Molduras que cantam

A arte de compor jardins com uma vegetação viçosa junto a edifícios antigos e veneráveis constitui um cântico à eternidade de Deus e à glória imperecível da Santíssima Virgem Maria.

 

Tenho visto muitas coisas bonitas, antigas, nas quais sempre me chamou a atenção um particular: a parte que diz respeito aos jardins.

O ajardinamento constitui uma moldura dentro da qual os acontecimentos se passam. E eu, embora não entenda nada de plantas, tenho alguma prática em fazer comentários a respeito de ambientes e costumes.

Debaixo desse ponto de vista, procurarei explicar o papel da vegetação para a ambientação, não somente de um prédio, mas também dos que nele moram. O que é a arte do ajardinamento?

“Fugindo” para os jardins de Versailles

Não posso me esquecer do verdadeiro encanto que senti quando, pela primeira vez, tive uma fotografia global do palácio de Versailles. Era uma espécie de fotografia aérea que dava uma vista panorâmica do jardim.

Lembro-me de que eu tinha um cartão representando essa cena, na minha carteira no Colégio São Luís. E nas longas horas em que estava obrigado a estudar coisas interessantes, mas também outras desinteressantes, um dos modos de “fugir” era suspender o tampo da minha escrivaninha e ficar olhando a fotografia dos jardins de Versailles, as alamedas, etc. Eu ficava encantadíssimo com o jardim!

Diversas formas de beleza em um jardim

Sempre me atraiu a atenção o fato de que quando há um palácio ou uma igreja, e em torno um jardim, existe um elemento inerte, que é o edifício, e um elemento mutável constituído pelo próprio jardim. Este vai sofrendo transformações ao longo das várias estações do ano, é alterável de acordo com o que nele se planta, enfim, muda enormemente.

Como todo prédio dura muito mais do que a vegetação que o circunda, as plantas tendem a envelhecer em torno do edifício, e por causa disso este tem a sua velhice própria agravada pelo envelhecimento da vegetação. Um prédio se cobre, então, de altas árvores cheias de sombras — às vezes estas árvores trazem no tronco a cicatriz de longas idades heroicamente atravessadas — e o tornam mais digno. Mas é uma dignidade que se soma a outra dignidade; uma velhice que se soma a outra velhice; uma penumbra que se acrescenta à moldura de outra.

O cântico da soma das idades

Ora, a teoria da soma das idades pediria que o prédio e o jardim apresentassem todas as idades e, ao lado de uma veneranda ancianidade, mostrassem o esplendor de uma juventude repleta de viço.

Compreende-se que haja um jardim só com elementos velhos, como determinados jardins de palácios italianos em que, por um inteligente descuido, as árvores até apodrecem e caem, as águas estagnam e surgem mosquitos… Isso tem uma grandeza do passado, uma coisa fenomenal!

Entretanto, causava-me certa má impressão ver sempre o passado circundado de coisas que falavam de morte. E me parecia necessário que algumas formas de vegetação cercassem os prédios magníficos e antigos de todo o viço da coisa nova.

Nesse sentido há determinadas plantas encantadoras que têm ar de coisa sempre jovem, cujas folhas parecem estar na sua primeira alegria, saudando os primeiros raios do Sol.

A visão desse contraste sugere-me a seguinte ideia: Como é bonito plantar, ao lado de monumentos veneráveis e antigos, vegetações novas e cheias de viço! Como é belo que as idades, as forças se somem e que todos juntos cantem a eternidade de Deus e a glória imperecível de Nossa Senhora!

Assim devem ser as coisas, pensava eu, e então concluí: Se algum dia me for dado dispor sobre a ordenação de algum grande jardim de palácio, igreja ou praça pública, farei com que haja, junto ao antigo — conservado na força convicta, desinibida e afirmativa de sua continuidade —, algo de novo que fale de uma vida que emerge com pujança no momento mesmo de seu nascimento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/3/1980)

O verdadeiro conceito de liberdade

Para muitas pessoas, a liberdade consiste em fazer tudo quanto seja agradável. Porém, a verdadeira liberdade incide na faculdade de escolher entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal.

 

Estando diante de um auditório com grande número de jovens, parece-me oportuno tratar de um tema que interessa a todos.

Por toda parte ouve-se falar de liberdade. A Revolução Francesa teve um lema intitulado: “liberdade, igualdade, fraternidade”. Os revolucionários entendiam que os três maiores bens na vida do homem eram: ser livre, liberdade; não ter ninguém acima nem abaixo de si, igualdade; e todos os homens conviverem entre si como irmãos, fraternidade. Então, liberdade, igualdade e fraternidade eram o supremo bem.

Segundo eles, a liberdade e a igualdade produziam a fraternidade. Desde que os homens fossem inteiramente livres de fazer tudo quanto quisessem, fossem totalmente iguais — não houvesse nenhum superior nem inferior —, eles se sentiriam completamente irmãos. Então, a fraternidade seria uma flor nascida dessa dupla semente da liberdade e da igualdade.

Tenho certeza de que desde o tempo da Revolução Francesa, portanto a partir de 1789, a humanidade mais ou menos viveu com essa ilusão de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade eram três princípios que orientariam a vida humana e que dariam aos homens a felicidade nesta Terra. Assim se compreende que haja estátuas levantadas em honra da liberdade, por exemplo, a famosa situada na entrada de um rio em Nova York, que foi mandada de presente pela França para os Estados Unidos, a fim de celebrarem o fato de que ambos os países eram, ou pretendiam ser, construídos sobre a base do tríplice princípio da liberdade, igualdade, fraternidade.

“Hippismo” e o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”

A afirmação mais moderna desses princípios encontra-se no “hippismo”.

Considerada a vida dos hippies naquilo em que ela se diferencia da existência de um rapaz que anda pela rua, tem um emprego e leva uma vida comum, a grande diferença é exatamente a liberdade.

O hippie perambula de um lado para outro e faz o que quer. Ele não tem residência nem obrigação fixa; não possui vínculo fixo com ninguém. Não se casa, também não se divorcia. Mesmo quando esteja casado, ele abandona a mulher quando quiser; muitas vezes, nem mesmo tem uma mulher fixa.

A fim de ter o mínimo para viver, o hippie exerce um trabalhinho qualquer; não tem o intuito de constituir um capital para adquirir uma casa boa, um automóvel e organizar a sua vida. Por quê? No fundo, ele tem a ideia de que essas coisas lhe tiram a liberdade; e ele quer perambular o dia inteiro de um lado para outro, fazer o que entende, viver solto numa cidade, mais ou menos como um índio vive na floresta.

O que pode distinguir, por exemplo, um índio que vive na floresta, de um aldeamento de gente civilizada dentro da floresta? É que os civilizados se estabelecem, logo dividem aquela área em residências; estas têm proprietários; normalmente eles se casam, constituem família, em relação à qual, quer dizer, àquela mulher, àqueles filhos, todos têm obrigações uns com os outros, se entreajudam e por causa disso têm condições de realizar uma vida normal, progredirem etc. Eles têm necessidade de um afeto, de uma amizade estável, enquanto os hippies não sentem necessidade de nada disso e vagueiam de um lado para outro como os animais.

Mesmo entre os animais podemos distinguir os gregários e os não gregários. Os primeiros formam grupos, vivem em bandos; os que não são gregários vivem sozinhos.

O hippie não aprecia o raciocínio. Para ele, o raciocinar é algo que tolhe um pouco a liberdade. Gosta de imaginar, de vagabundear pela imaginação como os passos materiais dele vagabundeiam pela cidade.

E, com aquele resíduo mínimo de lógica que existe na cabeça de todo homem, ele se sente livre e acha que os outros são comprometidos, amarrados, algemados.

De outro lado, os hippies se sentem iguais, porque não acumulam dinheiro e entre eles ninguém quer exercer o mando. Os aqui presentes nunca ouviram a frase: “Fulano é o chefe de tal grupo de hippies.” Eles não têm chefe. Pode haver um grupo de hippies, que vivem 24, 48, 72 horas juntos, mas se dispersam “por dá cá aquela palha”; não têm nenhuma continuidade.

E nós, como católicos, devemos compreender por que esse modo de conceber a vida é oposto à Lei de Deus. O que há de sábio na Lei de Deus é o contrário do que existe de errado no princípio do “hippismo”, que é a liberdade, a igualdade e a fraternidade, entendidas de um modo ultrarradical, levado até as suas últimas consequências.

O nosso tema está, portanto, enunciado; vou agora começar a tratar dele.

Proibir o mal significa garantir a liberdade

Imaginemos um menino travesso de dez, onze, doze anos, que tenha o hábito de, acompanhado por mais três, quatro, cinco meninos, seus amigos ou irmãos, brincar com espadinhas feitas de taquara. E a brincadeira consiste em fingir que vai furar o olho do outro menino.

Um pai ou uma mãe vê essa brincadeira e a proíbe; recolhe todas as espadinhas de bambu e as entrega para a cozinheira queimá-las; o menino que for apanhado querendo brincar de furar o olho do outro, é punido.

Pergunta-se: O pai ou a mãe, proibindo o menino de brincar assim, exerceu um ato de tirania ou, pelo contrário, protegeu a liberdade da criança?

A resposta é: Essa brincadeira pode cegar um ou até mais de um menino, causando-lhes um desastre para a vida inteira. As crianças que brincam assim, o fazem por falta de entendimento; elas são vítimas de uma debilidade que há nessa idade, por onde não têm o raciocínio exato. Fazem uma brincadeira que é contrária ao verdadeiro interesse delas. E contrária à natureza delas, porque a natureza do homem consiste em ter dois olhos que funcionem bem; e quando não funcionam é preciso operar, dar um jeito qualquer.

Portanto, os pais garantem a liberdade da criança defendendo o direito dela não ser cega, de viver de acordo com sua natureza, e proibindo-a de fazer o que quer.

Mas, no fundo, é uma proibição na aparência; de fato, é uma garantia da liberdade. Numa idade extremamente jovem, a criança faz coisas que não são racionais, ela é vítima da tirania da falta de maturidade. Para defendê-la contra essa tirania, os pais obrigam-na a fazer uma coisa ou outra.

Dormindo sobre o parapeito de um terraço

Quando eu era menino, tinha uns oito ou nove anos, na minha casa havia um terraço dando para o jardim; era um local batido por ventos, agradável, uma construção em estilo antigo com uma colunata sobre a qual existia um parapeito largo.

Eu estava estudando nesse terraço, e via os tico-ticos, muito abundantes no jardim, que pousavam naquele parapeito, corriam e saíam voando. Às vezes eles abriam as asas e tomavam vento; e eu tinha loucura por tomar vento. Em certo momento, saíam voando, e eu ficava devorado por um secreto desejo de voar também.

Certo dia pensei o seguinte: “Bem, vou parar esse estudo — primeira coisa que eu não devia fazer; mas, sobretudo quando eu tinha que estudar Matemática, o convite era ardente a fim de cessar o estudo imediatamente — e deitar-me em cima do parapeito deste terraço para dormir; meu sono não será muito profundo, mas terei a sensação de um passarinho quando está aqui…”

Deitei-me. Não sei quanto tempo fiquei dormindo lá.

Para tirar-me desse local, do modo mais amável do mundo e sorrindo, sem me causar nenhum susto, Mamãe bateu levemente em mim; acordei e olhei para ela. Eu toda a vida tive uma atração enorme por Mamãe, ainda mais estando ela sorrindo; então, virei-me para o lado de dentro do terraço a fim de acariciá-la. E pensei que ela fosse me acariciar também. Mas não.

Ela me falou com uma seriedade que me deixou pasmo, dizendo que eu precisava prometer-lhe que nunca mais deveria fazer isso. E de fato nunca mais dormi no parapeito do terraço.

Dona Lucilia, fazendo isto, diminuiu a minha liberdade? Ou, pelo contrário, ela garantiu a minha liberdade contra a imbecilidade de minha idade?

Todos assim compreendem que proibir uma pessoa de fazer uma coisa que é contra o bom senso, contra a razão, é uma defesa da liberdade.

Policiais que impedem pessoas tentadas de se atirarem do alto das pontes

A vida é um vale de lágrimas, nela tudo é assim. Quando nas grandes cidades há rios muito grandes, constroem-se sobre eles pontes em geral bonitas, às vezes são verdadeiras obras-primas.

Sobretudo quando são pontes edificadas até o começo do século XX. E quando a ponte é bonita, há muita gente que fica parada sobre a mesma, olhando a água passar, as lanchas, canoas e outras embarcações.

Mas acontece que alguns têm a tentação de se jogar para baixo e se matar. Em São Paulo, por exemplo, algum indivíduo de vez em quando se lança do Viaduto do Chá. Está muito aborrecido, para num daqueles parapeitos feios do viaduto e começa a olhar para baixo; em certo momento, pensa: “Homem, se eu me jogasse, acabaria com essa vida…” E se joga.

Por causa disso, em alguns lugares, a polícia manda vigiar o pessoal que para sobre as pontes. E quando um começa a dar provas de que vai se jogar, os policiais têm a incumbência de ir correndo e agarrá-lo. Quando um policial agarra uma pessoa que vai se suicidar, ele limita a liberdade dela? Não! Ele assegura à pessoa a liberdade de viver, que, num momento de crise, foi ameaçada pela incapacidade de enfrentar as dificuldades da vida. Quer dizer, defende a pessoa contra movimentos errados, por onde ela agiria contra a sua própria natureza.

Então, na aparência o policial que agarrou o suicida limitou a liberdade deste; de fato, ele garantiu o direito do suicida viver, contra uma debilidade que está na natureza humana, ou seja, a de querer acabar com a própria vida por causa de certas circunstâncias — o que não é razoável, não é direito, não é sério.

A boa ordem da natureza

Chegamos assim ao seguinte princípio: Tudo quanto é conforme à boa ordem geral da natureza, tudo quanto é razoável o homem, em princípio, deve ser livre de fazer. Mas quando uma coisa não é razoável, é contrária à boa ordem da natureza — contrária à boa ordem da natureza dele, ou da natureza ambiente —, ele deve ser proibido de realizar.

Isso é uma defesa da liberdade dele e dos outros. Porque nunca existe a liberdade de um homem agir contra o seu próprio interesse. A liberdade consiste em que o homem proceda de acordo com o seu interesse. E que significa “seu interesse”? Não é o interesse do gatuno, de apropriar-se dos bens dos outros. Mas o interesse da natureza humana que há nele, que o leva, por exemplo, a trabalhar para ganhar dinheiro a fim de viver honestamente; isto é a boa ordem da natureza, dentro da qual o homem é livre. Quando é uma coisa contrária à boa ordem da natureza, ele não é livre; a liberdade para ele é um mal. E agarrá-lo, privá-lo dessa liberdade, é um bem.

Há povos que, por terem um conceito errado de liberdade — e nem possuem essa noção de ordem natural que acabei de expor —, descem tão baixo que fazem coisas verdadeiramente absurdas; e às vezes são povos muito civilizados.

Viúvas eram queimadas vivas…

A Índia, por exemplo. Até o século XIX, quando os ingleses tomaram conta desse país, havia o seguinte hábito. Ao morrer um marajá, quer dizer, um príncipe, ou um brâmane, isto é, um sacerdote — os sacerdotes em todas as ­religiões podem casar-se, exceto na Religião Católica — ou qualquer pessoa de alta categoria, a viúva devia ser queimada viva.

Então, nos funerais de um marajá, por exemplo, iam animais sagrados para serem queimados, servidores que tocavam músicas fúnebres, e em certo momento do cortejo surgia um carrinho todo enfeitado com matéria preciosa, digamos, revestido de ouro, com tecidos finos, cortinas abaixadas, pessoas na frente e atrás, tocando flautas. Às vezes havia carpideiras, ou seja, mulheres que ganham para chorar.

Quando um grande sacerdote, um pontífice, um príncipe, etc., morria, julgava-se que era bom dar a impressão de que foi muito chorado. Mas às vezes nos funerais ninguém chora. Então contratavam essas choradeiras para irem chorando; elas recebiam um tanto e voltavam para casa. E há pessoas que têm uma facilidade de chorar extraordinária!

No interior do carrinho vinha a esposa do príncipe falecido e, ao final do cortejo, ela era amarrada e lhe ateavam fogo.

Quando a Inglaterra se sentiu firme para poder mandar na Índia, ela proibiu esse rito. Fazendo essa proibição, a Inglaterra tirou a liberdade aos hindus de serem assim, ou libertou-os do mau hábito? Ela libertou os hindus do mau hábito.

Termino com mais um exemplo.

Rodelas colocadas nos beiços

Lembro-me, ainda em tempo de menino, do susto que tive, folheando uma revista; de repente vi uma fotografia de uma pessoa com a cabeça caracteristicamente rapada e com uma rodela metida no beiço inferior e outra no beiço superior. De tal modo que, para falar, ela movimentava essa espécie de castanhola, não tocada pelos dedos, mas pelos beiços.

Fiquei horrorizado e fui imediatamente pedir explicações aos mais velhos. Causou-me espanto o fato de que os mais velhos não pareciam horrorizados; porque todos eles já sabiam do que se tratava.

Eu disse, creio que ao meu pai:

— Olhe aqui que coisa horrorosa!

Ele, com toda a placidez:

— Ah, isso é lá na África!

Perguntei:

— Mas como? Na África não se proíbe isso?

— Hoje parece que já está proibido.

Continuei:

— Mas eles passam a vida inteira assim?

— Habituam-se. Quando a gente se habitua não tem nada.

Posteriormente eu soube que os colonizadores, ao chegarem naquelas regiões, acabaram com esse hábito. Eles privaram aquelas pessoas de um hábito legítimo? Não! Eles impediram um mau hábito, que era contrário à natureza.

Imaginemos que uma pessoa tivesse uma doença por onde ficasse com os beiços assim; ela pagaria qualquer valor para fazer uma operação, a fim de ficar com os lábios normais. Pois seria uma vergonha medonha sair à rua e começar a mexer uma beiçorra com essa forma; simplesmente um horror.

A autoridade pode ser comparada ao corrimão de uma escada

Portanto, está bem claro o princípio: Quando uma nação, um povo, um particular se deixa arrastar a um hábito contrário à sua própria natureza, ele sofreu a debilidade, a tirania do seu lado mau, que o leva a querer fazer coisas contrárias à sua própria natureza. Logo, a liberdade consiste em defendê-lo, proibindo-o de fazer aquele ato mau.

Eu comparo a autoridade que proíbe o indivíduo de trabalhar contra a sua própria natureza, ao corrimão de uma escada.

Ninguém vai dizer que o corrimão limita a liberdade do indivíduo, porque este tem vontade de andar na beiradinha da escada e não pode fazê-lo…

Percebemos assim o erro do liberalismo, que afirma o princípio pelo qual o indivíduo deve fazer tudo quanto é gostoso. E proibir uma pessoa de fazer uma coisa gostosa é atentar contra a liberdade dela.

Pelo contrário, o princípio de autoridade é aquele que protege a razão, a natureza humana. Quer dizer, leva o homem a agir de acordo com a sua natureza; e a razão nos manda agir de acordo com a nossa natureza.

Os dez Mandamentos e a ordem natural

Assim sendo, examinemos as leis mais sábias que há no mundo: os dez Mandamentos da Lei de Deus.

A respeito dos dez Mandamentos da Lei de Deus, Santo Agostinho enuncia um princípio muito bonito. Diz ele: “Imagine um país onde todo o mundo cumprisse os Mandamentos — naquela época os países eram pequenos reinos. O rei, os ministros, os generais, todo homem do povo cumprem os dez Mandamentos. As leis feitas pelo rei são perfeitas, porque estão de acordo com os dez Mandamentos, e a obediência que os súditos prestam a essas leis fazem com que o Estado ande eximiamente”.

Suponhamos uma família onde pai, mãe e filhos cumpram os dez Mandamentos: é a família perfeita. Os dez Mandamentos mandam agir de acordo com a natureza; por isso tudo é tão exímio. Deus é Autor da natureza, e todos os Mandamentos contêm um princípio de acordo com a ordem natural posta pelo Criador; por causa disso o cumprimento dos dez Mandamentos leva à perfeição.

Então, um país onde se ama a Deus sobre todas as coisas; não se toma o seu santo Nome em vão; respeitam-se os dias santificados; não se mata; não se rouba; honra-se pai e mãe; não se peca contra a castidade; não se deseja a mulher do próximo; não se cobiçam os bens alheios; um país onde todo mundo seja assim é necessariamente perfeito.

“Rock and roll” e minueto

E o “hippismo” é a negação mais categórica da razão, do bom senso, da ordem natural. O hippie proclama-se independente de Deus, das regras que todas as coisas devem seguir. Se num país todo mundo se torna hippie, a geração seguinte começa a ficar selvagem.

Uma coisa que indica bem isso é o “rock and roll”, a dança do hippie.

Façamos uma comparação do rock com o minueto.

O minueto é uma dança que se praticou até mais ou menos cem anos antes de começar a Revolução Francesa. Foi a mais nobre, a mais delicada e a mais bela das danças que existiu durante o “Ancien Régime”(1). Músicas delicadas e homens e senhoras faziam cumprimentos uns para os outros etc., formando figuras geométricas na sala, uma espécie de desenho animado; ficava uma verdadeira maravilha. Era o raciocínio quase geométrico inspirando a dança. Esse era o minueto.

E no rock não se dança, pula-se. O indivíduo sente umas golfadas por onde ele tem vontade de dar saltos de um lado para outro e pula. O raciocínio já está banido. Quem dança rock é escravo; o homem livre é capaz de compreender e dançar o minueto.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1987)

 

 

1) Período da História da França que precede a Revolução Francesa.

 

Por não aceitar a cruz o mundo apedreja o justo

Sempre desvelado formador de seus seguidores, em especial os mais jovens, Dr. Plinio se empenhava em lhes fazer compreender esta verdade que todo apóstolo deve ter em conta: a via da Cruz e  do sofrimento está em contradição com o espírito do mundo, o qual, por não aceitá-la, chega até a perseguir quem pratica o bem.

 

Há um ponto curioso em nosso apostolado, e de um modo geral na história da Igreja, que convém muito focalizar: o homem que se entrega à virtude, desejando progredir nas vias de Deus, é sujeito de vez em quando a movimentos de idiossincrasia ou de rejeição em relação àqueles mesmos que procuram levá-lo para o bem.

Ao considerarmos o fruto do trabalho de um apóstolo, será ingenuidade pensar que ele tomou contato com os que o seguem, abriu-lhes o caminho do Céu e, com toda a simplicidade, aceitaram o  convite que lhes foi feito, pondo-se a acompanhar os passos indicados, com amor, dedicação e fidelidade a quem lhes serve de guia.

Na realidade — e a vida dos Apóstolos é cheia de exemplos em sentido contrário — as coisas não ocorrem com essa singeleza, porque na alma humana existem movimentos contraditórios. E se é  verdade que em muitas ocasiões e circunstâncias somos levados a amar aqueles que nos servem de guia para a virtude, há também situações lamentáveis em que esses mesmos benfeitores são objeto de repulsa de nossa parte.

Por quê? Porque o caminho do bem é o caminho da cruz; o caminho da cruz é o caminho do sacrifício; o caminho do sacrifício é o caminho da dor. Ora, o caminho da dor não é aprazível… Se há  um homem que nos diz: “Adianta-se nessa direção! Sei que ir por ali dói, mas, depois, na ponta dessa trajetória está o Céu”, nós temos vontade de responder: “Bendito és tu que nos levas para o  Céu”. E logo em seguida somos tentados a acrescentar: “Que homem insuportável és tu que não encontras outro caminho para o Céu, a não ser pisando sobre espinhos!” É a miserável tendência do espírito humano.

A infidelidade dos Apóstolos na Paixão: o horror da cruz expulsou o amor

Isto se deu de um modo frisante nos Apóstolos com relação a Nosso Senhor.  O Divino Mestre os tratou como sabemos, deu-lhes a abundância de suas graças, manifestou aos olhos deles perfeições que até hoje encantam e entusiasmam a humanidade.

Mas a resposta dos Apóstolos foi a que todos também conhecemos pelas narrações do Evangelho. Tome-se, por exemplo, o discípulo bem-amado, incumbido pelos outros de fazer uma pergunta a  Nosso Senhor, e que foi erigido na qualidade de medianeiro de todos para discernir os arcanos de Deus. São João Evangelista, o primeiro homem que sentiu o pulsar do Coração de Jesus e,  portanto, o primeiro devoto — exceção feita de Nossa Senhora e eventualmente de São José — do Sagrado Coração, recebeu a prova de que o Divino Mestre era grato àquele pedido e ao modo  como era feito, isto é, pondo o ouvido sobre o peito d’Ele. Jesus respondeu: “Aquele a quem eu der o pão embebido no vinho, este é o traidor”. Mas, na hora da Paixão, São João Evangelista fugiu. Ele tinha dormido no momento em que devia estar acordado.

Quando Nosso Senhor repreendeu os Apóstolos por estarem imersos no sono, Ele não disse: “Com exceção de João Evangelista, por que dormis?” Ele pergunta a todos: “Por que dormis?!”  Lembra-o magnificamente o canto polifônico de Tomás Luís de Victoria: “Quid dormitis? Vel Judam non videtis quomodo non dormit, sed festinat tradere me?” — “Vós não vedes Judas que não  dorme, mas se apressa em me trair?!” O próprio discípulo amado estava nesse rol e dele não foi excluído.

Misteriosamente, São João aparece depois aos pés da cruz. Não se sabe em que instante nem de que modo ele se converteu, mas tudo me leva a supor que foi uma graça especial e personalíssima  obtida por Nossa Senhora. A Santíssima Virgem o terá visto passar por algum caminho e lhe disse: “João!”

Quando ele a ouviu pronunciar seu nome, todas as resistências más dele se dobraram, e o futuro Evangelista se transformou. Terá sido esta ou alguma outra graça do gênero. Talvez, por um  fenômeno de bilocação, Ela tenha aparecido e falado com ele num antro qualquer onde estaria escondido, e de algum modo tocou o seu coração. São hipóteses. Assim, vemos que São João Evangelista, apesar do grande amor que nutria por Nosso Senhor, de tê-Lo sempre seguido, em certo momento, quando percebeu como o Divino Mestre estava aterrado e compreendeu a avalanche que viria por cima dele, não resistiu ao espantalho da dor e da perseguição. Fugiu… O medo do sofrimento e o horror da cruz expulsaram  o amor. Só ficou o temor. E ele fugiu. O mesmo se deu com todo o resto do Colégio Apostólico.

Um israelita no qual não havia fraude prevaricou na hora da Paixão

Quando trato deste assunto, costumo comentar o fato impressionante de São Bartolomeu. Ele foi apresentado a Nosso Senhor,  que lhe demonstrou especial afeto e fez dele este elogio magnífico: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fraude”. Tome-se em consideração que o israelita era o cidadão do povo de Deus.

São Bartolomeu era, pois, um verdadeiro israelita, com algo a mais: não havia fraude nele… O louvor de Nosso Senhor é extraordinário. Jesus, tendo-o visto, disse-lhe certas palavras que revelavam sua omnisciência; São Bartolomeu compreendeu e confessou que Ele era verdadeiramente Deus. Chega, porém, a hora da Paixão, e São Bartolomeu dorme, foge, não está presente em  nenhum momento. Só se sabe dele que apareceu depois no Cenáculo. Nada mais.

A imprevidência, o pecado e a contrição de São Pedro

Percebe-se, assim, o mecanismo singular da vocação, do chamado e da torpeza na alma de homens insignes, que tinham dado provas não negligenciáveis de fidelidade.

Por exemplo, quando Nosso Senhor disse que sua carne é verdadeiramente comida e seu sangue verdadeiramente bebida, e muitos de seus discípulos horrorizados com essa afirmação se  retiraram, Ele se voltou para os Doze e perguntou: “Vós também não quereis me abandonar?” Como quem diz: “Se quiserdes, ide! Porque o que Eu tinha que dizer, Eu disse. Está feita a minha afirmação!”

Nessa hora, São Pedro teve aquela frase lindíssima: “Para onde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavras de vida eterna?” Mais tarde, Nosso Senhor lhe profetiza: “Antes que o galo cante, tu me  terás negado três vezes”. São Pedro, depois que Nosso Senhor foi preso, dirigiu-se àquele átrio onde estava acesa uma fogueira, “ut videre in finem”, para ver o que ia acontecer com o Mestre. De  espírito superficial, ele não se lembrou que deveria se acautelar, pois havia uma predição terrível de que ele renegaria, naquela noite, três vezes a Nosso Senhor! Ele se meteu dentro do perigo.

Ou seja, naquele momento, São Pedro revelou uma terrível imprevidência e uma grande superficialidade em não tomar a sério o que Nosso Senhor lhe havia dito. Sem embargo do que, Jesus teve  pena dele, e se conhece todo o resto. Até o fim dos seus dias São Pedro chorava, quando lhe voltava a lembrança desse episódio. E segundo piedosa tradição, seu rosto ficou marcado com o sulco das lágrimas que lhe corriam continuamente ao se recordar daquele divino olhar que o Redentor condescendera em lhe dirigir. Pode-se imaginar o que esse olhar queria dizer! Se nos fosse dado  ter um minuto de um olhar como aquele penetrando o nosso, estremeceríamos de reconhecimento, de confusão, de amor, de pedido de perdão…

Quanto tempo durou o olhar de Nosso Senhor para São Pedro? Como foi esta troca de olhares, a mais emocionante que houve na História dos olhares humanos, se excluirmos o primeiro olhar que  ossa Senhora trocou com o Menino Jesus quando Ele nasceu, e o último olhar entre Ela e Ele antes da morte na Cruz? Esses últimos são olhares pinaculares, que ficam acima de tudo quanto  se pode cogitar, mas depois, abaixo deles, é difícil imaginar que tivesse havido olhar mais comovedor do que esse para São Pedro.

Porém, antes desse olhar, colocado diante de Nosso Senhor que o atraía tanto, que o deslumbrava tanto, quanta infidelidade, quanta coisa irregular, quanta miséria — por que não dizer? — quanta  torpeza! Esse é o mecanismo miseravelmente perigoso da alma e do coração humanos.

Nossos beneficiados nos apedrejam, porque não querem aceitar a cruz

E todos nós que desejamos levar outros a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo, devemos esperar essas resistências, essas grosserias de alma, essas recusas, esses  apedrejamentos vindos da parte de quem beneficiamos. E devemos esperar como algo muito provável, presente no caminho daqueles que querem conduzir almas a Deus. Pois aqueles a quem  fazemos bem, esses normalmente — salvo exceções raríssimas — nos apedrejarão, falarão mal de nós, objetarão nossas palavras, etc.

Por quê? Porque sentem a atração do Céu para o qual os convidamos, mas sentem também o convite da cruz. E diante deste chamado, sentem repulsa: “Eu terei que fazer tal coisa, terei de aceitar  tal outra, terei de me conformar com tal situação! Esse homem quer isso de mim! Não haverá um meio mais simples de arranjar isso? Será que eu tenho de pagar todo esse preço?! Dizem-me: ‘Ele tem o direito de te exigir esse preço, porque ele mesmo o  pagou’. Minha resposta é: que tenho eu lá a ver com o preço que ele pagou?! Ele quis pagar, pagou! Eu não tenho força para pagar e não pago! E me ponho contra ele, faço-me inimigo dele!”

imprevidência, o pecado e a contrição de São Pedro

Quantas vezes na história do apostolado católico vemos amizades se transformarem em indiferenças brutais, em hostilidades declaradas, em sistemáticas oposições, às quais cumpre responder como Nosso Senhor respondeu aos seus inimigos quando carregava a cruz: com mansidão, com paciência, sem um momento de cólera, oferecendo os seus sofrimentos por aqueles mesmos que O  injuriavam e O traíam.

Pode-se imaginar, durante a Via Sacra, quantas vezes Nosso Senhor pensou nos Apóstolos que não estavam lá? E quantas vezes Ele terá oferecido a dor pungente que Lhe causava a ausência dos  preferidos? E como Ele, pela voz da graça, pedia a Nossa Senhora, pedia a todas as almas fiéis, às Santas Mulheres que estavam ao pé da cruz, se unissem às orações d’Ele para que aqueles se convertessem?  Imitemos, pois, o nosso divino modelo, e saibamos converter em outro precioso fruto de apostolado, as rejeições e indiferenças de que sejamos objeto.

Esses cânticos de pedra…

Elas povoaram a Europa medieval, ocupando vales e altos de montanhas. Estabeleciam seus muros vigorosos com a mesma solidez do ideal religioso que as idealizara. Erguiam seus tetos e torres  para o céu, como impulsionados pelo mesmo “élan” com que desejavam o Paraíso eterno aquelas almas a viverem entre suas longas colunatas de pedra, seus claustros acolhedores, suas imponentes abóbodas, seus esplendores impregnados de paz e contemplação.

Delas evolavam-se cânticos e preces, ou a misteriosa voz do silêncio, ele também transformado em contínua oração a subir até os tronos de Jesus e de Maria. Em torno ou ao pé delas, como filhos protegidos pela mãe, aglutinaram-se vilas e cidades, que assim cresceram à luz e à sombra dos grandes edifícios consagrados ao serviço de Deus. Sim, o monacato sincero, vivido com profundidade, fez das abadias verdadeiras obras-primas, não apenas geradoras de toda espécie de manifestação de arte, mas, sobretudo, difusoras daquele espírito que levaria a civilização cristã aos seus mais rutilantes dias de glória.

Abadias-fortaleza, abadias-castelo, abadias-sacrário, abadias heroicas, por cima das quais os Anjos pairam e a Virgem Santíssima aparece. Abadias magníficas, cercadas de um cerimonial faustoso, onde, sob as coruscações de lindos vitrais, reluzem os objetos mais preciosos e o culto divino se desenrola com toda a pompa que lhe é devida.

E quando alguns monges, julgando excessiva a riqueza de seus adornos, resolveram emprestar-lhes feições  mais austeras, ainda assim — como todos os frutos engendrados pela Santa Igreja — as abadias se revestiram de particular beleza. Se já não havia a opulência do ouro e da prata, nem a exuberante policromia dos vitrais, tinha-se a singeleza que desprende as almas da Terra para as elevar às pulcritudes da bem-aventurança eterna; concebera-se a simplicidade opalina dos vidros que vieram se aconchegar, humildes e alegres, nos vazios das janelas românicas, das ogivas e das rosáceas.

E tudo isso, aos olhos do espírito católico, é igualmente digno de enlevo e admiração. De muitas, restam apenas gloriosos vestígios que se obstinam contra as voragens do tempo e a indiferença dos homens. Muitas outras ainda sobrevivem, perpetuando neste mundo a afirmação do que pôde o “élan” de almas  santas, amorosas do sublime, e a ousadia de corações que suspiravam pelas  maravilhas do Céu. Seja como for, conservam um papel perene na vida da Igreja, irradiando um perfume do qual, por desígnio divino, nunca se deve privar a Esposa Mística de Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

A borboleta, o pavão e o cisne

Quantas maravilhas Deus criou no universo! Ao observá-las, o homem deve procurar entender não apenas suas razões funcionais, mas seus sentidos mais elevados, como fazia Dr. Plinio. Pessoa altamente contemplativa, tudo quanto caia sob seus olhos ele relacionava com o Criador.

 

Quando era criança, eu corria atrás de borboletas, encantadíssimo! Há borboletas com um tipo de voo do qual gosto muito: flutuam, brincam com o ar. Sem saber, servem de deleite para outros; e embora não tenham um pingo de faceirice, se fossem faceiras, mexeriam as asas e voariam daquele jeito, para serem mais admiradas. É uma coisa bonita de ver.

O azul luminoso

Em minha opinião, uma das mais belas cores é o azul luminoso, esplendoroso, mas discreto das asas das borboletas. Dir-se-ia que a luz está dentro dessa cor. Ao se movimentarem as asas, o azul desaparece e surge o prateado. É propriamente um furta-cor, ou seja, um roubo de cor, uma cor rouba a outra. A meu ver, isso produz um efeito ocular muito bonito, fantástico! Quase se diria que um inseto como esse não poderia existir.

Isso me faz lembrar uma frase de Nosso Senhor, a propósito dos lírios do campo. Ele ensinou que não devemos nos preocupar com as coisas desta Terra além do limite necessário, porque a Providência vela sobre nós. E, então, disse o Redentor: “Olhai como crescem os lírios do campo! Não trabalham, nem fiam. No entanto, Eu vos digo, nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só deles”(1).

Sem dúvida, se víssemos uma pessoa vestida com uma roupa feita de pétalas de lírio, ficaríamos maravilhados! Não existe um tecido como esse, assim como não há um tecido como as asas de uma borboleta.

Um manto real esplêndido

Outras duas belezas da Criação são o cisne e o pavão.

Poder-se-ia dizer que a cauda do pavão é um manto real absolutamente esplêndido e muito bem cortado. Há no pavão uma evidente nobreza, e uma beleza admirável das plumas da cauda, no furta-cor azul e verde das penas, no jeito, na anatomia — por assim dizer — do pescoço dele. Nessa ave tudo é grande, exceto a cabeça, mas esta constitui o centro pequeno e vivo que dá movimentação a todo o resto, enquanto cabe a um ser irracional.

O modo de um pavão se mover é como o de uma rainha. Ele anda com um estilo nobre, calmo, não se assusta com nada; quando corre, fá-lo com uma certa dignidade; e quando para, não fica ofegante, mas com compostura. Cessado o perigo, ele volta à contemplação, não tanto de si mesmo, mas do “pulchrum” formado por ele e pelo que o rodeia.

Quando o pavão abre a roda, prestem atenção no pescoço dele e nos ares que toma; ares de superioridade, como quem diz: “Eu sou dono desta roda magnífica atrás de mim; mas não é apenas uma exposição de penas que levo comigo; sou superior; olhem a minha marcha e o meu pescoço todo feito de ‘joias’! Olhem a posição de minha cabeça! Considerem o meu olhar, o meu bico… Eu sou o pavão!”

O rei da água

Outra expressão do belo é o cisne, entretanto tão menos ornado do que o pavão. Enquanto o pavão tem aquela sua “joalheria”, sendo uma das aves mais belas criadas por Deus, o cisne, não. Ele é de uma cor só: branco ou, então, simplesmente preto. Mas observem o seu jeito de deslizar sobre as águas. Quando quer mover-se um pouco, o cisne faz um leve movimento com as patas por debaixo da água e desliza suavemente. Tem-se a impressão de que ele se contempla nas águas, e que estas ficam contentes de refleti-lo.

Ao confrontar o cisne com o pavão, nota-se serem ambos insignes pela beleza: um pela pulcritude simples e elegante, e o outro pela beleza ornada e majestosa. São duas formas de beleza, levadas pelo Criador a uma perfeição que nos deixa pasmos!

O cisne tem tanta placidez, tal domínio da natureza líquida, onde se move com tanta facilidade, que parece ser o rei da água. E a massa líquida parece feita para adornar e manifestar a beleza do cisne.

Quanta diversidade no cisne! Acima, a cabeça; depois, o pescoço elegantíssimo e o corpo um pouco volumoso. Se considerássemos só a cabeça e o pescoço, seria uma víbora elegante; se olhássemos somente para o corpo, seria um pato elegante. Mas como o cisne é superior ao pato e à víbora! Que harmonia maravilhosa no encontro entre o pescoço tão delicado e o corpo grosso — para o qual, entretanto, não falta elegância… — e ressaltado pelo branco magnífico, feito para brilhar à luz do Sol!

Deixar o prático-prático e contemplar

Uma das razões de ser dessas maravilhas é tirar o homem do prático-prático, fazendo-o compreender que as coisas não existem apenas por um motivo funcional, mas também por um sentido mais elevado.

Quando se tem o frescor da alma católica, sente-se gosto em permanecer vários minutos olhando para o cisne que singra as águas. Contemplando sem nenhum pensamento definido; mas quanta riqueza existe em muitos pensamentos indefinidos!

Vem-nos a impressão de que há algo de mais delicado, mais gracioso, mais digno, mais nobre do que nossa natureza humana considerada só em sua decadência. O que Nosso Senhor disse sobre Salomão e os lírios do campo, poderíamos aplicar ao cisne: Nenhum rei jamais teve glória tão bela como a do cisne!

Então, para além do homem existe algo mais alto: Deus, Nosso Senhor, ao Qual nos convidam os esplêndidos movimentos de alma que quadros como esses sugerem.

 

Plinio Corrêa de Oliveira [Extraído de diversas conferências(2)]

 

1) Mt 6, 28-29.

2) 14/1/1974, 10/6/1985, 9/9/1988, 16/9/1989 e 6/1/1992.

Como enfrentar a dor

Ao receber com alegria um pedido de seus discípulos para discorrer a respeito do amor à cruz, Dr. Plinio traça importantes diretrizes sobre como enfrentar, com Fé e entusiasmo, os sofrimentos inerentes à existência humana.

 

Nada eu desejava tanto quanto o momento em que filhos meus me pedissem o amor da cruz. Pois se nossa Obra é, de um lado, um instrumento para a conquista do Reino de Maria, de outro é uma semente desse Reino. E não tenho como autêntica essa semente, como sendo efetivamente uma semente, a não ser quando notar nela o amor à cruz.

Grandes alegrias e grandes sofrimentos

É compreensível, portanto, que ao ouvir esta semente me dizer: “Pai, para ser uma semente falta-me ainda o amor da cruz. Dai-me isto!”, eu solte um brado do fundo de minha alma!

Veio-me ao espírito o episódio ocorrido com Constantino, quando ele viu no céu aparecer uma cruz na qual estava escrita a frase “Neste sinal vencerás — In hoc signo vinces”, e pensei: “Ele não terá sentido talvez uma alegria tão viva, tão intensa, quanto sinto no momento em que ouço meus discípulos me pedirem isso”.

A cruz! O que devemos pensar a respeito dela? O que pensar sobre o sofrimento?

As épocas históricas na vida de um povo, de uma área de civilização ou, conforme o caso, na vida da humanidade inteira, são mais ou menos parecidas com as da vida de um homem.

A vida humana padrão, comum, abrange grandes alegrias e também grandes sofrimentos, que se alternam segundo uma ordem disposta pela sabedoria divina, dentro dos planos da providência geral que Deus tem para o comum dos homens, e da providência especial para aqueles que Ele chama, ama particularmente e, portanto, dá vocações especiais.

Remédios, condecorações, sinais de glória

Então as cruzes não entram apenas num aparente acaso do vaivém aparentemente cego dos acontecimentos da vida, mas elas vêm escolhidas como curativos, remédios, como condecorações, sinais de glória.

Uma por uma, elas são colocadas pela mão do Divino Pastor a rogos d’Aquela por meio de Quem nos vêm todas as graças e, portanto, todas as cruzes. Estas nos chegam em momentos nos quais muitas vezes nós não as entendemos, mas elas se apresentam e temos que suportá-las.

E, neste sentido, há épocas históricas nas quais as cruzes se apresentam para os homens fazendo com que eles sofram muito. De outro lado, existem outras eras históricas em que os homens sofrem menos. Há também épocas históricas em que a alma dos povos está mais sensível à dor, e outras eras históricas em que está menos sensível à dor.

O modo próprio de considerar o que é, ou não é, sofrimento na vida, o que alegra ou não alegra a existência, decorre dessas mutações do espírito humano que vão se dando ao longo da vida de um homem legitimamente; mas que se vão sucedendo também no decorrer da vida dos povos. E que variam no homem de acordo com as disposições do seu temperamento, mutáveis segundo os dias, as circunstâncias, a ocasião; mutáveis nos povos também conforme os dias, as circunstâncias e a ocasião.

O sofrimento é o preço da vitória

Nosso Senhor Jesus Cristo, do alto da Cruz, ofereceu um sacrifício misteriosamente superabundante. Na circuncisão Ele verteu algo do seu Sangue divino. Uma gota desse Sangue — isto é certeza de Fé — teria bastado para operar a Redenção. Mas, por desígnios d’Ele, esse Sangue foi derramado abundantemente ao longo da Paixão e no alto da Cruz.

E esse Sangue seria mais do que suficiente para remir o mundo, mas assim mesmo Ele quis de Nossa Senhora o sofrimento terrível pelo qual Ela passou ao pé da Cruz. De maneira tal que Maria Santíssima é chamada Corredentora do gênero humano. Ela teve tal participação na dor d’Ele, que aquilo compôs, por vontade de Nosso Senhor, o preço que Ele pagou.

Mas o Redentor quer que os católicos, até o fim do mundo, continuem a sofrer com Ele junto da Cruz. E que, quando os ímpios forem punidos, os católicos padeçam também, e muitas vezes sofram mais do que os ímpios e queiram esse sofrimento, porque com isso eles estão comprando a vitória.

A condição da vitória é o sofrimento. A luta tem uma grande significação para a vitória, em muito larga medida porque ela faz sofrer. Se não fizesse padecer, ela teria uma significação muito menor para a vitória. O sofrimento é o preço da vitória. E este sofrimento é tal que — tendo sido os homens resgatados pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, infinitamente precioso, e só pelo sangue d’Ele — sem embargo o Divino Salvador quer, para que isto seja inteiramente útil aos homens, que nós soframos juntos.

Um cálice resplandecente com o Sangue de Cristo

Então fica o sofrimento da Cruz, por assim dizer — a metáfora que vou indicar não é teologicamente muito correta — suspenso entre o céu e a Terra, com milhões de almas que o demônio vai tragando, e que Nossa Senhora está chamando com o seu sorriso, sua bondade, suas bênçãos; de um lado, os bons na Terra lutam por essas almas, e, de outro lado, o Inferno está avançando e conquistando.

Entre as duas cenas, imaginem suspenso num Céu maravilhoso apenas um cálice resplandecente, e dentro dele o precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; entre o mal tremendo e o remédio, é preciso que muitos homens saiam da multidão e bradem: “Senhor, caia sobre nós o vosso sofrimento, mas sobre o mundo o vosso Sangue redentor!”

Então, como que o cálice transborda, o Sangue precioso ferve, começa a extravasar e se derrama. Mas na Terra há homens que padecem cruelmente para que isto aconteça. Eles estão pagando o preço necessário para que desça esse Sangue redentor e divino.

Com o sofrimento isso acontece; sem sofrimento isso não acontece. Portanto, é preciso sofrer. E todo o entusiasmo que não conduza a esta resolução de sofrer, é vontade de festa, não de vitória; é desejo de desafogar contra o adversário nosso amor-próprio ferido, de se vingar porque ele nos fez mal, de limpar a Terra da presença abjeta dele, de cem coisas que consultam ao nosso egoísmo, não é vontade da vitória de Deus, Nosso Senhor.

A pessoa que possui vontade verdadeira da vitória d’Ele é aquela que pode dizer: “Ainda que um raio tenha que me torrar e liquidar, um incêndio me consumir, se este é o preço para que eu conquiste tudo o que deveria conquistar, eu quero!”

Não nos iludamos, o caminho, o preço, é este.

Vejo quanto Nossa Senhora visita vossas almas com consolação, com alegria, mas também com sofrimento. Percebo bem, nas ocasiões de provação, os pânicos, os desconcertos, a dor, as dificuldades.

Espero que, se encontrei um olhar sofredor, ele nunca tenha deixado de encontrar no meu olhar a consolação que eu lhe tenha querido dar. Mas é para ajudar a carregar a cruz, para exortar a que, em relação a esse sofrimento, ele seja varão, seja cristão católico! Quer dizer, meta o peito e diga: “Dor, tu és um gládio. Eu vou de encontro a ti até que o gládio me vare!”

Episódio do Horto das Oliveiras

Devemos compreender que a vida sem dor é uma espécie de “mula sem cabeça”, é a “mãe da natureza”, não tem sentido. No momento em que falta a dor, a cruz dentro do nosso panorama, é porque o panorama está mal visto.

Mas essa dor nós temos que entender como enfrentá-la!

Para compreendermos quais eram as disposições de Nosso Senhor Jesus Cristo, ao longo da sua Paixão, devemos prestar atenção nos Santos que o exemplo d’Ele foi suscitando ao longo da História. Tudo quanto eles sentiram diante de suas próprias dores, Nosso Senhor sentiu de um modo infinitamente mais perfeito, e foi assim que Ele enfrentou a Cruz.

Então, quando se toma o episódio adorável do Horto das Oliveiras — episódio que entre todos me toca, porque é a hora em que Nosso Senhor mediu o tamanho do cálice e disse “Eu quero!”, e fechou este trato com o Padre Eterno: “Meu Pai, se não há outro remédio, compro por esse preço esses filhos que Vós quereis que Eu resgate e que quero resgatar. Eu aceito!” —, percebe-se que havia em Jesus a grande dor clássica d’Aquele que o Antigo Testamento chamava “Vir dolorum”(1), o Varão de todas as dores, suando sangue no isolamento, durante a noite. E isto ocorreu enquanto a cidade dormitava à espera de acordar para o grande crime; e nas trevas da noite Judas e os outros deicidas já estavam com a trama feita, e começavam a procurá-Lo para matá-Lo.

Mas havia n’Ele o entusiasmo de Carlos Magno, o ímpeto dos Cruzados, o fogo de São Luís ou de São Fernando, ou do Bem-aventurado Nun’Álvares Pereira(2) e de todos os guerreiros cristãos de todas as épocas. E também a ênfase de todos os Doutores, de todos os apologistas, a severidade de todos os teólogos, as desconfianças de todas as inquisições equilibradas e santas, o ímpeto de ação de todos os missionários; tudo isso havia neste passo decidido com que Jesus tomou a Cruz e levou-A até o alto do Calvário!

Nesta Terra ninguém escapa da dor

Nós não interpretamos Nosso Senhor por inteiro se O vemos sentado, vestindo a túnica de bobo, com a coroa de irrisão na cabeça, e não pensamos que Ele carregou essa coroa com altivez muito maior do que Carlos Magno haveria de levar a sua.

Quer dizer, todos os belos atos de virtude praticados nas vastidões da História da Igreja até agora, e até o fim do mundo, encontram sua raiz naqueles fatos da vida de Jesus, Nosso Senhor. Recompondo esses atos de virtude e remontando até a raiz, compreendemos o que nesta havia. Mais ou menos como quem toma a raiz de uma planta: se não viu a flor nem o fruto que a planta dá, não conhece o conteúdo verdadeiro da raiz.

Ora, as frutas e as flores que Nosso Senhor deu foram essas, e não medita bem na Paixão d’Ele quem não é capaz de tomar a História da Igreja hoje e remontar para trás, até os dias de Nosso Senhor, e procurar no Sagrado Coração d’Ele todos esses aspectos que ali havia de um modo superexcelente.

Nesse sentido, todo o entusiasmo, todo o fogo de São Paulo, toda a firmeza de São Pedro depois de Pentecostes, todo o amor extático de São João, tudo, até as coisas mais recentes que estão acontecendo neste momento por amor a Ele, e que nós não sabemos, reproduzem uma aceitação da Cruz de Nosso Senhor, com um aspecto moral que a santíssima humanidade d’Ele tinha no momento que Ele sofreu.

A morte. O Céu está cheio de almas que passaram pela morte, a qual é sempre uma dor. É uma dor até para as criancinhas que morrem batizadas, sem consciência; no momento de morrer, elas sofrem — às vezes doenças crudelíssimas — e aparecem logo para receber, sem julgamento, a glória do Padre Eterno. Mas levam o seu contributo: elas sofreram. A vida é assim.

Certa vez, li numa revista francesa: “On entre, on crie: c’est la vie; on crie, on sort: c’est la mort — Entra-se e geme-se: é a vida que começa; geme-se e sai-se: é a morte”. Até as criancinhas entram com a sua moedinha de dor!

Fé e entusiasmo

Vemos, então, que vil sonegador de impostos é o tipo que faz o seguinte raciocínio: “Eu não quero sofrer porque é muito duro. Quero todo o resto. Mas como não posso sonegar todos os sofrimentos que tenho diante de mim, vou padecê-los mal sofridos, meio fraudulentamente, porque, no total, quero fazer parte da parada da vitória”.

Isso não tem sentido!

Na essência, o que é entusiasmo, convicção, Fé?

Fé é uma convicção adquirida em conformidade com as leis da razão, mas de fato incutida pela graça. Esta convicção deve ser tão forte, que o homem esteja disposto a morrer por ela. Porque o homem crê, e no momento em que ele creu lhe é dado o primeiro ato de amor, mas no primeiro ato de amor vem este pedido e esta exigência: morrer por Deus, se for necessário.

Amar a Deus sobre todas as coisas é isto; amar o Criador exceto em caso de morte não seria amá-Lo acima de tudo. Então, a Fé firme gera este amor à cruz, este desejo de pagar o tributo da cruz.

O que é o entusiasmo? É uma forma tal de amor, pelo qual a pessoa não aceita o sofrimento apenas com resignação, mas tem desejo de sofrer.

No que consiste esse desejo? Em pensar do seguinte modo: “Percebo que algo eu tenho que pagar, quero pagar, e terei vergonha por não fazê-lo. Mas vejo mais: há gente que não paga e a quem Nossa Senhora ama também e quer salvar. Compreendo que, se eu sofrer, concorro para a salvação daqueles que Ela quer salvar. Então, eu quero sofrer! Quero de um querer sobrenatural e varonil, católico, apostólico, romano!” É o ato de vontade fecundo que produz de fato o sacrifício.

O entusiasmo é filho da Fé e da razão, e está baseado na constância.

Pode acontecer que, vendo uma alma que Maria Santíssima quer salvar, eu note, pelas circunstâncias, que Ela quer tanto salvá-la que, provavelmente, quando eu tiver sofrido por ela e ela for resgatada, Nossa Senhora vai amá-la mais do que a mim. Vou ficar, portanto, num segundo plano na dileção d’Aquela por Quem eu dou tudo.

Um grão de areia que faz mover um imenso astro

Por exemplo, imaginemos alguém numa cidade do Império Romano do Ocidente, já evangelizado, que vê passar pelas ruas de Milão um jovem, roçando pela idade madura, com olhar de fogo, inteligentíssimo, deita os olhos sobre ele e percebe um chamado.

Esse jovem é um devasso, tem maus costumes, e frequenta um templo herético. É alguém que recusou todas as graças.

O observador olha e diz: “Entretanto, o chamado continua. Ele será um colosso se disser sim, mas para isso Nossa Senhora quer que alguém sofra. Minha Mãe, para que ele seja mais do que eu, Vos dê uma glória que não fui chamado a Vos dar, para que Vós o ameis mais do que a mim, e para que eu, no meu desinteresse, veja a vossa predileção por ele, ame a vossa predileção e vos glorifique, eu Vos dou o que sou, tão pouco e tão zero. Quem sabe se, desta gota que sou eu, Vós tirareis o necessário para converter este homem que se chama Agostinho, tem uma boa mãe chamada Mônica e nasceu em Cartago?”

Esse observador é talvez um homenzinho que está pedindo esmola à porta da igreja, ou um pobre escravo convertido, ou um medíocre atolado no arenal da pequena burguesia, que ninguém conhece e resolve aceitar uma coisa dessas.

Ele volta para casa, está se sentindo normalmente bem e de repente sofre um ataque cerebral. Começa a cavalgata das dores e a morte que vem.

Em certo momento, pouco antes de ele morrer, um Anjo lhe aparece e diz:

— Meu filho, julgas que sou teu Anjo da Guarda. Sou muito mais do que ele. A ti foi dado um Anjo servidor e vassalo meu; eu sou o suserano de teu Anjo da Guarda. Sou o Anjo da Guarda de Agostinho, por quem morres, porque homens como Agostinho são tutelados por Arcanjos e não por Anjos. Eu venho te dizer que Agostinho está se convertendo, ele terminará a conversão no momento em que tu expirares.

E o moribundo responde:

— Mônica gerou para a Terra Agostinho; e depois o gerou o para a santidade, pelas suas inumeráveis dores e tormentos. Faltava esta pequena nulidade para se acrescentar a tudo isso. Eu fui o pequeno grão de areia que pôs a mover esse astro imenso. Morro em paz. Magnificat por Agostinho!

É preciso levar o nosso desinteresse até lá! Se não, nada feito.

Então, devemos querer que os outros sejam mais santos do que nós, desde que sejamos tão santos quanto seja o desígnio de Deus a nosso respeito.

Se quisermos ser fortes, devemos rezar e receber a Sagrada Eucaristia

Há almas a quem Nossa Senhora pede: “Meu filho, tu és feito de tal maneira, tua constituição física, psicológica, o passado que carregas nas veias e tudo o mais são tais, que te é dado agora fazer um ato de vontade de aceitação — ou rejeição —, que marcará tua vida de modo decisivo. Diga “sim”, mas diga já, de boca cheia, de coração cheio, e durante toda a vida vá dizendo “sim” cada vez mais, porque um pouco que afrouxares diminuirá o brilho de teu “sim” final. De ti Eu quero que sejas como uma trombeta profética soando cada vez mais alto, implacável na exigência consigo mesmo, até que tenhas dado o último tom, e os céus e as terras se movam porque tu tocaste a tua trombeta certa”.

Pode haver almas assim, e elas devem ter uma generosidade total desde o primeiro momento. Mas há almas que não são assim, olham para si mesmas e dizem: “Compreendo que deveria fazer isso. Enquanto Dr. Plinio está falando, estou resolvido a tudo, mas eu me conheço. Depois, vou ser fraco. Tenho força para essa virtudezinha de todos os dias, mas para a grande virtude de um grande lance, quando é que eu vou ter força? E agora, o que fazer?”

Isso é assim com todo mundo. O homem mais fenomenal que pudéssemos imaginar, o mais perfeito… em certas circunstâncias lhe faltam as forças. Nenhum homem tem forças para cumprir duravelmente os Mandamentos na sua totalidade. E, portanto, ele precisa de uma força sobrenatural, com a qual ele pode tudo.

Se ele não rezar e não pedir é um derrotado, um espaventoso, um fanfarrão. Ele poderá até se fazer passar por um herói, mas não será verdadeiramente um herói aos olhos de Deus.

Portanto, é preciso ser humilde e reconhecer isto a respeito de si mesmo e dizer: “Eu tenho que pedir, pedir, pedir, até o momento em que efetivamente seja atendido”.

Pedir como, a quem?

As primeiras “Salve-Rainhas” que rezei aos pés de Nossa Senhora Auxiliadora(3) foram porque eu me sentia pavorosamente fraco. Fui fraquíssimo, debilíssimo, e eu pensava que “salve” queria dizer “salvai-me”; não sabia que era uma saudação. Então eu a rezava com esse sentido.

Muitíssimas vezes eu ainda rezo dando à palavra “salve” o mesmo sentido ingênuo e errado, mas que corresponde ao apelo de minha alma: “Salvai-me, Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança, nossa. Salvai- me agora, neste momento, nesta situação, nesta ocasião, deste modo. Salvai-me, eu vos peço, salvai-me!”

E Nossa Senhora nunca faltou.

Se quiserdes ser fortes, rezai a Salve-Rainha e alimentai-vos com o Pão dos fortes, do qual o maná não foi senão uma prefigura: a Sagrada Eucaristia.

Quem comunga e reza a Salve-Rainha torna-se forte, se desejar a fortaleza.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/9/1982)

 

1) Is 53, 3 (Vulgata).

2) Canonizado em 26/4/2009.

3) Ver Revista Dr. Plinio n. 1, p. 4-7; n. 100, p. 33-34.

A bandeira da vitória!

Ignorada por alguns, pouco comentada por outros, a história do Santo Sudário demonstra como no expirar do século XIX Deus outorgou à Santa Igreja um verdadeiro pendão da ressurreição de Cristo. A seguir, Dr. Plinio comenta o valor e o significado mais profundo deste impressionante milagre.

 

Devido ao fato de a história do Sudário de Turim ser pouco conhecida, não se dá a esta relíquia toda a veneração merecida.

 Os tesouros de outrora

Havia na Europa um pequeno ducado, chamado Sabóia, cuja capital era Turim. Os duques de Sabóia pertenciam a uma dinastia, senhora de dois Estados: Sabóia e Sardenha — uma ilha do Mediterrâneo — tinham os títulos de duques de Sabóia e reis da Sardenha.

Sendo esta uma época de Fé, nela considerava-se tesouro não apenas os metais e pedras preciosas, mas principalmente aquilo que os homens prezavam mais do que tudo: as relíquias! Entre as que pertenciam a esta casa real, figurava um longo tecido trazido para o Ocidente, o qual constava ser o Sudário, ou seja, o pano mortuário no qual o Corpo Sacrossanto de Nosso Senhor Jesus Cristo foi envolvido a fim ser colocado na sepultura, onde ficou até o momento glorioso em que, por um ato de sua vontade, ressuscitou dentre os mortos.

O Sudário será de fato autêntico?

Qual a prova de autenticidade do Sudário?

Os incrédulos levantavam inúmeras objeções quanto à autenticidade da relíquia.

Por mais que seu percurso até ao Ocidente fosse conhecido, como, entretanto, teria ela passado a fazer parte dos tesouros da casa dos imperadores do Oriente? De que modo o Sudário fora transferido dos Apóstolos para eles? Esteve de fato em poder dos Apóstolos?

Não havia provas, era uma tradição. A propensão legítima que possuíam os antigos para acreditar nas tradições, levou os imperadores de Constantinopla e os príncipes da Casa de Sabóia a prestar a devida homenagem e o devido culto ao Sudário, incorporando-o a seus tesouros.

Por determinação dos duques de Sabóia, o Santo Sudário foi colocado numa capela entre o Palácio Real e a Catedral de Turim, em um monumento de mármore, no interior de uma magnífica caixa. De fato, trata-se de uma tão preciosa relíquia que todo o ouro e toda a prata da Terra não seriam dignos de contê-la.

A fotografia revela a autenticidade do Sudário

No decorrer do século XIX surgiu a fotografia.

Pelo emprego de determinados sais de prata e diversos processos científicos, foi possível fixar sobre o papel diversas figuras das mais variadas coisas.

Em certas ocasiões o Santo Sudário era exposto à veneração dos fiéis, e numa delas um fotógrafo experiente, que havia em Turim, deliberou fotografá-lo(1). Naquele tempo, a revelação de fotografias era muito complicada e lenta, exigindo uma manipulação de certos líquidos, sais e diversos objetos, num ambiente iluminado por uma tênue luz vermelha.

Quando o fotógrafo começou a revelar o negativo, verificou que havia um vulto no tecido, e por fim a fotografia demonstrou a existência dessa figura. Assim, ficou revelada a autenticidade do Santo Sudário.

O mundo, a Cristandade e a Igreja chegaram a receber este legado verdadeiramente inestimável: uma fotografia de Nosso Senhor Jesus Cristo!

As fotografias do Santo Sudário foram difundidas em todo o orbe, causando admiração geral e grande desapontamento nos incrédulos. Foi então possível observar a evidente analogia entre a Face do Santo Sudário e a das imagens correntes de Nosso Senhor Jesus Cristo. De dentro da fotografia salta uma verdade religiosa que destrói inúmeras incredulidades de uma só vez!

O tecido da humilhação se transformou em bandeira da vitória!

A impiedade, entretanto, tem artimanhas… A polêmica feneceu a partir de 1912, 1915. Não mais se punha em dúvida o milagre. Os ateus não queriam deduzir que Jesus Cristo provadamente existiu. Contudo já não o negavam.

Por ser um argumento triunfante contra os incréus, o Sudário não era comentado. Com o passar do tempo, o tema foi sendo esquecido: vitória do Santo Sudário.

Vitória tanto mais linda quando se considera o seguinte: José de Arimateia e Nicodemos, acompanhados por São João Evangelista e as santas mulheres, adquiriram o tecido para depositar Nosso Senhor Jesus Cristo no sepulcro. Cobriram de unguentos todas as suas feridas, segundo o ritual antigo. Foi grande a quantidade de unguentos, pois — como diz a profecia a respeito de seus sofrimentos: “Do alto da cabeça à planta dos pés nada havia que estivesse são” — Ele estava completamente coberto de lesões, devido aos golpes desferidos pelos algozes. Envolvendo Nosso Senhor no tecido e levando-O para a sepultura, lacrando-a, imaginaram eles que aquele Sudário, muitos séculos depois, seria um triunfo sobre a impiedade?

O que parecia ser o pano da humilhação e da derrota, da tristeza e da dor, do desconcerto e da aflição, foi transformado em bandeira de vitória! Isso eles não podiam imaginar.

Tinham eles diante de si um fato concreto: Aquele Cristo Jesus, a Quem tinham adorado e continuavam a adorar — Ele, o Vencedor e Rei tão majestoso, diante de Quem qualquer rei da Terra não poderia tomar outra atitude senão tirar sua coroa, prostrar-se e pedir licença para tocar seus divinos pés com o diadema — havia morrido.

Nas sombras da morte

Como seria o convívio com este Varão, estando Ele vivo? Quem ousaria falar-Lhe “está frio o tempo…”? Antes de terminar a frase, já se sentiria que era uma bagatela que não poderia ser levada à presença d’Ele.

Dever-se-ia então dizer-Lhe:

“Senhor, falai porque vosso servo escuta! Fito vossos olhos divinos e vejo que aí está a Sabedoria infinita! Vós dizeis qualquer palavra e esta vale mais do que todo o ouro da Terra! Vós dais um passo à frente e percebo que sois Rei, pelo semblante com que avançais! Vós encontrais um pobre, um pecador, e Vos dirigis a ele para lhe fazer bem ao corpo e à alma! Noto tanta bondade em Vós, que me vejo de azinhavre em comparação convosco! Senhor, diante de Vós, quem pode subsistir? Sou feito para Vos olhar e para Vos adorar, por misericórdia vossa, pois não sou digno disso.”

O Rei das nações — como se considerava a Nosso Senhor cuja genealogia régia indiscutivelmente chegava até David e Salomão, os dois grandes reis de Israel — estava ali morto entre dois ladrões, acompanhado pelo séquito da dor: uma Mãe em cuja alma não havia senão o sofrimento mais pungente que se possa imaginar. Fiel a Ele, somente um discípulo! Ele que tivera tantos! Dois homens que eram “cripto-discípulos” e não ousavam mostrarem-se em público como seguidores d’Ele: Nicodemos e José de Arimateia.

Santa Maria Madalena, vertendo copiosas lágrimas, e as santas mulheres carregam aquele Corpo Sagrado, após O terem embalsamado e envolvido no Sudário, e O depositam na sepultura. Era preciso andar depressa, pois em pouco tempo começaria a Páscoa, festa entre os judeus, não sendo permitido fazer enterros nem trabalhos manuais. Eles desejavam preparar tudo lentamente, tranquilamente, elevando os olhos e a mente para o último olhar a Jesus. Entretanto, fizeram tudo com rapidez. Fecharam o sepulcro. E, excetuando Nossa Senhora, acreditavam que tudo havia terminado, pois não entendiam bem o que Ele tinha profetizado acerca de sua própria ressurreição.

A morte e a sepultura O tragaram. Sonho maravilhoso… decepção cruel! Todos choravam. Portanto, sobre o Sudário caíram talvez as lágrimas deles… e possivelmente também as de Nossa Senhora. E esse pano entrou nas sombras da morte.

Cristo, Tu venceste!

Quando o século XIX estava no auge de seu orgulho, preparando-se para transmitir ao século XX muitos frutos da Civilização — infelizmente havia algo que tornava todos esses frutos podres: a impiedade triunfante —, surgiu o Santo Sudário como uma bandeira magnífica da ressurreição! Nosso Senhor morto foi envolvido naquele precioso tecido. Entretanto quem o guardou com tanta piedade, atravessando várias centúrias, não tinha conhecimento de que aquele invólucro continha também uma prova da ressurreição de Cristo.

Seu Divino Corpo emanou sinais que marcaram o lençol e foram revelados pela fotografia! A Ciência ímpia dobrava os joelhos e dizia: Cristo, Tu venceste!

Nota-se na figura de Nosso Senhor estampada no tecido os sinais, entre outros, da coroação de espinhos. O Santo Sudário é tal maravilha e tão grande prova da existência de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua ressurreição, comprovando nossa Fé, que em todos os ambientes religiosos se deveria falar dele. Porém, o homem contemporâneo dá as costas para o Santo Sudário.

Os meios de pesquisa se desenvolveram enormemente, e os processos existentes para se verificar a autenticidade do Sudário chegaram ao inimaginável.

Ora, os equipamentos científicos indicaram que o Santo Sudário tem restos de pólen de plantas da Ásia Menor, algumas das quais não existem no Ocidente, e na data precisa em que viveu Nosso Senhor. Foi mais uma confirmação de sua autenticidade, feita pela Ciência. Com o desenvolvimento dos microscópios e outros processos complementares, tornou-se possível colher em panos antigos fragmentos mínimos de restos de flores, e polens que voam pelos ares e impregnam os tecidos. Os do Santo Sudário são de flores da Ásia Menor, do tempo de Jesus Cristo.

Uma fotografia detalhada dos olhos de Nosso Senhor revela que por sobre as pálpebras foram colocadas moedas, para mantê-las fechadas. Foi possível fotografar umas moedas cuja marca ficou no pano, e verificou-se que eram da época de Nosso Senhor.

Verificamos assim que a própria Ciência comprova até à evidência a autenticidade desse tecido sagrado.

Grandeza, poder e bondade de Deus

Entre outras perguntas de ordem científica, surgiu a seguinte: o que marcou este pano da forma como está caracterizado? Foram apenas evaporações e transudações de um cadáver?

Feita a análise, chegou-se à resposta: não! Houve, isto sim, outra força que marcou o pano e desenhou a figura.

Qual é essa força? Sabemos ser a ação triunfante, onipotente, de Deus, que pousou sobre esse Cadáver e O fez ressuscitar. Por desígnios misteriosos, Deus desejou que essa ação delineasse aquela figura no pano. Ele quis, Ele fez! Cientistas estudaram-na, concluindo ter ela três dimensões.

Relembrando nossas considerações anteriores, dizemos que o século XIX recebeu, ao expirar, enorme manifestação de grandeza, de poder e de bondade de Deus.

O Santo Sudário é como um estandarte que afirma à Santa Igreja: Tu não morrerás!

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/4/1984)

 

1) O advogado Secondo Pia fotografou o Sudário em maio de 1898.

 

A oração da manhã

Por vezes, pondera Dr. Plinio, sentimos aspirações legítimas, frutos da graça que opera de modo diferente nos corações. Assim, pela manhã nos vem o desejo de dizer alguma coisa especial a Nosso Senhor e a Nossa Senhora. Devemos, pois, seguir essa aspiração e variar nossa primeira prece do dia.

 

Uma importante questão que alguém chamado a uma vocação especial deve se pôr é esta: como fazer a oração da manhã mais conforme à missão para a qual lhe escolheu a Providência?

Compreende-se a pergunta, posto que um religioso — beneditino, franciscano, jesuíta, etc. — precisa iniciar seu dia elevando a Deus uma prece segundo a espiritualidade própria da ordem à qual pertence.

O mesmo princípio se aplica às outras vocações. Por exemplo, um apóstolo que, por determinadas circunstâncias, exporá sua vida pela causa da Igreja e de Nossa Senhora, não pode fazer a oração da manhã de um tabelião católico, pois este passa o dia todo lendo e escrevendo…

As variações de uma boa oração da manhã

Porém, ao invés de apresentar uma fórmula de oração matutina, parece-me de maior interesse indicar os fundamentos que devem norteá-la.

Primeiramente, julgo preferível que ela seja mutável, porque a perpétua repetição de um mesmo texto acaba ocasionando aridez e cansaço para um incontável número de almas. A fim de obviar esse inconveniente, há uma série de critérios que podem ser adotados, também variáveis de acordo com as pessoas.

Às vezes sentimos aspirações legítimas, frutos da graça que opera de modo diferente nos corações. Assim, pela manhã nos vem o desejo de dizer alguma coisa especial a Nosso Senhor e a Nossa Senhora: devemos seguir essa aspiração e, procurando evitar a padronização, variar nossa prece.

Contudo, se durante anos uma fórmula corresponde inteiramente aos nossos anseios, não convém alterá-la.

Por outro lado, quando começamos a ter dificuldades em prestar atenção num texto que há tempos utilizamos, não raro essa desatenção é motivo suficiente para modificá-lo.

Cumpre acrescentar, entretanto, que essa mudança não se faz de modo simples: possui matizes, diversidades segundo cada indivíduo, como tudo que é próprio à vida espiritual.

Atos de culto e de oferecimento

Tendo em vista esses pressupostos, passo a apresentar alguns critérios que podem servir para a oração da manhã.

Em primeiro lugar, é plausível que façamos a Deus um ato de culto que se desdobra em três partes: adoração, ação de graças e petição.

Na adoração, a pessoa poderia dizer: “Considerando que Vós sois meu fim último, minha alegria, sois quem sois, logo que me levanto quero vos manifestar minha adoração, minha admiração total, meu amor e meu temor inteiros”.

E na ação de graças: “Eu vos dou graças por me terdes concedido uma noite tranquila”.

Por fim, na petição deve-se rogar as graças espirituais e os favores temporais de que necessitaremos durante o dia.

Vemos, assim, como essa oração da manhã não possui fórmula fixa, mas precisa ser articulada todos os dias.

Além disso, convém que nela haja um ato de oferecimento. O Altíssimo nos deu a vida e tem direito sobre o que é nosso. Donde lhe oferecermos tudo quanto faremos naquele dia, segundo determinadas intenções.

Particularidades da oração de quem se consagrou a Nossa Senhora

Vale acrescentar que, para quem se consagrou como escravo de amor a Nossa Senhora segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, o mais perfeito é oferecer o dia à Santíssima Virgem, para que Ela disponha de nós como Lhe aprouver ao longo daquela jornada.

Sobretudo devemos ter em vista nossa vocação específica: cada um de nós foi suscitado para servir à Igreja e colaborar na vitória da Contra-Revolução.

Em outros termos, por meio das ações que praticaremos durante o dia, por nossos desejos e orações, contribuiremos para apressar o momento em que o demônio seja derrotado e se instaure no mundo o Reino de Jesus por Maria.

Sendo assim, devemos pedir a Nossa Senhora graças próprias ao nosso chamado, tais como: um espírito voltado para os imponderáveis e os inverossímeis(1); o desapego das coisas opostas ou alheias à nossa missão; o pensar, querer e agir em função de nosso apostolado; e os dons inerentes ao fato de sermos católicos militantes, aos quais é necessária uma particular virtude da fortaleza.

Portanto, implorar a Maria Santíssima que nos alcance forças para lutarmos contra o que há de ruim em nós e em torno de nós, para amarmos o bem e rejeitarmos toda forma de mal.

Amor à vocação, castidade e obediência

Mais. É necessário também rogarmos a Nossa Senhora a graça de amarmos nosso movimento e, neste, aqueles que devem ser nossos modelos. Que Ela nos obtenha o dom de uma castidade ilibada e de uma obediência perfeita aos superiores dispostos por Deus em nosso caminho; e nos assista em cada ação por nós praticada, a fim de multiplicar sua eficácia e provocar a efetiva queda da Revolução, bem como para que contribuam na formação de almas conformes ao Coração Imaculado d’Ela.

Compreende-se que alguns ou muitos não terão tempo para formular tantas intenções numa oração da manhã que não se deve prolongar. Não precisamos rezar diariamente tudo isso acima considerado. Basta termos anotados esses pontos e dizermos, com simplicidade e confiança, a Nossa Senhora: “Minha Mãe, peço-vos tudo o que aqui está escrito, especialmente tal coisa”, ou: “consagro-vos meu dia particularmente em tal intenção”, etc.

 Oferecer os reveses e as cruzes

Certos dias, ao nos levantarmos de manhã, já nos deparamos com algo desagradável à nossa espera. Devemos então dizer: “Está bem. ‘Sit in nomine Domini benedictum’ (seja bendito em nome do Senhor)! Trata-se de uma pequena cruz que oferecerei de boa vontade a Nossa Senhora”.

Como se sabe, conforme o ensinamento da pequena via de Santa Teresinha, o bom aproveitamento das diminutas coisas desagradáveis redunda num fator extraordinário para o progresso na vida espiritual. Portanto, não percamos nenhuma oportunidade de oferecê-las à Santíssima Virgem, que delas colherá os melhores frutos.

Pelo auxílio mútuo dos que galgam a montanha da vocação

Nesse rol de intenções não poderia faltar uma que me parece sobremodo importante. Com efeito, nosso movimento pode ser comparado a um grupo de pessoas que, sob raios caídos do céu, escala uma montanha escorregadia, e nessa ascensão a cada momento surgem riscos e dificuldades diversos. Cumpre, então, pensarmos nessa espécie de drama que é a luta individual e interior de cada um de nós, esforçando-se para alcançar o alto do monte, ao mesmo tempo que procura auxiliar o irmão de vocação para juntos subirem até o topo. Considerando não apenas os riscos, mas também todas as glórias e belezas que tal ascensão traz consigo, peçamos a Nossa Senhora que nos ajude a empreendê-la.

E outro ponto importante: quantos dos que hoje me ouvem, ainda ontem perambulavam pelo mundo, expostos a quantos riscos, incertezas, dificuldades! Foram resgatados do caminho extraviado pelo qual andavam e conduzidos às sendas da vocação. Lembremo-nos disso, e rezemos de modo particular pelas almas chamadas a pertencer ao nosso movimento, para que elas não se desviem e percorram seu itinerário até nós. Eis uma intenção das mais meritórias e aconselháveis, a ser incluída na oração da manhã.

Reiterar as intenções ao longo do dia

Concluo, ponderando que todas essas intenções podem ser colocadas ao longo do dia em nossas práticas de piedade: na ação de graças após a Comunhão, na recitação do Rosário, nas visitas ao Santíssimo, etc. Claro está, postas de manhã, têm elas o mérito de projetar uma luz sobre o dia inteiro, além da beleza especial e intrínseca própria a essa primeira homenagem da alma que “acorda” e se volta para Deus.

Beleza esta, aliás, muito conforme à natureza das coisas. O primeiro brilho da aurora, o primeiro voo de um pássaro, enfim, todos os primeiros acontecimentos se revestem de uma forma de graça natural e de glória peculiar, que é uma imagem desse primeiro e matutino movimento da alma se dirigindo ao seu Criador.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1965)

 

1) Dr. Plinio empregava tais palavras para designar especialmente as ações sobrenaturais que não têm peso físico (imponderáveis); e os fatos cuja realização não se explicam através da mera razão, mas sobretudo pela fé (inverossímeis).

 

Abraão e Isaac

Para a alma que confia na Providência, as grandes esperas são o prelúdio dos grandes dons de Deus, o prenúncio da realização das grandes promessas que lhe fez o Altíssimo. Disso nos é exemplo o patriarca Abraão: quando já centenário, Deus lhe prometeu uma descendência incontável, da qual brotaria o Messias. Nasce-lhe um filho, e o Senhor determina que o sacrifique. Abraão confia. E na hora do seu supremo heroísmo, depois de tão longa espera, recebe afinal a certeza do juramento divino: “Multiplicarei a tua posteridade como as estrelas do céu e como as areias na praia do mar” (Gn 22, 17).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 23/3/70 e 17/5/1972)

Rumo as maiores belezas

Nunca nos cansamos de considerar como Deus é grande em suas obras, grande na sua Igreja, grande nas nações que existem dentro dessa Igreja. Como Ele é magnífico, e que realizações magníficas existiriam no mundo se todos os povos correspondessem às infinitas perfeições divinas que foram chamados a refletir! Que maravilha seria a face da Terra se cada país, cada indivíduo, fosse tudo aquilo que deveria ser, e a Santa Igreja pudesse desdobrar seus fulgores, de meio-dia em meio dia, sem nunca anoitecer!

Esse mundo seria possível ou é um sonho? Se toda essa multidão de homens tivesse correspondido à graça, como encontraríamos hoje a fisionomia do universo terreno? É-nos possível, de leve ao menos, conceber tamanha beleza?

Nisto penso amiudadas vezes quando contemplo monumentos em estilo gótico. Os gregos e romanos alcançaram um auge ao construir seus templos imponentes, seus arcos e colunas célebres. Sim, atingiram um ápice, porém viram surgir algo mais elevado nos horizontes da civilização ocidental ao reluzir o esplendor dos vitrais, a magnitude das catedrais, o arroubo dos sons dos órgãos, do aroma do incenso, da liturgia católica, das pompas temporais desenroladas nos edifícios sagrados, templos da Igreja Católica, nas grandes ocasiões da Cristandade!

Pergunto-me, mesmo, se Homero, Cipião, Marco Aurélio ou então o próprio Constantino entenderiam toda a magnificência do que veio depois deles, engendrado pela alma católica da Idade Média. Creio que não. Os da Antiguidade não compreenderiam aquilo que, durante séculos, comoveu o coração dos reis e dos simples, encantou a qualquer homem e mulher, ricos e pobres, camponeses que vinham das hortas em torno das cidades medievais, para ver e admirar, por exemplo, o relógio da torre da igreja ou da municipalidade dar as horas, e toda uma oficina de figuras mecânicas se deslocar e bater os sinos, enquanto os pombos esvoaçavam… Isso enchia a alma dos simples como as dos maiores.

Povos houve, naquela quadra histórica, que corresponderam à graça, disseram “sim” ao chamado divino; houve povos nos quais a distribuição da Eucaristia se fez abundante e bem acolhida; houve povos que se constituíram em nações da Civilização Cristã, e nessas, tais maravilhas se ergueram.

E quando analiso a história do estilo gótico, vendo sua última expressão que é o “flamboyant”, tão risonho, tão triunfal, tão seguro de sua grandeza, tenho impressão de um itinerário terminado. Atingiu, ele também, o seu ápice, e ali ficou. Não esgotado de cansaço, nem de moleza ou extenuação. É como um extraordinário cantor cuja laringe deu tudo o que poderia ter dado. Diante dele fica-se extasiado, admirado, mas entende-se que aquela música acabou, a partitura está cantada. O que virá depois?

Provavelmente, será gerado pela fé um estilo ainda superior, mais belo, mais magnífico. Pois, acreditamos, está na ordem das coisas postas por Deus que o bem prepara o caminho para um bem maior, a beleza prepara as vias para uma beleza mais requintada, e a verdade, para uma verdade mais profunda ou mais alta. É este o itinerário das coisas de Deus.

 

Plinio Corrêa de Oliveira