Poesia, história e fé

Não há um brasileiro que, ao escutar comentários a respeito da Bahia, não experimente a sensação de ter ouvido algo semelhante a uma melodia tocada por um afinado instrumento musical. Vem-lhe à mente, de imediato, a ideia da Bahia dos sonhos, das poesias, dos maravilhosos panoramas marítimos; a Bahia dos oradores, dos literatos, de mil coisas! A Bahia de um glorioso passado, porque ela traz consigo toda uma história de fé católica heroica, perseverante, vitoriosa.

É um Estado repleto de belezas, com suas características que encantam a todos, com suas baianas idosas, o seu falar cantante, suas pitorescas ladeiras, sua gastronomia célebre, seus monumentos e artes admirados por gente do mundo inteiro. E esse charme da Bahia, mais do que em seus cenários e tesouros artísticos, reflete-se na alma do seu povo, herdeira de uma tradição cristã que escreveu uma das mais esplendorosas páginas da história de nosso País.

Com efeito, quando foi preciso que o Brasil afirmasse sua unidade de fé e seu patriotismo face ao invasor estrangeiro, soube a Bahia abraçar a missão de se erguer e defender tais valores. Coragem e denodo católicos que se coadunam de modo esplêndido com suas riquezas naturais e aquelas engendradas pelo talento de seus filhos.

Bahia florida, poética, retórica, eu a contemplei nas suas igrejas, nos seus conventos, em suas ruas estreitas e calçadas, nas rendas e nos coloridos dos trajes, das fachadas das casas, nas suas praias que estão entre as mais espetaculares da Terra.

Sobretudo falo dessa Bahia antiga, remanescente de um Brasil anterior à Revolução Francesa, e que ainda conserva algo do que se poderia chamar o “Ancien Régime” brasileiro.

É essa Bahia, mais que a do progresso atual, que se deve compreender, amar e por ela ter entusiasmo, pois faz resplandecer melhor sua alma católica. Essa alma que, em seus maiores dias, não hesitou em manifestar um intenso amor a Deus, acima de todas as coisas neste mundo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 104 (Novembro de 2006)

O universo e a ordenação da alma humana

Ao recordar como sua alma de menino foi se abrindo para a compreensão da ordem posta por Deus na criação, tendo o homem como seu elemento central, Dr. Plinio refuta a ideia — latente em muitas correntes de pensamento atual — do “universo fechado”, no qual o Criador não interviria, ausentando-se dele, quase como um estranho…

 

Em geral se toma contato nos cursos secundários com a ideia de que o universo no qual existe o planeta Terra em que vivemos, e os corpos celestes que gravitam em torno dele, é ordenado de modo a formar um todo. Essa noção é verdadeira.

Um erro freqüente: “o universo é fechado”

Porém, não raro se introduz um equívoco nessa concepção, ao se afirmar que esse todo é regido única e exclusivamente pelas leis da ciência, e quem as conhecesse, saberia tudo a respeito do universo. Ou seja, tratar-se-ia de um todo fechado, onde nunca penetra a influência nem a ação de seres extrínsecos — portanto, dos anjos e de Deus Nosso Senhor.

Segundo essa visão, o Altíssimo teria criado o universo, atirando-o depois no espaço, estabelecendo para ele determinadas leis. Deus foi o motor primeiro que fez com que todo o universo começasse a se mover, conforme a ordenação divina. Em seguida, o Criador se retira do panorama e não mais intervém. Cabe então às ciências descreverem as leis que Ele comunicou à criação.

E essas leis são tais que, se Deus e os anjos não existissem, a marcha e a ordem do universo continuariam as mesmas. Assim, sempre conforme essa concepção errônea, parafraseando um dito italiano, “Deus é uma coisa com a qual ou sem a qual, o mundo vai tal e qual”…

Não creio que algum professor tenha defendido explicitamente esse erro, mas ao lecionar suas matérias, fazem-no como se aceitassem e propugnassem essa ideia errada. Donde quase nunca uma pergunta de Ciências Naturais ou de História, por exemplo, chegar até Deus. E se surge uma notícia da interferência divina por meio de um milagre ou de uma ação extraordinária, ela é considerada alheia a qualquer aula, mesmo de Religião, pois não se é obrigado a crer — como se se tratasse de um dogma — que tal fato foi miraculoso.

Aliás, já no meu tempo de aluno, a “máquina” de ensino não considerava qualquer referência a Lourdes, embora se pudesse provar que os milagres ali operados eram autênticos.

Outro ponto. Na batalha de Lepanto deu-se um grande milagre em favor da armada cristã. Se um professor muito católico tratasse desse episódio, diria: “Terminado o confronto, consta terem os soldados comentado entre si que, no fragor dos acontecimentos, Nossa Senhora lhes apareceu”. Consta, porque a História não pode registrar uma aparição como um fato verídico, pois é matéria religiosa.

Em suma, o mundo é fechado. Deus o criou e depois as leis da ciência o explicam. E episódios da própria história da Igreja são por muitos considerados sob esse ângulo. Por exemplo, nas vésperas da batalha de Ponte Mílvia, Constantino viu no céu uma Cruz envolta pelos dizeres (que, aliás, durante algum tempo figuraram no brasão do Brasil imperial): “In hoc signo vinces” — Com este sinal vencerás! Ora, se narrarem a história de Constantino, escreverão: “Durante um sonho ele viu tal coisa”. O fato foi autêntico ou não? Não explicam e fica-se no terreno dos sonhos e da irrealidade.

A Fé, um “rationabile obsequium”

Cumpre salientar que uma adequada explanação desse tema é de grande alcance para a formação católica, pois relegá-lo a uma espécie de meio-silêncio, habitua as pessoas a terem dúvidas a respeito da verdade religiosa, leva-as a uma diminuição da fé e das certezas absolutas. Ora, os fatos a que me referi ocorreram para favorecer as certezas da Fé. Esta se adquire mediante a adesão ao que está revelado por Deus no Antigo e no Novo Testamentos e é ensinado pela Igreja. São Paulo qualifica a Fé de “rationabile obsequium” (Rm 12, 1), ou seja, uma homenagem, um obséquio da razão que, analisando os motivos, crê.

Pelas demonstrações filosóficas e pelos milagres, Deus nos oferece um imenso acervo de razão para se crer, e Ele quer que a nossa maior certeza na vida seja a Fé, a ponto de chegarmos a dizer: “Tudo bem pensado e maturado, a certeza de que a Igreja Católica é a verdadeira vem a ser mais plena do que a própria evidência”. Se eu utilizar bem as regras do raciocínio, convenço-me da existência de Deus e de seus predicados, da eternidade, santidade, de que a Revelação é autêntica e, portanto, de que há uma Igreja infalível, pois Nosso Senhor Jesus Cristo o revelou. Se isso não é assim, o raciocinar humano está errado.

 Não creem porque não querem mudar de vida

Contudo, poder-se-ia objetar: por que algumas pessoas raciocinam e não chegam a essas conclusões?

Tal sucede, não em virtude de uma lógica errada, e sim porque se acham de má fé e rejeitam a influência da graça divina que as iluminaria para chegarem às conclusões acertadas. No fundo, julgam penoso admitir que a Igreja Católica é verdadeira, pois são obrigadas a cumprir uma série de mandamentos — para elas — desagradáveis. Portanto, não creem porque não querem mudar de vida.

Ora, para se provar a existência de Deus e a divindade da Igreja Católica, bastaria considerar o universo.

A ordem humana necessita de uma Igreja infalível

A esse propósito, recordo-me de quando era menino, e ouvia pessoas comentarem ao contemplar um céu estrelado: “Que coisa linda! Vejam como tudo está bem organizado!”, etc. E na medida que era possível ao intelecto de uma criança formular considerações dessa natureza, no meu espírito infantil vinha o seguinte pensamento: “Essa ordem no firmamento é realmente bela; mas, neste nosso mundo, onde está a organização? Em geral, cada pessoa se acha em desacordo com outra. E se, de fato, salvo nas vias da graça, não se consegue convencer ninguém a praticar a virtude, como explicar que tudo no universo foi feito maravilhosamente, mas o elemento central dele, que é o homem, esteja em desordem?”

Imaginemos um quadro pintado de modo primoroso, que pretende representar uma linda fisionomia, a qual entretanto possui o nariz em forma de batata. Ora, se o centro do rosto são o nariz e os olhos, aquela deformidade acaba desqualificando o artista. Assim, se no elemento central da criação visível há desordens, como vou me extasiar com a ordem existente no firmamento? Eu me arrasto no caos interno das minhas impressões, volições, dos meus pensamentos, e a ordem está posta lá no alto, nas estrelas?

Seria como se eu mostrasse a uma pessoa faminta, maltrapilha, um palácio todo iluminado e lhe dissesse: “Ali se realiza um magnífico banquete que você deve admirar”. A resposta dela viria imediata: “Como assim?! Estou morrendo de fome, e você quer que eu admire um banquete do qual não posso participar?”

Quer dizer, é um contra-senso. Portanto, ou o Criador concebeu algo para pôr em ordem a mente e a alma do homem, sua obra-prima, centro de todo o universo, ou Ele deixou ali uma “batata”, o que seria absurdo admitir.

A solução nos aparece com a Igreja infalível, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, que ordena a alma e o pensamento humanos. Desde São Pedro até o Papa reinante, há uma linhagem de pontífices que ensina infalivelmente a verdade. Não apenas quando manifestam a vontade de definir, mas também através do magistério ordinário quando, pela continuidade dos ensinamentos papais, esta mesma continuidade torna um ensinamento infalível.

Se acreditarem nessa infalibilidade da Igreja, todas as pessoas ficam com suas mentes ordenadas a respeito do essencial. Esta ordem é superior a todas as outras, e confirma a supremacia da obra-prima da criação visível.

O universo não é fechado

Quando tomei conhecimento do dogma da infalibilidade pontifícia, fiquei entusiasmado e pensei: “Agora me sinto como um homem que andava sobre penhascos, com medo de cair e, de repente, avisam-lhe que há um corrimão no qual pode se apoiar. Que alívio! Posso contemplar o panorama sem receios e respirar tranquilamente. Sinto minha própria falibilidade, mas a existência de uma instituição natural e sobrenatural, que desde Jesus Cristo até nossos dias ensina sempre a mesma Fé, sem nenhum erro, dá-me segurança, explica-me tudo.”

Se eu não tivesse fé e, analisando todas as religiões, notasse que apenas uma dissesse de si mesma ser infalível, nela eu acreditaria. Pois esta é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Creio que — para me valer de uma comparação — o contentamento de Colombo ao descobrir a América não é nada perto da alegria que senti quando encontrei a infalibilidade pontifícia!

Deus, ao instituir uma Igreja verdadeira, tinha de fazê-la infalível.  A Igreja Católica é como uma coluna forte que resiste a todas as investidas. Interrogando-a, ela emite um som de bronze e nos dá uma resposta sublime. Então, nos ajoelhamos, encantados por termos sido convencidos.

Chegamos, pois, à conclusão de que o universo não é fechado. Há o mundo visível e o invisível, os quais necessariamente se relacionam. Veremos, noutra oportunidade, como se efetua esse relacionamento e as belezas que dele se depreendem.

 

(Continua em próximo artigo)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1979)

 

Percepção do sobrenatural

Assim como as pessoas manifestam diferentes graus de facilidade para praticar determinada virtude, assim certas almas demonstram particular desembaraço para se abstraírem da consideração do meramente visível e se elevarem na contemplação das belezas espirituais.

Agora, penso haver outro gênero de indivíduos que possuem certa facilidade, não tanto para a pura abstração, mas para uma percepção, a partir de um fato concreto, de algo que este fato envolve e que sugere a ideia de uma outra vida, de outra ordem de coisas onde tudo se passa de maneira diversa e satisfaz as mais altas aspirações da alma humana.

Nesse sentido, sempre me chamaram a atenção as telas de um pintor francês que, após percorrer alguns “ateliers” de mestres europeus, mudou-se para Roma e ali permaneceu até o fim dos seus dias. Como nascera na Lorena, chamavam-no de Cláudio, o Loreno. Claude Lorrain(1), em francês. Alguns críticos o têm pelo primeiro artista a se especializar em retratar a luz nas suas obras. De maneira tal que, a fim de realçar o elemento luminoso, ele também se aprimorou em pintar paisagens marítimas, nas quais as águas do oceano desempenham seu papel ímpar como espelho para o sol. Este, de acordo com o desejo do pintor, nasce ou se põe muito distante no horizonte, deitando fulgores sobre uma série de aspectos panorâmicos. Por exemplo, um litoral com fortalezas, com árvores, com palácios, ou um porto com navios em posições diversas, além de personagens que se movimentam nas praias.

E Claude Lorrain soube pintar a luz do sol banhando todos esses componentes da paisagem imaginada por ele, sobretudo fazendo essa luz se difundir através de uma certa névoa que às vezes cobre a atmosfera à beira-mar. Tão tênue que parece uma poeirazinha vagando por toda parte e em parte alguma, retendo a luz; um pó dourado, com graus diferentes de intensidade, que paira sobre a água e todo o panorama.

Entretanto, o melhor de Lorrain está no fato de ele pintar tudo de uma terra concebida como se fosse um paraíso terrestre. Quer dizer, a luz saída de sua palheta confere um aspecto paradisíaco ao mundo, à vida terrena e, nessa perspectiva, desperta no homem um certo desejo de uma ordem de coisas que esteja acima desta palpável e temporal que encontramos todos os dias.

Na verdade, assim como Fra Angélico soube dar uma impressão de sobrenatural nas faces de suas personagens, assim Claude Lorrain transmitiu algo de celestial nas suas obras. Compreendia ele o aspecto paradisíaco que uma coisa pode ter, e possuía essa forma de percepção do sobrenatural, do extra-terreno, por onde seus quadros acabam remetendo nosso espírito para o Céu.

Há nas pinturas de Lorrain um imponderável que leva o homem a dizer: “Sim, existe em algum lugar uma realidade que transcende a essa vida terrena, que não se confunde com ela e sem a qual nada deste mundo se explica. Não se trata de algo que meu tato possa pegar, mas de que minha alma é sedenta. Sem essa ordem superior — insinuada de modo tão atraente nas pinturas de um gênio que soube percebê-la — o universo seria uma coisa truncada, errada, e eu seria um louco.

“Ora, não sou louco. Logo, essa ordem superior existe.”  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/2/1970)

Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

1) De seu verdadeiro nome Claude Gellée, nasceu na cidade de Chamagne, na Lorena, França. Ficou órfão aos 12 anos e, devido a esse fato, mudou-se para Friburgo, onde imediatamente entrou em contato com grandes artistas. Durante sua formação, viajou para a Itália, fixando-se em Roma, onde trabalhou com consagrados mestres. No seu regresso à França, consolidou-se como o grande paisagista do barroco francês. Faleceu em Roma, no dia 23 de novembro de 1682.

 

Arautos e escravos de Maria

Saudando um grupo de jovens que se haviam consagrado à Santíssima Virgem como escravos de amor, segundo o método de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio, chamando-os de “arautos de Nossa Senhora”, os incentiva a ir por toda a Terra, cheios de confiança, proclamar as grandezas da Rainha do Universo.

 

Caríssimos arautos de Nossa Senhora! Vós sabeis, sem dúvida, que os arautos eram aqueles que os reis antigos mandavam a todos os lugares para proclamarem as suas ordens. Naqueles tempos não havia imprensa, nem rádio, nem televisão, e os monarcas, para comunicarem suas ordens, precisavam enviar homens especializados para isso.

Símbolo, porta-voz e transmissor das ordens do rei

Esses homens chegavam aos lugares principais das cidades, montando corcéis fogosos, trajando um hábito especial, e às vezes tocavam algum instrumento para avisar à cidadezinha adormecida que eles lá estavam. Todo mundo deixava as suas ocupações, a rotina tranquila e um pouco sonolenta da vida de todos os dias, para ouvir as ordens e as novidades que o arauto transmitiria.

Ele traria notícias de guerra ou de paz? Viria anunciando um nascimento ou uma morte na família real? Comunicaria um decreto lançado pelo rei, uma anistia ou uma condenação feita por um tribunal em nome do monarca?

Sem dúvida, ele vinha transmitir as vontades do rei, e por isso o arauto era objeto de grande respeito por toda parte por onde passava. Ele era o porta-voz do monarca, que transmitia suas ordens, como que um embaixador e símbolo do rei. Então, símbolo, porta-voz e transmissor das ordens: esses eram os aspectos principais da função de arauto.

O nome “arautos de Nossa Senhora” não é um título qualquer. Nenhum homem sério usa uma designação para dizer algo superficial, mas para significar alguma coisa que tenha sentido e importância. E se, há pouco, fostes chamados, a plenos pulmões, “arautos!”, ou este termo tem uma aplicação ao vosso caso, ou então as palavras não significam mais nada.

A preocupação do arauto não é a de evitar a morte, mas de cumprir sua missão

Ora, a verdade é a verdade, o bem é o bem, o belo é o belo, o erro é o erro, o mal é o mal, e a hediondez é a hediondez. Os campos estão separados e os arautos de Nossa Senhora vão pelo mundo afora para anunciar os direitos d’Ela, proclamar a vontade de Deus que se exprime através da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, da qual vós sois não porta-vozes, mas filhos, que conheceis, amais e venerais os ensinamentos dela, e por causa disso os difundis por toda parte por onde ides.

É lindo ser arauto, realmente! Mas eu vos pergunto o que é mais bonito: ser arauto durante o dia, na hora em que todo mundo está acordado, em que o arauto é cercado de homenagens; ou é ser arauto durante a noite?

Noite negra, espessa, cheia de nuvens, onde não brilham nem sequer as estrelas; tem-se a impressão de que a Lua deixou de existir, do Sol nem se fala, a natureza parece toda ela dominada pelas trevas. Numa circunstância assim, atravessando obscuridades cheias de ciladas, de perigos, de incertezas, galopa um homem com coragem: este homem é o arauto.

Se, por ventura, surgirem inimigos, ele tem uma espada bem temperada, um braço forte e, sobretudo, uma Fé fecunda, e combate! Se ele morrer, como no caso de Roland, aparece São Miguel para ajudá-lo a ir para o Céu. A preocupação dele não é a de não morrer, mas de cumprir sua missão.

O arauto chega ao seu destino; é noite, todo mundo está adormecido. Ele toca a sua corneta, faz soar o sino da igreja, mas a população não se levanta. Entretanto, ele campeia de tal maneira em grandes e heroicas cavalgadas pela cidade, que alguns acabam acordando: assoma-se a uma janela um velho de carapuça na cabeça para olhar o que está acontecendo lá fora; depois, acorda a mulher, os filhos…: “É o rei que mandou um arauto, vamos ouvir o que ele diz!” Dali a pouco todos vêm, e é proclamada a vontade do rei.

Em meio às trevas do campo, o arauto abandona a cidade rumo a outros lugares. Ele desperta, coliga, faz com que as vontades se ordenem para cumprimento dos desígnios do rei.

O arauto proclama a aurora do Reino de Maria

Eis vossa missão nesse mundo que se encontra na meia-noite do pecado, nessas trevas densas onde quase tudo é corrupção, imoralidade, terror. Vós percorrereis, como arautos, as ruas, as praças e os ambientes que vós frequentais, para dizer:

“Ouvi a grande nova! Os filhos de Nossa Senhora vão se multiplicando pelo mundo. Acabou-se a época em que apenas o vício tinha coragem de existir. Fugi trevas, o sol do Reino de Maria está começando a se levantar! Por toda parte Maria Santíssima está suscitando seus filhos que A aclamam bem-aventurada! Esses filhos têm cânticos de Fé, de pureza, de coragem, de esperança e de alegria. Chegou a hora em que eles se multiplicam pelo mundo, e tu, impiedade maldita, prepara-te para fugir!”

Esta é a razão de serdes arautos de Nossa Senhora. E para que transmitais bem o pensamento d’Ela, as pulsações de seu Coração materno e imaculado — ordenado, nos dizem as Escrituras, “como um exército em ordem de batalha”1 —; para este efeito vós, bem unidos a Ela, acabais de vos consagrar como escravos de amor à Sabedoria Eterna e Encarnada, pelas mãos de Maria.

Ir para a frente, lutando contra o inimigo externo e o interno.

O que quer dizer “escravos de amor”? São aqueles que não se fizeram escravos por medo, por imposição, mas livremente; consideraram o que a Igreja ensina a respeito da Santíssima Virgem e, ajoelhados diante de uma imagem d’Ela, disseram:

“Minha Mãe, Vós sois tão admirável, medianeira tão certa, tão direta e tão necessária por vontade de Deus, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, que eu dobro os meus joelhos. E, por ser batizado, já estou consagrado a vosso Divino Filho, mas ratifico hoje, em vossas mãos, esta consagração. Ficai com tudo quanto é meu, minha Mãe, tomai conta de minha inteligência, de minha vontade, de minha sensibilidade, para que minha inteligência, robustecida e esclarecida nas vias da Fé, creia em Vós com toda a força; minha vontade, que concorre para o ato de Fé, seja firme e decidida; para que, nos momentos de dificuldades, eu tenha força e vá para a frente, quer seja diante do inimigo externo que caçoa de minha pureza e de minha Fé, ao qual enfrento com serenidade, quer seja o inimigo interno — muitas vezes mais perigoso — e que me oferece os seus presentes imundos.”

A verdadeira vida é viver e morrer por Nossa Senhora, para que Ela tome nosso ser e o santifique, dando-lhe dons, glórias e graças que por si mesmo jamais teria, e o apresente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Metáfora da maçã na bandeja de ouro

São Luís Grignion de Montfort nos propõe a famosa metáfora da bandeja de ouro e da maçã. Na Europa, a maçã é uma das frutas mais comuns. Este santo imagina, então, um pobre que não tem outra coisa para oferecer ao rei a não ser uma maçã, e não tem coragem de oferecê-la diretamente ao soberano, porque vê que ela não vale nada. Então, procura a mãe do rei e lhe diz:

“Senhora, por favor, eu não ouso me apresentar a ele, mas apresentai vós este pobre presentinho meu: é uma maçã, minha mãe!”

O Rei é Deus, glorioso, três vezes Santo; é Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada; e a Mãe é a Virgem Maria que, com pena, manda um Anjo trazer uma salva de ouro, na qual põe a maçã e, irradiando as virtudes que em grau tão excelso só Ela possui, se dirige ao seu Divino Filho e diz:

“Meu Filho, é uma maçã; é tão pouco, e Vós tendes tanto mais. Mas, neste momento, quero Vos oferecer isso.”

Por ter vindo pelas mãos de sua Mãe Santíssima, na salva de ouro que são os méritos d’Ela, o Rei no Universo recebe a maçã comprazido, como se fosse um fruto do Paraíso.

Assim são as nossas orações. O que elas valem? Contudo, ao pedirmos a Nossa Senhora que as apresente a seu Divino Filho, Ela Lhe dirá: “Meu Filho, essa oração é tão pouco, mas aquele que a ofereceu Eu o quero como a um filho. Fazei de conta que é um grande dom”.

E Jesus responde:

“É um grande dom, pois veio por vossas mãos, minha Mãe!”

Portanto, confiai sempre! Por menor que sejam os dons que tenhais a oferecer a Nossa Senhora, oferecei-os. Mais ainda — serei arrojado no que vou dizer —, se pecardes, não ofereçais o vosso pecado, pois é um fruto do Inferno, mas dizei: “Minha Mãe, dai-me arrependimento, por favor! Um arrependimento como teve São Pedro, que chorou a vida inteira por ter renegado a Nosso Senhor três vezes. Minha Mãe, dai-me arrependimento, e a primeira lágrima que eu chore, peço-Vos, ponde na salva de ouro e ofertai a Ele!” Ela o fará certamente.

Essas palavras conduzem à confiança, à alegria e à luta pela virtude. Confiança, alegria e luta são os estados de alma que eu vos desejo neste grande dia. Arautos, ide e proclamai por toda a Terra Nossa Senhora, Rainha do Universo!

O boletim do Colégio São Luís

Acabo de falar em confiança. Eu sei de um menino que era aluno do Colégio São Luís, e que fez uma falsificação de um boletim. Esse menino, tão longe de ser menino hoje, vos está falando neste momento. No colégio, davam-se duas notas para cada matéria: aproveitamento e comportamento.

Minha mãe costumava dizer-me, para me formar, e eu tomava muito a sério: “Eu não faço tanta questão de nota de aproveitamento. Se você não aproveitou as aulas — os professores são dos melhores de São Paulo —, é porque você é burro, e ninguém tem culpa de ser burro; seria como se eu tivesse um filho doente; não há culpa em ser doente. Se você fosse burro, eu teria pena, olharia para você e diria: ‘Pobre Plinio, é burro!’ Mas eu tocaria a vida com o Plinio burro. Agora, nota baixa em comportamento, não! Porque significaria que você é ruim, e isso eu não tolero; ruim não pode ser”.

E quando distribuíram meu boletim no colégio, veio com boas notas de aproveitamento. Depois, em comportamento, 10 em todas as matérias — era a nota máxima —, mas em Geografia, seis. Tratava-se de um professor com quem eu não simpatizava muito, meio caprichoso, e eu sabia não merecer aquela nota, porque era um aluno bem comportado. Então pensei:

“É, aquele homem, que me olha atravessado, não gosta de mim e percebeu que eu também não gosto dele, e me bateu esse seis na cabeça. E agora, como vou me arranjar? A minha mãe vai ficar indignada comigo e eu não tenho culpa!” Não tive dúvida, peguei a minha caneta e escrevi por cima, 10.

Vendo o que havia feito, refleti: “Minha mãe não vai acreditar nisso, eu fiz uma bobagem. Ela vai ver o que estava escrito embaixo e será pior”. Eu tinha uns dez ou onze anos. Estava chovendo e ocorreu-me, então, a seguinte ideia: “Já sei o que fazer: vou levar este boletim na chuva e deixar cair água em cima deste infortunado 10; assim borra tudo isso, o que eu escrevi e o que estava embaixo. Quando ela me perguntar, vou dizer que abri a minha caderneta na chuva e que a página se encheu de água.”

Então fui para a chuva e abri o boletim. Mas não havia meio de cair uma gota d’água na referida nota. Afinal, caiu uma gota, mas fez um riacho ali, e ficou uma coisa indescritível!

Indignação de Dona Lucilia

Dona Lucilia sabia que era o dia da distribuição de boletins. Cheguei a casa procurando disfarçar, distraí-la para ela não pedir o meu boletim. Mas foi em vão…

— Plinio, onde está o boletim? — perguntou-me.

— Está aqui — respondi.

Ela o abriu, olhou e exclamou:

— O que é isto?!

Não ousei chamá-la de “meu bem”, como de costume, e contei-lhe a verdade.

Ela me disse:

— Pelo que me conta, você é um estelionatário!

Estelionatário é quem falsifica documentos, mas a palavra me pareceu uma chicotada no ar. Pensei: “Estelionatário, que crime horrível, com nome tão pesado! Amanhã eu entro no São Luís e os meus colegas vão apontar: ‘Aqui está o estelionatário’, e se afastam todos de mim”.

Mamãe acrescentou:

— Fique sabendo que, na segunda-feira, vou mandar seu pai ao Colégio São Luís para verificar qual foi a sua nota. Se você realmente mereceu esse seis, você vai para o Colégio Caraça, em Minas Gerais.

O Colégio Caraça era um excelente colégio, mas tinha em São Paulo uma fama, completamente injusta, de ser um estabelecimento de ensino severíssimo, uma espécie de penitenciária para meninos. Eu fiquei horrorizado. Imaginem: Caraça… E, depois, longe de mamãe!

”Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Eu estava assim, nessa angústia, quando chegou o domingo e fui à Igreja do Coração de Jesus, onde eu costumava assistir à Missa. Comecei a rezar e, de repente, meu olhar fixou-se na imagem de Nossa Senhora Auxiliadora. Vendo-a tão nobre, tão afável, tão amável, vieram-me aos lábios as palavras “Salve Rainha”. Salve, em latim, quer dizer “eu te saúdo”, mas eu tinha a impressão de que significava “salvar”, “agarrar-me”. E pensei:

“Aqui está o que eu preciso! Salve Rainha, Mãe de misericórdia… Mãe, e Mãe de misericórdia, que coisa boa, hein! Mamãe é tão boa, mas Nossa Senhora é incomparavelmente melhor do que mamãe. Ah! vou arranjar esse caso com Ela.” Rezei a Salve Rainha inteira, várias vezes.

Não tive uma visão nem revelação, mas ficou-me a impressão de que a imagem me olhava e dizia: “Olhe, eu arranjo isso, meu filho”.

No dia seguinte, meu pai foi falar com o reitor do colégio que, depois de averiguar a nota nos registros, afirmou:

“Isso foi uma criancice sem nome do Plinio! Ele tinha a nota 10, porém o funcionário que copia as notas errou e escreveu seis. Se seu filho dissesse que se julgava objeto de uma injustiça, eu teria mandado verificar e eu mesmo poria a nota certa no boletim dele.”

Meu pai contou isso à minha mãe, que me disse:

“Está bem desta vez. Mas nunca mais repita isso, senão, da próxima vez… Caraça.”

Pensei, aliviado: “Nossa Senhora me ajude para eu não fazer uma outra bobagem desse gênero.”

Encerremos, portanto, nossa reunião, rezando a Salve Rainha.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/10/1987)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)

1) Ct 6, 10.

 

ENCONTRO COM O CORAÇÃO EUCARÍSTICO DE JESUS

Certa vez perguntaram a Napoleão Bonaparte qual havia sido o dia mais feliz de sua vida. Apesar de toda a glória que lhe obtiveram seus ribombantes triunfos militares e políticos, ele não hesitou  em responder: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”. Este é um exemplo muito ilustrativo de quanto uma alma fica marcada, de modo indelével, pelo momento em que se abre para ela o  convívio com Nosso Senhor sacramentado. Tal se passou também com Dr. Plinio, naquele 19 de novembro de 1917, quando se aproximou pela primeira vez da Sagrada Eucaristia. Décadas mais  tarde, ele se comprazeria em recordar essa inesquecível data:

 

A atmosfera que cercava as Primeiras Comunhões, no meu tempo de menino, era muito especial, porque fora organizada segundo a doutrina e a mentalidade de São Pio X, o Pontífice das Primeiras Comunhões. Antes dele, a tendência corrente era de que uma pessoa só se aproximasse da Santa Mesa quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças a recebam, pois não têm critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

O que importa é o grau de inocência

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque, se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E, mesmo nesse início da vida de pensamento, as graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé. É esse um dos motivos primordiais pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia.

Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, quando ela passa a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Trajes especiais

São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. Datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas nessas ocasiões, e os trajes  cerimoniosos com os quais meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus sacramentado, símbolos do coração inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Recordo-me de que, na minha época (e talvez esse costume se conserve até hoje), as meninas apareciam diante de Nosso Senhor, o Divino Esposo das almas, trajadas de noiva, com vestido longo,  o véu cingido na fronte por uma grinalda de flores brancas, e brancos também os sapatos.

Por sua vez, os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto o permitiam as posses de seus pais. Aqueles com mais recursos mandavam confeccionar uma roupa especial para a ocasião. E no meu tempo, o hábito de Primeira Comunhão masculino era a cópia do uniforme solene de um dos colégios mais famosos do mundo — o “Eaton”, da Inglaterra: uma roupa muito pomposa, consistente em paletó e calça de casimira inglesa e corte elegante, camisa engomada, de colarinho duro, gravata escura. No braço esquerdo fixava- se um laço de fita branca, em cujas pontas brilhavam pingentes dourados. O branco simbolizava a castidade e a virgindade do menino; o dourado lembrava a sua fé.

Depois da cerimônia, a festa No dia da Primeira Comunhão, após o ato na igreja (comumente realizado pela manhã), as respectivas famílias costumavam se reunir nas casas dos meninos, onde as  mães haviam preparado uma grande festa para celebrar a data memorável. Além dos parentes, eram convidadas todas as crianças com quem o filho ou a filha tinha relações, não sendo raro  ajuntarem-se vinte ou trinta pimpolhos, em torno de uma lauta mesa. Naqueles idos de 1917, a maravilha que fazia a alegria da meninada era o prato de chocolate com o que chamavam de creme “chantilly”. Como São Paulo era, entretanto, uma cidade ainda nos primórdios de seu desenvolvimento, não se conhecia o verdadeiro “chantilly”, mas apenas uma deliciosa imitação feita com clara de ovo batida. Então vinham aquelas copiosas porções de chocolates sob o “creme francês”, e as crianças se regalavam. O passo seguinte era fazer as honras às frutas, sorvetes, refrescos e toda espécie de sanduíches e doces.

Terminado o banquete, começava a correria pelo jardim da casa, tanto maior quanto mais extenso fosse o terreno à disposição dos infatigáveis meninos. O cansaço só se apresentava à noite, quando se aprontavam para dormir, depois de terem rezado.

Assim transcorria o dia da Primeira Comunhão. “Hoje, pensem apenas no Santíssimo Sacramento” Para mim, minha irmã e uma prima que fez a Primeira Comunhão conosco, as coisas se passaram de modo diferente. Dª Lucilia, exímia organizadora de tudo, entendia que a comemoração em família não deveria acontecer na volta da igreja.

Julgava ela que, se realizada a festa no mesmo dia, poderia haver o risco de a criança, levada pela imaginação infantil, amanhecer pensando mais nos festejos do que na Sagrada Eucaristia. Então, com seu afeto e cuidado todo especial, mamãe nos chamou alguns dias antes para nos colocar a par do programa.

Disse-nos: — Vocês devem entender que a festa não vai ser no mesmo dia. Nessa data vocês devem se preocupar somente com a Primeira Comunhão. É como se fosse um feriado: não vão estudar nem se entregar a atividades muito dispersivas. Devem passar o dia vestidos com o hábito de Primeira Comunhão e terem atividades tranquilas, dentro de casa, sem ir ao jardim, e evitar de olhar pelas janelas, para não se distraírem com o movimento da rua. Passeiem de uma sala para outra, de um quarto para outro, andem pelos corredores, rezando e procurando lembrar-se do que se deu com vocês nessa ocasião. Quer dizer, pensem e concentrem a atenção no Santíssimo Sacramento. Depois, no dia seguinte, faremos a comemoração em grande estilo.

Um passo muito sério a ser dado

Nós três havíamos tido um curso de catecismo particular, ministrado por um padre amigo da família. Durante algumas semanas, ele nos explicou os pontos essenciais da Doutrina Católica, contou-nos a História Sagrada, etc., preparando-nos dessa forma para o solene encontro com Nosso Senhor Eucarístico. Dª Lucilia, por seu lado, também nos predispôs para a Primeira Comunhão, antes e mais do que tudo pelo ambiente que ela criava em casa, todo feito de piedade, de inocência, de inteira e ilimitada confiança nela, bem como de imenso afeto. Além disso,  mamãe nos ajudava a entender melhor as lições recebidas do padre, e nos fazia ter uma alta ideia do que significava a graça da Primeira Comunhão. É supérfluo dizer que a materna e zelosa  assistência dela nos foi de imenso proveito.

Assim, a preparação feita com muito cuidado pelo padre, somada às explicações de Dª Lucilia, que completavam os ensinamentos do sacerdote, e depois o programa traçado por ela dias antes da  Primeira Comunhão, fez-nos ver como era sério o passo que íamos dar. Evidentemente, esse ambiente criado em torno de nós era próprio a determinar todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu, particularmente, fiquei muito compenetrado e fiz o propósito de observar esse recolhimento quanto me fosse possível, nos meus nove anos. Depois de termos sido examinados, e verificado que  sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma turma de Primeira Comunhão da paróquia de Santa Cecília. Foi um mundo de crianças, vestidas de acordo com a situação financeira dos pais. Algumas estavam ricamente trajadas, levando nas mãos lindos rosários e livrinhos de oração encadernados com forro de madrepérola. Os de certas meninas eram até recamados de pérolas nas bordaduras. Outros eram impressos com várias cores e também muito bonitos.

A primeira confissão…

Antes desse grande dia, porém, fiz a minha primeira confissão. Tomei-a com tanta seriedade que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados na hora de dizê-los ao padre, fiz uma lista deles. Imagine-se o que podiam ser as faltas de um menino de nove anos… Entretanto, apesar da pouca gravidade que elas poderiam encerrar, tive de me arrepender a duras penas por havê-las cometido! Pois a Fräulein Mathilde, a governanta alemã que nos levara para confessar, era muito exigente. Antes de eu me dirigir ao confessionário, ela me perguntou: — Você está arrependido de seus pecados?

Eu entendia que estar arrependido era sentir vontade de chorar pelas faltas cometidas. Como tal sentimento não me viera, respondi: — Não!

Inflexível, a alemã (de quem conservo saudosa e boa recordação) replicou, num tom imperativo: — Faça uma Via-Sacra! Achei que, para uma alma dura como a minha, que não se arrependia dos seus pecados, a solução era mesmo rezar a Via-Sacra… Foi o que fiz com toda a convicção. Quando voltei para junto da “Fräulein”, ela me perguntou de novo: — Está arrependido? — Não! Creio que fiz umas duas ou três Vias-Sacras… Afinal, Nossa Senhora teve pena de mim e me concedeu algo vagamente parecido com uma tendência a chorar pelas faltas cometidas.

A governanta voltou à carga: — Você sente agora verdadeiro pesar?

Pensei: “As lágrimas estão vindo… ” Respondi então: “Sinto!” Ela imediatamente ordenou: — Vá fazer a confissão! Entrei no confessionário, puxei a lista dos meus pecados e a li para o sacerdote. Ele ouviu tudo com muita bondade e me deu a absolvição. Na saída, tomado pela importância do momento, não me dei conta de ter deixado cair aquela folha de papel. Quando já havia voltado para casa, mexendo nos bolsos dei pela falta dele. Então procurei Dª Lucilia e lhe disse: — Mamãe, eu preciso voltar à igreja para pegar tal papel, porque se alguém encontrar a lista dos meus pecados, ficarei em má situação.

Ela logo percebeu que era coisa de criança, mas ficou satisfeita ao ver como eu tinha levado a sério a minha primeira confissão. Enquanto nós dois conversávamos, aproximou-se uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, piedosa, chamada Madalena. Ela vinha trazendo umas roupas dobradas para guardar num armário e, naturalmente, prestou atenção na nossa conversa.

A Madalena achou graça na minha aflição de menino, e, voltando-se para mamãe, disse: — Ah, eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Então, Dª Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou  depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio!

Eu fiquei ultrajado ao extremo, mas vi que mamãe não tomou ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E eu, sabendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato. A  Madalena foi à igreja e não encontrou a lista.

Com certeza um sacristão, ou alguma faxineira limpando o recinto sagrado, encontrou aquilo e jogou fora. Estava acabado. Eram já não sei mais que pecados, mentirinhas não sei de que tamanho. Creio, porém, que os ter relacionado para não deixar de acusar nenhum e pedir perdão a Deus por todos, demonstra a compenetração com que me preparei para o Sacramento da Penitência, enquanto prelúdio da Primeira Comunhão.

Alegria por vestir o “Eaton”

Numa outra ordem de preparação, também tive de experimentar o famoso “Eaton” que usaria no dia solene. Obrigação para mim bastante enfadonha, pois toda a minha vida tive não pequeno desagrado em experimentar roupas: põe-se alfinete, tira alfinete, vira de cá, vira de lá, traçam-se marcas de giz… Nunca gostei disso. Enfim, o alfaiate contratado por Dª Lucilia fez os ajustes necessários, e chegou à conclusão de que o “Eaton” estava muito bom. Foi essa igualmente a opinião de mamãe, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eaton mal cortado. O  alfaiate seria muito bem tratado, receberia o justo pagamento pelo trabalho que fez, mas sob a condição de este estar perfeito. Ela achou que estava.

O encontro com Jesus Sacramentado

Na manhã seguinte, minha irmã, minha prima e eu nos dirigimos à Igreja de Santa Cecília, levando nossas velas que, assim como as das outras crianças, seriam acesas em determinado momento da Missa. O Santo Sacrifício, um tanto longo, dado que solene e cantado, foi seguido por mim com muita atenção, embora eu não soubesse ainda tudo quanto a Missa significa. Porém, o simples fato de estar presente a uma cerimônia da Igreja, pela qual eu já nutria imensa veneração, era o bastante para me fazer assistir àquilo com espírito de oração, com enlevo e profundo respeito.

Afinal, chegou o momento da Comunhão. Formaram-se, separadamente, a fila das meninas e a dos meninos que, pela primeira vez, receberiam em suas almas a visita de Nosso Senhor Sacramentado. Pelo favor de Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e procurei fazer minha ação de graças com intenso fervor e devoção.

Quando, terminada a celebração litúrgica, eu retornava para casa, estava radiante de contentamento. Junto com minha irmã e minha prima, passei o dia em recolhimento, conforme o programa estabelecido por Dª Lucilia. No dia seguinte houve uma festa soberba, com guloseimas de toda espécie, as costumeiras correrias pelo jardim, etc.

Preparação para uma vida de amor à Igreja Para concluir essas reminiscências de uma data que me é tão cara, gostaria de frisar um ponto que responde à seguinte pergunta: de que me serviu a Primeira Comunhão? Sendo o marco inaugural de uma série de comunhões, ela preparou e fortaleceu minha alma para enfrentar os combates que, dali a pouco, eu teria de travar pelo bem e pela virtude. Ajudou meu espírito a ter o vigor necessário para opor resistência — dolorida, mas forte e decidida — às solicitações más, e quantas vezes pecaminosas, que se apresentam a todo adolescente e a todo jovem.

Ela me preparou para uma vida que, graças à Santíssima Virgem, procurou se fazer sempre de piedade, de vontade de cumprir perfeitamente os mandamentos, e de entranhado amor à Igreja, para  cujos serviço e triunfo eu quis dedicar continuamente todos os meus esforços.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 20 (Novembro de 1999)

Santidade, o ideal de todo homem

De que aproveitará ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26) — é a advertência, repassada de solicitude, que nos faz o Divino Mestre. Na verdade, riquezas e glórias  terrenas, reconhecimento e aplausos nesta vida, de nada nos valerão para a eternidade, se não procurarmos a perfeição. Por isso Dr. Plinio tomava tanto a peito formar seus filhos e discípulos no  maior e mais belo dos ideais: a santidade.

 

Neste mundo em que o existir humano se volta, cada dia mais, para os interesses meramente terrenos, é muito importante termos bem claro qual o verdadeiro fim a que o homem deve aspirar na sua vida.

A felicidade da perfeita realização

Em primeiro lugar, consideremos que a criatura humana, por sua natureza, é dotada de valores e possibilidades que ela deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se realizar por inteiro. Para  e valer de uma comparação, tomemos por exemplo um vidro de perfume aberto numa sala. Ele contém uma fragrância da qual o próprio é evaporar-se e impregnar com seu envolvente  aroma o ambiente em que se encontra. Suponhamos que o perfume, posto no frasco, pudesse pensar. E imaginemos que ele permanecesse tampado no seu invólucro de cristal sem que ninguém  jamais o cheirasse, guardado numa gaveta, esquecido, durante 100, 150 anos, até que alguém, ao arranjar um armário velho, numa velha casa de família, o achasse, o destampasse, e dissesse: “Isto  é um perfume antigo que não vale para nada”.

E logo em seguida o espalhasse pelo jardim, deixando que seu cheiro deteriorado e repelente espante as minhocas e bichinhos que vivem dentro da terra. Se esse perfume pensasse, ele julgaria que  ua existência foi bem sucedida?

Reflitamos um momento. Dentro de um vidro de cristal que abafa, colocado na semi-obscuridade de uma gaveta segura, ele teria todo o conforto e a tranqüilidade das coisas nas quais ninguém mexe, que não passam por nenhum susto, que não trabalham, das coisas que, afinal de contas, são zero. Ele estaria ali cercado de toda comodidade. Um perfume não come, não bebe, não dorme; um perfume simplesmente se limita a existir, e existir dentro de um vidro. Um bonito frasco de cristal é um palácio para um perfume, com todas as facilidades de uma boa existência.

Entretanto, algo nele lhe é motivo de sofrimento. É que está na natureza dele perfumar, e ele preferiria qualquer coisa a não poder fazê-lo, pois esta lacuna é contrária à sua essência.

Semelhante raciocínio se aplicaria, por exemplo, às águas que correm sob a terra. Existem rios, fontes subterrâneas que não chegam a aflorar na superfície, e vêem suas águas caudalosas, abundantes, viverem numa perpétua obscuridade. Essas águas poderiam pensar o seguinte: “Felizes somos nós, que não temos bichos, que não precisamos suportar o peso de nenhum barco, e não temos de fazer outra coisa senão deixar a força da gravidade nos ir levando para onde for. Para nós é o ideal!”

Mas, imaginemos que uma dessas águas, de repente, passasse por uma fenda qualquer, encontrasse finalmente a luz do sol e começasse a longa travessia de uma massa líquida desde a sua nascente até o oceano onde ela deve sumir.  É uma epopeia que atravessa mil vicissitudes: um pouco dessa água é absorvida pela terra, outro tanto se evapora, forma-se em nuvem e vai cobrir os céus de algum lugar distante do mundo; um pouco dessa água é derramada aos pés de uma flor, transforma-se em matéria que fará desabrochar uma linda magnólia ou uma bela rosa…

A água passará por mil vicissitudes, mas quando ela saísse da terra e começasse a sua movimentada trajetória, se ela pudesse pensar, se ela pudesse cantar, ela cantaria depois de ter pensado, e diria: “Chegou a minha vez de ser flor, de ser bebida pelos homens e pelos animais, chegou a minha vez de ser nuvem, chegou a minha vez de ser tudo! Afinal, realizarei aquilo que está na minha natureza ser!”

E por mais aventurosa que fosse a existência daquela água, nisto ela encontraria uma felicidade que não lhe seria dada em nenhuma outra condição.

Todo homem procura um ideal

Se essa  necessidade da existência realizada parece tão evidente nos seres inanimados quando nós os imaginamos vivos, como não o será para o homem? Ao procurar a sua felicidade, a sua realização, o  que ele deseja? Ficar engarrafado? Ser um curso de água subterrâneo? Ele procura não ter história, nem vencer dificuldades?

Não. Inteligente, dotado de uma alma espiritual, a primeira coisa que o homem procura, pela sua natureza, é ter um ideal: uma verdade suprema de onde ele deduza todas as outras verdades; uma  beleza suprema da qual ele deduza todas as outras belezas; uma santidade suprema em cuja luz ele contemple todas as outras santidades. Isto o homem deseja, sem que lhe baste ficar apenas no  pensamento. Depois de pensar, ele quer agir, quer ter uma vida em que mexa as coisas e as faça andar num determinado rumo, ainda que isto lhe custe muito. E ao atingir o anoitecer da existência, o homem se perguntar á sobre seus dias neste mundo. E terá imensa alegria se compreender que ele foi um perfume que se evaporou, foi uma água que fecundou terras ou se transformou em flor; se ele compreender, sobretudo, que foi um herói, enfrentando riscos, realizando seu ideal. Então, feliz, ele pode encarar de frente o pouco tempo que lhe resta, e dizer:

“Eu fiz o que eu deveria ter feito, a minha vida está realizada! Vivi! E agora só me resta a coroação da vida: é morrer.”

Ser santo, a mais bela ambição humana

Trata-se de um impulso interno  existente em todo homem, e que se reveste de particular riqueza se considerarmos o seguinte: quando uma criatura humana procura se realizar, procura ser “perfume”, procura ser “água”, procura ser herói, ela não pode ter ambição mais bela e mais nobre diante de si, do que a de ser santa.

Enganar-se-ia quem pensasse que o ideal de santidade não está ao alcance de qualquer um, mas apenas para aqueles expoentes da humanidade que um dia chegam à glória dos altares.

Na verdade, segundo a doutrina católica, sabemos que, pela ação da graça, dom sobrenatural de Deus, todos nós podemos ter uma participação criada na existência incriada do Altíssimo. Com  isto, algo de divino penetra em nós, e recebemos uma força para conhecer e crer em coisas as quais nossa inteligência, por maior que fosse, não teria capacidade de compreender sem esse auxílio da graça. Assim como à nossa vontade é comunicado um vigor para fazer e conseguir coisas que, sem a ajuda sobrenatural, não faria nem conseguiria.

Quer dizer, a graça eleva o homem a uma tal condição que o menor indivíduo — como capacidade, como apresentação, como cultura, como tudo —, sob o influxo da vida sobrenatural vale mais do que  o maior dos homens sem aquele dom divino.

Convidados para a corte celestial

E o primeiro convite que Deus Nosso Senhor nos dirige, quando a Providência d’Ele nos encaminha para o batismo, é este: “Meu filho, Eu te dei a condição de homem; não queres mais? Não queres  ser um príncipe na minha Criação? Eu te concedo uma participação criada na minha própria vida. Com isso Eu habitarei em ti, e tu serás o templo no qual Eu viverei. Far-te-ei meu herdeiro.”

É um chamado maravilhoso, que se desdobra em outros não menos extraordinários. Depois de ser dado ao homem o Batismo, após ser infundida nele esta virtualidade incomparável que é a graça,   própria graça o impele para coisas inauditas, superiores à sua estatura, coisas em que o homem galgue acima de si mesmo e realize feitos de heróis de sonho, de heróis de paraíso, numa palavra, de heróis do Céu.

O verdadeiro católico no qual vive a vida sobrenatural deseja, portanto, o maior. E se ele não chegar ao maior, não chega a nada. Ele quer o quê? Ser um cortesão de Deus no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça, imorredoura, na contemplação e no diálogo contínuo com o Ser Supremo, Perfeito, que é Deus Nosso Senhor, por toda a eternidade.

Ali teremos esse convívio perpétuo com o Criador, no qual Ele nunca se cansa de nós, e nós nunca nos cansamos d’Ele: Verdade, Bondade, Virtude, Santidade e Beleza personificadas, recompensa  demasiadamente grande que encontraremos no fim desta altíssima escada que todos subimos, degrau após degrau, passando por aventuras, batalhas, sacrifícios e privações. Ali, Deus se revela a nós na sua eternidade, com todo o atrativo daquilo que existiu sempre e daquilo que sempre existirá — o passado no seu esplendor, o futuro na sua magnificência.

É uma situação simplesmente admirável a que somos chamados, fazendo-nos santos, postos na visão e na adoração contínuas da Trindade Santíssima. Então, compreendamos que um homem de fé não se sente talhado para a vida insípida do perfume engarrafado, que envelhece e em determinado momento é jogado fora. Ele se sente, sim, feito para uma imensa, criteriosa, sábia, mas ousada aventura, aquela em que ele ordena sua alma para Deus, a purifica e embeleza, preparando-a para o salto dentro da morte. E com a proteção de Nossa Senhora, Mãe e Rainha de Misericórdia, este salto será para a bem-aventurança eterna, para a corte celestial onde um assento nos está reservado.

Julgados e premiados segundo o amor

Para concluir, é oportuno lembrarmos ainda que Deus tem seus mistérios, e não há quem possa afirmar com toda a certeza que tal bem-aventurado é maior que outro aos olhos do Senhor. Quem  poderá conhecer os arcanos da maravilhosa história das almas? Quem poderá ter exata noção de quantas pessoas se sacrificaram pela Fé nos desertos da África e da Ásia, nas vastidões das Américas, em  meio a populações bárbaras e indígenas, aqui, lá e acolá? E com quanto amor essas pessoas aceitaram esse sacrifício?

Ora, é pelo amor que somos grandes aos olhos de Deus. E se alguém, apagado e obscuro no entender do mundo, entretanto fez um imenso sacrifício com imenso amor, quando forem reveladas todas as coisas no Juízo Final, o maior será esse.

Donde, também, não devemos nos pôr a pergunta se os homens reconhecerão nossas realizações e nossas grandezas. Importa sabermos que Deus nos assiste a todo momento, perscrutando no fundo das almas o amor com que O servimos. E se é verdade o ensinamento de São João da Cruz, segundo o qual “no entardecer desta vida, seremos julgados segundo o amor”, o amor que tivemos a Deus, é verdade então que Ele olhará para quem mais O adorou e glorificou, de forma notória ou oculta, e lhe dirá: “Este me amou de modo extraordinário e merece a maior recompensa!

Por sua vez, este homem que santificou sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer as palavras mais magníficas que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Eu percorri toda a extensão que deveria percorrer; combati por Vós o bom combate, o combate pelo bem; dai-me Senhor, agora, o prêmio de vossa glória!”

É na esperança de podermos viver, de batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve graças para nos tornarmos  outros heróis da Fé e príncipes do Céu, que devemos atravessar nossos dias nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2011)

Belezas filhas da santidade

Entre todas as civilizações que se formaram ao longo da História, nenhuma produziu riquezas e maravilhas superiores às da Civilização Cristã, nascida do influxo direto da santidade da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Considerada nos seus vários séculos de existência, a Europa nos aparece grande não apenas pelas obras primas que engendrou, mas, sobretudo,  pelos grandes homens e grandes povos que teve, dotados de virtudes, peculiaridades, graus de cultura e de bem-estar incomparáveis, dos quais brotaram tudo quanto houve — e ainda há — de mais belo e digno de admiração no Velho Continente.

Daquele conjunto de indivíduos e nações, movido por um consenso bafejado pela Igreja, surgiram, por exemplo, as célebres corporações medievais, assim como as mais renomadas universidades  ou os mais lindos tesouros de arquitetura urbana, jóias que cintilam com as luzes de uma Paris, uma Viena, uma Veneza… Goethe, o insigne literato alemão, registra em suas Memórias a visita que fez à esplendorosa “Rainha do Adriático”, onde, diz ele, “até nas mais humildes choupanas encontram-se traços de elaborada arquitetura”. Quer dizer, sobre o que outrora eram pântanos, os nobres edificaram palácios, e os homens do povo construíram casinholas nas quais, de repente, a forma de uma porta ou de uma janela, o colorido de um vitral ou de uma lanterna refletem o mesmo senso artístico que admiramos nos primeiros.

Como esses, quantos outros cenários, instituições e estabelecimentos fizeram da Europa algo sem precedentes na História! Uma Europa que se tornou maravilhosa em tudo, desde a receita do pão  preto popular até o mais fino vinho de Champagne, do Reno, de Cades ou do Porto que se possa querer. Portanto, uma civilização que sempre procurou píncaros, ideais, pulcritudes, inclusive nas  menores coisas. E que — ciente de ser a terra um vale de lágrimas, um lugar de degredo, com seus inevitáveis prosa “ísmos” — soube criar um modo de atenuá-los e de torná-los pitorescos.

Creio não me enganar se dissesse que, talvez sem o perceber muito, as pessoas não vão à Europa somente atrás dos grandes monumentos ou dos melhores hotéis. Vão, também, por causa dessa legenda dourada, variada e pitoresca que cada povo europeu cultivou à sua maneira.

Todas essas maravilhas, reiteramos, nasceram das graças da Igreja Católica, e de uma noção muito ampla do amor a Deus, fonte de toda beleza, inundado na glória de sua essência eterna, imutável, perfeita, absoluta. Nasceram de um modo de ver a santidade com uma plenitude e com uma extensão de conseqüências concretas, quase inimaginável. Entendendo que a prática dos Mandamentos, sobretudo do primeiro, leva o homem a querer implantar no mundo o “verum, bonum, pulchrum” — o verdadeiro, o bom e o belo — em todas as matérias e em todos os campos, para que tudo fique semelhante a Deus, para que a terra se pareça com o Céu.

Daí as ordens religiosas, constituídas para praticar a perfeição espiritual e o completo desapego aos bens materiais, estarem na origem de alguns dos vinhos e licores mais preciosos que o homem já concebeu, além de queijos, chás, cervejas e outros produtos de primeira categoria. Coisas de que eles, monges feitos para a renúncia a tudo, não desfrutam, mas fabricam por amor a Deus, sabendo que Lhe dão uma glória especial contribuindo para o ornato desses aspectos cotidianos da vida.

Por outro lado, essa mesma santidade, esse mesmo impulso para o sublime inspirou os castelos fabulosos, as residências principescas e régias, assim como as imponentes catedrais góticas que  proclamam, com sua altivez e esplendor, a triunfante beleza de Cristo ressurrecto.

Pequenas e grandes obras-primas de almas cheias de entusiasmo, de amor a Deus, de anseio por levar as coisas à máxima expressão de “verum, bonum e pulchrum” de que são capazes. Em torno delas floresceu a maior das civilizações. Desabrocharam as magnificências da Europa cristã.

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 56 (Novembro de 2002)

A arte de subir e descer escadas

Sem exagero poder-se-ia dizer que em Dr. Plinio a observação do mais profundo, expresso na realidade dos edifícios, ambientes e atitudes humanas, enquanto reflexo de qualidades ou carências da alma, era uma segunda natureza. Assim, numa exposição verbal, discorreu ele sobre o papel das escadas e das formas pelas quais, ao subir e descê-las, o homem manifesta sua dignidade de filho de Deus.

 

Em ocasião anterior consideramos como o subir e também o descer escadas constitui, no seu gênero, uma arte. De fato, tanto quanto as circunstâncias permitirem, o homem deve ter o pudor de suas próprias misérias, velá-las, por respeito a si mesmo e aos outros.

Demonstração de apreço pela virtude

Emprego a palavra “pudor”, não no sentido da castidade preceituada pelos sexto e nono Mandamentos, e sim no de frisar que tais misérias são castigo de um pecado cometido por nossos ancestrais no Paraíso terrestre e todos nós carregamos o ferrete daquela queda. As debilidades são, portanto, reflexos da mancha original à qual o homem acrescentou suas próprias faltas.

Assim, o homem procura disfarçar suas lacunas como homenagem prestada à virtude. E o “maintien”(1), exigindo um esforço dele sobre si, é um preito de seus lados fracos àquilo que ele teria sido se não fosse o pecado. De sua parte, essa é uma atitude bela e nobre.

Cenário para o exercício de uma arte

Então, a escada precisa ser construída de maneira a servir de cenário digno, distinto, mesmo numa habitação modesta, para que o homem possa exercer a arte de subir ou descer. Se falarmos não de uma casa comum, mas de um palácio, neste deve haver uma glorificação dessa arte, pois muito mais do que a moradia do conforto, ele é a residência do esplendor, cuja definição adequada é esta: habitação proporcionada com a glória. Assim, com sua escadaria, o palácio deve dar às pessoas a possibilidade de descê-la e subi-la brilhantemente.

E aqui caberia perguntar o que é mais glorioso: subir ou descer?

Em tese, é o subir. Por exemplo, à medida que se eleva até o zênite, o sol patenteia de modo crescente a sua glória. Pelo contrário, passa a velá-la, conforme se põe e se deixa envolver paulatinamente nos crepes da noite.

Porém, nossas operações são feitas na presença de Deus e dos homens. Diante do Criador, o mais glorioso, de si, é subir uma escada. Entretanto, aos olhos dos homens, é o descer.

Explico. A pessoa que sobe é vista de cima para baixo por quem está no andar superior; e aquele que desce é observado de baixo para cima por quem se encontra no plano inferior. E, portanto, mostra-se melhor a própria glória a quem está embaixo do que àquele situado no alto.

Diversos modos de se descer uma escada

Como se deve descer com honra uma escada?

Antes de tudo, não se pode ser “mega”(2). Quer dizer, a pessoa precisa descê-la com glória, quando a esta tem direito; com distinção, quando se encontra numa situação ou é pessoa distinta; com correção, pelo simples fato de ser uma criatura humana, porque todo homem tem obrigação de ser correto.

Sumamente incorreto é dar a impressão de que perdeu o auto-controle e cairá. Portanto, se alguém tiver agilidade de descer uma escada depressa, saltando de dois em dois degraus, não deve fazê-lo, pois dará impressão de uma avalanche desmoronando.

Como a lei da gravidade nos atrai para baixo, o homem precipitando-se desenfreadamente nessa direção transmite a ideia de alguém vencido por aquela lei, entregue, derrotado, como um destroço que rola. Por isso, se houver necessidade de ele descer uma escada com rapidez, deve procurar manter a correção, portando-se de maneira a demonstrar claramente que, apesar da pressa, conserva inteiro domínio de si. Portanto, sua cabeça e seu tronco têm de estar tesos e eretos. Se não observar essa postura, descerá de modo vil.

Ora, nenhum homem tem o direito de fazer uma coisa de forma desprezível. Pelo fato de ser criatura racional, está obrigado a agir com correção, é uma exigência da dignidade humana.

Quando uma pessoa se acha numa situação de distinção, pela sua idade, pelo seu cargo ou outras circunstâncias, deve descer a escada, não muito devagar, mas compassadamente, a fim de permitir aos que estão embaixo perceberem todas as fases da operação: o avançar dos pés, a posição do tronco, da cabeça, etc. Além disso, precisa fazê-lo de modo desembaraçado, dando a ideia de estar posto em cogitações elevadas, sem prestar atenção nos degraus como se receasse cair.

Um acontecimento…

Assumindo essa postura, à medida que vai descendo, a pessoa faz sentir cada vez mais sua ação de presença. Esta se torna plena quando ela atinge os últimos degraus, e se percebe que não chegou apenas um corpo — como um pacote de carne e ossos — mas também uma alma.

Os antigos, tendo melhor noção desses aspectos da vida, faziam com que os grandes personagens, conforme a indumentária própria ao homem ou à mulher, usassem cauda. Por exemplo, os bispos e altos dignitários de Estado (como reis e príncipes) tinham capa magna, a qual era levada por pessoas distintas ou simples pajens, de acordo com a situação.

Ao descer uma escada, a cauda formava-lhe um fundo de quadro, e à medida que baixava, o tecido ia se desdobrando; ao tocar o solo, estava todo estendido. Aquela descida de escada tinha sido um acontecimento…

No subir, afabilidade e deferência

Por seu lado, o subir uma escada de maneira correta requer igualmente determinadas disposições de corpo e espírito.

Assim, o que sobe precisa fitar quem se acha em cima, de um modo afável, atencioso, conforme o caso respeitoso, como se já estivesse perto dele. De certa forma, sua alma tem de anteceder seu corpo, impressão esta que ele transmitirá se, ao pisar o primeiro degrau, depositar desde logo o olhar naquele que o aguarda no alto.

Em seguida, empreender a ascensão sem precipitações, evitando qualquer manifestação de cansaço, de peso, às vezes esboçando um sorriso. Ao atingir os últimos degraus e se aproximar de quem o espera, deve dirigir-lhe a palavra, de tal maneira que o outro não perceba a distância entre os dois, e em todo momento se sinta igualado ou até mesmo superado.

São estas algumas atitudes e posturas pelas quais o homem, observando-as no ato de subir e descer escadas, é capaz de conservar sua dignidade de ente racional, criado à imagem e semelhança de Deus.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Postura correta

2) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera. E empregava o vocábulo “mega” para significar o indivíduo que se deixa arrastar por esse defeito.

O sacerdócio, uma honra sublime

Imbuída de laivos de anti-clericalismo do século XIX, a alta sociedade dos anos 30, embora não faltassem nela vocações, afastava seus filhos do caminho do sacerdócio, procurando para eles um futuro mais rendoso e mais valorizado pelos conceitos mundanos. Porém, como nos mostra Dr. Plinio no presente artigo, a elevada missão sacerdotal deve ser abraçada por membros de todas as camadas sociais, e sempre será motivo de honra para uma família.

 

Na admirável e promissora multiplicidade das obras de apostolado que florescem na Arquidiocese de São Paulo, é muito possível que se oblitere a noção indispensável, de que a obra fundamental, o eixo necessário, o centro único de gravidade de todo o trabalho que atualmente se realiza, é a Obra das Vocações.

Fonte dos mais alvissareiros frutos para a sociedade

O assunto tem sido objeto de tantas e tão autorizadas dissertações, que seria temerário ou até impossível pretender dizer‑se qualquer coisa de novo a este respeito. Entretanto, a função da imprensa comporta uma larga tarefa vulgarizadora. Por isto, e porque me parece que nosso público nunca estará suficientemente cônscio da grandeza da Obra das Vocações, aproveito as solenes comemorações que se desenrolaram nesta Capital na semana passada, para dizer algo a este respeito.

Jornal feito por enquanto exclusivamente para católicos — por enquanto, note‑se — o Legionário não tem necessidades de demonstrar que o Clero, sendo indispensável para toda a vida religiosa do País, deve ser numeroso, para que sua função primordial, que é o de promover a salvação das almas, seja convenientemente exercida; tanto mais que o exercício dessa função espiritual e sobrenatural tem como conseqüência, na ordem material e concreta, os frutos mais promissores e substanciais.

Florão do patrimônio moral de qualquer linhagem

O que sobretudo quero provar, é que todas as classes sociais têm obrigação de concorrer com um contingente apreciável, para o recrutamento das fileiras sacerdotais, e que o sacerdócio, em lugar de ser um encargo oneroso do qual fogem as famílias, deve ser considerado uma honra sublime, um florão do patrimônio moral da família, sem o qual não estarão completas as glórias de qualquer linhagem, por mais antiga e ilustre que seja.

Esta observação tem sua importância. O Revmo. Pe. Garrigou-Lagrange lhe deu um forte relevo, na conferência que pronunciou em nossa Cúria Metropolitana, a propósito das vocações ao sacerdócio. Realmente, não é justo que se esquivem as famílias mais abastadas e mais ilustres, a dar seus filhos à Santa Igreja, entregando‑os à vida religiosa ou sacerdotal. Não se compreende que, entre nós, este estado de coisas perdure por mais tempo. Ele gera inconvenientes graves para a própria tarefa apostólica e constitui um sintoma irrefutável de uma crise moral séria.

Os inconvenientes decorrentes do fato de quase não se recrutarem sacerdotes em certas camadas sociais são evidentes. A Santa Sé, hoje mais do que nunca, insiste para que o apostolado seja, de preferência, desenvolvido por pessoas do próprio meio social. Em relação à Ação Católica, é esta uma norma essencial. Evidentemente, perde ela muito de seu vigor quando se trata, não mais do apostolado de leigos, mas das atividades da própria Hierarquia Eclesiástica. Sem embargo disto, ainda neste terreno, ela conserva uma oportunidade que os espíritos previdentes não poderão contestar.

A classe alta, ambiente mais refratário ao sacerdócio

Não convém que cheguemos a generalizações falsas e temerárias. Seria errôneo sustentar‑se que não se encontram no Brasil, entre as famílias mais ilustres, sacerdotes. Entretanto, é incontestável que esse é o ambiente mais refratário ao recrutamento sacerdotal. A Igreja não precisa, evidentemente, de sacerdotes desta ou daquela classe, para realizar sua tarefa. Tanto pode um sacerdote de família operária fazer seu apostolado nas mais altas classes sociais, quanto pode outro sacerdote, filho de ilustre família, dedicar‑se ao apostolado entre proletários. Sem embargo disto, é certo que o apostolado feito por uma pessoa do próprio meio tem vantagens que ninguém pode ignorar, e que devem ser tomadas na devida consideração.

Quanto à crise moral que essa abstenção revela, é muito séria.

Em última análise, significa isto que o espírito de abnegação, de devotamento, de renúncia, escasseia em nossas classes dirigentes. Efetivamente, se há retraimento em relação ao sacerdócio, deve‑se isto não raras vezes ao fato de parecer a vida de um sacerdote — e esta impressão é verdadeira — muito pouco vantajosa sob o ponto de vista das honrarias e dos lucros. De sorte que as famílias desviam intencional e até pertinazmente seus filhos, da vocação que Deus lhes dá.

Se, em um país, é este o espírito das classes dirigentes, que catástrofes, que abismos, que nuvens, não se podem antever em seu caminho?

Uma obra providencial

O fato não se demonstra apenas quanto à vocação sacerdotal. Também outras carreiras, que oferecem inconvenientes, são cuidadosamente afastadas por muitas famílias.

Um exemplo disto está nas carreiras do Exército e da Marinha, das quais, por egoísmo, e mediante violência, são afastadas muitas vocações autênticas.

Por quê? Porque, evidentemente, é mais rendoso ser banqueiro do que sacerdote ou militar. E, por isto, todos querem ser bacharéis e banqueiros. E poucos se obstinam em envergar a batina ou a farda.

Cabe à Obra das Vocações remover este e outros obstáculos. E ela o tem feito magnificamente. (…) Por isto, as Autoridades Eclesiásticas lhe deram o seu mais inteiro apoio. E o Legionário, que é, por natureza, um servidor de todas as causas santas, não poderia deixar de chamar, sobre ela, a atenção de seus leitores(1).  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Transcrito do Legionário de 13/11/1938. Título e subtítulos da redação.

 

O maravilhoso realizado na Terra

Na vida de Santa Margarida da Escócia nota-se a existência do maravilhoso na Idade Média dia. Não do maravilhoso como uma fábula ou lenda, mas como algo de realizável.

Para a brumosa Escócia, então terra de missão, essa princesa vinha trazendo sangue ilustre, toda a flor da civilização ocidental, tornando-se uma rainha magnífica, que deixa vários filhos ilustres por suas virtudes, e que intercedeu a favor do povo, deu esmolas, realizou milagres.

Tudo isso sempre ungido pela coroa real, além de uma ideia completa da realeza, apresenta um mundo concreto onde maravilhas são possíveis e o extraordinário, o estupendo, a ordem, mesmo a mais excelente e audaciosa, são realizáveis na Terra.

Santas como esta de tal maneira difundiam o bom odor de Jesus Cristo por toda parte, que acabavam sacralizando a própria dignidade régia e criando uma espécie de ambiente de feeria, de maravilhoso da civilização medieval, do qual os vitrais são um reflexo, apresentando os bem-aventurados em meio a pedacinhos de vidros dourados, cor de rubi, de esmeraldas, com uma luz na cabeça, a coroa real sobre uma mesa, uma santa que derrama flores em torno de si… Tudo isso é a imagem do próprio modo como o medieval concebia a vida, por exemplo, de uma Santa Margarida, Rainha da Escócia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1964)