A mais bela coroa do mundo

Ao analisar com muita admiração a Coroa do Império Austríaco, Dr. Plinio nos faz sentir um dos últimos perfumes exalados pela Civilização Cristã e mostra que ela é uma coroa que nasceu não de um mero planejamento, mas de um sonho!

 

A meu ver a coroa imperial da Áustria é a mais bela coroa que existe.

Mandada fazer por Rodolfo II(1) para ser propriedade pessoal dele, depois passou a pertencer ao tesouro do Sacro Império Romano Alemão. Quando este foi extinto, as potências reunidas por ocasião do Tratado de Viena(2) resolveram entregar ao Imperador da Áustria, Francisco I, o tesouro dos imperadores do Sacro Império. Então o novo Império Austríaco, que era uma espécie de continuação do Sacro Império Romano Alemão, tomou esta coroa como sendo a dos imperadores da Áustria.

Caráter intrinsecamente sacral do Império Austríaco

A mim me parece que ela exprime magnificamente a índole, conforme a expressão francesa, “le génie” da Casa d’Áustria, nos aspectos em que ela corresponde à graça.

A coroa é de um valor inapreciável. Ela tem um quê de mitra, exprimindo bem o caráter intrinsecamente sacral do Império Austríaco, continuador do Sacro Império Romano Germânico. É de linhas suaves, enquanto que a coroa carolíngia é mais hirta. Esta é quase uma carícia materna. Ao mesmo tempo é riquíssima, com uma quantidade enorme de ouro, pedras preciosas e pérolas, constituindo uma magnífica coleção.

Ela possui uma cruz do tipo oriental, com as pontas formando trevo. Em cima foi colocada uma safira de tamanho descomunal, muito bonita, a qual significa o nexo entre o Sacro Império e o Céu. É uma gota de Céu posta no alto da coroa. A safira incrustada tem qualquer coisa de fábula!

Essa coroa tem todos os elementos para se fazer uma análise à luz do maravilhoso.

Para mim, o que encanta nela são as duas fileiras de pérolas laterais, que se abrem para cima e formam um todo; isso significa uma espécie de soberania. Para dizer tudo numa palavra só: essas sociedades antigas tinham entidades secundárias que, numa determinada linha, possuíam uma soberania até em relação ao Imperador. Neste sentido, se chamavam cortes soberanas, estados soberanos, vivendo dentro do próprio Estado. Eram determinados valores que tinham uma afirmatividade pessoal e se deviam ver na arquitetura do Estado, mas não se deixavam sorver pelo Estado.

Agradam enormemente esses dois lados, que se apresentam meio entreabertos, para se compreender como esses todos são distintos dentro do “unum”. Justificando um pouco a ideia de que o alemão e o francês são as duas metades do mundo, as quais se completam desta maneira sem se fundirem, em cuja fenda, não de guerra, mas de distinção, se sente melhor a força do pedúnculo. E isto se exprime muito bem nessa coroa, que eu acho rica em sentidos de toda ordem; uma coroa arquetípica.

A meu ver, esta é a coroa! Nela a Civilização Cristã moribunda exalou um dos seus últimos perfumes. O rude, presente aqui, não está nem sequer disfarçado, mas banhado pela safira. Eu considero essa coroa uma verdadeira obra-prima!

Possui esmaltes lindos, com um papel cromático que as pedras preciosas não possuem, e lhe dá uma característica própria. Não tem o requintado francês, mas é uma coisa que voa acima. Se a compararmos com outras coroas, pode-se dizer que essa é o seu pleno “épanouissement”(3). Essa é a coroa por excelência, não há coisa igual.

Percebe-se nessa coroa muita bondade, própria de um reino paterno, uma joia perfeita. É a trans-esfera(4), a águia bicéfala voando.

Dignidade, bondade, esplendor, conforto e força

A coroa de Luís XV é uma maravilha, mas comparada com a coroa austríaca…

Eu a considero como a coroa mais bonita do mundo.

Por quê?

Por uma razão muito simples.  É que, olhando-a, tenho a impressão da beleza total, insuperável e dificilmente igualável.  Logo, tem de ser a mais bonita do mundo. A inteligência de não fazer dessa coroa um capacete todo fechado de metal, mas deixar aparecer dentro um gorro de veludo muito bonito, bem arranjado… Acho essa abertura ideal. Por cima do veludo passa uma espécie de arco, que toca numa ponta e se abre de um modo bonito. Ela tem algo de oriental. Aliás, percebe-se também o papel do sonho nessa coroa; não é uma coroa que se planeja, sonha-se com ela. É uma coisa diferente.

Eu a considero a obra-prima em matéria de coroa.

Ela é austera?

É preciso ver o que se entende como austeridade; se é seriedade, gravidade, creio não haver dúvida de que ela é austera.

O que essa coroa tem de muito interessante é qualquer coisa de materno. Um súdito que olha para essa coroa, e entenda que ela é feita para governá-lo, se sente protegido.

Essa coroa é a imagem de um estado de espírito que abrange não apenas um aspecto, mas toda a mentalidade de um homem. Esse homem sonhou para si um estado de espírito de dignidade, de bondade, de esplendor, de conforto e de força; é o Céu na Terra para ele. E depois ele mandou executar o trabalho.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 13/5/1982,  6/6/1992 e 19/7/1992)

 

1) Rodolfo II de Habsburg (1552-1612). Arquiduque da Áustria, Imperador germânico, Rei da Hungria e da Boêmia, filho de Maximiliano II.

2) Conferência entre embaixadores das grandes potências europeias, realizada na capital austríaca, entre 2 de maio de 1814 e 9 de junho de 1815, cuja intenção era a de redesenhar o mapa político do continente europeu após a derrota da França napoleônica.

3) Do francês: desabrochar.

4) Assim denominava Dr. Plinio as realidades situadas em um plano metafísico, acima das realidades terrenas.

Cidade florida, alegre e risonha – II

Amenidade, beleza e alegria de viver, numa época que, segundo Karl Marx, foi a idade de ouro do operariado europeu.

 

Vemos em Rothenburg uma pequena praça pública, na qual se entra por meio de um largo arco — sempre os tais arcos com torres — para permitir um trânsito abundante. Junto às fontes, vivacidade e ornato A primeira coisa que o passante percebe é uma fonte.

Era muito frequente, na Idade Média, a ideia de que a fonte deveria ter qualquer coisa de monumental, precisava ser bonita e não uma simples torneira de água. Por quê? Porque a água era rara, as casas ainda não havia água encanada, as pessoas iam recolhê-la na fonte, que era um ponto central de vida na cidade. As pessoas das classes média e baixa da sociedade — muitas vezes as próprias donas de casa —, iam pegar água na fonte com um jarro grande que elas levavam, em geral, em cima da cabeça. Mas enquanto enchiam um, dois, três jarros — e elas pagavam alguém para levá-los; é um arranjo de senhoras —, ficavam conversando. E era o ponto de mexerico da cidade. Os homens nunca iam pegar água na fonte, somente as mulheres. E elas faziam futrica e intrigas, contavam coisas, etc.; as senhoras boas exerciam apostolado e levavam pessoas para a igreja.

Então, para tornar mais alegre a vida dos habitantes, a Prefeitura, que era eleita por eles, mandava construir um ornamento na fonte. Observamos ali um ornamento um pouco pós-medieval: uma bonita coluna, cercada com um gradeado também agradável, um monumentozinho em cima, o qual representa uma criatura humana que está em pé — talvez seja Nossa Senhora — e a fonte que serve para esse bairro da cidade.

Notem as casas altas com os tetos em forma de “V”. Qual é a razão disso? No inverno, para não acumular neve nos tetos — que é muito pesada e os faz ruir —, estes são dessa forma para que a neve escorregue e vá para o chão. Que o solo fique cheio de neve não importa, o problema é salvar o teto das casas.

Como, entre a base e o alto do teto, havia um espaço coberto muito grande, eram feitos andares. Esses são prédios de apartamentos de classe média baixa — mais da classe baixa do que da média; qui é um ambiente mais simples do que o da primeira praça que vimos. Os prédios são menos bonitos, exceto aquele que se vê no fundo, o qual deveria ter provavelmente uma utilização municipal ou eclesiástica, do município ou de uma paróquia da Diocese de Rothenburg.

As flores e as folhas

Numa outra fotografia, percebe-se que é verão e nota-se uma coisa característica das cidades alemãs, que lhes dá um encanto especial: é serem floridas. Ao longo das paredes, jarros de flores que ornam — quando elas florescem — a cidade muito alegre, risonha, onde se mostra, também nas cortininhas, a alegria de viver do povinho. É típico de casa alemã, mesmo muito modesta: cortininha bem arranjadinha e, quando chega o verão, põem-se do lado de fora jarras com gerânios e outras flores de cores vivas. E fazem concurso para saber quem expôs as flores mais  ivas. E isto constitui um ponto de amor-próprio que atrai toda a atenção da cidade, e concentra as conversas e a atenção deles em coisas inocentes, bonitas, que elevam, educam, e não têm nada do cinema e da TV moderna.

Tenho a impressão de que aquela torre é de uma igreja, porque no ápice dos torreõezinhos me parece haver cruzes. E, provavelmente, no cume do telhado central deve existir uma cruz ainda mais evidente. Tem algo indefinido de edifício religioso. Será talvez a torre da principal igreja da cidadezinha.

Em outra fotografia nota-se a beleza da vegetação da Europa. Nossa vegetação sul-americana, centro-americana, tem coisas lindíssimas, mas Deus a cada qual concedeu as suas coisas. À América do Sul, e creio que também à do Norte, o Criador deu lindas flores. Deu-as também, em alguma medida, à Europa: as tulipas da Holanda, por exemplo, são qualquer coisa de maravilhoso, mas o que  nós não temos como eles são as folhas maravilhosas.

Comparemos as folhas que estamos habituados a ver em nossas cidades, com essas que são verdadeiras exposições de pedras preciosas. As folhas são de um colorido bonito, meio douradas, e tem-se a impressão de que cada uma delas é uma pedra preciosa. São finas e o sol as atravessa; por causa disso, quando se olha, tem-se a impressão de que o astro rei mora dentro delas. São muito bonitas na primavera, mas a sua beleza muitas vezes é maior no outono, quando elas ficam velhas. É um fenômeno com poucos exemplos na natureza: quando a velhice enfeita.

No inverno, quando começam a cair, essas folhas têm uma cor de “champagne”, de vinho, cores fantásticas; várias vezes estando na Europa tive vontade de fazer uma coleção de folhas, para mostrar aqui em São Paulo. Mas não foi possível, eu não tinha tempo, porém vontade não faltava.

Vejam como todo esse arvoredo, aquém e além do muro externo da cidade, faz um ambiente maravilhoso. Tudo isso enfeita as velhas pedras e a torre da catedral ou da paróquia. Forma um  ecanto lindo!

Povo muito alegre, expansivo e comunicativo

Em outra fotografia vemos a beleza assombrosa do inverno, com a neve. Tem-se a impressão de que as árvores são feitas de cristal; são, portanto, lindíssimas! Nesse edifício mais baixo, nota-se que a neve cobriu o teto e se acumulou a ponto de revesti-lo inteiramente. Fica agradável de ver e, apesar da ideia de frio que esta neve dá, tem-se  ma sensação de aconchego e faz supor ali dentro uma lareira acesa, na qual se queimam troncos de árvores com uma resina perfumada, junto à qual se encontra, sentado numa grande poltrona de couro, um homem lendo um daqueles livros escritos em pergaminhos colossais,  fumando um cachimbo e gozando o seu domingo.

O prédio à esquerda, com aquele balcão, pertence à Prefeitura. Embaixo, desenvolvem-se danças tradicionais onde moços e moças da cidade se dão as mãos e cantam. Vê-se a alegria inocente de  udo isso, com trajes moralizados. É a alegria medieval.

Aqui podemos observar uma rua de Rothenburg. As casas não são palácios, mas residências simples. É uma cena agradável de olhar e nos dá, muito ao vivo, uma ideia do que seria uma cidade medieval em dia de festa popular. O povo alemão é muito alegre, expansivo, comunicativo. E quando, em torno da cerveja, estão reunidos muitos alemães, eles cantam. Não por ficarem bêbados, as por estarem bem nutridos e alegres.

Não existe uma coisa que esteja em desordem; tudo bem arranjado e bonito. A decoração da parte de cima das casas é feita só com madeira, mas madeira entalhada; nada disso é rico, tudo é simples. Vemos como o bom gosto da classe popular pode formar uma vida plebeia digna. Assim eram, por exemplo, os móveis populares medievais. Não eram fabricados para reis, nem para  ondes ou barões; contudo, eram entalhados à mão, e hoje custariam uma fábula por serem muito raros. Uma verdadeira beleza! Por espantoso que seja, eu termino citando Marx. Karl Marx, o fundador do comunismo, numa história que ele faz do operariado na Europa, diz isto: “A idade de ouro do operariado europeu foi a Idade Média!” Isso os revolucionários não afirmam. Por quê?  porque a Revolução é mentirosa quando fala e até quando se cala; essa é a Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 200 (Novembro de 2014)

Sacralidade beneditina

Ao contrário da agitação existente em certos ambientes do mundo atual, em Subiaco sentem-se refrigério, luz e paz. Os monges, que se deixam imbuir pelo espírito de São Bento, levam ali uma vida despretensiosa, temperante, pura e cheia de uma alegria cândida.

 

A  propósito de algumas fotografias tiradas de Subiaco, eu gostaria de tecer comentários que não se limitam à análise dos ambientes e costumes, mas visam aprofundar impressões causadas por aqueles lugares na alma de quem os contempla.

Subiaco e estação de metrô: extremos opostos

Nesta primeira foto vemos uma pequena porta que conduz a uma escadaria estreita. Em rigor, essa passagem assim apertada poderia ser a porta de uma masmorra, através da qual passa o carcereiro para levar pão e água a algum prisioneiro nas horas estipuladas.

Considerada, por assim dizer, “anatomicamente”, esta parte do edifício poderia servir para isso. Entretanto, não é nem um pouco a impressão que nos dá. Ao subirmos por esta escadinha, não sentiríamos medo ou qualquer outra sensação própria a quem ingressa em uma masmorra. Pelo contrário, tem-se a impressão de um ambiente recolhido, com uma penumbra que sucede à grande luz do dia, com algo de aconchegado, de cômodo.

Poder-se-ia bem imaginar um monge beneditino dos antigos tempos subindo esses degraus, passo a passo, enquanto recita um salmo ou reza uma dezena do Rosário. Em uma palavra, quanta bênção há aí! É uma bênção de paz que se faz sentir por um jogo de luz e sombra.

Se compararmos isso com a atmosfera de uma estação de metrô, perceberemos como o metrô e Subiaco são extremos opostos, de um modo até berrante: um está inserido dentro da civilização industrial e outro na nascente da Idade Média.

Viver entre pedras e pouca vegetação, pensando no Céu

Na outra fotografia vemos ruazinhas muito estreitas e, como tudo está construído em meio a montanhas, há diversos patamares aos quais se tem acesso, às vezes, por escadinhas como essa.

Sente-se ter vivido aqui gente habituada a uma vida despretensiosa, temperante, pura e cheia de uma alegria cândida.

Notem como a escadinha está toda modelada pelo passo humano. Séculos e séculos de subir e descer de homens que consagraram a vida a Deus, renunciando a todas as alegrias e pompas do mundo para viverem entre essas pedras, pensando no Céu.

Imaginemos, durante o dia, abrir-se aquela janela com vitrais elaborados à maneira de fundos de garrafa, e aparecer por detrás um monge com capuz, braços cruzados debaixo do escapulário, e olhando…

Nas margens desse caminho nada foi plantando pelo homem, tudo está como a natureza pôs. No primeiro dia, quando esse solo saiu das mãos de Deus, era possível que fosse mais ou menos assim.

Veem-se pedras por toda parte entre as quais nasce uma vegetação que se agarra como pode a um pouco de terra, e viceja onde consegue.

Aquele arbusto que aparece ali, com seus galhos contorcidos, parece ter esgares de fome. Não é o fértil chão brasileiro com seus jacarandás e jequitibás, nem o solo norte-americano com suas sequoias; nada disso. Essa é uma árvore brotada em terra árida e pedregosa.

Há, entretanto, uma intimidade entre quem passa por esta pequena via e a vegetação que a ladeia, cujo exalar de vida nada interrompe, dando-nos a impressão de existir uma íntima amizade com todo esse mundo vegetal rumo ao céu azul que se entrevê lá no fundo, e faz até pensar no Céu da eternidade.

Sente-se uma paz nesse ambiente! Uma pessoa que ali entrasse cheia de torcidas e de preocupações, e seguisse por essa estradinha, chegaria ao outro lado inteiramente tranquilizada.

O que isso tem de lindo? Viveu ali um Santo, o Patriarca dos monges do Ocidente, isto é, o primeiro de toda a gloriosa coorte de monges, o qual teve como filhos espirituais, nesse lugar, homens canonizados, além de quantos outros que, embora não canonizados, também estão no Céu. É o ambiente próprio do homem à procura da santidade; eis a bênção que São Bento deixou.

Ambiente simples, mas repleto de beleza espiritual

Para ingressar na via da qual falávamos, a pessoa passa por esse arco que aparece nesta outra foto. É uma ogiva despretensiosa, bonita e séria. Não tem uma escultura, nem qualquer outro adorno. É apenas uma ogiva feita de pedra, mas com toda a beleza das ogivas, como se fossem duas mãos postas para rezar.

Pode haver coisa que recolha mais o espírito e favoreça mais a oração, as grandes reflexões a respeito dos grandes temas? Assim a alma de um homem se forma! Mas, por quê? Porque há uma bênção presente no ambiente e que envolve e penetra quem nele se adentra.

Se alguém me perguntasse: Isto é lindo?

Eu diria: Não, de nenhum modo.

Entretanto, sob outro aspecto, se outrem me indagasse: Isto é lindíssimo?

Eu responderia: Sim!

No sentido de uma beleza espiritual.

Essa paisagem é agradável de ver, mas não é linda, materialmente falando. Contudo, a beleza espiritual torna isso lindíssimo.

Eis uma bonita fotografia bem dentro da linha do que vínhamos falando. Vemos a vegetação e o alto de uma construção que parece ser uma capelinha com uma rosácea, com todo o encanto das rosáceas medievais. Aquilo é tipicamente medieval. Têm-se esse misto de pedra e folhagem: reino mineral e reino vegetal juntos, entrando em harmonia, para que o expectador possa exclamar: “Como Deus é grande!”

São Bento: olhar contemplativo, todo voltado para as coisas de Deus

Ali contemplamos um afresco de São Bento. O pintor representou-o de uma maneira singular. Ele está com uma espécie de capuz sobre a cabeça, mas este tem um pouco a forma da parte baixa de sua face. De maneira que o desenho da maçã do rosto até o queixo tem a forma do capuz pontudo. E dá a impressão de uma face concebida numa moldura de duas pontas: uma para baixo e outra para cima. Rosto muito fino, nariz comprido, barba não muito crescida, na transição do grisalho para o branco; as sobrancelhas, ainda escuras, representam um homem que ainda está no vigor de seu pensamento e de sua ação.

Notem a força moral com que a sua mão segura o báculo, símbolo do poder do Abade.

Olhar sério, até com alguma coisa de severo, mas no qual há um mundo, um céu! Se um de nós o encontrasse, teria vontade de ajoelhar-se diante dele e pedir: “Pai, dizei-me no que pensais!”

Imagino que ele responderia sem olhar para quem pediu, desfiando o seu pensamento inteiro, com um timbre de voz partindo do fundo de sua laringe possante, num pescoço alto, como se fosse o tocar de um sino.

São Luís Orione achava o olhar de São Pio X tão puro, que se confessava sempre antes de falar com este Santo Pontífice.

Não é verdade que teríamos vontade de nos confessar, antes de falar com São Bento? Olhar reto, puro, todo voltado para as coisas de Deus, contemplativo e sério!

Se eu lhe perguntasse no que estava pensando, e ele me dissesse:

— Agora não posso explicar.

Eu pediria:

— Permiti, então, que eu fique vos olhando!

São Francisco de Assis, grande admirador e devoto de São Bento

Aqui temos uma pintura representando São Francisco de Assis, que viveu séculos depois de São Bento, mas por ser grande admirador e devoto deste Santo Abade, resolveu ir a Subiaco para venerá-lo. Ali ele viu, junto à gruta de São Bento, um carrascal de espinhos onde o Santo Abade tinha rolado para combater uma tentação contra a pureza, vencendo-a. O demônio fugiu diante da admirável penitência de São Bento. São Francisco plantou naquele local uma roseira, e até hoje as rosas e o carrascal de espinhos vivem juntos, entrelaçados.

Em São Francisco contempla-se um tipo de santidade diferente; mas que maravilha! Essa pintura representa um homem muito mais jovem do que é figurado São Bento na outra. Não sei se calculo mal, mas suponho que esse homem esteja na casa dos trinta anos.

Sua atitude é muito serena, calma, mas com uma determinação de vontade que se vê muito pelo modo do rosto estar implantado sobre o pescoço. Todos os traços distendidos, mas não moles. É alguém que está, no fundo do olhar azul, pensando e contemplando algo e querendo com toda a força da vontade o objeto de sua contemplação.

É de uma pureza impressionante! Um homem casto, temperante por excelência e vigoroso. São Bento também o era, mas o pintor de São Francisco deixou ver essas virtudes mais inteiramente do que o de São Bento.

Compreende-se que o “Poverello” de Assis gostasse de ler para os seus noviços as histórias de Cavalaria, pois antes de abraçar a vida contemplativa pensou em ser cavaleiro.

Nesta representação, a sua mão direita segura ligeiramente o braço esquerdo. Vejam a lógica das linhas e a força dessa mão!

Se a São Bento eu pediria: “Dizei o que pensais!”; a este eu rogaria: “Não digais, pois eu vejo. Deixai apenas que eu olhe para vós!”

Tem-se a impressão de que São Bento está presente

Tendo analisado tudo quanto vimos de Subiaco, nasce a pergunta: O que há dentro disso?

A resposta que vem ao espírito é esta: a sacralidade beneditina. É uma paz, não a da modorra de um comodista, mas uma paz de algo que tem vida intensa dentro de si.

Vida, por sua vez, não agitada, espancada, surrada, mas com refrigério, luz e paz que se sentem naquele lugar não se sabe bem no quê, e dá a impressão de estar São Bento presente ali.

Há lugares sagrados que conservam uma como que impregnação dos personagens e dos fatos ali ocorridos. Aquele ambiente fica mais ou menos marcado, fazendo-nos sentir algo do que ali se passou.

Por causa disso, a grande alma de um Santo pode se fazer sentir por séculos e séculos, no lugar onde ele viveu e praticou a virtude. É, pois, a grande alma de São Bento que sentimos ali.

Vem-me à memória um episódio encantador da vida desse Santo:

A governanta de São Bento — termo um pouco anacrônico, pois não se usava naquele tempo, mas de fato corresponderia a uma governanta atualmente — deixou cair uma vasilha emprestada, que se desfez em cacos. Já é uma coisa aborrecida romper algo que nos pertence, quanto mais quebrar um objeto emprestado de outra pessoa; é uma espécie de vexame.

Ela ficou muito aflita e São Bento a viu chorar.

Desejando, então, restabelecer a paz de alma daquela senhora, São Bento se ajoelhou, rezou e a vasilha se recompôs miraculosamente. Ele voltou-se com naturalidade para a mulher, sem excitação nem angústia, e disse: “Aqui está a vasilha!”

Quem está tão em presença de Deus, e paira tanto acima dos acontecimentos, sabe que a Providência resolverá para ele os casos; esse não tem aflição.

São Bento caminha sério, recolhido, severo até — como ele é representado no afresco que vimos há pouco —, de uma severidade admirável, e tem rumo para tudo; confia em Deus, ainda quando ele não saiba qual será a solução do problema. Deus lhe dará confiança. E por isso os vendavais torpes da vida não sopram sobre ele. Ele avança majestoso, bondoso, com a alma firme, e sacralizando tudo pela sua presença.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/7/1985)

 

Critérios para um bom relacionamento

Depois de analisar alguns dos critérios segundo os quais costumamos avaliar as pessoas com quem desejamos estabelecer relações, Dr. Plinio indica os verdadeiros princípios que devem orientar o relacionamento humano.

 

Como devemos analisar-nos uns aos outros? De que modo precisamos olhar, interpretar, considerar o valor de cada um? Como devemos entender e julgar as pessoas?

Duas categorias de pessoas

Eis uma boa qualificação: algumas pessoas têm alma para compreender que não existe só e nem principalmente esta vida. Há uma outra ordem de grandezas e um Ser espiritual, superior, infinito, perfeito. Em última análise, Deus Nosso Senhor e todos aqueles que O cercam na hierarquia divina. E tudo isso se espelha de algum modo na Criação.

Essas pessoas, quando olham um pé de ipê, uma esmeralda ou uma orquídea, por exemplo, são admirativas porque sabem ver o que é mais do que elas, sem inveja e por desinteresse. Essa é uma categoria de pessoas.

Outra categoria é das que só olham para cima a fim de ter inveja, e preferem não olhar para o alto. Dirigem os olhos para o lado com indiferença e para baixo com desprezo.

De que gênero de pessoas é cada um de nós? Se essas são as duas categorias, temos que caber numa delas. Como somos nós?

Devemos tomar em consideração que Deus ama mais os que são mais voltados para Ele. Nossa Senhora ama mais os que são mais voltados para Ela. E nós, portanto, devemos desejar o que é mais elevado, mais nobre, mais belo, mais reto, mais santo. Mas desejar admirando! E admirando desinteressadamente!

O verdadeiro entusiasmo se exprime pela dedicação

A partir do momento em que admiremos isto desinteressadamente, tornamo-nos entusiastas e combativos. Porque o verdadeiro entusiasmo se exprime pela dedicação. Ter entusiasmo por algo ou alguém a quem não sou dedicado não significa nada. Se tenho entusiasmo sincero, eu me dedico.

Então, quando notamos alguém lutar, devemos procurar na atitude dele o seguinte: pelo que ele combate? Até que ponto ele vê e entende a grandeza daquilo pelo que luta? Até que ponto sua alma está cheia disso? Até que ponto ele se dedica? Até que ponto ele é combativo?

Através dessas perguntas nós podemos aquilatar uma pessoa.

A partir disso compreende-se a inanidade, o zero de muitos elogios feitos às vezes a mim, que tenho a impressão de dizerem respeito a um outro, porque de tal maneira o que tem de essencial em mim não figura naquele elogio, que estão elogiando um outro.

Então, elogia-se alguém porque é muito inteligente. Ora, a pessoa nasce inteligente. Já lhes passou pela mente elogiar um homem qualquer porque é narigudo, ou porque tem um nariz muito pequeno? Ninguém escolhe o nariz que tem. O sujeito nasceu com aquele nariz e precisa levá-lo até a sepultura. Goste ou não goste, seja um nariz lindo ou comum ou grotesco.

Se determinada pessoa nasceu inteligente, é um dom que Deus lhe concedeu. Não é um dom sobrenatural, mas natural. Aprecia-se. O que se conclui daí?

Alguém poderá dizer: “Mas ela aproveitou bem a própria inteligência”. Não se deduz muita coisa, pois há muitas pessoas que aproveitam a inteligência que possuem, e ficam muito instruídas, cultas, brilhantes. Entretanto, fazem um uso bom dessa inteligência ou são malfeitoras?

Assim é com a boa educação e tantas outras qualidades…

Antigamente, era raro encontrar chá no Brasil, e as pessoas que gostavam de tomá-lo mandavam vir da Inglaterra, da China, etc. E eram naturalmente as pessoas mais finas. Então se dizia “Fulano tomou chá em pequeno”, para indicar que ele teve uma educação muito seleta. O outro que só tomou café não teve uma educação muito fina, porque qualquer um tem café. Ninguém possui mérito por ter tomado chá em pequeno.

Então, qual é o verdadeiro mérito? É a elevação de alma, e isso nós devemos procurar.

Relacionamento com base na Fé, esperança e caridade

Que relação tem isso com a Religião?

Quem foi batizado e recebeu o dom da fé, tendo o espírito elevado possui muita fé. Porque quem tem espírito elevado ama, sobretudo, o que há de mais alto. E o que há de mais elevado são as verdades sobrenaturais reveladas, é a Igreja Católica que é Mestra dessas verdades.

Possui muita esperança. Esperança de conseguir aquilo que sua fé lhe ensina: o Céu depois desta Terra, e dar glória a Deus, a Nossa Senhora, nesta Terra; e espera que Maria Santíssima o ajudará.

Tem muita caridade, a qual não é principalmente o amor do próximo, mas é o amor de Deus, e do próximo por amor de Deus.

Então possui muita fé, esperança e caridade. E depois as virtudes cardeais: justiça, fortaleza, temperança, prudência, e outras virtudes. Aí está o edifício de uma alma.

Quando nos relacionamos com os outros, procuramos ver quais são os que têm o espírito mais elevado e buscamos mais a companhia, a prosa desses, ou procuramos saber quem diverte mais, conta mais chistes, brinca mais, é mais agradável de trato? Ou, então, o mais influente que comunica uma certa importância a quem é amigo dele?

Essas não são razões para se dar com alguém. Motivo para se dar com alguém é fé, esperança e caridade, a elevação de alma.

Uma pessoa pode passar por um oratório onde há uma imagem de Nossa Senhora, fazer o Nome do Padre, mas não tem grande fé. Um outro faz o Sinal da Cruz e possui muita fé. Um terceiro não tem fé, é emigrado do Afeganistão, mas ele olha com uma certa elevação para a imagem, e a fé começa a germinar no espírito dele.

Procurem as companhias que lhes aproximam mais desse estado de espírito.

Cuidado com os brincalhões!

Alguém poderá objetar:

­— Mas a questão é que, estando com os outros, eu preciso me divertir.

A esse eu responderia:

— Cuidado com as pessoas brincalhonas ou que fazem muitos chistes! Em minha vida vi poucas pessoas ao mesmo tempo engraçadas e sérias. E, assim mesmo, a seriedade estava arriscada por serem engraçadas. ­

Os Evangelhos apresentam Nosso Senhor Jesus Cristo nas mais variadas atitudes, desde Menino recém-nascido até a idade perfeita dos trinta e três anos com que Ele morreu. Nunca se vê, apesar dessa variedade de espírito, o Divino Mestre rindo.

Tomem em consideração as bodas de Caná. Ele estava na festa e até concorreu para que esta tivesse alegria, fazendo um milagre estupendo: a transmutação da água em vinho. Entretanto, o Evangelho não conta que Ele tenha rido alguma vez. Eu nunca vi uma imagem, nas nossas igrejas, representado Nosso Senhor rindo. Nem sequer propriamente sorrindo.

Numa atitude próxima do sorriso, às vezes. A imagem do Menino Jesus, por exemplo, é apresentada próxima do sorriso, porque se supõe que Ele está olhando para Nossa Senhora. Quem vê uma criança, imagina-a olhando para a mãe, é normal. Então se supõe que Ele esteja sorrindo, ou melhor, olhando com sumo comprazimento para a Mãe. Rindo, nunca! Muitas imagens de Nosso Senhor O apresentam com suma afabilidade, sorrindo não. É um exemplo para nós.

Alguém conhece uma aparição em que Nossa Senhora ou qualquer Anjo ou Santo diga uma coisa engraçada? Nunca!

Por outro lado, tome cuidado também aquele que, por ser engraçado, atrai todos os que desejam se divertir e dar uma gargalhada, mas os desvia de Nossa Senhora.

Às vezes foge-se de certas companhias que têm coisas sérias para comentar, vão ao fundo dos assuntos. Entretanto, tais pessoas, embora não digam coisas jocosas, poderiam nos aproximar da Santíssima Virgem Maria.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/1/1982)
Revista Dr Plinio 244 (Novembro de 2019)

Onde os mártires deram sua vida, a beleza brilha até nas pedras mortas

Na Roma atual, um espetacular monumento faz recordar a antiga cidade: o histórico, terrível e grandioso Coliseu. Por que razão multidões acorrem para junto dele?

 

Reportemo-nos à Roma antiga e dirijamo-nos ao imponente Coliseu.

Com pórticos em forma de arcos, com assentos pouco cômodos, tal monumento possui em seu interior uma arena onde vai realizar-se um horrível espetáculo.

É noite, alguns cristãos permanecem em seus cárceres, a pouca distância de onde estão as feras que vão devorá-los no dia seguinte. Tais animais são mantidos com uma horrível fome, para que, à vista dos mártires, se lancem para saciar seu bestial apetite. Os cristãos, que morrerão no dia seguinte, passam a noite alternando fervorosas orações e ouvindo o uivar das feras. Este será o último som que ouvirão na vida: o uivar das feras lançando-se sobre eles, misturado com os aplausos frenéticos dos pagãos que assistem ao terrível espetáculo.

Após entrarem na arena, os mártires ouvem o ranger das grades que prendem as feras, e vêem-nas avançarem sobre eles…

Neste momento alguns tinham pânico, e pediam a Deus que lhes desse força para não apostatarem. Outros, ao contrário, tinham uma calma magnífica.

Assim são os heróis reais e verdadeiros, pois esse é o auge do heroísmo. O heroísmo não consiste em não ter medo, mas sim em, mesmo tremendo de medo, entregar-se com ânimo.

No subconsciente dos espectadores pairava uma profunda interrogação: “Por que não sacrificar ao ídolos e ver-se livre de tais tormentos? O que existe nesta religião para enfrentarem a morte deste modo?” Um romano sentado na arquibancada não compreendia como os cristãos pudessem fazer aquilo.

***

Voltemos aos dias de hoje. Este mesmo Coliseu, durante a noite, é genialmente iluminado e permite entrever belezas diversas das que possui à luz do dia com todas as claridades do glorioso sol de Roma.

Parece pairar sobre este ambiente uma atmosfera de gravidade. Alguns muros ruídos do Coliseu são notados discretamente. Num outro ângulo, colunas de uma ruína erguem-se no céu escuro. Uma fendida, a outra inteira, ambas são um protesto mudo e vencido, porém perseverante, contra os ultrajes dos séculos.

Uma impressão de persistência em sobreviver, de conservação milenar de um espírito e de uma tradição, em meio a um ambiente inteiramente transformado, se desprende muito mais pungente das muralhas que permaneceram altaneiras através dos séculos.

A luz dos projetores, os lampadários de iluminação, o asfalto úmido e marcado, tudo afirma o século XX. Entretanto, a massa harmoniosa, imponente, séria, ao mesmo tempo leve e monumental do Coliseu, faz sentir em meio ao ambiente moderno toda a nobreza, a dignidade, a pujança de um Império em toda a sua elevação, robustez e lógica de espírito, que tinha por ideal o Direito.

Entretanto, tudo se desfez, e vivo do Coliseu resta apenas o sangue ainda quente dos mártires!

Sendo apenas ruína, o Coliseu exerce nos pontos mais extremos da Terra, enorme atração, convidando turistas de regiões longínquas a conhecê-lo. É que um grande ideal de beleza refulge ainda nestas pedras mortas…

***

“Tout passe, tout casse, tout lasse et tout se remplace”(1). Em parte, o Coliseu dos mártires ruiu. Um dia, poderão ruir os monumentos do mundo moderno. E que impressão deixarão seus destroços, se restos ficarem? Se a iluminação noturna do Coliseu permite vislumbrar toda a grandeza que possui, as imagens dos edifícios modernos demonstram todas as suas lacunas. Muitos monumentos modernos são uma peça de máquina, banal, rude, na qual se apinham alguns milhares de indivíduos. É a expressão de um mundo que tomou por ideal, não o Direito como Roma, nem a Filosofia como a Grécia, e muito menos a Teologia como a Europa medieval, mas a máquina, ou seja, a matéria. Almas materialistas, homens mecanizados, isto é o que se presencia em numerosas edificações atuais, como alguns estádios esportivos e tantas outras congêneres.

Algum dia os povos verão suas ruínas? Talvez… para compreender melhor como desabou esta civilização, para menear a cabeça e prosseguir o caminho, pensando na justiça de Deus.

De perene, no mundo, existe somente a Igreja!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/3/77 e 17/7/94; e do “Catolicismo” de junho de 1954)

Revista Dr Plinio 140 – Novembro de 2009 (Luzes da Civilização Cristã)

1) Expressão francesa que se traduz: Tudo passa, tudo quebra, tudo cansa e tudo se substitui.

A música dos Anjos no Céu

Platão imaginava que os corpos celestes eram como esferas de cristal as quais, girando umas sobre as outras, produziam uma sinfonia universal. É uma linda ideia, mas ela se torna pálida quando consideramos os Anjos, espíritos perfeitíssimos, puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente contemplando a Deus, exclamando em cânticos o seu sentir.

 

Quando ouvimos um canto, notamos haver uma analogia entre o falar humano e esse cântico, porque cada nota posta ali é como uma inflexão da voz humana quando o homem afirma alguma coisa.

O cantochão, o polifônico, a música clássica

Por exemplo, ao pronunciar “afirma alguma coisa” involuntariamente dei ênfase à palavra “afirma” para indicar o caráter afirmativo do que eu queria dizer, enquanto fui muito rápido no resto da frase, porque “alguma coisa”, sendo um termo vago, pronuncia-se rapidamente, como uma pincelada apenas no pensamento. De maneira que, no pronunciar a frase, fiz o que todo mundo faz, ou seja, martelei as sílabas, modulei a voz de acordo com o que me vai no temperamento e na alma a respeito daquilo que estou dizendo.

Então é um modo de proferir as frases, por onde a pronúncia como que discretamente canta o que está sendo dito. E esse “cantar” indica o meu estado temperamental e o sabor por mim encontrado – bom ou mau, agradável ou repelente – naquilo que estou dizendo.

Em geral, tanto o cantochão quanto o polifônico têm isso de próprio: cada nota é uma meditação sobre o sentido da palavra que está sendo dita, é uma tomada de posição piedosa, ora triste, ora alegre, ora afetuosa, ora adorativa, ora reparadora, ora eucarística a respeito daquilo que está sendo afirmado. Por isso é bonito acompanhar exatamente assim a música, palavra por palavra.

Entretanto, podemos ver na música um outro aspecto. Se tomarmos a música clássica, por exemplo, veremos tratar-se de uma magnífica arquitetura de sons. Essas melodias podem ser comparadas, de algum modo, a um prédio com as suas massas distribuídas, suas colunas, seus corpos de edifício, seus desdobramentos, mas onde entra algo mais abstrato do que a expressão de um pensamento humano: introduz-se uma pura ideia de harmonia.

Poderíamos nos perguntar qual dessas é a verdadeira concepção da música e, se ambas são verdadeiras, qual a mais alta.

Diante desse problema, eu me pergunto se não haveria um estilo de música que reunisse ambas as perfeições, porque são manifestamente tão nobres e tão altas que um certo senso da unidade nos faz desconfiar de que haja a possibilidade de reunir as duas concepções numa visualização só.

Porém, ainda não encontrei uma fórmula e nem sei se isso é possível. Indico apenas essa ideia para esboçar um pouco aquilo que, provavelmente, é a música dos Anjos no Céu. Que os Anjos têm uma melodia no Céu, embora não seja a música material, é positivo. Que esta melodia deve ter uma arquitetura sonora magnífica, expressão do ser deles, é fora de dúvida.

Haverá no homem, com as limitações para a criatura humana, a possibilidade de uma música assim? Também não sei. Mas é uma coisa a respeito da qual se pode cogitar.

Cogitações que nos incentivam a pensar no Céu

Exatamente são as cogitações que valem a pena ter como entretenimento quando, por exemplo, a rotina está monótona. É um entretenimento inocente que deixa a alma leve. E um certo cultivo da leveza de alma vai bem para quebrar esses estados um tanto depressivos a que possamos estar sujeitos.

Platão imaginava os corpos celestes como esferas de cristal girando umas sobre as outras eternamente, e ele tinha a ideia de que cada uma dessas esferas produzia um som, e que esses sons todos se encontravam no universo, produzindo uma música universal resultante dos movimentos dos astros.

Notem quantas noções bonitas estão postas dentro dessa concepção. Esferas de cristal que giram, já é uma verdadeira beleza! O som que se desprende dessas esferas, correlato com a cor, a densidade e a rotação desses cristais, uma policromia conjugada a uma harmonia, que coisa bonita!

Essa música não exprimiria o sentir humano, seria uma pura arquitetura universal, quase uma meditação filosófica sonora, mas que produz no homem um reflexo. Então se poderia imaginar um ponto de encontro que seria a expressão da reação humana diante dessa harmonia universal, e musicar isso.

Cogitações como essa nos ajudam a suportar o peso da vida e nos incentivam a pensar no Céu. Como ficam estúpidas essas lindíssimas esferas de cristal quando consideramos que existem os Anjos, espíritos perfeitíssimos, puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente contemplando a Deus, vendo n’Ele belezas sempre as mesmas e sempre novas, exclamando em cânticos o seu sentir. É uma coisa maravilhosa!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/3/1970)

Revista Dr Plinio 232 (Novembro de 2017)

Justiça e misericórdia

A Igreja, tendo comemorado condignamente, no dia 1º de novembro, os seus filhos que exultam no Céu, pretende, sem demora, socorrer com seus piedosos sufrágios os que ainda gemem no purgatório para que possam, o quanto antes, juntar-se aos cidadãos do Céu.

Essas palavras do Martirológio, comentava Dr. Plinio, “explicam o motivo pelo qual a Santa Igreja instituiu uma celebração própria a convidar os fiéis a alcançarem, com suas preces, a libertação das almas do purgatório.

“Neste lugar de purificação devemos ver um aspecto maravilhoso da sabedoria divina, cujo equilíbrio nele reluz de modo especial, isto é, a conjunção da justiça e da misericórdia infinitas de Deus, adornadas pela insondável solicitude materna de Nossa Senhora que desempenha particular papel em relação àquelas almas.

“Com efeito, podemos contemplar como o Criador, de um lado, não poupa a essas almas a expiação que têm de cumprir por conta das faltas cometidas neste mundo; de outro, admiramos como Ele as ama, pois passaram desta vida na graça de Deus e possuem a imensa alegria, a suprema consolação de se saberem merecedoras da eterna bem-aventurança, na qual hão de ingressar após seu período de purificação.

“Ora, para os espíritos que já não se encontram ligados a corpos mortais, que já não consideram as coisas com a fraqueza de um homem unido à carne perecível e, portanto, compreendem melhor o significado de eternidade, essa certeza do Céu representa um regozijo sem fim. Sabem que possuirão a visão beatífica e o amor de Deus para sempre, sabem que tudo quanto sofrerem no purgatório é pouco em comparação com o oceano de deleites, de alegria e felicidades infindos que as aguarda no Paraíso Celeste.

“Essa garantia traz para a alma do fiel defunto um alento indizível, fazendo-a sentir a predileção de Deus para com ela, como se o Senhor lhe dissesse: “Tu és minha filha, e minha filha dileta. Durante toda a eternidade me contemplarás, e Eu terei a alegria — de dentro de minha felicidade substancial e perfeita — de contemplar a ti!”

“Não será difícil perceber como essa promessa divina é de um valor superior a qualquer tesouro que possamos imaginar. Tanto mais se, à misericórdia divina, somarmos o carinho materno e o amparo sem limites de Maria Santíssima para com as almas do purgatório. Não sem razão A cultuamos como a vida, doçura e esperança nossa, e Ela o é, de modo todo particular, para os que purgam suas faltas a um passo do Céu. Segundo certas revelações particulares, a Mãe Deus, durante o ano inteiro (para usarmos a linguagem terrena) obtém a libertação de almas do purgatório, porém o faz de maneira especial no dia em que a Igreja celebra alguma festa mariana. Nossa Senhora desce até lá, e onde Ela entra, envolta como que num orvalho celestial, as chamas fogem, os tormentos se pacificam, as almas se tomam de um maravilhamento indescritível e muitas delas acompanham de volta o Refúgio dos Pecadores até a glória eterna, à qual doravante pertencem.”

Essas consoladoras reflexões a propósito da Festa dos fiéis defuntos, Dr. Plinio as concluía com este judicioso conselho:

“Peçamos à Santíssima Virgem, nossa esperança e doçura nesta vida e na futura, obtenha-nos a graça de nos compenetrarmos de tudo quanto significa o purgatório, como dolorosa expiação, assim como de transição para a eterna bem-aventurança, iluminado pela misericórdia de Deus e de Maria. Queira Ela nos auxiliar a termos almas limpas e íntegras, que procuram evitar não só o pecado mortal, mas também o venial, tão detestado por Deus a ponto de Este o punir com aqueles padecimentos.

Tal seria a súplica adequada a fazermos a Nossa Senhora nessa celebração.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Considerações sobre a visão beatífica

O homem foi criado para a visão beatífica. Se tivermos bem em mente que o nosso fim, a nossa única verdadeira razão de ser é contemplarmos Deus face a face por toda a eternidade, consideraremos tudo com muito mais seriedade. Todas as nossas ações, ainda quando moralmente neutras, conforme o modo com que as praticamos, podem nos aproximar ou distanciar de Deus. A Doutrina Católica faz da vida uma preparação para a eternidade, e deseja que as almas na Terra se exercitem naquilo que farão no Céu.

 

Trataremos de alguns temas que possam nos favorecer para uma impostação de alma contrarrevolucionária.

Cada ação do homem acarreta consequências enormes, na presença de Deus

Em primeiro lugar, mostraremos como tudo na vida é sério, grave e, portanto, devemos abandonar essa tendência moderna à irresponsabilidade, à irreflexão, à improvisação, e compreendermos que cada ação nossa, por pequena que seja, acarreta para nós consequências enormes na ordem verdadeira e profunda dos fatos, quer dizer, na presença de Deus. Tudo quanto realizamos se faz na presença de Deus, com referência a Ele e, por isso, toma uma gravidade, uma importância sem fim.

A visão beatífica nos ajuda a isso porque, se tivermos bem em mente que o nosso fim, a nossa única verdadeira razão de ser é contemplarmos Deus face a face por toda a eternidade, consideraremos tudo com muito mais seriedade.

Para ilustrar o conceito de eternidade, costuma-se dar em aulas de Catecismo uma comparação bem-apanhada. Tomem uma pedra bastante dura, o granito, por exemplo. Em tese, se alguém roçar o dedo sobre o granito, uma particulazinha dele pode desprender-se, e mais provavelmente se desprende, por pequena que seja. Então, imaginem uma andorinha que passasse pelo Pão de Açúcar de mil em mil anos e roçasse apenas com a ponta do bico naquela montanha. Quanto tempo levaria para demoli-la? Não há cálculo possível! Pois bem, quando a andorinha tivesse acabado de destruir o Pão de Açúcar, era como se a eternidade estivesse no seu começo.

Compreendemos, assim, o quanto é sério e grave aquilo que pode nos aproximar ou nos afastar dessa visão beatífica. Ora, de um modo geral, tudo nos afasta ou nos aproxima dela. Porque todas as ações, ainda quando moralmente neutras, conforme a ordenação com que o homem as pratica, podem aproximar ou distanciar de Deus.

Exemplifiquemos com a atitude mais comum do mundo: um homem está viajando de ônibus e abre uma janela. Em si, abrir a janela ou fechá-la é uma ação moralmente indiferente. Se o ônibus estiver a toda velocidade e se o indivíduo gozar do impacto daquele vento razoavelmente, aquilo é uma ação boa. Não é intrinsecamente boa, mas pela ocasião em que a fez, pelo modo que a praticou, etc., é ordenada. Está ordenada à natureza dele. Uma vez que está passeando, vivendo, o homem faz aquilo e aproveita o deleite. Está bem, sobretudo se ele se lembrar de dar graças a Deus que, como dizia São Francisco de Assis, criou “nosso irmão ar”, tão deleitável e tão agradável. Aí a ação fica melhor, entrou um elemento positivo, uma oração a respeito da ação.

Mas se ele, por exemplo, meter a cabeça no vento pela embriaguez da velocidade – nós veremos isto mais adiante –, produz um mau efeito em sua alma. E essa embriaguez da velocidade pode distanciá-lo do fim último que é Deus.

Duas influências opostas: Europa e Hollywood

Tenho falado muitas vezes a respeito do choque de influências que se produziu, entre os anos 1920 e 1930, no Brasil, pela permanência das tradições e dos contatos com a Europa e pela entrada da influência hollywoodiana.

O Brasil daquele tempo recebia as grandes águas da tradição europeia e a catarata, então recente, da influência de Hollywood, e essas coisas incidiam juntas.

Uma das notas que diferenciava a influência norte-americana da europeia era que a Europa tinha o seu passado calçado pela cultura quase bimilenar, em algum sentido mais do que bimilenar se remontarmos aos romanos e gregos, cujas culturas, de um modo ou de outro, santificadas depois pela Igreja Católica, acabaram dando na Idade Média.

Nisso entraram séculos de estudos, de reflexão, e as pessoas tomaram o hábito de ler, de pensar, de estudar, nos ritmos da vida de antigamente.

Uma vida na qual o homem não tinha os instrumentos de ação para agir depressa como ele dispõe hoje em dia. Como consequência, a vida humana corria muito mais devagar, muito mais tranquila e cheia de interstícios.

Lembro-me de que meu bisavô(1), sendo deputado do Parlamento do Império, levava um mês para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro a fim de tomar conta de sua cadeira no Parlamento. Não sei se ele ia fazendo também um pouco de propaganda eleitoral, mas o fato é que era uma viagem assim.

Partiam de São Paulo para o Rio de Janeiro famílias inteiras com verdadeiras caravanas e, quando chegava perto da cidade do Rio, a caravana parava, as senhoras se arranjavam, ajeitavam-se nas liteiras, os homens se compunham para entrar na Corte, como chamavam antigamente a capital do Império.

Imaginem um deputado que sai de São Paulo no dia primeiro de janeiro para chegar ao Rio, à Corte do Império, no dia primeiro de fevereiro. O interstício enorme em que ele não recebe notícias, e quase não tem como mandar notícias, e fica pensando na viagem, no caminho, em uma porção de coisas! Queiram ou não queiram, resulta numa vida refletida. As reflexões podem ser boas ou não, é outra questão; refletir, ele reflete.

Um pequeno fato da vida de Talleyrand

Há algum tempo li a narração da seguinte cena, num livro sobre Talleyrand(2). Ele tinha uma sobrinha com a qual morava na embaixada francesa, em Viena. E ia dar uma jogada diplomática extremamente importante, e do interesse da sobrinha, no Congresso de Viena. Então, combinou com ela o seguinte:

– Quando você ouvir o ruído de minha carruagem pela rua – vejam que rua tranquila para se discernir o ruído da carruagem de Talleyrand! –, vá à janela ou porta da embaixada e note: se eu estiver com um lenço na mão, será o sinal de que tudo deu certo; se não aparecer o lenço, quer dizer que não deu em nada.

Então, o que hoje se liquidaria por um telefonema, levava o tempo necessário para, terminada a sessão do Congresso, ele se despedir de todo mundo, descer a escadaria ajudado por alguém – era manco –, entrar na carruagem seguindo todo um cerimonial: um lacaio abria a porta, descia uma escada, Talleyrand subia, sentava-se, depois se sentava o secretário, batia-se a porta, o cocheiro subia na boleia, os outros dois lacaios, de libré, subiam atrás, e só então os cavalos começavam a puxar o carro pelo calçamento de Viena, e Talleyrand lá ia chacoalhando até a embaixada francesa. Ora, em nossos dias, muito antes de tudo isso ter-se realizado, por um telefonema do secretário para a sobrinha, ela teria ficado sabendo do resultado.

Notem quanto tempo levava uma notícia para chegar dentro da própria cidade. Tal era a ansiedade da sobrinha que, à pequena distância, um lenço já deveria encurtar o espaço da espera; mas tem que aguardar. Enquanto espera, precisa pensar em outra coisa porque a pessoa se cansa de conjeturar. Acaba havendo tempo para aprofundar os assuntos e refletir a respeito das questões. É natural.

Forma-se, assim, um teor de vida de que as pessoas hoje não têm mais ideia. Porque a pressa tomou conta da existência e conferiu à vida outros valores, outros ritmos nos quais a reflexão não entra.

Se a cena descrita acima se passasse hoje, Talleyrand diria à sobrinha:

– Eu mando meu secretário lhe dar um telefonema logo que a sessão esteja encerrada. Você aproveita e telefona daí para o Ministério do Exterior em Paris e para as nossas embaixadas em Roma, Berlim, Londres, Madrid, Lisboa, e depois para Washington, contando o que houve. Quando eu chegar em casa já quero ter as reações de todos esses Ministérios.

Ela era uma mulher inteligentíssima e daria conta do recado. Ele já chegaria arfando:

– O que disse o Ministro do Exterior? Está bem o que eu consegui ou não? Qual foi a repercussão em Washington? E em Londres?

Que tempo ele teve para pensar? No sacolejar da carruagem entrava a reflexão.

O corre-corre tira o hábito de pensar

Se tomarmos os quadros representando as pessoas de antigamente, veremos como todas têm fisionomia de quem está refletindo. Porque a reflexão era a expressão fisionômica habitual delas, pois havia tempo para isso.

Já nas fotografias tiradas das pessoas das vésperas da Primeira Guerra Mundial para cá, as fisionomias são cada vez mais irrefletidas, e a fotografia é instantânea ou o indivíduo não sabe mais fazer pose, porque para isso é preciso refletir um pouco. O instantâneo é a lembrança que deixa atrás de si o homem do corre-corre. É forçoso.

Antes dos anos 20, a vida era tal que nas casas de burguesia média, e às vezes menos do que isso – portanto, a “fortiori”, nas classes mais altas –, os quartos de dormir eram espaçosos e, principalmente os de senhoras, tinham, em geral, além do necessário para dormir, um mobiliário sumário. Podia ser, por exemplo, um sofá e algumas cadeiras, porque as conversas muito reservadas se faziam no quarto de dormir. Ia-se para o mais interno da casa e conversava-se ali.

Por vezes, a pessoa se recolhia ao quarto de dormir durante o dia para pensar bem. Não deitava na cama, porque isso ocorre quando se está doente ou para dormir à noite, fora disso não. Então, recostava-se no sofá e ficava pensando, isolada de todo mundo.

Com o corre-corre, que é muito prejudicial porque tira o hábito de pensar, vem outra circunstância bastante nociva: é a convicção de que para o homem ou a mulher, o moço ou a moça e até a criança, levar uma vida digna deste nome deve fazer tanto quanto possa e pensar pouco, porque pensar é perda de tempo. Portanto, é preciso fazer, fazer, fazer, quanto mais fizer melhor. O indivíduo tem uma espécie de embriaguez de fazer, porque julga desperdiçar o tempo pensando.

Então, nós temos o desprezo, ou pelo menos o menosprezo, da reflexão imposto pela pressa.

Isso leva ao contrário do que quer a Doutrina Católica, pois esta faz da vida uma preparação para a eternidade, e deseja que as almas na Terra se exercitem naquilo que farão no Céu.

O homem foi feito para a beatitude celeste

Segundo São Tomás de Aquino, o homem foi feito para a beatitude celeste, a fim de conhecer a Deus eternamente – o que é refletir –, e para exercer não só um ato de cognição, mas de amor contínuo e eterno.

Nesta Terra, diz ele, o homem tem em semente a beatitude primária, que é contemplar, com algo que participa da visão beatífica – o Batismo nos confere um começo da visão beatífica. Quando o homem reflete sobre a ação – se isto é ordenado para Deus –, ele possui uma espécie de contemplação secundária, tendo como fim a beatitude, quer dizer, o conhecimento de Deus(3).

Como isso é diferente da vida do corre-corre! E como a existência regular, pausada, com hiatos que dão possibilidades de pensar, é diferente e mais apropriada do que a vida de hoje, em que a parte principal da contemplação nesta Terra não só cessa, mas o homem fica incapaz de contemplar. Aqui está o pior: a mania da velocidade incapacita o homem para a contemplação, e ele se vicia no agir como outro pode viciar-se em drogas.

É importante mostrar como essa influência é contra o que a Igreja quer de nós. Por isso pretendo aproveitar algumas reflexões de São Tomás de Aquino sobre a visão beatífica, não só para considerar a suma gravidade das coisas, mas também como a Doutrina Católica rejeita a idolatria da pressa, presente em tantas pessoas.

Superioridade dos prazeres da alma em relação aos do corpo

No Tratado da bem-aventurança, na Suma Teológica (Cf. I-II, q. 3, a. 1), São Tomás pergunta se a beatitude é algo criado, e explica que o fim último do homem tem duas acepções: uma é a bem-aventurança enquanto sendo o próprio Deus, e, neste sentido, é incriada. Outra é o ato pelo qual o homem desfruta da visão de Deus; nesta acepção ela é criada.

De maneira que a visão beatífica é, neste sentido da palavra, a eterna prática do ato pelo qual o homem vê e ama Aquele para o qual nasceu a fim de ver e amar.

Mais adiante (Cf. I-II, q. 3, a. 3), São Tomás pergunta se os sentidos do homem têm alguma alegria com a visão beatífica. E ele resolve com a mesma simplicidade, dizendo que os sentidos não podem conhecer a Deus, porque são aptos para conhecer a matéria. Ora, Deus não é matéria.

Entretanto, pondera que o homem forma um todo com a inteligência, a vontade e a sensibilidade. Assim, embora os sentidos não conheçam diretamente a Deus, o gáudio que a alma tem na visão beatífica reflui nos sentidos e os torna muito mais retos, perceptivos e capazes de se alegrarem na esfera própria.

O Doutor Angélico remete para o que ele diz a respeito da ressurreição (Cf. Supl. q. 82). O homem ressurreto, cuja alma vê a Deus, encontra-se num estado esplêndido; além da magnificência da reconstituição em si, está inundado pelos efeitos benéficos da alma que vê a Deus.

Na própria clareza e simplicidade dos raciocínios de São Tomás, temos um exemplo minúsculo da superioridade dos prazeres da alma sobre os do corpo, e como aqueles refluem sobre este. Basta pensarmos como esses raciocínios poderiam fazer bem para o corpo de um filósofo que tivesse algum problema a esse respeito e não soubesse como resolver. Ao ler na Suma Teológica essas considerações, ele se tomaria de uma alegria espiritual que lhe poderia aliviar, por exemplo, de uma enxaqueca.

Percebemos, por conseguinte, a maldade presente em tanta coisa da civilização moderna. Por exemplo, a televisão, absorvendo continuamente os sentidos, monopoliza a atenção e a impede de se voltar para coisas dessas. Resultado: a pessoa fica incapaz de se deleitar com esta superior forma de alegria que a alma sente ao considerar as coisas da inteligência, ou seja, da contemplação.

Vemos, assim, como a Revolução mente ao dar a entender que o prazer está na lubricidade, na impureza, na pressa. É o gosto de destruir, de se achincalhar, de se tornar hippie. Enquanto a Igreja leva o homem para ser Anjo, a Revolução leva-o para ser hippie.

Inteligência especulativa e inteligência prática

Outra pergunta posta por São Tomás: se a beatitude, vista enquanto ato do homem, é uma operação da inteligência especulativa ou da inteligência prática (Cf. I-II, q. 3, a. 5).

“Especulativa” vem de “speculum”, que significa espelho, em latim. A inteligência especulativa é aquela que se coloca diante da realidade e a absorve dentro de si, como o espelho recebe a imagem. Por esta razão é adequado se referir ao reflexo do espelho ou à reflexão do homem. Notem a proximidade das duas palavras.

A inteligência prática é aquela que, posta a reflexão, opera para que as coisas se ordenem como devem ser. Então, se vejo no céu um fenômeno qualquer que me agrada, por exemplo, um eclipse, minha inteligência especulativa apreende e eu penso sobre aquilo. A inteligência prática faz-me tomar a deliberação de acompanhar as evoluções da Lua para, quando houver outro eclipse, eu possa ver de novo. Para isso, deverei adotar uma série de atos que tendem a este fim.

Vê-se, portanto, ser evidente que a beatitude é uma operação da inteligência especulativa, e a pessoa nem compreende bem como é que São Tomás quer as provas disso.

Ora, esta seria a objeção de um preguiçoso. O homem que não tem preguiça de pensar procura exprimir em silogismos, em raciocínios, tudo quanto possa ser expresso. Ainda que seja evidente, tendo uma prova, o pensador se alegra.

Alguém diria: “O senhor não vive elogiando a intuição?”

Sim, porque a intuição liberta o homem da miopia de só ver o que o longo raciocínio aponta. Mas o espírito bem construído, depois de ter tido, pela intuição, uma visão panorâmica, gosta de percorrer, passo a passo, como um leão dominador, a estrada que ele sobrevoou como águia.

Consideremos, pois, as razões dadas por São Tomás, das quais pendem, à maneira de estalactites, conclusões fecundas para nós.

Ele diz que o objetivo da razão prática é dispor os meios para o fim. Ora, quem vê diretamente o fim não precisa de razão prática, apenas especula. Além disso, a mais alta atividade da inteligência é conhecer o Sumo Bem, o que é, por sua natureza, uma suma contemplação. Logo, a visão beatífica é uma suma contemplação.

Pela mera contemplação o homem se aproxima dos Anjos, porque o Anjo é puro espírito e contempla. Pela mera razão prática o homem se aproxima do animal, porque o animal, sem ter contemplado nada, dispõe por instinto as coisas de acordo com seu fim.

Para conhecer um ser, devemos considerar o que ele tem de ótimo

Temos na natureza exemplos tocantes: o ninho de um pássaro brasileiro – não sei se existe nas outras nações –, chamado joão-de-barro, que faz uma pequena casa de barro com um corredor meio sinuoso, onde ele mora no fundo. Só falta pôr para ele um sofá…

Em menino tive ocasião de observar ninhos, mas muito bem construídos de materiais que os pássaros pegam em qualquer canto. Eles fazem com aquilo um tecido que se tem a impressão de ter sido planejado por um engenheiro, de tal maneira é magnífico.

Nunca estive no alto de uma árvore para quebrar a casa do joão-de-barro e ver como é por dentro, mas percebe-se que aquilo é uma perfeição elaborada pelo instinto. É a boa disposição das coisas segundo um determinado fim, realizada, entretanto, por um bicho incapaz de contemplar.

O Doutor Angélico cita um princípio de Aristóteles que ordena o espírito magnificamente: “Cada ser é considerado, sobretudo, no que ele tem de ótimo” (Cf. Ethic., 1.9, c.8, n.6). Quer dizer, se eu quero conhecer um ser bem a fundo, devo considerar o que ele tem de ótimo. É a partir disso que explico todo o resto.

Em termos concretos, não quer dizer que ao conhecer um homem eu deva imaginar que ele é ótimo, mas trata-se de uma outra regra de Psicologia: para eu saber como aquele indivíduo é no momento, devo considerar o que sua natureza tem de melhor e, em algum sentido, o que ele poderia ser se fosse ótimo. Disso eu tiro a diferença em relação a como ele é agora, e deduzo no que devo amá-lo e no que preciso tomar precauções com ele. O primeiro voo é para o que ele poderia ter de ótimo, depois vem o resto.

Mas isto se dá considerando, sobretudo, a natureza do ser em questão: ser homem é uma grande coisa por tais razões; ser peixe é uma coisa menor por tais outras, mas é ótimo em certo ponto…

“Cântico das arquetipias”

Aquele hino de São Francisco às criaturas – ao irmão Sol, à irmã Lua, etc. – tem exatamente isso: Considera esses vários seres, embora materiais, no que possuem de ótimo, e forma um arquétipo de cada ser. Tal hino se poderia chamar o “cântico das arquetipias”. Não há quem leia aquilo sem ver a arquetipia das criaturas ali mencionadas.

Depois de ler aquele hino, ver que tal mar está poluído com matérias expelidas pelos navios que passam, corta o coração.

Nunca me esquecerei da ocasião em que, estando em Santos, notei haver no mar uma grande mancha de óleo. Mas o que tornava a cena ainda mais horrorosa era um enorme cacho de bananas verdes flutuando no meio daqueles detritos. Chocava-me ver aquelas frutas verdes e que deveriam maturar, portanto, algo vivo, feito para se desenvolver, comprimido na sua vitalidade e destinado à morte antes de se ter expandido, no meio dos detritos, da água suja, do mar grandioso, mas conspurcado.

Como cheguei a ter horror daquelas bananas verdes? Porque tive em mente o que há de ótimo na banana quando madura, e deduzi o horror existente nessa espécie de contenção da explosão vegetal da banana, e do mirramento de um processo belo que fica achatado e liquidado no meio da sujeira. Há nisso uma inversão que é horrorosa.

Como conheci esse horror? A partir do conhecimento daquilo que na banana é ótimo. Esse ponto de partida nos leva exatamente à sagacidade para o péssimo. Não é ingenuidade, isso leva à sagacidade.

A Fé nos torna mais inteligentes

Para concluir estas reflexões, levanto uma questão: Tudo isto é pensamento; entretanto, é “ploc-ploc”(4)? Qual a diferença entre o “ploc-ploc” e o verdadeiro pensamento?

Tomemos a contemplação puramente especulativa e reunamos a ela a contemplação de segundo grau, de caráter prático, e teremos o não “ploc-ploc”.

O homem verdadeiramente não “ploc-ploc” é aquele que, colocado diante de qualquer coisa concreta, sabe antes de tudo vê-la, conhecê-la. Ele presta atenção devagar no que os seus sentidos lhe mostram; põe a luneta para ver com seus próprios olhos, e estetoscópio para auscultar com seus ouvidos, pois quer conhecer a informação dos sentidos com cuidado, com contentamento, com enlevo. Depois ele raciocina, forma princípios e tem a facilidade de passar do princípio para a coisa concreta e desta para o princípio, com a naturalidade com que um raio sai do Sol e pousa na Terra. Quer dizer, o raio chega à Terra sem pressa, sem fadiga, sem torcida, não se atrasa nem se adianta. Quando atinge uma superfície qualquer, é sem preguiça nem corre-corre. Ele transpôs não sei que distâncias, chegou ali, pousa e brilha.

Assim deve ser o pensador: passa da consideração teórica para a prática, da prática para a doutrinária. Deus não é uma ideia, mas o Ser vivo por excelência. Não somos, portanto, adoradores nem seguidores de uma mera ideia.

Entende-se, assim, o Céu com a visão de Deus face a face, unida à cognição do Céu empíreo e de todas as maravilhas da Criação através dos sentidos. Como tudo é equilibrado e maravilhoso! Como ser católico eleva a alma!

Eu sustento que a Fé nos torna mais inteligentes. Raciocinar essas coisas faz com que a inteligência cresça. Oxalá isso seja para conhecermos mais a Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, a Santa Igreja Católica e a Contra-Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/1/1981)

Revista Dr Plinio 248 Novembro de 2018 (Reflexões Teológicas)

 

1) Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos.

2) Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (*1754 – †1838). Bispo, político e diplomata francês.

3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica. II-II, q. 180, a. 4.

4) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

Lição de coragem e de grandeza

A comemoração dos fiéis defuntos, ensina Dr. Plinio, “encerra para nós um alto significado, pois além de ser o dia no qual rezamos de modo especial pelos que faleceram e porventura se encontram no Purgatório, é também a data em que a Igreja, com seu tato peculiar e inconfundível, nos torna presente a realidade da morte.

“Dir-se-ia que a Santa Igreja, a cada 2 de novembro, faz abrir um precipício sob nossos pés e nos revela uma multidão de almas em estado de pena, de sofrimento, de miséria, não tendo ido diretamente para o Céu. É-nos dado medir, assim, algo da destruição provocada pela morte.

“Certo, essas almas se salvaram. O Paraíso as aguarda. Porém, devem cumprir uma penitência pelas imperfeições consentidas, necessitam purificar-se de defeitos, de faltas cometidas nesta vida. Purificações mais ou menos dolorosas, mais ou menos longas, conforme o grau de culpa. E essas almas não podem pedir a própria libertação. Por um superior e misterioso desígnio de Deus, dependem das orações que se fazem por elas na Terra.

“E a Providência dispõe maravilhas para que tais almas sejam sufragadas. Quantas visões e revelações, quantos fatos admiráveis, quanta doutrina proposta pela Igreja sobre as almas do Purgatório incentivam os fiéis a entender o sentido dessa devoção e a se empenhar nas súplicas pelo fim daquele padecimento! Quantas obras pias realizadas nesse intuito, e quantas indulgências concedidas pela Santa Sé premiando e abonando semelhantes atos de caridade cristã!

“Bela ao extremo é essa solicitude materna da Igreja para com as almas de seus filhos que morreram e ainda padecem. Belos e profundos os pensamentos contidos na liturgia a respeito desse estado transitório entre a Terra e o Céu.

“De quando em quando devemos meditar sobre essas verdades, sobre o Purgatório, sobre a morte, para compreendermos o que há de intensamente real na advertência dita pelo sacerdote na Quarta-feira de Cinzas: Lembra-te homem de que és pó e ao pó hás de tornar. Não somos senão pó e ao pó voltaremos. Essa ideia nos leva a atinar para a exata dimensão de todas as coisas desta vida. Que são os inúmeros desejos e volições que nos movem, quando calculamos o nosso valor autêntico? Quando pensamos que daqui a um dia ou uma hora podemos já não pertencer a este mundo, comparecermos diante de Deus, ser julgados e destinados à expiação das chamas do Purgatório?

“Ora, sem essas incertezas, não apreciaríamos a grandiosidade da vida humana. Nada é atraente, nada é bonito nesta existência, a não ser com um pano mortuário de fundo. Pois é pelo contraste que o homem conhece as realidades desta Terra. E é só pela oposição à essa miséria fundamental da morte que entendemos como é pouco tudo quanto aqui desejamos, e como é grandioso esse outro destino que nos espera.

“Por isso mesmo, devemos também considerar a morte com serenidade, com magnitude, inclusive no que ela tem de aflitivo e de tremendo, pois é igualmente a expressão de nossa imensa importância. Se somos entes racionais capazes de passar por tamanha tragédia, somos capazes de grandeza tal que, sem dúvida, uma existência mais magnífica nos está reservada.

“Essas e outras considerações nos vêm a propósito do dia dos mortos. É a lição que nos oferecem a morte e os fiéis defuntos. Incomparável lição de profundidade, de força de alma, de coragem, de grandeza. Quem não a aproveita e não a ama, não sabe contemplar a Deus na sua afabilidade, sua meiguice, na sua majestade e sua justiça sem fim.

“Peçamos, portanto, pelas almas do Purgatório. E roguemos a elas, nos obtenham a compreensão, o amor e o entusiasmo por todas as sombras com as quais a morte enriquece a estética do Universo e os verdadeiros panoramas da vida humana.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Meditação de Maria

Talvez nunca ninguém teve os meios para fazer uma meditação da vida inteira de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas creio que sendo Nossa Senhora quem era, favorecida de todas as graças e dons num grau e numa abundância insondável, Ela não fez senão isto.

Assim, Ela meditava em todo o significado e alcance diante da Santíssima Trindade de cada gemido, cada dor, ao longo da Paixão, mas também de cada alegria por ocasião dos júbilos da Ressurreição, como durante o Nascimento, e enquanto Ele vivia em seu claustro virginal; tudo isso Ela conheceu e adorou, esteve continuamente presente em sua mente por causa dos conhecimentos próprios a Ela, e que Lhe eram comunicados por seu Divino Filho.

Essa contemplação deveria conferir à expressão do olhar de Maria Santíssima e à sua atitude recolhida uma força de meditação verdadeiramente extraordinária, ligada à sabedoria d’Ela: um conhecimento milagrosamente amplo e uma interpretação sapiencial de tudo quanto houve.

Isso constituiu uma arquitetura como a de um palácio: “vita Domini Nostri Iesu Christi”, desde o primeiro instante da Encarnação até a hora da Ascensão. Completada esta, quando Ele entrou no Céu e sentou-Se em seu trono, terminou a vida terrena d’Ele e um todo se fez. Esse todo Ela conheceu, admirou e amou de um modo extraordinário!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/7/1991)