plenamente a apetência das pessoas, porém, o que importa é ter existido um povo que tivesse o estado de espírito tendente a se entusiasmar com a possibilidade das coisas se passarem desta forma.

Como vibram de entusiasmo por realidades diferentes as pobres multidões hodiernas, infelizmente tão massificadas, materializadas e quase aniquiladas!

Este episódio é indiscutivelmente belo, porém é necessário fazermos uma análise a fim de que a beleza que nele se encontra não permaneça apenas como convicção, mas seja fundada no raciocínio, para desta forma podermos compreender mais profundamente o esplendor da Igreja Católica, sem a qual tais fatos seriam impossíveis, seriam impensáveis.

A espera só aos fortes é pedida

O primeiro aspecto encontra-se na Fé daquele homem, que não hesita em ir candidamente pedir ao Papa um milagre. Por outro lado, também, quanto prestígio gozava o Papado naquele tempo! Pois, o enfermo foi até ele com certeza de que seria curado.

Como a Providência tratou a Fé desse homem?

Poderia tê-lo curado logo, mas não o fez. Pelo contrário, inspirou ao Sumo Pontífice de enviá-lo de volta à Inglaterra para lá ser miraculado. Tal ato de confiança Nossa Senhora pede aos fortes. Enquanto aos débeis na Fé, a maior parte das vezes Ela atende imediatamente.

Outro aspecto de beleza é a certeza do pobre homem de que o Rei Eduardo o iria curar. Caso fosse rabugento poderia pensar: “Por que fui até Roma se eu tinha tão perto de mim quem me podia curar?” Mas, não possuindo esse defeito, ele aceitou que Nossa Senhora dispusesse dele como quisesse, indo ter com o Rei cheio de tranquilidade e uma Fé que move montanhas.

Um rei “cavalgado” por um mendigo

Chegando à Inglaterra, o mendigo pede a cura apresentando ao Rei a condição do Papa para alcançar o milagre. Era de que ele “cavalgasse” o Rei.

A condição não poderia parecer mais extravagante, pois o Rei podia curar o mendigo ali na mesma hora. Então, por que deixar-se cavalgar por um doente como aquele? Por outro lado, tratando-se de irem até a Abadia de Westminster, não podiam os dois para lá se dirigir sentados numa carruagem?

Aquele pedido do Papa, o qual no fundo manifestava o desejo da Providência, parece ser a inversão de toda a ordem, pois Deus criou os reis para governar e não para serem montados por mendigos. Isso é uma desordem?

Não, a ordem encontra-se profundamente presente nesse fato. Por quê?

A grandeza de se fazer pequeno

Trata-se do seguinte: É lindo o fato de o poder público dominar, é verdadeiramente maravilhoso e nobre que os inferiores prestem aos detentores deste poder o respeito que lhes é devido. Sobretudo quando se trata de alguém que reconhece a origem divina de seu poder.

Mas, é também esplendoroso que, em certas ocasiões, o maior, às vezes heroicamente, seja pai, amparo e auxílio do menor. Por isso, é bonito que um rei, homem posto no mais alto píncaro da hierarquia social, se lembre de que ele é homem como o outro, pois de certa forma todos são iguais. São desiguais apenas em seus acidentes, os quais por vezes são de uma importância muito grande, mas, em sua essência, o rei é homem como o outro.

Por causa disso, o maior deve ser capaz de servir o menor, respeitando assim a qualidade de homem que ambos têm em comum.

Estes são os dois aspectos lindíssimos desse fato: um pobre resignado, mas que com essa naturalidade e Fé pede ao Rei para que o leve sobre os ombros; um Rei que reconhece a altura de sua realeza, mas é capaz de dizer: “Meu filho, pois não. Suba e vamos juntos pedir o milagre que você necessita”.

A maravilhosa harmonia das desigualdades

Há neste episódio uma harmonia que corresponde à lei profunda das harmonias, a qual admite que os extremos se toquem: é belo ver a realeza tocar na mendicância e, assim, ambas se unirem harmoniosamente.

É belo, portanto, ver ambas se aproximarem do altar junto ao qual está Deus que se encanta ao ver o esplendor daquela obra da qual Ele próprio é Autor. Ele criou o mendigo e também o rei. Ele quis que no mundo houvesse realeza, mas também pobreza, sofrimento, dor, doença, mendicância. E em tudo isso Ele pôs uma harmonia perfeita.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/6/1974)

 

1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor, Barcelona, 1968, p. 32.

Castelo de La Brède, beleza e encanto

Força e placidez, longe de se excluírem, harmonizam-se perfeitamente nesta construção iniciada no século XIV, a respeito da qual Dr. Plinio tece interessantes comentários.

 

Vamos fazer uma exposição de alguma coisa da Europa, que desperte o senso do maravilhoso, do admirável, do estupendo, do esplêndido, porque a apetência das coisas maravilhosas é um elemento fundamental para o desenvolvimento de uma verdadeira civilização, desde que esse maravilhoso seja reto e bom.

Pequena fortaleza maravilhosa

Temos aqui uma espécie de micro-maravilhoso, cuja maravilha consiste precisamente em ser micro. Trata-se de um pequeno castelo francês, não de grande luxo. É uma habitação comum, mas que possui as proporções de um castelo. E tem uma certa importância histórica porque é o chamado Castelo de La Brède, aonde morou  o malfazejo e célebre Montesquieu(1). Está situado na Gironde, nas proximidades de Bordeaux.

Para compreendermos a arquitetura um pouco singular do castelo, nota-se que ele se compõe de um corpo grande e, junto dele, outras construções menores.

O castelo possui um sistema de defesa na hipótese de um ataque. Pelo traçado do lago, percebe-se que ele é artificial, ou natural, mas que foi muito retificado em seus contornos, para que pudesse ser utilizado de fosso para o castelo. Todas as janelas do castelo ficam a uma considerável altura da superfície das águas. De maneira que ao se encostar um barco com homens armados, estes facilmente podem ser atingidos pelos defensores postados nas janelas mais altas. E o ataque direto ao castelo, para quem queira atingi-lo por água, fica difícil.

Então o recurso é atacá-lo por terra, tentando entrar pela porta, mas encontrarão várias dificuldades, pois é uma verdadeira fortaleza. Suspendendo-se a ponte levadiça, a porta é quase inacessível.

Uma moldura de irrealidade

Pode-se dizer que é um castelo estritamente funcional, porque todas as suas partes foram calculadas para uma determinada função militar muito definida. Apesar de ele ser estritamente funcional, não lhe faltam uma grande beleza e um grande encanto. E isso não obstante o fato de se tratar de uma construção pobre.

De onde vem essa beleza e esse encanto? Qual é o valor artístico desse castelo, construído manifestamente com a preocupação principal de ser uma fortaleza e não um bonito edifício?

Tenho a impressão de que o primeiro elemento de beleza é dado pelas águas. Tudo o que fica à beira da água sobe de valor. Se imaginássemos esse castelo colocado no meio do campo, ele perderia enormemente. Mas a água lhe dá uma moldura de irrealidade. O céu e diversos aspectos do castelo nela se refletem, e com esta proximidade da água toda a arquitetura se nobilita. Há um modo digno e plácido do castelo dominar a água que lhe dá uma espécie de distinção aristocrática tranquila. E por esta forma o castelo sai da linha do vulgar.

De outro lado, o que é bonito nele é o contorno da ilha. Se bem que não seja um contorno regular, há uma espécie de suavidade, de inopinado, de doçura nessa forma. E o que o telhado tem de um pouco achatado é vantajosamente compensado pelas torres que de um lado e de outro se levantam.

A principal das torres parece dominar todo o castelo com a sua massa; depois há outras menores que fazem cortejo a ela e um telhado que dá a impressão de ser da capela do castelo, encastoada no corpo da construção.

Fica-se agradavelmente surpreendido por essas formas tão diferentes. Há uma torre que tem um quê de indefinivelmente digno e plácido, apesar de seu ar de fortificação. Essa torre é flanqueada por duas outras torres menores, que lhe dão como que um apoio, e se perde nas águas distanciadas do resto. E muito inopinadamente existe um quadrilátero, realçado por uma espécie de arbusto no centro de um grande gramado verde, com a beleza dos gramados europeus.

Harmonia entre nobreza e povo

O conjunto dá um ar simultâneo de calma, dignidade, altaneria, distinção, harmonia, mas ao mesmo tempo de fantasia com esses corpos de edifício que distraem a vista e agradavelmente fixam o olhar sobre a massa do edifício e o lago. É o charme, o encanto do pequeno castelo e da vida da pequena nobreza já mais próxima ao povo. Nobreza que existe na familiaridade dos homens do trabalho manual, e que constitui o ponto de apoio da verdadeira aristocracia na massa da nação. Nobreza que conseguiu, em algumas regiões da França, levantar os camponeses contra a Revolução Francesa e produzir a “chouannerie”(2). E esse tipo de castelo exprime isso.

De que gênero era a vida que aqui se levava?

Em geral, as famílias desse tipo eram numerosas. O filho mais velho ficava habitando no castelo e exercia ao mesmo tempo alguns poderes governativos sobre seus súditos, e como o castelo era a sede de uma propriedade rural grande, ele se dedicava à exploração da agricultura e da criação. Isso é um resto de feudalismo, que é o regime político, social e econômico no qual esse tipo de construção foi concebido.

Um nobre dessa categoria, de vez em quando, frequentava a corte real, aonde, conforme o protocolo, ele tinha um lugar, embora modesto, mas definido em razão de sua posição e de seu nascimento. Em geral, a sua vida era pacífica. Quando moço, ele servia no exército e, tornando-se um pouco mais maduro, se retirava para as suas terras e entregava-se no resto de sua vida à agricultura, à criação, a esse pequeno governo local, à educação de seus filhos, ao convívio com sua esposa e, de vez em quando, ia ver o rei em Paris. Era essa a vida calma e operosa de um castelão desses tempos.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 4/9/1967)

 

1) Charles de Montesquieu (1689-1755), um dos principais teóricos do liberalismo político; cujas ideias influenciaram diversos líderes da Revolução Francesa.

2) Movimento armado, de Jean Chouan e seus seguidores camponeses, que se opôs heroicamente à Revolução Francesa.

Hífen gaudioso

Sempre se concebeu a ponte como algo de nobre e belo, digno de possuir fisionomia e características próprias. Ela é uma obra da inteligência e da habilidade humanas, construída para vencer as  dificuldades e os entraves da natureza, impondo assim a vitória do rei da criação sobre aquilo que o desafia.

A ponte é um hífen entre as duas partes de um caminho interrompido pelo precipício, pelo vale, por um rio… Traço de união, ufana-se de não pertencer a nenhum dos lados que ela aproxima, ciosa de sua individualidade e de sua nobreza. Seja a mais elementar, estendida numa trilha de roça, seja a mais monumental, projetando-se acima de águas famosas, ela possui peculiaridades que a diferenciam do restante do percurso.

Pensemos na célebre ponte da Torre de Londres, sobre o Tamisa. Em determinados momentos, seu leito se divide e se ergue para dar passagem aos navios que, numerosos, sulcam o rio a serviço  de um intenso comércio. Em seguida, ela se fecha, permitindo a fluência do trânsito da grande capital inglesa. Quer na sua posição horizontal, que nos transmite a ideia de firmeza, de solidez e  força; quer quando suas partes se levantam lenta e solenemente, como se ignorassem a vida ao seu redor, e o rio começa a ser navegado diante da majestosa indiferença (ligeiramente indignada e  sentida) dos batentes que se abrem — a ponte mantém aquele semblante próprio, fotografado e filmado de todos os modos possíveis por turistas do mundo inteiro.

Há pontes lindas em outro gênero. Uma delas, a que transpõe o Rio Tibre, em Roma, e conduz ao Castelo de Sant’Ângelo. Esta antiga construção abrigava outrora os restos mortais do Imperador Adriano. Os despojos do  César se desfizeram, e no período medieval essa mole se transformou no castelo fortificado onde as tropas dos Pontífices se acantonavam para a defesa da Cidade  Eterna.

A ponte, monumental, muito à maneira italiana é adornada com imagens de Santos e de Anjos, e no passado era favorecida por indulgências: o fiel que a atravessasse  recitando determinadas orações junto a cada imagem, beneficiava-se de tais e tais privilégios concedidos pelos Papas. Assim, sobre as águas do velho Tibre romano que os imperadores contemplaram, os Anjos lançam  uma fabulosa ponte espiritual, significando que a intercessão deles ajuda nossas almas a vencerem as distâncias entre a Terra e o Céu…

Há, também, pontes de uma simplicidade maravilhosa. Não a singeleza fria, mal-humorada e tola, mas aquela feita de equilíbrio, distinção, e de beleza presentes apenas na forma dos seus arcos. Entretanto, parecem nos dizer coisas inenarráveis. Exemplo frisante, o Pont-Neuf, sobre o Rio Sena, em Paris. Construído por Henrique IV, não é mais que um conjunto de arcos lembrando um pouco ogivas, mas tão calculados, tão medidos na sua simplicidade que, tempo eu tivesse, passaria uma tarde inteira contemplando a sua beleza se refletindo nas prestigiosas águas do Sena.

Lembra-me, ainda, a Ponte dos Suspiros, em Veneza. Não reúne dois pedaços de estrada, mas dois corredores de palácios. Tão simples! Tão pequena! Quase irrisória em comparação com os gigantescos viadutos modernos. Porém, ao contrário destes, ela é um capítulo da história da alma humana. Nem precisaria ser autêntico o fato de que passavam por ela os condenados à morte na Sereníssima República. Pois só a ideia de se chamar Ponte dos Suspiros a reveste de uma beleza ímpar. Como é nobre suspirar numa ponte, olhando para a água! Como é lindo! Que melhor lugar para um derradeiro gemido, um último murmúrio ouvido pelas águas que pranteiam a desdita de quem caminha para o suplício?

A relação ponte-água nos faz pensar… A ponte se espelha no rio que passa sob ela. Pode-se dizer que a alegria deste é fluir por debaixo da ponte, recolher a imagem dela e levá-la muito além. É a realização dele: passou pela ponte tal.

Mas, como é verdade o contrário! Imagine-se uma ponte a cujos pés as águas tenham deixado de correr, desviadas que foram para alguma represa. Desolada, envolta por uma triste solidão, a ponte vê seus fundamentos secos, percebe o vazio junto a ela: sua imagem já não se reflete em nada, não tem mais brilho, ela está seca, esturricada no ar. De súbito, abrem-se as comportas, a água  começa a circular novamente… E da ponte, revigorada, rejuvenescida, parte uma exclamação de gáudio!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Cidade florida, alegre e risonha – I

Na época medieval, a plebe levava uma vida serena, aconchegante e jubilosa, buscando o belo até nas pequenas coisas, como demonstram as construções existentes na cidade alemã de Rothenburg.

 

A cidade de Rothenburg foi construída na Idade Média e reflete inteiramente o espírito daquela época, cuja sociedade se dividia em três classes.

A mais alta era o clero, composta por homens consagrados a Deus e integra a estrutura de pessoas da Igreja Católica, Apostólica e Romana.

A segunda classe era a nobreza, a dos guerreiros, dos governadores de terras agrícolas no interior do país que, em caso de guerra, tinham a obrigação de combater. Serviço militar obrigatório só para os nobres, para os plebeus era muito restrito.

Depois, a plebe, cuja tarefa consistia em fazer a produção econômica do país.

Pequena burguesia e trabalhadores manuais

Habitualmente, quando ouvimos falar em Idade Média, pensamos em catedrais suntuosas, castelos magníficos, e temos razão, porque ela viu a construção e o acabamento de catedrais e de castelos incomparáveis. Mas nos perguntamos como seria a vida do pequeno burguês e do trabalhador manual. E a cidade de Rothenburg ob der Tauber nos dá uma resposta palpável a essa questão.

Tauber é o nome de um riozinho que banha essa cidade, a qual era fortificada porque poderia haver incursões de inimigos que quisessem tomá-la. E neste caso, os burgueses e os plebeus, morando na cidade, precisavam defendê-la. Então, eles tinham uma muralha que cercava a cidade, absolutamente fortificada como uma fortaleza medieval.

Mas dentro, pelo contrário, é uma cidade de trabalho, onde percebemos a vida da pequena burguesia ou do trabalhador manual. Naturalmente, as construções mais bonitas eram da pequena burguesia. Grande burguesia, como que não havia lá.

Preocupação de bom gosto e de arte em todas as coisas

Cada uma dessas casas não era residência de uma única família, mas constituíam os prédios de apartamento daquele tempo. Nos dois andares inferiores moravam pessoas mais abastadas, pois, como não havia elevador naquele tempo, para se chegar ao andar superior era necessário subir uma grande escadaria; e o aluguel ali era mais barato.

O prédio que vemos numa das fotografias é indiscutivelmente bonito. Não tem a beleza de um castelo, mas é digno, inteiramente diferente do que se poderia imaginar de uma favela ou um bairro operário de qualquer cidade moderna.

Há uma ideia de solidez, e percebe-se o aconchego que se tem em seu interior, o prazer de estar em uma casa como essa. Tem-se a impressão de que ali se come e se descansa bem, nos dias de feriado dormita-se bem… E na Idade Média o número de feriados era colossal!

Por exemplo, todas ou quase todas as festividades dos Apóstolos eram dias santos, e inúmeros outros, como festas de Nossa Senhora e de diversos santos da Igreja, os padroeiros de cada lugar, os Santos Anjos; em todas essas comemorações era decretado o feriado. Em dias de trabalho, trabalhava-se muito, nos dias de descanso descansava-se muito, e os havia em grande quantidade.

Nota-se nessas casas uma coloração discreta, porém não triste nem lúgubre, é uma cor agradável. Há uma preocupação de bom gosto e de arte em tudo.

As torres, o relógio, a muralha e a porta da cidade

Mais difícil de compreender para a ótica de hoje em dia talvez sejam essas duas torres. Não são torres de igreja, pois não se trata de construções religiosas, mas sim civis. Qual a razão de ser dessas torres?

Em geral é uma razão militar. A torre é construída de maneira que, dos mais altos andares, os guardas possam ver toda a circunvizinhança. Porque se algum exército está se aproximando, eles mandam tocar os sinos de todas as igrejas para acordar os cidadãos, que devem ir correndo até a muralha a fim de defender a cidade.

Com o tempo, isso foi se tornando mais raro e, no fim da Idade Média, constituiu-se o hábito de não mais fechar a porta da muralha à noite, e de construir as cidades sem muralhas, porque as condições da guerra mudaram e os combates entre cidades também foram desaparecendo.

Mas na Idade Média havia a preocupação de poupar espaço porque, como a cidade tinha que ficar dentro da muralha, com o passar do tempo iam se acumulando as construções umas em cima das outras. É a razão pela qual começaram a edificar prédios altos. E as torres eram construídas de maneira a deixar passar o pessoal em baixo, para ganhar espaço.

O relógio da torre é ornado, está colocado numa altura conveniente, e seu desenho é bonito. Naquele tempo não se usava ainda relógio-pulseira, nem de bolso. Portanto, era muito útil e prático haver vários relógios como esse na cidade para os cidadãos saberem as horas.

Na entrada da cidade, o aspecto fortaleza está mais acentuado. A porta deveria ter batentes de madeira grandes e fortes. E, para maior garantia, havia mais adiante uma segunda porta. De maneira que, se o inimigo conseguisse arrombar a primeira, ele atravessava um espaço pequeno e teria que recomeçar a batalha na segunda.

Os dois torreões no alto e o espaço coberto entre as duas torres têm um sentido muito prático. Por ali os defensores da cidade jogavam flechas, pedras, tachos com água ou óleo fervente para queimar os invasores.

Agora, deixemos de lado o aspecto prático e consideremos o estético. Essas torres e muralhas eram feitas com as pedras encontradas nas pedreiras da região. Como essas pedras colocadas ali dão um aspecto bonito! E como a linha geral dessa construção e da porta é bela!

Os dois torreões fazem uma harmonia; projetados para a frente eles ficam bonitinhos, leves, engraçadinhos, e dão um aspecto de simetria e de solidez à linda porta arqueada que forma um arco equilibrado e forte, cheio de reflexão. Mas atrás dele se levanta, como um braço, uma torre tão grande e tão majestosa que dá a impressão, diante do adversário, de um soldado de infantaria, de joelhos, esperando na estacada o ataque, enquanto o senhor feudal está em pé, armado de corpo inteiro para lutar.

Com o desaparecimento das guerras feudais, a vida se tornou mais amena. Então, foram-se abrindo portas menores para, tendo de passar alguma senhora idosa com roupa para lavar no rio da cidade, não serem obrigados a abrir portas pesadíssimas. Contudo, essas portinholas eram ainda muito fortificadas.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/11/1986)

 

Por que cultuamos as relíquias?

Reproduzimos a seguir uma valiosa exposição de Dr. Plinio sobre a tradição de prestar culto às relíquias dos santos, prática que ele prezava sobremodo e cumpria diariamente.

 

A palavra relíquia vem do latim “reliquus” (restante) ou “relinquere” (deixar). Relíquias são, pois, as coisas que restaram ou foram deixadas. Nesse sentido, a relíquia de um santo é aquilo que dele restou ou o que ele deixou.

Como se sabe, a Igreja distingue entre duas espécies de relíquias: as diretas e as indiretas.

A relíquia direta provém do corpo, dos ossos ou das cinzas de um santo. A relíquia indireta é algo que nele foi tocado. Da relíquia indireta temos ainda duas espécies: ou são os objetos com os quais o santo teve contato em vida, ou são coisas que se tocam nos corpos de santos depois de mortos.

Acontece às vezes ouvirmos falar de uma quantidade imensa de relíquias indiretas, e alguns objetam dizendo que os santos não poderiam ter tocado em tantas coisas. Na realidade, eles não o fizeram, mas certas coisas foram encostadas nos ossos deles ou em suas relíquias diretas, para serem distribuídas.

Fundamentação do culto às relíquias

O fundamento do culto às relíquias indiretas é algo um tanto difícil de exprimir, mas cujo valor é intuitivo e vem do seguinte: quando uma pessoa toca em alguma coisa, algo dessa pessoa passa para aquilo que foi tocado. Por exemplo, uma cadeira na qual Napoleão se sentou quando esteve em determinado lugar. Algo da dignidade, da importância e mesmo dos defeitos de Napoleão passa para a cadeira.

Teríamos uma ideia ainda melhor disso, se nos oferecessem de presente a corda com que Judas se enforcou. Em si, é uma corda como qualquer outra. Dir-se-ia apenas estar muito velha, com cerca de dois mil anos. Se estivesse em razoável estado de conservação, daria até para amarrar um cachorro. Contudo, nem quereríamos tocar nela. Como que um pouco da infâmia de Judas passou para a corda.

Então, há esse fato de que algo “impregna” aquilo que foi tocado.

Encontramos, aliás, na Sagrada Escritura um episódio curioso nessa linha. Quando o Evangelho relata a cura de uma mulher que tocou na túnica de Nosso Senhor, acrescenta que o Divino Mestre perguntou quem a tinha tocado, porque sentiu que uma virtude curativa saíra d’Ele.

A túnica tinha servido de elemento de transmissão de uma força terapêutica proveniente de um corpo Sagrado, o qual como que enobreceu e dignificou a vestimenta.

Por causa disso, no tesouro da Igreja encontramos algumas relíquias indiretas de uma importância tão grande que elas, por assim dizer, valem mais do que as relíquias diretas.

Por exemplo, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma relíquia indireta; o Santo Sepulcro é uma relíquia indireta, assim como o são também os fragmentos que restam da manjedoura onde Jesus nasceu.

Como são sagrados esses objetos que, afinal de contas, são relíquias indiretas, mas que veneramos quase como se fossem relíquias diretas!

Inestimável valor das relíquias diretas

Devemos considerar igualmente as relíquias em que a pessoa não só tocou, mas se serviu delas como instrumento para a realização de uma ação insigne. O fato de se ter prestado um gesto eminente, aumenta muito o valor da relíquia.

Considere-se, por exemplo, um pedaço do pano com que Verônica enxugou o rosto de Nosso Senhor. Ainda que não tivesse sido estampada ali a verdadeira face dele, pela razão de ter servido para consolar a Nosso Senhor numa situação muito difícil, por ter sido instrumento de uma ação nobre, de um ato de generosidade e de coragem, aquela relíquia vale muito, pois adquiriu algo da dignidade da ação da qual participou.

Vimos, então, que relíquias indiretas são as coisas tocadas por alguém, ou aquelas que lhe serviram como meio de ação. Num sentido muito mais amplo, já não no religioso, mas analógico da palavra, podemos também considerar relíquias as obras que alguém deixou, os livros que escreveu, os pensamentos que transmitiu.

Outrossim, como relíquia poderíamos considerar os filhos de uma pessoa, a prole deixada por ela e que, de algum modo, no-la recorda. Tome-se toda essa doutrina das relíquias, ampliada como a estou dando, e teremos o fundamento da Tradição.

Esta é, exatamente, a continuidade de algo, é a transmissão de notícias, memórias, hábitos, costumes, de uma geração à outra através do exemplo, ou mediante informações, testemunhos, ensinamentos orais ou escritos. Vemos como isso tem analogia com o culto católico das relíquias, e, portanto, como o fundo do nosso pensamento, enquanto defendendo a tradição, toca no mais recôndito do pensamento católico.

Agora, se, como observamos, as relíquias indiretas têm tanto valor e são tão sagradas, o que dizer das relíquias diretas?

Um pedaço de carne ou um fragmento de osso de um santo é uma parte, um elemento constitutivo da própria pessoa do santo. E está em união — que não é viva, mas entretanto profunda, de caráter metafísico — com a alma do santo no Céu. Aquela relíquia é, pois parte de uma pessoa que se encontra no Céu.

De tal maneira que quando o santo ressuscitar, aquele fragmento vai ser incorporado ao corpo dele e passará para o estado glorioso. Aquele pedaço de carne e aqueles ossos que se acham em nossos relicários irão se reunir novamente no corpo ressurrecto do santo, e vão dar glória a Deus durante toda a eternidade no Paraíso!

Compreende-se, portanto, como tais fragmentos são mais do que qualquer outra relíquia indireta, posto serem, em certo sentido, a presença física do próprio santo entre nós.

É claro que, se de uma túnica de Nosso Senhor saíam graças, estas também sairão dos santos de Deus. Destes o Divino Mestre declarou que eram mais unidos a Ele do que sua Mãe e seus irmãos. Podemos por aí imaginar o quanto os bem-aventurados estão ligados a Ele, muito mais do que uma túnica!

A garantia de se “arrancar” as graças de um Santo

Então, compreendamos quanto essa presença das relíquias constitui uma graça para aqueles que as levam.

Para melhor frisá-lo, reporto-me mais uma vez às palavras que Santa Marta disse a Nosso Senhor. Ela havia mandado chamar Jesus para atender a Lázaro, que estava muito mal. Nosso Senhor não veio, e Lázaro morreu. Ela então disse esta frase curiosa: “Mestre, se tivésseis estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

Ou seja, ela tinha certeza de que a presença física de Nosso Senhor determinaria uma atitude d’Ele, que era a de curar o irmão. Portanto, quando se tem a presença física de Jesus, a graça se torna quase irrecusável.

Ora, pode-se dizer mais ou menos o mesmo da relíquia de um santo: guardadas as devidas proporções, tem um valor semelhante ao da presença física de Nosso Senhor.

Quer dizer, é uma garantia de que o santo de algum modo está fisicamente presente onde se encontra a relíquia, e que quase podemos arrancar as graças dele, por atenção às relíquias que são parte dele.

Compreende-se então que, nesse sentido, as relíquias têm um grande significado e são fontes colossais de graças, devendo ser tratadas com muito respeito.

Sendo, em última análise, fragmentos de santos, e nada havendo de mais respeitável, abaixo de Deus, no Céu e na Terra, do que esses heróis da Fé, claro está que devemos ter suma veneração para com tais fragmentos. Uma relíquia direta é algo de imensamente mais respeitável do que qualquer dignidade régia, e por isso os antigos construíam catedrais para abrigá-las.

Por exemplo, a Sainte Chapelle, com toda a sua magnificência, foi edificada para custodiar uma das mais preciosas relíquias indiretas de Nosso Senhor: um dos espinhos da coroa sagrada.

Cuidados que devemos ter no cultuar as relíquias

Cumpre termos sempre em mente tudo o que acaba de ser dito, para entendermos o tesouro que é uma relíquia.

Cabe aqui fazer uma aplicação concreta acerca do modo de guardá-las e de venerá-las.

Não é correto conservar as relíquias jogadas em gavetas, no meio de outros objetos: repelentes contra mosquitos, remédios, “band-aid”, etc., e, chocando-se com eles, relíquias de três ou quatro santos. Essa é uma forma muito incorreta de tratá-las.

Se não se dispõe de recursos, é preciso ter uma pequena caixa, mesmo de papelão, mas inteiramente separada, colocada de preferência num lugar onde não haja outros elementos, para nela guardar todas as relíquias juntas, em vez de mantê-las separadas nos locais mais díspares.

Portanto, todas devem estar reunidas e ser objeto de nosso culto.

E como prestar essa veneração a elas?

Pelo menos da seguinte forma: todos os dias, de manhã e à noite, oscularmos as relíquias que temos, para pedir a intercessão daqueles santos em nosso favor. Devemos procurar conhecer a biografia deles, a fim nos darmos bem conta de quem está ali presente, e por essa forma lhes render o merecido culto através de suas relíquias.

Resumindo, portanto:

guardá-las condignamente — não quero dizer luxuosamente;

prestar-lhes culto. E para fazê-lo bem, sugiro que este se transforme numa rotina, que consista, por exemplo, em oscular todos os dias as relíquias, de manhã e à noite. É triste termos uma relíquia jogada em casa, desprovida de culto ou devoção. Seria o caso de dá-la a outra pessoa que a honre, pois não se compreende que o santo esteja ali presente, com um elemento constitutivo de sua pessoa, e não seja objeto de nossa veneração!

Há ainda um último ponto a considerar: pode-se carregar as relíquias consigo?

Sim, desde que se tenha o necessário cuidado para não perdê-las. Por exemplo, conservando-as sempre no mesmo bolso. Certos militares levavam uma relíquia incrustada na própria espada. Eu compreenderia que, com a necessária prudência, houvesse uma relíquia num boa caneta ou num digno instrumento de trabalho. Mas, sempre com o necessário  cuidado.

Luminosas “migalhas”

Embaladas por águas tranquilas e misteriosas, as gôndolas parecem dormitar à espera de passageiros. Formas características, pontas elegantes, detalhes pitorescos. Gôndolas vazias, amarradas a estacas de formas incertas, numerosas, como se fossem uma floresta de linhas e de silhuetas refletidas, plantadas no mar raso.

Neblinas indefinidas, brumas matutinas, vespertinas, que a tudo envolvem: barcos, torres, homens. Lindos revérberos sob cuja luz se revelam lances de muros, arcarias góticas, jogo de cúpulas.

Nuvens de um avermelhado que se mistura com o plúmbeo profundo do céu, desenhando no firmamento uma espécie de mapa da cidade que se estende na terra. Nas pontas das torres, das cúpulas, cruzes e ornatos tão leves e tão poéticos que, ao soprar o vento, dir-se-ia começarão a se agitar e a tocar música nos ares de Veneza!

Prédios que se empilham uns sobre os outros, dando a ideia de construções feéricas e, mais uma vez, roçados pela névoa ligeira. Comprazem-se nas auroras lindas, mas são igualmente sensíveis aos encantos do ocaso e da noite.

As águas venezianas refletem como que ao infinito as velas, as quilhas e os adornos das embarcações que sobre elas repousam. E então parecem, já não água, mas vidro, cristal, espelho imobilizado. Águas sempre portadoras de novidades, da famosa laguna de Veneza.

Casas velhas e escalavradas. Pequenos (e outrora) palácios, onde se nota habitar uma gente empobrecida, sim, mas que sabe conservar o atrativo do seu passado.

Na verdade, tudo isso possui uma beleza e uma poesia que me levariam a contemplá-lo por um longo tempo, dizendo: “Mais formosura do que isso existe, e muita, na própria Veneza. Porém, dá-se aqui como quando saboreamos um pão delicioso e algumas migalhas dele caem sobre a toalha da mesa, e temos um gosto peculiar em comer a migalha, como quem degusta, num só pedacinho, o pão inteiro. Pois bem: essas são migalhas do incomparável esplendor de Veneza…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 31/3/1974; 31/8/1976 e 17/4/1985)

Arquetipização

Uma nota muito importante da escola de Dr. Plinio é a arquetipização, ou seja, a busca da perfeição de todas as coisas. Esta tendência do senso do ser leva a pessoa continuamente a um desejo de elevação. Aplicando esse princípio à consideração de ambientes, Dr. Plinio analisa o estilo grego, românico e gótico.

 

Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus está difusa pelo ar uma impressão de aconchego e de proteção muito grande, mas também de muita sabedoria, tranquilidade e bondade. No fundo, o que é isso?

Uma operação eminentemente religiosa

Quando entramos em algum ambiente, o que por excelência causa impressão, mais do que qualquer objeto, é a pessoa que encontramos ali ou a quem, de algum modo, aquele ambiente e os objetos nele contidos nos reportam.

Lembro-me de ter visto um quadro representando o Lago Titicaca, na Bolívia, de um azul e um prateado lindíssimos! Tinha-se a impressão de uma imensa asa de borboleta que ondulava ao sopro do vento. Embora esse lago não seja uma criatura humana, nem foi ideado por um artista, ao vê-lo tem-se uma impressão parecida com a que se teria no convívio com uma pessoa que nos causasse análogo efeito.

Assim também, quando ao contato da graça sentimos uma determinada impressão sobre um objeto, de fato temos a sensação de como se estivéssemos com Deus. Na Igreja do Coração de Jesus nós não vemos a Deus, mas sentimos a impressão que teríamos se estivéssemos com Ele, mostrando-Se sob aquele aspecto. A impostação de que Deus Se nos faz conhecer, sem que nós O vejamos, é o principal na Igreja do Coração de Jesus.

Essa impressão, portanto, é um como que ver a Deus. Creio que esse ponto é absolutamente capital para compreendermos o que são as arquetipizações. Porque embora numa arquetipização possa não estar presente uma graça tão grande quanto à do Coração de Jesus, e se possa conceber uma arquetipização no plano apenas natural e sem presença nenhuma da graça, é fato que a verdadeira arquetipização conduz a uma ideia de como seria uma determinada coisa se ela fosse ainda mais semelhante a Deus.

É, portanto, um ver a Deus em todas as coisas que constitui a alma verdadeiramente católica. Isso não significa, por exemplo, que olhando para uma cadeira estou imaginando o Padre Eterno sentado ali. Não tem propósito! Mas aquela cadeira, se eu a arquetipizo, vejo melhor o por onde ela se parece com o Criador. Logo, buscar a arquetipia de todas as coisas é procurar ver melhor a Deus nelas, e constitui uma operação eminentemente religiosa, ainda que no plano natural.

A isso dou muita importância para se compreender o que é vida interior, o recolhimento notadamente na nossa escola. Porque na escola comum seria, por exemplo, ao ver uma coroa, faço o seguinte raciocínio: coroa é símbolo do poder; então, como é belo o poder que Deus instituiu.

Sem dúvida, é uma via muito boa. Mas faz parte do nosso espírito olhar a coroa e vê-la como um símbolo – na ordem natural e na sobrenatural – mostrando a Deus nesse sentido da arquetipização, isto é, um modo de compor como seria a figura de Deus a partir dessa coroa. Esse meu gosto de arquetipia é, no fundo, um anseio de Deus, mas ainda não explícito. É um desejo imediato de ver uma coisa mais excelente do que a coroa, o qual, de ponto em ponto, me conduzirá a Deus.

Tendência do senso do ser à perfeição

Então, no próprio modo de considerar a coroa entrou um certo estilo de ver a beleza que subconscientemente já está orientado para Deus.

O trabalho do subconsciente aqui eu acho muito importante, porque se foi feito com o mero consciente, sem um movimento da sensibilidade mais ou menos simultâneo, a coisa não se fez como eu estou dizendo. É o livre curso do impulso do senso do ser que tende naturalmente para a excelência do ser. Propriamente a palavra “subconsciente” aqui é um termo tão emaranhado que prefiro me exprimir assim: é o livre curso do impulso do senso do ser rumo à perfeição de todas as coisas no seu próprio gênero.

Essa tendência do senso do ser à perfeição das coisas leva continuamente a um desejo de elevação e, portanto, deve conduzir a pessoa a querer que existam na ordem humana os mais altos representantes dos mais elevados graus que chegam mais perto da perfeição do ser. Por isso, a hierarquia é uma necessidade. Pelo que o senso do ser é eminentemente contrarrevolucionário, porque enquanto o revolucionário quer arrasar todos os seres que representam, dentro da hierarquia, escalas para a perfeição, o contrarrevolucionário tem empenho em que a ordem social e a ordem eclesiástica vão destilando pessoas, e que haja cargos por onde elas vão se aproximando cada vez mais de uma determinada altura, a qual é a plenitude que nos fala mais de Deus.

O estilo grego e o românico

Mas voltando à consideração de ambientes, ao compararmos um edifício em estilo românico com um do estilo grego, que diferença notamos? Uma coisa curiosa, pode haver razões técnicas para isso, eu não discuto, mas as construções gregas têm uma solidez suficiente de maneira a não dar a impressão da fragilidade que preocupa, inquieta, isto é certo. Entretanto, elas não possuem o aspecto de fortaleza e não brilham pela força. Dir-se-ia quase que o grego tem a preocupação de fazer esconder a força do prédio sob o aspecto da ligeireza, da leveza, da elegância.

Então, por exemplo, a coluna grega é, o quanto possível, esguia, lembrando o tronco de uma palmeira, etc. As colunas e todo o prédio românico são pesadões. O edifício tem algo das paredes de uma fortificação, e dá ao espírito uma ideia de luta que de nenhum modo está presente no aspecto da perfeição do universo que o prédio grego quer sustentar e manifestar.

Olhando para o Parthenon, por exemplo, ninguém pode dizer: “Oh, que luta!” Ou exclamar ao ver a Tribuna das Cariátides: “Quanto heroísmo!” Sou entusiasta dessa tribuna, mas isso não se pode afirmar. Aliás, desconfio que as colunas delimitavam uma espécie de periferia e que o templo era um quadradão de alvenaria por dentro. É preciso dizer, desde logo, um quadradão de tal maneira sem graça que, se não fossem o teto e as colunas, seria a coisa menos interessante que poderia haver. Provavelmente, dentro era meio obscuro, mas uma obscuridade inteiramente diferente da existente no românico.

Ao se considerar uma construção românica tem-se a impressão de um homem que carrega um peso sério, preocupações difíceis, mas que estão na altura dele. E que ele tem força, porque é um gigante, para entestar com aquilo e tocar para a frente. Esse é o lado românico. Vê-se também que as qualidades dele são de uma pessoa muito preocupada. Há uma atmosfera difusa de preocupação na obscuridade do templo romano.

Mas nasce o vitral, o qual introduz em tudo isso uma certa forma de beleza, de pulcritude, que completa aquela carranca do prédio românico com algo que não é propriamente a louçania. O edifício românico é muito “pensativo”, muito “preocupado”. As cores do vitral românico não são tais que falem da alegria, da satisfação. Elas falam de uma espécie de doce maravilhoso, de maravilhosa doçura, que se compagina bem com aquilo e que é a meditação em Deus, do homem cansado. Do homem que não vai cantar o “Gloria in excelsis Deo”, o “Magnificat”, mas que também não vai gemer como Jó em cima de seu monturo; entretanto ele encontra um certo consolo no meio da sua tristeza, que é propriamente o bem-estar da consolação, o consolo cristão.

A esperança do Céu começa a iluminar: nasce o gótico

Quando se inicia a Idade Média, isso vai tomando, com a ogiva, um caráter diferente, porque a esperança do Céu vai iluminando aquilo que não está muito presente no românico. O românico parece mais dizer: “Deus te ajuda na Terra. Confia em Deus”. E o gótico parece mais afirmar: “É verdade, Deus te ajuda na Terra, mas isso não é tão importante. O melhor é que Ele te ajuda no Céu. Pensa no Céu! Volta-te para lá! Lá tu terás a explicação de tudo”.

Essa posição, que parece ser a perfeita, começa a fazer desabrochar a leveza dentro da seriedade e da atmosfera de uma igreja que continua com certos traços de fortaleza. Aí sim, os vitrais começam a ter louçania. Também a altura dos templos parece dar um caráter festivo e cheio de esperança, o que se reflete no modo de realizar o culto, os paramentos se tornam esplendorosos, etc. Assim, a partir de um determinado momento a esperança do Céu se acentua mais do que a esperança da ajuda nesta Terra. Para mim, o auge disso e o contrário do românico é a Sainte-Chapelle. É uma maravilha!

Mas também fala muito nesse sentido aquele tipo de coluna gótica que se abre como uma palmeira. Aquilo é muito bonito e já fala de um mundo em que a seriedade se tornou leve, de tal maneira ela venceu a dor e a aflição sem ter fugido. Na ordem do espírito, aquele guarda-sol é quase o primeiro precursor da aeronáutica, pois faz pensar um pouquinho numa ligeireza que nos vai levar para o Céu, vai girando e conduzindo nossas almas para regiões azuis que elas devem contemplar.

Nesse sentido, o gótico aparece menos consolante do que o românico. Para o homem desolado que entra em um edifício deste estilo, o românico parece dizer afetuosamente: “Sente-se, sofra, eu vou ajudá-lo no seu sofrimento”. O gótico é outra coisa. Ele como que diz o contrário: “Tome rápido contato comigo que seu sofrimento passa logo. Eu o levo para as regiões do Céu”. São os braços de Deus que se baixaram para elevar o homem. É um pouquinho como um pai ou uma mãe que se inclina sobre uma criancinha com dificuldade de andar e a suspende. Assim é o gótico conosco.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/11/1986)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

Da arquetipia ao sobrenatural

A obra-prima da inteligência dá-se quando ela chega ao píncaro de sua própria capacidade de arquetipizar. É uma forma de inteligência na qual o indivíduo vê, tão longe quanto ele possa, a perfeição das coisas. O homem sacral deseja sempre ir mais além, pois possui um espírito ascensional infatigável.

 

Quando o homem chega ao último ponto que a inteligência alcança, ao último impulso do senso do ser no desejo de arquetipia, onde ele atinge? E a que grau de arquetipia se prestam as coisas da natureza?

A obra-prima da inteligência: o píncaro da capacidade de arquetipizar

São, portanto, coisas diferentes: até que ponto eu, Plinio, levando adiante tanto quanto é possível em mim a arquetipia, há um limite além do qual eu, por minha natureza, não posso conceber a perfeição? Nesse limite eu paro. Eu acho até, diga-se de passagem, que o píncaro da inteligência é o píncaro da concepção da arquetipia.

No mais agudo sentido, a obra-prima da inteligência é quando ela chega ao píncaro de sua própria capacidade de arquetipizar. A obra criadora do homem não é o tirar uma coisa como que do nada e compor, mas é conceber, a partir do criado, a criatura em seu máximo grau de perfeição.

Quer dizer, é uma forma de inteligência na qual o indivíduo vê, tão longe quanto ele pode, a perfeição das coisas. No que entra a inteligência, entra o acréscimo que a vontade dá à inteligência. A vontade, cheia de amor pela arquetipia natural – estou falando da natureza –, tende e dilata as fronteiras de sua inteligência. Por outro lado, a coisa bem compreendida aumenta as fronteiras da vontade. Há um dueto entre a inteligência e a vontade a caminho da máxima perfeição. Quando chega ao último grau que o homem pode alcançar em matéria de arquetipia, ele atingiu a fronteira de si mesmo. Esse homem, se não fosse o sobrenatural, poderia cantar o Nunc dimittis1.

Quando eu deixar esta vida, queria apresentar-me a Deus e a Nossa Senhora tendo levado a minha possibilidade de arquetipizar tão longe quanto possível. Não gostaria de morrer antes de ter visto isto assim. Espero comparecer perante Deus com todo o grau de excelência que Ele, na ordem natural, possa ter querido para mim. Isto então é o píncaro da coisa vista em mim mesmo. E desejo também levar todos aqueles que me foram confiados aos respectivos píncaros. Nesse sentido, nossa vida é um convite contínuo para essa arquetipização.

Até onde algo pode ser arquetipizado?

Outra consideração a fazer seria: até que ponto a coisa, em si, se presta a ser arquetipizada? Ela tem uma fronteira e, objetivamente, não pode ser sublimada além de um certo limite.

Por exemplo, uma xícara. Eu seria capaz de imaginar a xícara ideal? Eu julgaria interessante organizar um museu com uma coleção de todas as xícaras que houve no mundo e que foram dignas de serem vistas… Como se visita um museu assim? É perguntando-se, antes de entrar, o seguinte: Como seria a xícara arquetipizada, perfeitíssima? Depois, outra pergunta que seria muito interessante: Para a xícara arquetípica, qual a colherzinha ideal?

De fato, este seria o epílogo da alma e o sentido da velhice de um homem de pensamento, quando, por exemplo, ele se aposenta, passa a tarde lendo jornal, conversando um pouco com um amigo, enfim, fazendo de tudo e nada, e dão a ele a oportunidade de arquetipizar o panorama geral da vida que teve. Isso, repito, é na ordem da natureza.

Eu gostaria, muito de passagem, de deixar assinalado esse conceito de inteligência. Não é compreender depressa, nem a fundo. É compreender no alto. Por exemplo, conheci alguém que não tinha a inteligência assim. Essa pessoa procurava sempre o prático, o concreto e o meticuloso. Ora, é preciso arquetipizar!

A arte popular é a atitude do camponês que arquetipiza o mundo dele. E não é fazer o mundo de um conde, é produzir a arte popular. Linda, esplêndida! A cidade de Rothenburg, por exemplo. Há museus para esse gênero de arte. Tudo que se chama artesanato tende a isso. Ninguém compreenderá a Idade Média se não tiver estas noções bem postas dentro da alma.

Outro exemplo: o indivíduo que inventou a ogiva vale mais do que Colombo que descobriu a América, nem há comparação. Não se sabe quem é, é um anônimo. Mas um homem que primeiro arquetipizou uma janela para daí sair a ogiva e partindo dessa coisa quadrada – aliás, a Renascença adorou a janela em ângulo reto – pensou na ogiva, é um gênio, um gigante. Eu gostaria de me ajoelhar diante dele, se ele foi um santo.

Outro ponto é a questão dos limites da arquetipização na própria coisa. Porque, por exemplo, não parece que se possa fazer de uma janela uma forma mais bonita do que uma ogiva. Neste gênero, a ogiva parece ter chegado ao fim do caminho. É mesmo ou haveria mais?

Da arquetipia à graça

Há uma coleção de arquetipias possíveis, mas somando, reunindo todas elas, fica uma figura vaga de algo que Deus não criou, que mais ou menos existirá, provavelmente no Céu Empíreo, e nos deixará inteiramente sem saber o que dizer.

Quando o homem chega a esse ponto, a sua alma não está satisfeita. Pelo contrário, ele localiza uma zona dela que estava na bruma, dormindo, e que era para ele, por causa disso, uma fonte de mal-estar medonho – porque a alma quando dorme cansa, e quando trabalha descansa –, algo por onde ele tendo arquetipizado tudo, chega à conclusão: “Está perfeito, mas há mais! Eu não me farto com isso. Eu alcancei tudo, e mais uma vez cheguei a um píncaro. Anseio por mais, entretanto, verifico que na natureza não há mais.”

Aí é a hora da graça. Porque nessa hora a alma conhece aquilo que ela desejava sem encontrar na ordem da natureza. Ela não sabia, mas ela varou a ordem da natureza à procura de algo mais alto do que a natureza pode dar. Esta coisa mais elevada é a graça.

Quando, então, a pessoa recebe uma graça, obtém qualquer coisa em que ela entende que seu papel está alterado: não é mais ela que vai à procura do píncaro, é o píncaro que vai se afundando dentro dela. É um píncaro voltado para baixo, que vai entrando nela. É a caminhada dela para subir para o píncaro que desce, à maneira da estalagmite e estalactite que tendem a se unir.

Neste caso é muito mais a receptividade do alto da estalagmite para encontrar a estalactite do que o contrário. Inicia-se uma via na qual, através da oração e do pedido incessante e humilde, a pessoa pede para receber aquilo que ela não pode puxar, que é a estalactite até embaixo, mas que ela pode atrair.

É interessante que quando a graça toca no homem, ela vai embebendo toda a “estalagmite”. A graça não é como no fenômeno natural – a estalagmite e a estalactite são consolidações do mesmo líquido que pinga –, ela é a ponta do dedo de Deus. A estalagmite miserável é a pontinha do dedinho do homem. São coisas completamente diferentes. A graça vai impregnando cada vez mais o homem. Tudo quanto ele viu antes sob o mero aspecto da natureza vai tomando para ele consonâncias sobrenaturais maravilhosas. Na ponta disso ele está pronto para o Céu.

Uma sublime preparação para a morte

Um de meus desejos com o que foi exposto é fazê-los compreender como devem ser, em nossa família de almas, os últimos anos da vida de um homem e o seu repouso final. Seria um deslumbramento contínuo – com as noites escuras, as cruzes e as dores – até a “toilette” final da alma, que é feita por Deus, como um rei mandaria enfeitar a sua noiva do modo como ele desejasse, para estar à altura de se casar com ele. O soberano daria as joias, os tecidos, as ideias, as diretrizes, e as mandaria cumprir. Assim também faz Deus com nossas almas.

Eu acho que isto é profundamente católico. Lamento muito que as preparações para a velhice e para a morte não se façam em função desse ponto de vista. Só essa perspectiva dá ao homem a resignação de envelhecer e a esperança de ressuscitar.

Em última análise, para resumir tudo numa palavra só, a perfeição natural prepara o conhecimento da transcendência e tende para ela. A transcendência é um abismo, um infinito, pois o seu objeto é Deus. Mas para lá tende o homem com toda a sua alma.

Sacralidade e sobrenatural

Agora, o que é a sacralidade? Há um estado da natureza vagamente análogo ao sobrenatural. Donde se pode dizer, por analogia, de uma coisa natural que ela tem algo de sacral. Um grandioso panorama pode dar a impressão de algo sacral. O termo “sacral”, em seu sentido próprio corresponde ao sobrenatural; no sentido analógico é uma excelência tão grande do natural que faz pensar no sobrenatural.

O homem sacral é aquele cuja mentalidade está toda impregnada desse conhecimento transcendente ao qual me referi acima, desse amor e dessa força ascendente rumo ao sobrenatural. Porque não basta ele imergir nas águas do sobrenatural, é preciso querer ir mais além. Este é o homem sacral, dotado de espírito ascensional infatigável.

O que é o homem sagrado? É quem recebeu um sacramento da Igreja que de modo particular o ligou com a ordem sobrenatural, deu-lhe poderes dentro dela e se apossou dele para fazê-lo um instrumento ministerial dessa ordem. E, portanto, ainda que não queira, ele tem na sua alma elementos pelos quais, tocando-se nele, toca-se no sobrenatural. Entretanto, esse homem poderá ter muito mais se ele se der inteiramente a essa transcendência.

A Igreja Católica é a sagrada fonte da sacralidade

A Igreja é de tal maneira sagrada, a tal ponto escachoa toda espécie de sacralidades, que ela é a fonte de todas as sacralidades. Ela é sacral em tão alto grau que a palavra “sacral” fica para ela meio apagada, e tendemos a dizer que ela é sagrada. Não porque ela não possua a sacralidade, nem por esta não lhe ser apropriada, mas porque é característico dela um estado tão eminente, que é, em certo sentido, um gênero maior na sacralidade.

A Igreja é então sagrada porque foi revestida de todos os dons sobrenaturais por Deus. Mas é sagrada também nisto: na ordem do sagrado, os dons a colocaram sumamente elevada e lhe deram o caráter de fonte, quase um papel parecido com o de Deus na Criação: a Igreja é, em certo sentido, o motor imóvel, o fim último. Como fonte, ela seria como que a criadora de todo sagrado existente na Terra, de maneira que pousando n’Ela o olhar, a pessoa conclui: “Cheguei a meu ponto, embora aí dentro ainda possa subir.” É o mais alto concebível. São os degraus por onde se chega ao Céu.

Por isso a palavra “sacral” torna-se um pouco, ou bastante, fraca para a Igreja, quase inadequada, como se dissesse: “Tal rei é bem-educado.” Estala a palavra. Embora o rei, de fato, seja bem-educado, não se pode compreender um rei mal-educado. Aliás, deve ser o modelo da boa educação.

Portanto, perguntar se o vocábulo “sacral” é um monopólio da ordem temporal, não é. Seria um monopólio da Igreja se esta não estalasse a palavra. Mas o termo convém inteiramente a ela. A Igreja é a sagrada fonte da sacralidade.

Sacralidade e ordem temporal

Pelo contrário, a sacralidade convém à ordem temporal como o seu mais alto adorno. Assim como se diz que a Igreja é a sagrada fonte da sacralidade, deve-se dizer que a ordem temporal é toda embebida de algo mais alto do que ela e reluz da vida sobrenatural da qual ela não é fonte, mas um receptáculo. Ela cintila e deflui, não como o alto da montanha onde nasce uma fonte, mas como as encostas por onde baixam as águas nascidas no píncaro. O alto da montanha é a Igreja. A ordem temporal é a parte mais alta em torno do cume, e de onde tudo defluiu para baixo. Daí o caráter sacral da ordem temporal.

Há dois modos de alguém se deixar penetrar pelo sacral. Um é a vocação de renunciar a tudo quanto é terreno, mas completamente, até o limite do inconcebível, para servir inteiramente a Deus. Então, renunciar até àquilo que é legítimo possuir. Outro é, pelo contrário, utilizar-se daquilo que Deus deu de um modo tão santo, que se santifique em alto grau no uso daquelas coisas.

Dois exemplos característicos seriam São Luís, Rei da França e São Francisco de Assis. São Francisco de Assis levou ao extremo os despojamentos da pobreza; São Luís, pelo contrário, foi santo num píncaro da ordem temporal. São vocações distintas.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1986)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

 

1) Referência ao Cântico de Simeão: “Deixai, agora, vosso servo ir em paz…” (Lc 2, 29-32).

 

Práticas da perfeição cristã

Dando continuidade aos seus comentários à “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio salienta a necessidade de nos compenetrarmos de que nascemos, antes de tudo, para cumprir a missão e o plano de Deus a nosso respeito. E tal desempenho envolve o sofrimento que devemos abraçar, “sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos”.

 

Na segunda parte de seu opúsculo destinado aos Amigos da Cruz, São Luís Grignion de Montfort estabelece o programa de santidade que o próprio Divino Mestre nos deixou. Escreve ele:

Toda a perfeição cristã, com efeito, consiste:

1º) Em querer tornar‑se santo: “Se alguém quiser vir após Mim”.

2º) Em abnegar-se: “renuncie a si mesmo”;

3º) Em sofrer: “carregue sua cruz”;

4º) Em agir: “siga‑me” (Mt 16, 24; Lc 9, 23).

Portanto, ao interpretar a admirável frase de Nosso Senhor no Evangelho, São Luís demonstra como ela encerra um desejo de santidade, uma renúncia, um padecimento e uma ação. São os elementos fundamentais da conquista da perfeição cristã. A seguir, o autor comentará cada um desses componentes.

Muito poucos querem abraçar a cruz de Cristo

“Se alguém quiser vir comigo” — “Alguém” e não “alguns”, para marcar o pequeno número dos eleitos que querem se identificar com Jesus crucificado, carregando sua cruz. É tão pequeno esse número, tão pequeno, que se o soubéssemos, ficaríamos pasmados de dor.

É tão pequeno, que há apenas um em cada dez mil, como foi revelado a vários santos — entre outros a São Simão Estilita, segundo narra o Santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, São Basílio e alguns outros. É tão pequeno, que se Deus quisesse reuni‑los, gritar‑lhes‑ia, como o fez outrora pela boca de um profeta: reuni‑vos um a um, um desta província, outro desse reino (Is 27, 12).

Cumpre notar que São Luís Grignion não se refere apenas ao seu tempo, mas considera todas as épocas, em todos os lugares: assim mesmo, o número de pessoas que verdadeiramente querem tomar a cruz de Nosso Senhor e segui-Lo, é pasmosamente pequeno.

Sem o auxílio da graça não se aceita uma vida de renúncias

São Luís prossegue:

“Se alguém quiser” — se alguém tiver vontade autêntica, firme e determinada, não pela natureza, pelo costume, pelo amor próprio, pelo interesse ou respeito humano, mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo, que não se dá a todos. O conhecimento do mistério da cruz, na prática, só é dado a poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e aí se deixar pregar na cruz, com Jesus, em sua própria pátria, é preciso que seja um corajoso, um herói, um determinado, um homem formado em Deus, que despreze o mundo e o inferno, seu corpo e sua vontade própria; disposto a deixar tudo, a tudo empreender e a tudo sofrer por Jesus Cristo.

Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles dentre vós que não têm essa determinação, andam com um pé só, voam com uma asa só e não são dignos de estar no meio de vós, porque não são dignos de serem chamados Amigos da Cruz, à qual devemos amar com Jesus Cristo, “corde magno et animo volenti”. Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai‑a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

Esse pensamento de São Luís Grignion é muito importante, porque nos revela a necessidade de uma graça especial para determinar os homens a seguirem a cruz de Nosso Senhor.

Quer dizer, se alguém julga que somente fatores humanos são capazes de levar uma pessoa a aceitar uma verdadeira vida de sacrifícios, esse se acha completamente enganado. E igualmente errado estará quem pense que a tal nos inclinará o costume, a natureza ou o “ânimo dedicado”. Não existe ânimo dedicado nessa matéria. Há homens que, às vezes, demonstram certa facilidade para algumas formas menos penosas de dedicação. Mas entregar-se até o sangue nas grandes dificuldades, não se consegue sem o auxílio da graça.

Sabemos, pela experiência pessoal de cada um, como é dura a batalha pela perseverança na virtude: luta e entrega individuais, em que a tradição e o ambiente doméstico podem ajudar um tanto, mas não são fatores determinantes para nos levar à pratica da virtude. É preciso a força da vontade secundada pelo socorro divino.

A graça “toda vitoriosa” do Espírito Santo

Curioso notar como São Luís Grignion se refere também ao interesse e ao respeito humano — tomado aqui no sentido de honras e regalias que se prometem a alguém — como ineficazes para convencer o homem a tomar a Cruz. Ou seja, nenhuma razão natural, nenhum valor terreno e mundano é capaz de determinar uma pessoa a cumprir estavelmente os Mandamentos de Deus. Só mesmo com o amparo do Céu, como o próprio autor insistirá na frase seguinte:

Mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo que não se dá a todos.

Agrada-me salientar essa bela expressão de São Luís: “graça toda vitoriosa”.

Com efeito, há certas graças que o Espírito Santo concede aos homens, em geral graças de conversão, que trazem consigo a vitória na vida espiritual. Graças tão ricas, tão eficazes, alcançadas por meio de Maria Santíssima, que nos fazem sentir um desejo quase irresistível de progredir na virtude e de abraçar as vias da santidade de modo mais resoluto.

Certo, mesmo sob o influxo dessa graça poderemos conhecer eclipses, enfrentaremos toda espécie de ventanias, de tropeços, mas, afinal, aquela luz divina nunca se apagará inteiramente no nosso horizonte. E acabaremos por segui-la e por atingir nosso bom porto, conduzidos pela misericórdia de Nossa Senhora.

Prudência sobrenatural

Continua o santo autor:

Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai‑a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

É interessante analisarmos a razão pela qual São Luís Grignion se refere à “má ovelha”. A meu ver, uma razão de prudência sobrenatural, que se explica nesses termos: quando um grupo forma um todo homogêneo, a presença nesse conjunto de um elemento heterogêneo pode maculá-lo por inteiro.

Imaginemos, por exemplo, um lindo tecido sobre o qual cai uma gota de tinta. Diríamos: “o pano está manchado”. E estranharíamos se outro objetasse: “Não, desculpe-me, mas apenas um centímetro quadrado desse tecido está sujo; o resto está limpo”. Ora, um centímetro quadrado de mancha num tecido branco, implica em que todo ele está manchado. Se se deseja a alvura inteira do pano, é preciso remover a mancha.

Se aceitarmos a cruz, cumpriremos nossa missão

“Se alguém quiser vir comigo”, que tanto me humilhei e aniquilei, que me tornei mais semelhante a um verme, que a um homem;  comigo, que só vim ao mundo para abraçar a cruz, para colocá‑la no centro de meu coração, para amá‑la desde a minha juventude; para suspirar por ela durante a minha vida; para carregá‑la com alegria, preferindo‑a a todas as alegrias do céu e da terra, e que, enfim, só me contentei quando morri em seu divino abraço.

Eis um dos sublimes pensamentos de São Luís Grignion de Montfort, pois se refere à posição do homem perante a missão que ele recebeu de Deus; missão que sempre traz uma cruz, à qual deseja carregar. Aqui está, expressa em termos magníficos, a vocação do verdadeiro Amigo da Cruz.

Trata-se, portanto, de termos a compenetração de que viemos ao mundo, não para nos divertir nem para satisfazer caprichos. Viemos, antes de tudo, para cumprir nossa missão, o plano de Deus a respeito de cada um. E o desempenho dessa missão envolve o sofrimento que devemos abraçar, agarrarmo-nos a ele, sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos, mas tomá-lo por inteiro. Claro está, suplicando a Nossa Senhora que nos alcance de Deus as forças necessárias para beber o cálice das dores como Ela e seu Divino Filho o fizeram na Paixão, sem deixar escapar uma gota sequer. Seja o que for, por mais duro, mais difícil, mais enigmático e incompreensível aos nossos olhos, aceitarmos.

E não é apenas aceitar a cruz, mas nos adiantarmos e a agarrarmos, nos prendermos a ela, com todo o amor e toda a força de nossa alma. Amo minha missão e o sofrimento sacrossanto que ela traz consigo. O resto me importa menos ou não me importa nada. Quero a cada uma dessas gotas de sacrifício, com integridade de coração, sem me esquivar de nenhuma. Devo preferi-las “a todas as alegrias do céu e da terra”, e “amá-las desde a minha juventude”.

Outra expressão de extrema beleza. Na verdade, muitos podem dizer que desde a juventude, desde os albores da infância, sentiram o sopro da graça que lhes convidava para sua vocação. E se corresponderem, no momento de deixarem este mundo, poderão olhar para trás e dizer a Deus:

“Senhor meu Pai,  ao menos, de um modo ou doutro, amei a vocação que me destes desde o começo de minha vida. E esta não foi outra coisa senão procurar o cumprimento da missão que me confiastes. Agora morro nas vossas mãos e nas de Maria Santíssima; aquilo que me mandastes fazer, eu fiz. Dai‑me, pois, Senhor, o prêmio da vossa glória.”

É a missão realizada. Mas, missão aceita é, antes de tudo, a cruz aceita. Abraçada a cruz, está cumprida a missão. E é a graça de tomarmos a cruz que devemos pedir a Deus, de toda a alma e com toda a confiança, por meio de Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/7/1967)

 

O ideal de Cavalaria, plenitude do espírito católico – I

O principal elemento do ideal de Cavalaria é o alto sentido pelo qual o cavaleiro combate: a Santa Igreja Católica e a Civilização Cristã. Pelo senso católico o verdadeiro cavaleiro discerne a necessidade mais preeminente da Igreja e luta por ela. Um dos traços mais característicos do cavaleiro é o gosto pelo risco que o faz, por assim dizer, tocar em Deus.

 

A palavra “Cavalaria” traz consigo uma série de ressonâncias heroicas e brilhantes. Ao falar sobre ela temos a impressão de ouvir o tropel de vários cavalos que seguem garbosamente rumo à aventura e ao adversário.

Um homem que atingiu a sua plenitude

Por cima do cavalo, naturalmente, o cavaleiro. Nós o imaginamos um homem que realiza o seguinte estado de espírito: atira-se sobre desconhecidos, em direção à luta e aos riscos. Está encantado com o que faz, embora possa lhe ocorrer as piores coisas: ser ferido, morto, ficar estropiado a vida inteira. Entretanto, vai alegre para essa aventura, porque deseja a vitória de um ideal e almeja ser cercado de uma grande glória. O cavaleiro nos parece, debaixo desse ponto de vista, o homem que atingiu a sua plenitude.

Há uma forma de admiração pelo cavaleiro que não se tem por todas as outras plenitudes que o homem possa realizar. Por exemplo, a plenitude da sabedoria de quem alcança uma grande ciência, do senso diplomático, do tato político, do gosto artístico ou da oratória. Nenhuma dessas plenitudes parece ter importância quando as comparamos com a do cavaleiro que parte para a Cruzada tendo marcado o peito com uma cruz, a cabeça protegida pelo elmo de metal prateado e encimado por um penacho, portando o escudo e cingindo a espada, e sobre quem bate o Sol enquanto ele avança para a luta. Este parece realizar a plenitude humana de um modo insuperável!

O ideal da Cavalaria: a Igreja Católica

Poderíamos nos perguntar o que há de tão extraordinário no ideal de Cavalaria para entusiasmar tantos homens ao longo da História. Ainda hoje, quando se quer fazer o elogio de alguém, afirmar que é um homem completo, no sentido mais nobre da palavra, diz-se ser um perfeito cavaleiro. Ou seja, ele é ao mesmo tempo corajoso e cortês, condescendente, amável, cheio de bondade, mas valente, audacioso e seguro de si.

Poder-se-ia dizer que a noção de Cavalaria está para nós como o penacho para o elmo de um cavaleiro. O elmo pode ser o mais bonito, mas sem o penacho flutuando ao vento ele não realiza toda a sua beleza. Assim, também, todos os nossos ideais podem ser comparados a um elmo. Entretanto, o penacho é o ideal do cavaleiro.

O que é, precisamente, o ideal de Cavalaria? Seu principal elemento é o alto sentido pelo qual o cavaleiro combate. Ele é antes de tudo um católico apostólico romano, vive para a causa da Igreja e quer que ela vença.

Porém, não se trata de um querer sob qualquer aspecto. Não é, por exemplo, como um missionário, um pregador, um indivíduo que se preocupe com a arte sacra. Todas essas coisas são excelentes para a causa da Igreja, mas o cavaleiro é aquele que considera a maior das necessidades dela no presente momento e a atende.

Assim, no tempo das Cruzadas, vemos que a luta contra os maometanos constituía uma necessidade primordial. De que valeria ter universidades, construir catedrais, castelos, fazer uma civilização esplêndida, se os maometanos entrassem e derrubassem tudo? Não teria adiantado de nada. Ou seja, as lutas contra os mouros era um ponto de importância tal que todo o resto dependia disso. Se nessa luta os católicos vencessem, tudo poderia se esperar; se não vencessem, tudo se perdia.

O cavaleiro é dotado de uma particular forma de senso católico que o leva a tratar da causa essencial, ir diretamente ao mais importante, ao mais exato e ali aplicar os seus recursos. É um homem que se dedica à salvação pública e ao que é supereminente dentro da causa católica.

O gosto pelo risco e pelo sacrifício

Outro elemento essencial dentro da Cavalaria é o gosto pelo risco. O cavaleiro luta por sua vida, mas não hesita em expô-la pela causa à qual serve. É o herói católico que vai de encontro à morte para defender a Igreja e a Civilização Cristã naquilo que ela mais precisa. Tem-se, assim, a ideia de Cavalaria inteiramente posta. Essa noção de gosto pelo risco, pelo sacrifício precisa ser especialmente acentuada, porque nela encontramos o traço mais característico do cavaleiro.

De si, o homem tem pânico do risco. O instinto de conservação e o bom senso levam-no a poupar-se. Qualquer pessoa colocada diante de um perigo tem medo e razoavelmente procura fugir. Alguém com muito heroísmo pode até enfrentar o adversário ou o perigo com resignação. Por exemplo, durante uma epidemia de meningite, cuidar de pessoas que contraíram essa doença contagiosa é um ato de coragem, porque a moléstia pode matar quem está tratando dos outros. Apesar disso, a pessoa pode ir resignadamente tratar dos atingidos pela meningite.

Um cavaleiro vai resignadamente para a guerra? Não. Mais do que uma resignação, ele tem euforia, alegria! Qual o fundo dessa euforia do cavaleiro com o risco? Como um perigo pode transformar-se numa alegria para um homem?

No fim da vida, todo ser humano deve deixar esta Terra e ir para o Céu

Todo homem sente em si a condição de criatura contingente e sabe que vai morrer. A morte é inerente à natureza humana, assim como respirar, comer, dormir. O homem precisa morrer, e nisto há um ditame da Sabedoria Divina. Por natureza, Adão e Eva eram mortais. Deus concedeu-lhes a graça da imortalidade por um dom gratuito. Quando, em punição pelo pecado, o Criador retirou deles esse dom, passaram a estar sujeitos à morte. O primeiro homem que morreu foi Abel, assassinado por Caim. Depois, os outros começaram a morrer por doenças, acidentes e por tudo quanto morrem os homens.

Se Adão e Eva não tivessem pecado, como teria sido o fim da vida deles? Teria sido, ao pé da letra, uma apoteose, uma glorificação. Eles iriam subindo de virtude em virtude, e quando tivessem alcançado perfeição para a qual foram criados, Deus os chamaria a Si para o Céu, e eles se elevariam aos olhos de todos os descendentes numa festa paradisíaca extraordinária, e passariam do Paraíso terreno para o celeste.

Podemos imaginar essa apoteose da seguinte maneira: Adão, por exemplo, com novecentos anos, tendo chegado ao ápice de sua virtude, iria se tornando cada vez mais luminoso, elevado, mais unido a Deus que, em determinado momento, o avisaria: “Tu, agora, vais deixar o mundo.” Adão convocaria todo o gênero humano em torno dele, centenas ou milhares de descendentes que povoariam o Paraíso. Então, do alto de uma montanha, começaria a subir lentamente. Os homens glorificando-o e ao mesmo tempo ouvindo cantos dos Anjos descendo para chamá-lo até Deus. Assim o primeiro homem subiria até o Céu. Seria uma verdadeira maravilha.

Entretanto, mesmo sem morrer, Adão teria de deixar esta Terra e tudo quanto é dela, e ir para o Céu.

Glória: o efeito que se volta para a própria causa

Que princípio está por detrás disto? Como explica São Tomás de Aquino, o movimento perfeito é aquele cujo ponto terminal volta à própria causa. Assim, a criatura atinge sua perfeição quando, percorrendo todo o seu périplo, retorna à Causa que a produziu. Nesta volta do efeito à sua própria causa encontra-se a definição de glória.

Por exemplo, uma bela escultura é a expressão do talento do escultor, e nisso há uma glória, porque aquela obra, a seu modo, louva quem a fez. Isso se dá com ainda mais propriedade nas criaturas racionais. Assim, também o homem criado por Deus deve voltar a Ele para glorificá-Lo.

Por este princípio, se Deus não tivesse dado a imortalidade a Adão no Paraíso e, sem ter pecado, ele tivesse de morrer, ainda assim seria muito bonito. Debaixo de certo ponto de vista, talvez tivesse uma beleza maior, apesar do lado sinistro da morte. Seria a bela atitude do homem que, terminada sua trajetória na Terra, compreende que precisa passar por uma destruição, isto é, a separação entre alma e o corpo, e por esse meio dar glória a Deus. Ele imerge nessa destruição por um ato de adoração e diz: “Ó Deus, sois tão perfeito, tão celeste, numa palavra só, tão divino, que quero me unir a Vós, mesmo tendo de passar por esse vale profundo. Já que me criastes, mereceis a minha destruição. Eu a aceito em louvor a Vós, meu Criador! Sei que sobreviverei à minha própria destruição e ressuscitarei, e me unirei a Vós por toda a eternidade.”

Há, portanto, uma espécie de gosto nessa destruição que é o voltar para nossa Causa e dar glória a Ela, compreendendo a sublimidade desse ato pelo qual o homem, por amor e para a glória de Deus, aceita ser destruído. E, no ato de destruição, ele é como que assumido, colhido e levado por Deus.

Por pior e mais triste que seja, a morte do homem em estado de graça é uma coisa sublime. Podemos imaginar tudo: a saúde que vai se retirando, os sentidos desaparecem, os suores finais, a última agonia… Morreu, a alma é colhida por Deus e levada ao Céu. Há o fim espetacularmente belo, embora o meio para chegar a ele seja tremendo. Mas o homem que tem Fé conhece a beleza desse fim e imerge na morte com decisão.

A morte é o mais belo lance da vida

Eu conheço a morte de uma senhora que foi assim. Ela estava extremamente idosa, o estado de saúde dela por um fio, movimentos indecisos. Quando ela sentiu que a hora da morte se aproximava, fez o Nome do Padre com toda a decisão de uma pessoa sadia. Morreu, Deus colheu a sua alma.

Aceitar essa separação, compreendendo que é uma sublimação e uma elevação para o Céu, há nisto um ato de adoração a Deus e de plenitude do homem que faz da morte o mais belo lance da vida. Então, mais belo do que viver é morrer. A morte é o ápice. É isto que está no alto da noção de Cavalaria.

O cavaleiro que caminha a todo tropel rumo ao adversário para libertar o Santo Sepulcro sabe que pode ser morto, mas compreende que ele atinge a sua finalidade morrendo em holocausto a esse Deus que lhe deu a vida. Assim ele é colhido por Ele, entra na glória e se une a Deus por toda a eternidade.

A beleza desse salto no escuro e no desconhecido para encontrar do outro lado a luz eterna, a lógica e a clareza de entendimento com que a pessoa se atira têm uma força que é a mais bela ação do homem na vida. Essa alegria do homem no morrer e, portanto, no risco é propriamente o que dá dignidade à Cavalaria.

Um cruzado paraquedista que luta e se imola por Deus

Quando o homem sabe que está correndo risco com esta finalidade, o perigo é como que raspar pela Divindade, sentir-se envolto já em Deus por todos os lados para eventualmente ser colhido por Ele de qualquer forma e a qualquer momento. Eis o modo pelo qual o homem se eleva acima de todo o contingente e transitório, e compreende que a única coisa válida é Deus e aquilo que é eterno. Esse estado de espírito é de uma altura, uma pureza, uma nobreza que não se compara com nada.

Pode-se entender, por estas considerações, a beleza do que seria um paraquedista cruzado em nosso século. Abre-se a porta do avião, vinte homens pulam no vácuo. O paraquedista fica esperando o paraquedas abrir – há casos em que não abre –, e vai descendo para o abismo. Por baixo, veem-se os tiros de metralhadora e os jatos de luz para focalizá-lo e matá-lo. Ele está sobre um fio e a morte o cerca, assim como o vento, com aquele ar muito puro das alturas, o inunda por todos os lados. Nesse momento ele sente que está em contato com Deus, quase raspando n’Ele.

A beleza fundamental disso está nessa espécie de “vizinhança” de Deus, que quase o colhe, e o paraquedista vai dizendo: “Sim, sim, sim!” Ele sabe que está realizando dois atos sublimes: lutando e imolando-se por Deus. Esse herói é uma vítima nas mãos do Criador. Do alto do Céu os Anjos acompanham os movimentos da luta e do corpo dele, vão sorrindo e cantando, dando glória a Deus pela decisão que esse valente tem de aceitar a morte. Se morrer, ele é levado para o alto; se não morrer, ele como que já transpôs os umbrais da vida e poderá dizer para os seus descendentes: “Meninos, eu já estive perto da morte!” Isso tem uma majestade! Equivale a dizer: “Eu estive perto de Deus!”

De outro lado, há uma beleza especial nesse correr o risco: às vezes a pessoa pressente que Deus não quer que ela morra. Ela quereria, estaria disposta a ceder a sua vida, mas como não é a vontade divina, ela mesma sente aquela espécie de confiança de que, em meio a mil perigos, Deus vai protegê-la. Este misto de risco e proteção, este sentido de que a pessoa está nas mãos de Deus e de que Ele a ajuda é ainda uma forma de tocar no Criador.

Tanto no perigo quanto na morte toca-se em Deus. Entretanto, no primeiro “raspamos”, como que tocamos com a mão n’Ele, sem entrar definitivamente em seu seio. Mas, de qualquer forma, para o verdadeiro católico o risco e a morte são meios de nossa alma se elevar esplendidamente a Deus. São estados de alma de grande união com Ele. Aí está exatamente a beleza do risco e da morte.      v

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1974)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)