O Homem-Deus – II

Continuando seus comentários à divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dr. Plinio salienta a extrema maldade daqueles que O supliciaram.

 

Dir-se-ia que vindo à Terra o Homem-Deus, diante de provas tão claras, de manifestações de uma superioridade divina a todo momento, o povo eleito — o qual sabia que o Salvador nasceria dele, e estava esperando-O — haveria de reconhecer o Messias, aclamá-Lo com glória e eleva-Lo ao píncaro do gênero humano. Se o povo judeu tivesse reconhecido o Messias, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, romanos, gregos, persas, egípcios, nada significariam. Esse povo seria elevado a um cume extraordinário!

Aqui se inicia o mistério da maldade humana. Esse povo que existia para isso, gemia porque o Messias não vinha; quando Jesus apareceu uma facção do povo se pôs desde logo contra Ele. E se cindiu: uma fração pequena do povo começou a adorá-Lo, a partir dos pastores que estavam em Belém e tiveram o anúncio do nascimento de Nosso Senhor. Mas, de outro lado, a maior parte passou a persegui-Lo.

Logo depois do nascimento de Jesus, Herodes fez o cálculo infame: “Deve ter nascido o Messias, porque os reis magos o estão dizendo. Ele ameaça o meu trono. É o Salvador previsto pelos profetas. Eu estou acreditando, ou pelo menos achando tão provável que até fico amedrontado”. E, para gozar a vida e ter o prazer de ser rei, Herodes quis matar Nosso Senhor sem nem sequer O ter visto, só porque Ele estava no mundo! Mandou, então, eliminar os inocentes, para evitar que o Inocente por excelência vivesse.

Desígnios misteriosos de Deus, caminhos que se compreendem só posteriormente! São José, coarctado pela falta de bondade da população em Belém, que não quis receber a ele e a Nossa Senhora, levou a Santíssima Virgem para uma gruta, fora da cidade.

Quando Nosso Senhor inicia sua vida pública, fazendo inúmeros milagres, o povo se entusiasma etc., aquele cálculo de Herodes se repete nas classes que mais O deveriam aclamar, quer dizer, na sacerdotal e na classe alta política, as quais começam a ter medo: “Quem é este homem que está levando atrás de si tais multidões? Ele é perigoso para nós; de repente nosso poder fica reduzido a nada!” Inicia-se, então, uma espécie de guerra, a “psy-war”, com calúnias e perguntas embaraçosas.

Os fariseus e os saduceus mandam pessoas fazer perguntas a Jesus, que O deixem mal à vontade. Pobres coitados! Se uma formiga quisesse lutar contra um animal quimérico, tão pesado como um elefante e forte como um leão, ela estaria mais próxima de vencer do que qualquer homem disputando com Nosso Senhor Jesus Cristo!

Questões elaboradas nos laboratórios da maldade e da insinceridade, todas retorcidas, cheias de ciladas. Posta a pergunta, vinha a resposta, em geral simples, direta, pulverizadora e luminosa.

— De quem é essa efígie?

— É de César.

— Pois dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

Não há mais nada a dizer.

O Evangelho conta que se difundiram calúnias a respeito de Nosso Senhor: era glutão, mundano, ambicioso… Como poderia ser ambicioso Ele que era tudo? É mais ou menos imaginar que um leão quisesse fazer carreira, transformando-se na abelha-mestra de uma colmeia…

Disseram que Ele comia em casa de publicano, para bajular as pessoas que tinham dinheiro… Falaram até — suprema calúnia, supremo insulto contra a evidência — que Nosso Senhor tinha parte com o demônio. Logo Ele, que era direta e esplendorosamente o contrário do demônio; nem é tão exato dizer que Jesus era o oposto do demônio: o demônio era o contrário d’Ele!

Várias pistas da conjuração por excelência que operou o deicídio

Começa-se a criar uma onda contra Nosso Senhor, a qual leva, em primeiro lugar, os muito ruins, que eram uma minoria bem colocada, poderosa e influente.

A partir da tintura-mãe dessa maldade da minoria, a onda começou a crescer de “proche en proche”, de vizinhança em vizinhança, a tomar os ambiciosos, os que se vendiam, aqueles que não queriam o mal pelo mal, mas se amavam tanto que, colocados diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, eram capazes de dizer: “Ele é tudo isto, mas ficarei popular, bem-visto, terei importância, se ajudar a calúnia. Portanto, para que os maus me batam as palmas, me glorifiquem, vou também, embora não tenha certeza, começar a falar mal de Jesus”.

Depois desses maus de segundo grau, outra zona moral do povo foi atingida: a dos moles. “Se eu disser o que penso, serei perseguido, e isso não quero. Embora eu verifique que contra Jesus esteja se fazendo uma injustiça abominável, uma ignomínia, uma infâmia, essas coisas são com Ele, não comigo! Quero levar vida fácil, agradável, de maneira que eu possa me instalar bem nesta Terra. Comprometo a minha carreira, tomando a defesa de Jesus. Logo, vou também falar mal d’Ele.”

“Falar mal é horrível. Vejo fulano, um “molóide” como eu — que não tem coragem de enfrentar os outros para não ser perseguido —, falar mal de Jesus. Mas eu sou um homem reto, e não farei isso. Simplesmente não falarei bem. E quando disserem d’Ele, diante de mim, as coisas mais inverossímeis, ficarei quieto.

“Não sou inimigo d’Ele; no fundo, gosto d’Ele, às vezes rezo para Jesus e Ele é tão bom que me atende. Razão a mais para eu não tomar o partido d’Ele. Se Jesus não me ajudasse, eu talvez tivesse vantagem de tomar sua defesa, porque Ele então me atenderia… Mas, uma vez que Ele me auxilia até quando não tomo o partido d’Ele, fico bem com uns e com Ele. Encontro aí o caminho bom para mim, onde me ponho.”

Em seguida, vem a coorte imensa dos voluntariamente imbecis: “Não tenho bastante capacidade intelectual para me situar diante desse problema. Se eu o visse com clareza, tomaria posição. Mas, Deus me deu uma inteligência pequena, não tenho muito jeito para resolver isto. De maneira que vou fechar os olhos e deixar correr o marfim”.

Essas várias zonas do povo foram sendo atingidas, estabelecendo-se em torno de Nosso Senhor o vazio.

A crise no Colégio Apostólico e a traição de Judas

A entrada d’Ele em Jerusalém, no Domingo de Ramos, foi uma manifestação de quanto o povo, apesar de tudo, O via e apreciava, mas não na medida do necessário, do justo. Aclamavam-No, é verdade, mas Ele merecia muito mais!

Fazem-Lhe uma meia festa. Por isso, em geral, as pinturas e gravuras de Nosso Senhor entrando em Jerusalém O apresentam com tristeza, pesar, e dirigindo um olhar quase severo para a multidão que O aplaudia. Para Ele o interior das almas não oferece segredo, e Jesus percebia a insuficiência, a precariedade daquela ovação de que Ele era objeto.

Humildemente sentado sobre um burrico, Ele atravessava em meio à multidão, chamando a todos, pela sua presença, a amarem a Deus. Porém, ao mesmo tempo, percebia as negações, as recusas, a frieza, a hipocrisia deste ou daquele ato de admiração, e sofria com isso.

Se fôssemos estudar todo o padecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não só a Paixão, dir-se-ia que a partir da primeira ingratidão Ele começou a sofrer. Quando teria sido essa primeira ingratidão? Não se sabe. Ela veio aos tufos, em grande quantidade, no Domingo de Ramos. Se fosse só isso…

Aproximam-se as festas judaicas da Páscoa. Nosso Senhor, inteiramente fiel à Lei — Ele era, como Deus, o Legislador —, realiza a ceia na quinta-feira e está com seus apóstolos à mesa. Sabia que um deles, portanto dos mais chegados, O havia traído. Esse apóstolo, que estava em crise, era um homem que Ele tinha chamado. Quer dizer, pela graça Nosso Senhor atraiu Judas Iscariotes para junto d’Ele, mas provavelmente Judas correspondeu mal, desde o primeiro momento. E foi um apóstolo medíocre, que deu depois num apóstolo infame. Crise, crise…

Confiaram a esse homem a guarda do dinheiro para as esmolas e, conta-nos o Evangelho, ele era ladrão. Roubava da caixa comum para gastos consigo a fim de satisfazer sua ganância.

Se fosse só essa crise… Os apóstolos “fervorosos” lá se encontravam com o Redentor; é o banquete. Ele lava os pés dos apóstolos, perdoa-lhes os pecados.

A tristeza vinha tomando a alma de Nosso Senhor; em certo momento disse o Redentor que um deles haveria de traí-Lo. Ele foi tão bom, que não afirmou outra coisa: “E vós todos haveis de Me abandonar”.

Ele conhecia a traição, e também o abandono. Um deles, São João, colocou o ouvido sobre o peito de Jesus, em gesto de amizade e intimidade, e perguntou quem era o traidor. Cristo respondeu: “Aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Ele não quis dizer o nome de Judas. Para não perceberem, deu uma resposta rápida, e falou baixinho. Tomou o pão e ofereceu-o amavelmente a Judas. Carinho para com Judas até o último momento.

Nosso Senhor dá a Judas aquela ordem misteriosa: “O que tens que fazer, faze-o logo”. E o traidor saiu durante a noite, e foi consumar o pecado dele.

Jesus não mandou Judas pecar. Mas Judas, naquele momento, rompeu com Nosso Senhor e retirou-se. Podemos imaginar seus passos aflitos, apressados: “Trinta dinheiros! Quero trinta dinheiros!” É melhor não excogitar como se fez o pacto, e o que Judas pensou quando sentiu os trinta dinheiros pesarem na sua sacola.

E quando Judas O oscula para que Jesus fosse preso, ainda é uma pergunta com carinho: “Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?” Judas não ligou. Trinta dinheiros, o resto não importa!

Todos conhecem essa história, que terminou ignobilmente numa figueira…

O Divino Redentor passa pela tristeza de constatar que também os Apóstolos escolhidos não O viam. No Horto das Oliveiras, quando dormiam, todos os esplendores de Nosso Senhor Jesus Cristo para eles eram nada. Estavam com sono, queriam dormir. E na hora do perigo todos fugiram. Até aquele que pousara o ouvido sobre o peito d’Ele, e ouvira as batidas de seu Sagrado Coração!

Os algozes não podiam deixar de perceber a perfeição de Jesus

Na Paixão, Nosso Senhor sentia-Se completamente recusado pelos homens, pelo povo eleito. Entretanto, Ele era divino, incomparável! Por que tinham feito isso? Que enorme injustiça, que impiedade sem conta, que revolta atroz contra Deus! Vislumbramos, então, a tristeza, a indignação, o sofrimento de sua Alma.

É neste ponto que entra a flagelação, o primeiro mistério do Rosário considerando a agressão física contra o Homem-Deus. Amarram-Lhe as mãos, atam-No a uma coluna e começam a fustigá-Lo por ódio a Deus.

Poder-se-ia objetar: “Mas eles não sabiam que Ele era o Homem-Deus, e até negavam isso. Como o senhor pode dizer que era por ódio a Deus?”

Eles viam aquela perfeição, que é uma com Deus, e tal perfeição eles odiaram. Portanto, agrediram Nosso Senhor por ódio a Deus.

Se alguém, tomando a fotografia de um dos que está aqui, diz, embora sem conhecê-lo: “Mas que tipo antipático, detestável! Vou crivar de punhaladas essa foto; depois amarrá-la numa árvore e dar tiros contra ela; e ainda atear fogo nos molambos de papel que restarem”.

A pessoa assim ultrajada diria: “Esse homem não me quer, ele me odeia”.

É claro! Eles sabiam, neste sentido, que ali estava Deus.

Começa, então, o contraste pungente entre a mansidão, a bondade, a voluntária incapacidade de defender-Se, de um lado; e o ódio brutal, estúpido, cruel, de outro lado.

Para amarrar Nosso Senhor, os algozes Lhe dizem com brutalidade: “Dá cá as mãos!” Ele, não com uma mão, mas apenas com um dedo poderia expulsar aquela gente toda.

Se quisesse, o Redentor chamaria as coortes do Céu para descerem e defenderem-No; elas viriam imediatamente, porque Ele não chamava, mas mandava!

Jesus entrega as mãos, que eles amarram com brutalidade, utilizando corda tosca, rude, e um modo de amarrar que, com certeza, atormentava, prejudicava a circulação, tolhia os movimentos etc. Tinham a ilusão estúpida de que, amarrando-O, Ele estava amarrado. Bastaria Ele dizer: “Corda, rompe-te”, que ela cairia no chão; ou, se quisesse, poderia transformá-la em serpente, que atacaria aqueles malvados.

Mas Nosso Senhor queria sofrer. O extraordinário é que uns queriam flagelá-Lo e Ele queria ser flagelado. Jesus Se entregou à flagelação.

Os algozes já tinham tirado a túnica do Divino Salvador, ou mandaram-Lhe que a tirasse. Sua vestimenta sagrada era a túnica inconsútil —que não tem costura —, a qual havia sido tecida por Nossa Senhora, e não tinha sujeira nenhuma, pois o Corpo divino só podia irradiar a mais alva limpeza. Por um ato de vontade do Redentor, nada podia macular esta túnica, e os verdugos jogam-na ao chão, com raiva. Ele pensa nas mãos de Nossa Senhora, que a teceram, mas nada diz: era mais uma dor que Nosso Senhor queria sofrer.

A doçura inefável dos gemidos do Homem-Deus atado à coluna da flagelação

Levam-No para junto de uma coluna e, certamente com bofetadas, empurrões, gargalhadas, amarram aquela corda que prendia suas mãos em alguma argola da coluna — porque assim se faziam as flagelações. E aqueles homens — que homens! —, com terríveis açoites, começam fustigá-Lo com toda a força, e Ele a gemer.

Podemos imaginar a doçura, a beleza harmoniosa desse gemido, aquele Corpo santíssimo que se contorcia de dor, pela brutalidade do tormento que estava sofrendo; pedaços de carne caíam ao solo: eram carnes do Homem-Deus! Seu Sangue salvador corria aos borbotões. Ele de pé, digníssimo, inteiramente manso, sem nenhum protesto, nem exclamação de dor, apenas falando com o Padre Eterno. Era o seu refúgio naquela ocasião. E seu Corpo, do alto da cabeça até a planta dos pés, ficou repleto de ferimentos gravíssimos. Era o martírio do qual haveria de resultar a Redenção do gênero humano.

Terminada a flagelação, mandaram-No — os tempos eram de mais pudor do que os de hoje — apanhar a túnica. Com dores inimagináveis devido aos movimentos, Ele foi buscá-la e a revestiu, sabendo que iria começar a “Via Crucis”. Quer dizer, Ele entrava em outra sequência enorme de tormentos de toda ordem.

Considerem a muito bonita imagem de Nosso Senhor que está neste auditório. Ela é principalmente expressiva, vendo-a de baixo para cima. Seu olhar mostra, segundo o artista — a meu ver com fundamento —, o estado de espírito de Jesus durante a flagelação: preocupação, a aflição diante do tormento que vinha, a dor que Ele estava sofrendo em todo o seu Corpo. Mas uma distensão completa, uma mansidão perfeita e uma dignidade de Rei. Nunca rei nenhum teve uma púrpura igual à d’Ele: a do seu Sangue infinitamente precioso.

Isso foi o pórtico, o começo da Paixão cruenta de Nosso Senhor. Depois veio a coroação de espinhos, a Via Sacra, uma série de sofrimentos até o alto do Calvário.

Ele, carregando a Cruz, caiu três vezes sob o peso dela. Pregaram-No na Cruz e seu Corpo ficou doloridamente pendente; tentava apoiar-Se nos pés, mas os cravos neles fincados faziam aumentar a dor… E sua sede ia progredindo, em razão da quantidade de Sangue que tinha perdido. As torturas, as sombras da morte começaram a invadi-Lo, até o momento em que Ele bradou: “Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonastes?”

Até o último instante cuidando dos outros, com uma lucidez divina ordenando todas as coisas. Para São João: “Filho, eis aí a tua Mãe”; a Nossa Senhora: “Mãe, eis aí teu filho”. Para o bom ladrão, São Dimas: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Foi a primeira canonização, feita pessoalmente por Nosso Senhor; que glória, que alegria!

E, pensando o tempo inteiro no gênero humano que Ele redimiria quando completasse a Paixão, Jesus disse “Consummatum est”. Nesse momento, Ele salvou o gênero humano.

Nosso Senhor pensou em cada um de nós

Pensou em nós. Esta triste coleção dos homens passou diante de Nosso Senhor. Ele sofreu por este, por aquele, por aquele outro; por cada um dos que se encontram neste auditório, a fim de alcançar as graças pelas quais estamos aqui.

Quando cada um fizer o histórico de sua vocação — como foi chamado, de que modo correspondeu, se cambaleou, como se pôs de pé e continuou o caminho —, lembre-se que Nosso Senhor Jesus Cristo pensou em tudo isto no momento da flagelação!

Talvez, quando um pedaço de sua carne divina caía ao chão, em meio à dor, Ele tenha pensado: “É por aquele filho que há de viver no século XX, o qual amo especialmente e quero que traga outros a Mim. É terrível, mas está bem sofrido!”

E se algum de nós peca contra Ele, máxime em matéria grave, é a mesma coisa do que tomar o pedaço da carne que Jesus deixou cair ao solo por amor de nós, e Lhe atirar no rosto.

O que se pensaria de um flagelador tão cruel, ao qual Nosso Senhor dissesse: “Meu filho, por você caiu-Me esse pedaço de carne no chão”; e o flagelador respondesse: “Ah! é? Toma aqui”, e o lança na face? Seria pior do que qualquer açoite. Os católicos, sobretudo os especialmente chamados, fazem isso quando não são fiéis a Ele.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

Cogitações na linha do senso do maravilhoso

Dr. Plinio possuía, desde tenra infância, um senso do maravilhoso tão excelente que, vendo um vasinho colorido, imaginava uma catedral, as ruas e casas de uma cidade feitas com o mesmo material, com as mesmas cores e luminosidades. Muito mais sensível às cores que às formas, ele cogitava a respeito de universos possíveis dos quais aquele vasinho era uma amostra.

 

Gostaria de analisar um objeto que, em minha infância, serviu-me para muitas cogitações na linha do senso do maravilhoso.

Espírito muito mais cromático do que dado às formas

Trata-se de um pequeno vaso que, de si, não tem nada de extraordinário, nem é de grande valor comercial. Porém, tem isso de próprio e que me foi muito favorável: ele visa, em vários pormenores, imitar e reunir pedaços de estilos que, sob alguns aspectos, apontam para o admirável.

Seu formato, os desenhos dourados, a base também dourada que, invertida, dá ideia de uma coroa, tudo isso encaminha o espírito para uma ideia de objeto maravilhoso.

Para a criança não é tão importante a questão – que a pessoa se põe depois dos trinta anos, quando começa a maturar errado –: se o objeto tem ou não o maravilhoso para o qual tende. Mas a pergunta que a criança se coloca, ainda que implicitamente, é: Qual o valor do maravilhoso para o qual aponta?

Então, digamos, um vasinho francamente ordinário – não como este que é bom –, mas que apontasse melhor para o maravilhoso, uma criança lhe daria mais valor do que ao bom. Porque a pergunta não é qual o valor venal, nem da pura concepção artística, mas para onde visou, como sendo a primeira qualidade a ser tomada em consideração.

Assim eu via, em menino, este objeto. Notem que meu feitio de espírito é muito mais cromático do que dado às formas. Para mim, mais do que a forma ou a qualidade do material, este vaso é uma gota de cor, na qual se verifica a mistura que me é bem-amada: vermelho e branco. Não assim: uma lista vermelha, uma lista branca, mas são esbranquiçados de vermelho ou uns avermelhados de branco, postos de cá, de lá e de acolá.

A matéria da qual ele é composto tem uma certa transparência a qual permite à luz um certo jogo que se presta muito para a reprodução desse gênero de cor.

Há aqui uma espécie de teoria da mistura das cores que me agrada extremamente. As cores podem misturar-se até um certo ponto onde uma degenera na outra. Então já não é uma mistura, mas uma outra coisa. E o passar por todas as gamas intermediárias dá um valor cromático ideal muito especial.

Imaginar ruas e casas feitas com essa matéria

Aprazia-me considerar como seria um mundo no qual a cor e as luminosidades dominantes fossem essas, onde as pedras das ruas e os tijolos das casas fossem dessa matéria, onde os homens, em consequência, não seriam vermelhos e brancos, mas tivessem um espírito dotado desse jogo de reversibilidades, em que estivesse presente a afirmatividade, mas também houvesse concessões e afabilidades, tendo entre si um trato que eu imaginava nobilíssimo, mas ao mesmo tempo delicadíssimo, todo feito de condescendências recíprocas fantásticas, na linha do bem, de maneira que nada fosse mau, mas tudo aprazível, concessivo, bondoso, um perene sorriso e uma fórmula da perpétua “douceur de vivre”(1).

Seria, propriamente, o relacionamento das pessoas que se estimam por serem diferentes. Não é o relacionamento dos iguais, mas dos diversos que, na diversidade, nesse “ludus”, se completam.

A meu ver, o papel do dourado nessa combinação é lembrar que infinitamente acima paira outra coisa, evocando uma diversa clave de valores.

Imaginem que alguém esborrifasse mil gotinhas douradas em cima disso, por onde o vasinho pudesse tomar um valor venal maior. Para mim, não valorizaria; ainda que fosse de ouro verdadeiro, não lucraria nada. Eu mandava lavar o vasinho porque o dourado se tornaria promíscuo com isso, e faria com que o restante, por assim dizer, se envergonhasse de ser o que é.

Certamente, o artesão que concebeu esse vaso não teve essas ideias explícitas, mas o fato é que ele pôs o dourado fora do tema central. O tema está na parte nacarada. O dourado corresponde aos horizontes para onde a mescla de vermelho e branco aponta, fora do tema, como algo para alcançar.

Transpondo para o jogo das relações humanas, seria mais ou menos como se nas fímbrias desse relacionamento se compreendesse o convívio com Deus como algo de infinitamente mais alto, mais elevado, mais nobre.

Necessidade da prova

Se a grande indústria pudesse e devesse continuar a existir no Reino de Maria, ela poderia e deveria ser utilizada para finalidades superiores à mera produção quantitativa. Poder-se-ia compreender uma grande indústria que fabricasse uma catedral desse material e a colocasse num panorama estudado para combinar com isso.

O fato é que o vitral se fez sem a grande indústria. E nós poderíamos imaginar, com a evolução da indústria dos vitrais, igrejas todas feitas de vidro. De maneira que seria possível ir longe.

Ademais, golpeado com jeito, esse material emite um som bonito. Imaginem uma igreja que seja o sino de si mesma, onde o toque não se dá no campanário, mas na parede da própria torre! Torres que vibram elas próprias como se fossem badalos postos no ar, de maneira a fazer corresponder em som a cor contemplada pelo olhar.

É preciso dizer que fiquei com inúmeros mundos assim possíveis inacabados na mente. Sobretudo cores que eu vi de cá, de lá, de acolá, e que davam margem a imaginar universos possíveis dos quais esse vasinho era uma amostra. Creio que a matriz da inspiração artística é essa.

Um perigo contra o qual é necessário precaver-se: um mundo vivido assim é tal que não se compreenderia dentro dele a dor e nem sequer a prova. Quer dizer, se imaginássemos um mundo de criaturas assim e que Deus resolveu impor a prova para elas, teríamos um suspense como se víssemos o Criador traindo a sua própria obra. Há uma dificuldade em instalar dentro disso a ideia de prova como, por exemplo, em compreender que Deus tenha permitido a entrada da serpente no Paraíso.

O mais interessante é que só depois de ter passado pela prova compreendemos que tudo isso só toma sua perfeição para quem passou pela prova. Somente quando isso recebeu a trombada do oposto e se afirmou, é que propriamente justificou a sua existência.

Donde poderia vir uma objeção: “Então o mal é necessário?”

Não, o mal não é necessário, mas a prova é. Essas maravilhas devem existir em ordem de batalha contra o que as quer destruir. É nesta postura de ordem de batalha que elas adquirem uma espécie de plenitude de consistência que lhes dá força e dignidade.

Um modo de relacionar-se próprio à visão beatífica

Entra, então, um aspecto que à primeira vista não se imaginaria: um cavaleiro cuja armadura fosse feita deste material, mas inquebrantável, trazendo o próprio símbolo da delicadeza e do feérico na batalha mais feroz.

Na Chanson de Roland, as despedidas entre Olivier e Roland dão ideia disso. Os dois iam morrer, encontravam-se numa situação em que estavam liquidados. Entretanto, a ternura com a qual ambos se tratam é enorme.

Ouvi dizer, não sei se é verdade, que hoje em dia se tiram fotografias por onde se percebe a cor de certos corpos celestes, nos quais se vê reinar um colorido diferente do existente aqui na Terra.

Poder-se-ia imaginar um mundo para o qual o colorido desse vasinho fosse como a luz do dia para nós, onde todas as pessoas se tratassem como o vermelho e o branco se “tratam” aqui, e que no interior de cada pessoa – não só fisicamente, mas moralmente – a luz brincasse como brinca neste objeto.

Essas pessoas se compreenderiam e teriam uma espécie de avidez de se entenderem, uma necessidade de mútuo entendimento cordial superabundante, por onde se uniriam umas às outras numa perpétua troca de alegria com a “surpresa”, na consideração de que a outra existe.

De maneira tal que indo à rua não se encontraria uma multidão de anônimos, mas de boas surpresas: “Oh, existe também este, aquele…!” As pessoas, sem se conhecerem, parariam, se saudariam e se alegrariam neste diapasão. E haveria, por assim dizer, um perpétuo sorriso de encantamento, um perene cântico e uma espécie de perpétua dança das pessoas se encontrando, se falando. O Céu deve ser assim.

A questão é que existe um mundo de outras coisas que se prestam a considerações como estas. O objeto aqui analisado é uma gotícula que ocupou, nas minhas cogitações de criança, um pequeno espaço. Os jades, as porcelanas chinesas, os cristais da Boêmia, os esmaltes, os ônix, as mil coisas preciosas que há, exprimem uma ordem natural, filosófica, quiçá metafísica. Acenam para uma superior natureza, mas estão inteiramente dentro da nossa ordem natural. O sobrenatural está fora e acima. Não é inimigo; ao contrário, é amigo, bafeja, abençoa, mas se encontra diretamente acima.

Para considerar como isso se instalaria na ordem sobrenatural, teríamos que imaginar como um objeto desses caberia na gruta de Belém, na noite de Natal.

A ordem natural transposta para a clave sobrenatural

Poder-se-ia fazer uma distinção entre a natureza do Céu empíreo, que ainda está na linha do natural, e a do metafísico. Aquilo que em nós é puramente espiritual enquanto contempla o que nos outros é também espírito; e, depois, o que em nós é espírito e contempla a Deus, portanto a essência divina, infinitamente acima de nós. São coisas inteiramente diferentes.

Mas tudo isso, que seria uma contemplação árdua, difícil, pode-se resumir e acompanhar muito melhor, considerando a união das naturezas humana e divina em Nosso Senhor Jesus Cristo. N’Ele encontramos todas as belezas e excelências possíveis da ordem natural transpostas para a clave sobrenatural.

Assim, poderíamos imaginar as operações da graça pairando sobre objetos como esse. Por exemplo, os vitrais da Sainte-Chapelle são naturais, e aquelas cores são produzidas pela natureza, assim como as desse vaso. Mas quem vê aqueles vitrais recebe uma graça por onde percebe um certo sobrenatural análogo àquela natureza.

O sobrenatural tem certo modo de assumir as coisas por onde estas, sem deixarem de ser elas próprias, elevam-se tanto que mudam de aspecto.

Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora do Miracolo tem joias até na cintura. Essas joias são pedras naturais, mas as graças que se recebem na Igreja do Miracolo são tais, que brilham por assim dizer também a respeito dessas joias. Essas joias naturais tomam um luzimento que para nós enriquece o que de sobrenatural a imagem quer dizer.

Em termos mais precisos, a graça se serve também da pedra para comunicar algo a nós. Portanto, no presepe, ela poderia servir-se também deste vasinho para – por um processo análogo, difícil de imaginar – manifestar alguma coisa de si mesma a nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1983)

 

1) Do francês: doçura de viver.

Ansiedade jubilosa do maravilhoso

Atmosfera sobrenatural, piedade, colorido interior, são alguns dos fatores que tornam a Basílica de Santo Antônio em Pádua um lugar que convida à prática da virtude e ao desejo do Céu.

Santo Antônio era um polemista de primeira ordem. Doutor da Igreja, homem de grande inteligência, cultíssimo, falecido aos trinta e nove anos; portanto, muito prematuramente. Era tal polemista que arrasava os adversários, tendo passado para a História com o título de “Martelo dos hereges”.

Peregrinando em Pádua

A penúltima vez que fui a Pádua foi durante um período de peregrinações. Afluíam peregrinos de todas as partes da Europa e do mundo, em especial da Itália e de Portugal. A basílica enchia-se de gente falando, quase não se podia mover ali dentro.

Ademais, havia dentro da igreja mesinhas vendendo aos peregrinos medalhinhas e outros objetos de piedade, isso também muito legítimo, pois as pessoas voltam para casa levando lembranças religiosas para suas famílias, amigos. Longe de mim criticar isso. Mas há sempre gente indecisa que para diante do balcão e fica comparando medalhinha com medalhinha não sei por quanto tempo. Outros que querem comprar se empurram… E a cena repete-se na próxima mesa.

Entra aqui uma questão pessoal: tenho uma verdadeira ojeriza a lugares de oração superlotados. Alegra-me que estejam cheios, mas me comprazo de estar lá quando estão com pouca gente. Acho legítimo que as pessoas sintam isso de um modo diferente, pois depende do temperamento de cada um.

Entretanto, em minha última visita, não. Era um interstício entre temporadas de peregrinação e havia menos gente. Eram pessoas piedosas do lugar e das redondezas que iam lá como todo mundo vai às respectivas igrejas por toda parte. Era um bom número, rezavam e não tinham a preocupação do compra-compra, do vende-vende, sendo vários deles realmente fiéis. Percebia-se que eram pessoas boas, piedosas, que estavam lá para rezar. É Santo Antônio de Pádua e o ambiente criado pelas relíquias dele, as graças das quais ele é ocasião e veículo, que impregnam de algum modo a basílica e condicionam também essa piedade.

A presença dessa piedade cotidiana, boa, realçada pelas graças recebidas por meio de Santo Antônio, faz bem à alma.

Algo do “pulchrum” católico

Pádua pertenceu outrora ao distrito político da República Aristocrática de Veneza e, enquanto tal, era muito influenciada por Bizâncio e pelos Bálcãs. Veneza fica praticamente em frente aos Bálcãs, e a travessia do Mar Adriático, mesmo com os meios de navegação antigos, era muito fácil e relativamente rápida.

Os críticos de arte são unânimes em afirmar que a Basílica de São Marcos em Veneza tem uma nota bizantina muito marcada.

Assim também nota-se que, sendo Pádua politicamente dependente de Veneza na época em que a Basílica de Santo Antônio foi construída, esta dá um pouquinho a ideia de um edifício à maneira de igrejas orientais, e algumas de suas torres lembram minaretes turcos.

A Basílica de Santo Antônio em Pádua exprime bem algo do “pulchrum” da Igreja Católica. Não é uma grande peça de arquitetura, mas exprime o que eu quero fazer notar.

Jogo de cúpulas e minaretes

É impossível negar certa beleza à sucessão de cúpulas e torres, quer pelo colorido, quer pelo ar de fantasia que há dentro disso, por onde se tem a impressão de que essas abóbodas emergem de dentro da igreja como as bolhas de gás de um copo de água mineral: sobem e depois estouram. A aparente desordem em que tudo isto está colocado em cima é bonita, entretém e é agradável de olhar. Portanto, em profundidade, não é uma desordem, pois isso tudo atrai e contenta muito o espírito.

Nota-se, nessa construção, o contraste entre o estilo veneziano e o florentino. É uma outra concepção das coisas pela qual vê-se a riqueza espiritual e intelectual da Europa e, particularmente, da Itália daquele tempo: a uma distância pequena, dois mundos que se desenvolvem lado a lado, sem interferir um no outro, mas numa posição quase polêmica de aspectos diferentes da vida. O despojado está totalmente ausente do interior da Basílica de Pádua. Se nos dermos o trabalho de lembrar a Catedral de Florença, olhando essas pinturas e essa espécie de sinfonia de cores, triunfal, alegre — “Cristo ressuscitou, vamos nos alegrar!” — encontramos uma diferença radical. Porque aqui tudo é pintado, tudo é enfeitado, tudo fala. Enquanto em Florença é o tal estilo despojado.

As cúpulas e essas espécies de minaretes têm o borbulhar de certas formas de beleza como o têm certos movimentos do mar.

Olhando para o telhado, quase que se esquece do corpo do edifício. Temos a impressão de que o resto da construção existe como uma bandeja para carregar bem alto o jogo musical dessas cúpulas. Podemos imaginar um movimento musical crescendo em que as notas se vão sucedendo alegremente umas às outras; assim, temos a impressão que esses minaretes e essas cúpulas estão alegremente esperando a hora que se lhes corte a base para poderem subir para o céu. Uma ansiedade do maravilhoso, uma ansiedade jubilosa, alegre, apenas contida por uma corda que uma mão caridosa irá cortar.

Isso se encontra, por exemplo, em muitos monumentos da Igreja Ortodoxa que são da arquitetura grega. Pádua recebe a influência, através de Veneza, muito helenizante, pelas razões geográficas que já expliquei.

Também a Igreja de São Basílio, se não me engano, na Praça Vermelha, tem aquela série de torres, de torreões, aquilo que sobe, um jogo dessa natureza. No castelo francês de Chambord não encontramos cúpulas assim, mas um jogo de tetos, de chaminés, que também aproveitam este princípio do corre-corre rumo ao céu. É como um dos modos de beleza do mar e isso me agrada.

Atmosfera sobrenatural e preciosa relíquia de Santo Antônio

No corpo material da igreja há o Santíssimo Sacramento — antes de tudo e mais nada —, as relíquias, as imagens especialmente abençoadas que datam de várias épocas da História da Igreja Católica, desde mais ou menos o tempo de Santo Antônio até os nossos dias. Várias épocas foram fazendo as suas pinturas, acrescentando suas imagens; aquilo poderia um pouco parecer um compêndio da história da piedade católica, cada vez menos intensa à medida que nos aproximamos dos grandes dramas, dos grandes cataclismos e dos grandes vazios de hoje em dia. Há também os fiéis que recebem graças e deixam-nas transpirar de algum modo na sua maneira de ser, no modo de andar e de rezar, etc. Esses fatores concorrem, numa igreja como esta de Pádua, com uma especial intensidade para dar uma única impressão da graça e da piedade verdadeira, da presença da Igreja.

O post cerimônia ali deixava um não sei quê de sobrenatural flutuando pela igreja, que tornava este período da vida da Igreja, ao menos para mim, particularmente saboroso. E foi o que eu peguei na Basílica de Santo Antônio. E isso, naturalmente, me encantou. Eu saía com a alma cheia. Falando sobre isso minha alma ainda se enche. São as coisas de que eu gosto mais do que qualquer outra coisa na vida, porque elas são o antegozo do Céu.

Agora, por que a relíquia da língua de Santo Antônio?

Porque se ele era “martelo” era por causa da língua. Ele era um grande orador sacro e fulminava os hereges do tempo dele, e ele os rechaçou magnificamente. Então ele morto, os amigos da verdadeira Fé quiseram glorificar esta língua que tanto falou a favor da glória de Deus. Cortaram e ali está.

Pintura de Santo Antônio

Nessa pintura vê-se como a piedade daquele tempo imaginava o Santo Antônio da hagiografia, da história santa. Nota-se uma placidez extrema decorrente do rosto, mas também de uma coisa que é muito expressiva: a posição dos ombros como modo de indicar o estado de espírito da pessoa.

Ele é franciscano. A capa do hábito forma várias dobras, muito ordenadas, quase diríamos ondas em um suave avançar “rangé”, que exprimem que esse homem nunca faz um movimento exagerado, excessivo, em que o hábito se coloca fora do lugar. A ordem do hábito é uma espécie de sismógrafo da ordem da mente.

O rosto, quase imberbe, com uma boca pequena. O nariz adunco muito bonito, que tem qualquer coisa do bico de uma ave de rapina. No arcado das sobrancelhas, uma delicadeza, uma precisão e uma força que sobretudo o olhar exprime. É um olhar, sob certo ponto de vista, glacial. Não deixa transparecer emoção alguma. O que aparece é a análise — esse tipo de análise que só os pacíficos fazem. Nesse olhar vê-se toda a precisão de quem já passou por todos os desencantos; já viu tudo como é, conhece o pecado original e seus efeitos, satanás com suas pompas e suas obras. Tudo está analisado, catalogado, ele tem um discernimento extraordinário.

A ponta dos lábios é fina e muito ordenada. Ele tem a resposta que faz dele um martelo que está preparando o seu golpe. Há uma pureza, uma castidade e uma serenidade extraordinárias.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Sabedoria, certeza e contemplação

A existência humana, entre outras coisas, é própria a ser objeto de uma análise que abarque todo o seu conjunto. Nesse sentido, há pessoas que passam pelo jogo da vida e nada compreendem. Outras, prestam demasiada atenção em si mesmas para se inteirar do restante da humanidade. Outras, ainda, embora sem se importarem tanto consigo, não atingem a síntese ideal que seria uma conjugação das melhores disposições com que se tomam os interesses individuais e os coletivos.

Deve haver, portanto, diante da vida, uma noção e um conhecimento que sejam a arquitetura de todas as impressões que o quotidiano humano nos oferece, o qual tem de ser, por isso mesmo, observado e contemplado com sabedoria. Sabedoria e arquitetura estas que nos fazem compreender os supremos valores da vida e, por esse caminho, nos conduzem a conhecer algo a mais da infinita perfeição do Criador que dispôs assim a ordem terrena.

A meu ver, magnífica expressão desse estado de espírito sábio e contemplativo são as esculturas dos profetas de Aleijadinho. Em todas aquelas fisionomias transparece essa visão do conjunto da existência humana, e aqueles olhos grandes, dir-se-ia abertos para um superior conhecimento da vida.

Figuras de varões que nos transmitem a sensação da profunda certeza que os anima, certeza da missão que lhes foi confiada, certeza que os toma por inteiro e que passa pelo temperamento de cada um como o talento de um músico passa através do instrumento que ele toca. Um profeta daqueles, pelo seu porte, seu jeito, sua atitude, é uma orquestra de expressão de uma grande convicção que ressoa como uma sinfonia.

Diante deles, sentimos o nosso próprio ser como que deliciosamente invadido pela sua presença, por essa certeza, essa sabedoria e contemplação que eles exprimem, não para sermos censurados, mas elevados. Nós nos sentimos descansados, animados, afagados e protegidos. Sentimo-nos mais nós mesmos, porque ele está ali, profeta que contempla e compreende a vida. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 18/5/1963 e 17/4/1977)

Revista Dr Plinio 128 (Novembro de 2008)

Patriotismo autêntico

Numa era em que a verdadeira noção de patriotismo havia sido deformada, Dr. Plinio demonstra aos brasileiros  qual é o verdadeiro sentido desta palavra, e quais os verdadeiros valores desta Nação tão grande no seu tamanho, na sua vocação e na sua missão histórica.

 

Um dos erros mais nefastos de que foi impregnada a educação de minha geração foi o patriotismo entusiasmado e incondicional, que se impunha em todas as escolas, como um inelutável imperativo da Moral.

Em via de regra, não havia, nem mesmo em certos cursos de Religião, uma explicação esclarecida e consciente do que seja a virtude do patriotismo, o seu exato sentido, os deveres que ela impõe e as deformações com que o espírito do mundo costuma desfigurá-la.

Em muito mais de 50% dos casos, ser patriota era achar que o Brasil é o mais rico país do mundo, que não há aqui um palmo de solo que não seja imensamente fértil, um palmo de subsolo que não seja imensamente rico, e um litro de água de rio ou de mar que não seja imensamente piscoso. A esta torrente de riqueza, acrescente-se uma beleza incomparável: em nenhum lugar do mundo é permitido haver um sol tão claro, estrelas tão numerosas, mar tão azul, cumes dos montes que ofereçam panoramas mais belos, vales que proporcionem remansos mais tranquilos e mais atraentes do que no Brasil.

Achar o contrário é ser um indivíduo sem inteligência e sem patriotismo. Sem inteligência, porque até as aves do poeta perceberam estas belezas e riquezas, a tal ponto que gorjeiam aqui de um modo diverso do que acontece no mundo inteiro, e muito deplorável seria que um homem não percebesse o que até as aves percebem! Sem patriotismo, porque é achincalhar sua própria pátria avançar timidamente a opinião de que talvez haja lugares mais férteis alhures, por esse mundo afora, do que as zonas velhas de São Paulo ou certas caatingas do Norte do Brasil. Como? Então, pode-se admitir que um brasileiro reconheça que talvez as florestas da Índia ou as pastagens da Suíça sejam mais aproveitáveis do que o mais surrado e mais estéril dos palmos de nosso território? Não é isto um crime de alta-traição?

Como todos os erros que se apresentam dissimulados no meio de uma forte dose de verdade, também esse erro não tardou em se propagar e adquirir ares de verdade dogmática e intangível. Todas as aparências conspiravam para isto. Porque, se é estúpido imaginar que no Brasil tudo deva ser necessariamente superior ao que existe em outros países, é certo, por outro lado, que a Providência nos galardoou com escolhidíssimos dons naturais.

Destes dons, o Brasil tem alguns que nenhum outro país do mundo pode se jactar de possuir. Outros, nós os temos em grau apreciável, embora menor do que certas regiões da Europa, da Ásia e da África. Raros, entretanto, são os países que podem inventariar em seu território uma tão larga, tão rara e tão preciosa série de riquezas quanto o Brasil. Poder-se-ia imaginar, para o patriotismo de quinquilharia, um pretexto melhor, a fim de fazer circular a ufania jactanciosa e falsa que o caracteriza?

* * *

Há muita gente que imagina que a única forma de combater uma verdade consiste em negá-la redondamente. Este é apenas o processo dos simplórios. O modo mais subtil e mais perigoso consiste em exagerar a verdade. Com isto, a gente fornece aos seus adversários pretextos para combatê-la, e a gente a desacredita no espírito dos que a amam. Por isto mesmo, a Igreja não tem, talvez, inimigos mais perigosos do que os que pretendem ser mais austeros, mais penitentes e mais ortodoxos do que o Papa manda que se seja. Talvez a pior forma de heresia consista em pretender-se ser mais católico do que o Papa.

Foi isto que se deu com o patriotismo. Os literatos do fim do século passado e do início deste século o laicizaram, lhe tiraram todo o conteúdo sério e o exageraram, dando-lhe uma extensão e uma pretensão injustificáveis. Tanto bastou para que, no seio de minha geração — que foi talvez a última leva de cobaias desta sinistra experiência ideológica —, o patriotismo, por uma compreensível reação, começasse a ser substituído pela fascinação do internacionalismo esquerdista ou do cosmopolitismo. Deste, sobretudo, nas classes mais ricas e mais elevadas de São Paulo.

Para justificar tal reação, os mais claros pretextos eram fornecidos pela própria escola de patriotadas em que fôramos formados. Realmente, basta andar um pouco pelo interior, para certificar-se a gente de que Deus deu ao Brasil uma riqueza imensa, mas que nem por isto o dispensou da lei comum de todas as regiões da Terra, que consiste em ter também certas porções muito menos aproveitáveis para o uso atual do homem. Desta verificação, nasceu um espírito de blague fácil e elegante. Tornou-se divertido fazer graças a respeito da “Pátria amada, idolatrada, salve, salve”.

O patriotismo é uma virtude sublime. Tanto basta para que todas as suas deformações e corrupções possam facilmente ser postas a ridículo: “corruptio optimi pessima”. E, por isto, com um espírito criminosamente iconoclasta, com um sorriso displicentemente revolucionário, muitos e muitos elementos de minha geração apostataram da escola oficial do patriotismo de convenção.

Outros, talvez, fizeram pior. E confesso que, se não fosse o Catolicismo, único parapeito que o homem encontra entre si e o abismo, também eu teria alguma complacência para com este erro. Procede ele de uma reflexão também sugerida pelo patriotismo convencional que circulou (deve-se falar no pretérito perfeito, ou no presente?) por aí. Admitamos que o Brasil seja tudo quanto se diz. E o homem? O que faz o homem no Brasil? Por que não foi ele capaz de aproveitar estas riquezas para construir uma civilização de forte conteúdo espiritual e de alto valor material? País muito novo? E os Estados Unidos, cuja civilização, se não tem o primeiro requisito, tem ao menos o segundo?

Daí uma atitude de desolação vexada e irritada para com o homem brasileiro, atitude esta aguçada pelo endeusamento sistemático de tudo quanto era europeu, que também se notou em nossa educação. Positivamente, como disse alguém com muito espírito e muita verve, conquanto sem nenhuma razão, o Brasil é um deserto de homens e de idéias. Um povo tão incapaz, habitando um país tão magnífico, dava-me uma impressão não muito diversa dos gregos dos séculos anteriores ao nosso, habitando com uma inconsciência revoltante ao lado dos monumentos inesquecíveis, erguidos pelo talento de seus avós.

Ingenuamente, eu e muitos como eu, deixamo-nos persuadir mais ou menos de que o samba, as modinhas dengosas e lascivas,(…) a escassez de manifestações artísticas de real valor, eram expressões autênticas e definitivas do vácuo interior da alma nacional. Muitos literatos da famosa escola do patriotismo incondicional, apregoavam tudo isso como distintivo do brasileiro, e procuravam ver em tudo isso algum pitoresco. Esse pitoresco não nos seduzia, mas, pelo contrário, nos repelia. E daí um divórcio profundo entre nós e a alma do Brasil.

Mas — e entrou aí um imenso “mas”, um “mas” salvador e orientador, com tudo quanto procede da Igreja — a Doutrina Católica é incompatível com semelhante modo de ver.

Todos os povos foram criados por Deus e para Ele. E nenhum deles foi tão desfavorecido pela divina munificência, que seja incapaz de se separar, com o auxílio da graça, até mesmo dos piores e mais graves defeitos morais. Essa imagem de um Brasil irremediavelmente mole e sensual, de um Brasil definitivamente preguiçoso e inepto, de um Brasil inseparável da modorra, do comodismo, do espírito de transigência e de acomodação, é uma imagem que insulta o próprio Criador. O Brasil tem, certamente, em dose desigual, esses defeitos. Mas é uma blasfêmia supor que, com o auxílio da graça, tais defeitos não possam ser removidos. Pensar assim é cair no materialismo mais crasso e no mais criminoso determinismo.

Um exame mais atento da História do Brasil convenceu-me, por outro lado, que os fatos demonstram à saciedade a grandeza de alma com que Deus dotou o brasileiro. Basta ler, sobretudo, nossa história religiosa, para que se possa ver claramente que o brasileiro, quando se empolga por um ideal que dele se apodera inteiramente, é capaz de chegar aos mais extremos sacrifícios, aos mais árduos esforços, às mais absolutas privações. É um erro imaginar que o indiferentismo é um traço distintivo do brasileiro. Quando o brasileiro se deixa dominar por um ideal, ele se torna coerente e intransigente como os que mais o sejam. E nem é preciso afundar até um passado muito remoto, para se ter disso uma ideia exata.

Em uma grande reunião católica, citei três exemplos do que pode um brasileiro que abre generosamente seu coração à graça de Deus. Destes três exemplos, dois são mortos, e por isso posso novamente referir-me a eles. Quem, em energia, em santa intransigência, em combatividade inflexível e infatigável, em sublime austeridade e rigidez de costumes, em severa têmpera de caráter, em magnífica grandeza de alma, excedeu no Brasil o saudoso Dom Duarte Leopoldo e Silva? Quem, em ardente espírito de luta, em abnegação, em heroísmo, em espírito epicamente cavalheiresco, excedeu Jackson de Figueiredo? Ante estas duas grandes figuras rijas como o ferro e heroicas como o fogo, quem ousaria ainda dizer que o Brasil é um deserto de homens e de idéias, um triste deserto onde os homens perdem as idéias e quase deixam de ser homens?

Um escritor apresentou certa vez a seus leitores a figura de um cego, interrogando pelas ruas a todos os que passavam: “Oh tu, que tens a luz, o que fazes dela?” A mesma pergunta se poderia fazer a nós, católicos. O que fazemos nós, que temos dentro da Igreja, não apenas a luz, mas a luz meridiana de uma verdade plena?

Por que não compreendemos plenamente, e não gritamos em alta voz, que o Brasil se tem às vezes parecido um deserto de homens e de verdade, é isto exclusivamente porque não se entregou inteiramente ao domínio do Homem-Deus e da Verdade que Ele veio trazer ao mundo?

Lemos diariamente, nos Santos Evangelhos, que o Salvador curava os cegos, os aleijados, os paralíticos, os loucos, e que essas curas afirmavam implicitamente seu poder para curar todas as misérias morais do homem. Por que, então, não acreditamos realmente, seriamente, ardentemente, entusiasticamente, que na Sagrada Eucaristia todos os defeitos do Brasil poderão ser curados, e que o brasileiro ainda poderá ser um homem à altura das grandezas materiais dentro das quais nasceu?

“Envia o vosso Espírito, e todas as coisas serão criadas, e será renovada a face da Terra”, exclama a sagrada Liturgia. E esse Espírito que criou o mundo e que pode renová-lo, não quererá ou não poderá renovar este Brasil que Ele próprio criou?

 

Plinio Corrêa de Oliveira Extraído de “O Legionário” de 29/1/1939)

Nossa Senhora e a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução – I

A Revolução é propulsionada sobretudo por dois vícios: o orgulho e a impureza. Para esmagá-la é necessário praticar as virtudes, o que somente se consegue pela graça. Sendo Maria Santíssima a Medianeira universal e o canal por onde passam todas as graças, o auxílio das suas orações é indispensável para que seja derrotada a Revolução, triunfe a Contra-Revolução e o Reino de Maria se estabeleça.

 

São Luís, na Contra-Revolução. E, em terceiro lugar, os traços da temática “Revolução e Contra-Revolução” dentro do Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

A RCR apresenta a Revolução como um movimento nascido de uma deterioração moral. São dois vícios fundamentais, o do orgulho e o da impureza, que constituem no homem uma incompatibilidade com a Doutrina Católica, debaixo do seguinte ponto de vista: A Igreja Católica como ela é, a doutrina que ela ensina, o universo que Deus criou, e que podemos conhecer melhor através dos prismas da Santa Igreja, são assuntos que o homem virtuoso, puro e humilde apetece. Ele tem enlevo e alegria em ver que essas coisas são assim, e aceita tudo isso de bom coração.

Mas, se uma pessoa cede algo ao vício do orgulho, começa a formar-se nela uma incompatibilidade com vários aspectos da obra de Deus. É uma inconciliabilidade, de início, com o caráter hierárquico da Igreja, depois com o da sociedade civil. Ou em ordem inversa. Em seguida, uma incompatibilidade com o caráter hierárquico da família. E assim vai o igualitarismo se desenvolvendo até chegar ao sumo do comunismo. Quer dizer, há toda uma metafísica contrária à Doutrina Católica proveniente de uma incompatibilidade da alma viciosa com a obra divina, e que nasce do orgulho.

Uma coisa mais ou menos paralela a essa se poderia dizer da impureza. O homem impuro tem os elementos necessários para implicar com a ordem estabelecida por Deus. Ele é levado normalmente para o liberalismo. Irrita-lhe a existência de uma regra, um freio, uma lei que circunscreva o transbordamento dos seus sentidos. Com isso, tudo quanto é ascese começa a lhe parecer implicante. Naturalmente, surge uma implicância contra o próprio princípio da autoridade enquanto tal.

O resultado é que, a partir da impureza e do orgulho, formam-se os elementos necessários para uma visão diametralmente oposta à obra de Deus. Essa visão já não é, portanto, diferente num ponto ou noutro da Doutrina da Igreja, mas à medida que esses vícios vão se aprofundando, e ao longo das gerações, tornam-se mais acentuados, vai-se estruturando toda uma concepção que não é apenas outra, mas é a mais contrária possível. E acaba sendo, em última análise, a concepção gnóstica e revolucionária do universo.

A Revolução tem como causa moral o orgulho e a sensualidade. Assim, todo o problema da Revolução e Contra-Revolução, no fundo, é uma questão moral. O que está dito nas linhas ou nas entrelinhas da RCR é que, se não fosse o orgulho e a sensualidade, a Revolução como movimento organizado no mundo inteiro não existiria, ela não seria possível.

Toda preservação ou regeneração moral verdadeira decorre da graça divina

Ora, se no âmago do problema da Revolução e da Contra-Revolução temos uma questão moral e, portanto, religiosa – porque todas as questões morais são substancialmente religiosas, já que uma moral sem religião é a coisa mais inconsistente que se possa imaginar –, conclui-se que a luta da Revolução e da Contra-Revolução é, em seu cerne, uma luta religiosa.

Assim, se nos encontramos no terreno da luta religiosa, compreendemos melhor o papel de Nossa Senhora na Contra-Revolução. Se uma crise moral origina o espírito da Revolução, então é verdade que essa crise só pode ser remediada com o auxílio da graça. A Igreja nos ensina que os homens não podem cumprir estável e duravelmente, na sua integridade, a Lei de Deus, com simples recursos naturais. Para cumprir os Mandamentos divinos necessitamos da graça.

Se por outro lado o homem cai no estado de pecado e se acumulam nele as apetências para o mal, essa situação moral, a “fortiori”, sem a ajuda da graça não pode ser resolvida, sendo necessários auxílios de caráter sobrenatural para o homem sair do estado em que caiu. O resultado é que toda preservação ou regeneração moral verdadeira decorre da graça divina.

Vemos, então, facilmente o papel de Nossa Senhora. Por ser Ela a Medianeira universal e o canal por onde passam todas as graças vindas de Deus, nós compreendemos que o auxílio das suas orações é indispensável para que seja derrotada a Revolução, e o Reino de Maria se estabeleça.

As graças poderão ser assim obtidas, mas se não forem correspondidas pelos homens, é inevitável que a Revolução triunfe. Logo, esse afluxo de graças sobre os homens fiéis é elemento fundamental para que a Revolução seja derrotada. Depende de Deus, é claro, mas Ele quis, por um ato livre de sua vontade, fazer isso depender da Santíssima Virgem, para a glória d’Ela e de seu Divino Filho. Donde se deduz que a devoção a Nossa Senhora é a condição para que a Revolução seja esmagada e a Contra-Revolução triunfe.

Insisto neste aspecto por ser muito importante: se tomarmos uma humanidade fiel às graças que receba por meio de Maria Santíssima para a prática dos Mandamentos, e esta prática se tornar um fenômeno geral, é inevitável que a sociedade acabe se estruturando bem, porque com o estado de graça vem a sabedoria, com a sabedoria todas as coisas entram nos eixos. Não é preciso fazer grandes estudos de Sociologia, Economia e finanças para conseguir isso. Porque com o estado de graça, não só pelo movimento natural, espontâneo, intrínseco de cada homem, tudo tende a regularizar-se, mas os estudos necessários se farão excelentemente e atingirão o seu resultado.

Quando há uma recusa da graça, nada anda. Se alguma coisa caminhar, é pior do que se não andasse. É como a civilização contemporânea: ela se construiu sobre a recusa da graça e alcançou alguns resultados estrepitosos, os quais devoram o homem. Os países dos grandes resultados são os países das psicoses. Embora essa ordem de coisas pareça ser uma afirmação do homem, na realidade o devora. Quer dizer, o homem, sem a graça, ou não constrói nada ou edifica um cárcere, uma câmara de tortura, um palácio de delícias no qual ele sofre mais do que num campo de concentração.

Ao mínimo ato de império de Nossa Senhora o Inferno inteiro treme

Isso posto, podemos dizer que, quanto maior a devoção a Nossa Senhora, mais aberto estará o canal de graças. Se for uma devoção inteiramente autêntica, é infalível que a oração seja atendida e as graças chovam sobre um determinado indivíduo ou país.

Porém, se a devoção à Santíssima Virgem comportar restrições, for defectiva, então a graça também encontra da parte do homem implicitamente uma certa resistência. Nisto mesmo ele já é ingrato, e acaba acontecendo que toda a vida, a seiva da sociedade, deperece.

Costuma-se dizer que, na economia da graça, Nossa Senhora está de tal maneira que Jesus Cristo é a Cabeça do Corpo Místico, e Ela seria o pescoço, porque tudo passa através d’Ela. A imagem é inteiramente verdadeira na vida espiritual de uma pessoa. Imaginem alguém com pouca devoção à Mãe de Deus: é como o indivíduo com uma corda atada ao pescoço, a qual lhe permite um fiozinho de respiração. Quando não tem nenhuma devoção, ele está asfixiado. Se, pelo contrário, ele possuir uma grande devoção à Virgem Maria, o pescoço está inteiramente livre, o ar penetra nos pulmões a plenos haustos e o homem pode viver normalmente.

Não estou dizendo que a coisa sai automaticamente, mas sim que, havendo a correspondência à graça, forçosamente tudo se estrutura bem. Não basta trabalhar, estudar, organizar. O grande problema fundamental é haver a correspondência à graça.

Em sentido oposto, poderíamos afirmar o mesmo a respeito do demônio. Porque o papel dele na eclosão e nos progressos da Revolução foi enorme. Foi o demônio que conseguiu tentar o homem, induzindo-o a uma posição revolucionária e a extremos revolucionários, que estão abaixo até da miséria humana. E a fazer uma Revolução como a atual, a qual é pior do que o grau de decadência da natureza humana.

Se o demônio não estivesse ali para tentar o homem, a coisa não teria saído tão terrível quanto ela é. Ora, este fator de propulsão tão forte da Revolução está inteiramente na dependência de Nossa Senhora. Porque basta Ela ter o mínimo ato de império que o Inferno inteiro treme, se confunde, se recolhe e desaparece. Basta, pelo contrário, Ela entender que, para o castigo dos homens, é conveniente deixar o demônio com certo raio de ação, que ele progride tanto quanto Ela deixar, mas o demônio está debaixo da dependência d’Ela completamente.

Então, os fatores enormes da Contra-Revolução e da Revolução, que são a graça e o demônio, dependem do império e do domínio da Santíssima Virgem. Vemos, portanto, uma vez mais, o papel de Nossa Senhora na Revolução e na Contra-Revolução.

Maria Santíssima é a Rainha do universo

É preciso acrescentar que a mediação de Maria Santíssima deve ser considerada do ponto de vista da oração, porém Ela não é apenas Aquela que reza por todo o universo, mas a Rainha do universo, e essa realeza é verdadeira.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, dizer que Nossa Senhora é Rainha é conversa, porque Ela faz tudo quanto Deus quer, é escrava de Deus. Portanto, em última análise, a Santíssima Virgem não é Rainha. Ela é simplesmente como um vidro transparente e inerte através do qual passam os raios divinos, mas o verdadeiro Rei é Deus”.

Entra aqui uma finura, que é preciso considerar: imaginem um diretor de colégio que tem alunos sumamente insubordinados; ele os castiga e impõe uma ditadura de ferro no colégio. Depois o diretor se afasta e diz à mãe dele o seguinte:

“Sei que vós governareis esse colégio de um modo diferente do meu, porque eu governo com vara de ferro e vós tendes um coração materno. Quero que agora governeis vós e não eu. Eu vos dou a direção do colégio.”

Esta senhora vai dirigir o colégio como o diretor quer, mas por um método que é dela e não dele. E que ao mesmo tempo representa a vontade dela enquanto distinta da dele, mas em que ela faz inteiramente a vontade do diretor.

Assim é Nossa Senhora como Rainha do universo. Nosso Senhor deu a Ela, que é unicamente Mãe e não tem papel de juiz, uma realeza cuja misericórdia vai além daquilo que a justiça de Jesus Cristo, e a sua posição de juiz, propriamente Ele quer exercer. Então Nosso Senhor coloca-A como Mãe, com todas as indulgências, todos os extremos de misericórdia da mãe, que a autoridade paterna de si não comporta. Ele A coloca como Rainha do universo para esse efeito, a fim de governar o universo assim. E a vontade d’Ele é que Ela faça algo que Ele não poderia realizar.

É, portanto, enquanto se distingue de Nosso Senhor que Ela, Rainha do universo, melhor faz a vontade d’Ele. Então há um regime verdadeiramente marial de governo do universo. E este regime explica o papel de Nossa Senhora como quem dirige, dispõe dos acontecimentos, decreta aquilo que deve acontecer. É claro que sempre inspirada por Deus, em união com Ele, etc. Maria Santíssima é infinitamente inferior ao Onipotente, isso é evidente, mas Ele quis livremente dar-Lhe este papel por um ato de liberalidade d’Ele. Então, é Nossa Senhora que regula o curso dos acontecimentos terrenos. Depende d’Ela a duração da Revolução e da Contra-Revolução. É Ela que intervém nos acontecimentos para que a Revolução não vença. Basta lembrar de Lepanto, por exemplo.

Quantos outros fatos da História da Igreja houve em que a Santíssima Virgem deixou claro ser uma intervenção direta d’Ela que influía nos episódios! E então se compreende que, mais do que Medianeira onipotente e suplicante, Ela é verdadeiramente a Rainha que conduz os acontecimentos e dirige a História.

Quando a Igreja canta a respeito da Mãe de Deus “Tu só exterminastes todas as heresias no universo inteiro”, afirma que o papel d’Ela nesse extermínio foi como que único. Quem promove a eliminação das heresias dirige os triunfos da ortodoxia, quem governa uma coisa e outra dirige a História. Ela é verdadeiramente a Rainha. Esta realeza de Nossa Senhora nos dá uma visão a mais do papel d’Ela dentro de toda a problemática R-CR.

Minguamento da devoção a Nossa Senhora: causa de todas as vitórias da Revolução

Esta noção a respeito de Maria Santíssima está ligada à mediação universal. E me parece que explica bem como a devoção a Nossa Senhora está absolutamente na raiz de todas as vitórias da Contra-Revolução.

Haveria um trabalho interessante de História para fazer, mostrando que, quando o demônio começa a vencer, é porque ele consegue minguar a devoção à Santíssima Virgem. Todas as decadências da Cristandade e todas as vitórias da Revolução têm como ponto de partida uma diminuição na devoção a Nossa Senhora. Se não fosse esse minguamento, a Revolução não caminharia.

Temos o exemplo característico na Europa da Revolução Francesa, que era como uma floresta combustível na qual com uma simples fagulha se ateava fogo em tudo. A devoção a Maria Santíssima nos países católicos fora prodigiosamente diminuída pelo jansenismo; o resultado nós conhecemos. Quer dizer, se a devoção a Nossa Senhora míngua, fica tudo acessível à Revolução.

Há o segundo ponto que é o seguinte: essas e algumas outras visualizações extraídas da Teologia comum, conhecida, são o suficiente para explicar o papel da Mãe de Deus na temática R-CR?

Nas últimas avenidas da perspectiva da Contra-Revolução está a ideia do Reino de Maria, ou seja, uma era histórica que será inaugurada por uma vitória espetacularmente obtida por Nossa Senhora sobre os seus inimigos. O demônio, que é expulso da Terra, volta para os seus antros infernais e a Santíssima Virgem reina sobre o mundo através dos homens e das instituições que Ela escolher para isso. A respeito dessa perspectiva do Reino de Maria, nós encontramos na obra de São Luís Grignion de Montfort algumas coisas misteriosas.

Ele é, sem dúvida, um profeta, o qual anuncia que essa era virá. São Luís Grignion fala disso claramente: é a época na qual surgirão os grandes santos de Nossa Senhora, haverá um dilúvio que lavará a humanidade e chegará então a época do Espírito Santo, que ele identifica com o Reino de Maria.

São Luís afirma que será uma era de florescimento da Igreja, como até então nunca houve. Ele chega a usar esta expressão: os santos do reinado de Nossa Senhora vão ser, em comparação aos santos anteriores, como os cedros do Líbano em relação a arbustos (n. 47).

Quando consideramos os grandes santos que a Igreja produziu até agora, perdemos o pé na consideração da grandeza desses outros bem-aventurados, que deverão vir debaixo desse bafejo de Maria Santíssima. Mas não há nada de mais razoável do que imaginar que a santidade cresça enormemente numa era histórica onde a situação concreta de Nossa Senhora deve progredir enormemente também. Portanto, não há dificuldade em admitir isso.

A quintessência recôndita da verdadeira escravidão

Então, nós podemos dizer que São Luís Grignion de Montfort dá peso, autoridade, consistência com seu valor de pensador, mas sobretudo com sua autoridade de Santo canonizado pela Igreja, às esperanças que se veem em muitas outras revelações particulares, as quais afirmam que virá uma época na qual a Santíssima Virgem verdadeiramente triunfará.

São Luís é, portanto, o profeta, porém mais do que o profeta ele é o fiador do Reino de Maria. A canonização dele e o acerto extraordinário de toda a sua obra nos servem de apoio para essa esperança de um Reino de Maria que deve vir.

Entretanto quando se analisa sua obra, nota-se ainda qualquer coisa de mais profundo: ele faz umas insinuações de que as relações entre Nossa Senhora e as almas – e especialmente as que a Ela se entregam na qualidade de verdadeiros escravos – não foram e não são conhecidas até o fundo pelos teólogos. E delas se podem tirar verdades a serem exploradas nos tesouros da Revelação e da Tradição, e que vão muito mais longe do que os teólogos dizem.

Ele fala do famoso segredo que há na verdadeira escravidão a Nossa Senhora. Por esse segredo a graça realiza, no autêntico escravo, operações inefáveis que não se sabe exatamente como são, e que correspondem também a uma união inefável, cujo verdadeiro alcance e feitio nós não conhecemos bem, e que representam a quintessência recôndita da verdadeira escravidão.

Quer dizer, fica acenado aí um progresso da Teologia especialmente no que diz respeito a esta parte das relações da graça com a alma, mediante Maria Santíssima. Coisa que ao mesmo tempo se vê que já existia na época dele e, entretanto, precisava ser explicitada, mas além disso cresceria de intensidade com o curso dos tempos, para atingir toda a sua amplitude no Reino de Maria, produzindo essa plenitude histórica, esse auge de santidade que deveria brilhar na Igreja e que nasceria desse mistério.

Como é um mistério, a respeito dele podemos esboçar apenas algumas pinceladas muito ligeiras. Mas me parece que São Luís Grignion, enquanto o “Cristóvão Colombo” desse novo continente da Teologia, deixa entrever coisas sobre as quais precisamos ter os olhos postos, se quisermos estabelecer uma relação entre o Tratado da Verdadeira Devoção e o problema “Revolução e Contra-Revolução”.

Porque então o auge da Contra-Revolução é o apogeu desta ação misteriosa de Nossa Senhora. Assim, a Contra-Revolução – pelo menos por um jogo de probabilidades – começa a aparecer como um avanço progressivo da Santíssima Virgem nas almas e uma acentuação desta ação misteriosa d’Ela nas almas, de tal maneira que, quando este sol chegar ao meio-dia, nós teremos a Revolução esmagada.

Há, portanto, uma gestação do Reino de Maria nas almas por um progresso novo, inédito desta ação misteriosa que se realiza na noite desta espécie de Idade Média do demônio em que vivemos, mas na qual já começa a haver algo que chegará ao seu meio-dia, quando o Reino de Maria for proclamado.        v

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

E a plebe morava em palácios…

Certo tipo de mentalidade se compraz em apresentar a Idade Média como tendo sido o paraíso da nobreza e o inferno da plebe. Esta não é senão mais uma das idéias errôneas que costumam propagar os detratores da Civilização Cristã.

Como já tivemos ocasião de considerar, na realidade os plebeus eram detentores de uma cômoda e folgada situação na sociedade medieval, embora não desfrutassem das honras reservadas aos nobres. Pelo fato de constituírem a classe militar que se imolava pelo bem comum, aos nobres cabiam direitos e privilégios superiores aos dos plebeus. Estes últimos não eram obrigados a derramar seu sangue em defesa da comunidade, e ao invés de lutarem e morrerem nas guerras, contribuíam para o benefício público mediante seu trabalho quotidiano, honesto e fecundo.

Essa contribuição plebeia chegou a tal ponto que, na Bélgica medieval, um conjunto de corporações (dir-se-ia hoje “sindicatos”) levantou, na Grande Praça de Bruxelas, magníficos edifícios que nada ficam devendo aos castelos e residências nobres. São construções em que a dignidade do trabalho manual ou comercial é, a justo título, glorificada.

Geminadas de modo muito pitoresco, manifestando a candura risonha e amigável das coisas engendradas pelo espírito católico, destacam- se as célebres casas das corporações, cada qual  correspondendo a uma associação diferente. Entre outras, as dos arqueiros, dos tapeceiros, dos carpinteiros, e também as dos impressores, padeiros, pintores, alfaiates, açougueiros, cervejeiros…

Não fosse o risco de cometer uma imperfeição próxima da mentira, eu gostaria de tomar pelo braço um desses rebarbativos detratores da Idade Média, levá-lo diante dessas casas e lhe dizer: “Esta é a praça da nobreza em Bruxelas!

Cada um desses edifícios é a residência de uma grande família nobre, vivendo no meio do luxo mais faustoso, contando com terras sem fim e algumas indústrias manufatureiras que lhes propiciam muito dinheiro. Os nobres vivem aí tranquilamente, sem trabalhar, porque têm quem o faça por eles…”

O meu ilustre e desavisado acompanhante exultaria: “Está vendo? Mas, é isto mesmo!”. E eu então diria: “Não, senhor… Lamento decepcioná-lo. Ali está a casa do padeiro, ali a do carpinteiro, e mais adiante a do cervejeiro… O senhor ignora História, não tem senso crítico e forma uma ideia falsa das coisas. Agora pode espernear à vontade. Não mudará o fato de que estes são lindos, magníficos e simples prédios destinados ao uso de plebeus…”

Para completar a extraordinária lição de harmonia que se aprende nessa Praça, lá está também — em inteira consonância com as construções, digamos, populares — o prédio do Paço Municipal, tão grandioso quanto o palácio de um soberano.

É um monumento gótico, erguido igualmente por plebeus para administrar seus próprios interesses e os da capital do país. Imponente e majestoso, elegante e delicado, com suas arcarias ogivais dominando-lhe a fachada, suas inúmeras estátuas aconchegadas em nichos ou dispostas em fileiras, e a esbelta torre central que vai se adelgaçando e se requintando em beleza, à medida que se lança para o alto, para as nuvens esparsas na amplidão do céu.

Fazendo “pendant” com o Paço Municipal, há outra suntuosa construção, a chamada “Casa do Rei”, talvez o ponto monárquico do lugar. Sabe-se que foi edificada no século XVI, sobre os restos do palácio em que se hospedaram grandes personagens civis e eclesiásticos, como o Papa Inocêncio III e São Bernardo de Claraval. Atualmente está transformada em museu.

Arquitetada com a riqueza e a pujança de um gótico “pré-flamboyant”, ela se ergue em ordenação irrepreensível, dando-nos a possibilidade de apreciar toda a beleza de que se reveste.

O primeiro de seus três andares abre-se para o exterior, numa série de pórticos terminados em ogivas superpostas. As inferiores são mais largas, enquanto as superiores, afiladas, incrustam-se nos peitoris rendilhados sobre os quais se apoiam as arcarias do segundo andar. Assim, aquilo que pareceria algo insonso por estar tão aberto, ao se afinar adquire charme, suavidade e graça. No andar seguinte, temos outra série de colunetas e arcos que, mais delgados, são um descanso para a vista do observador, em relação aos aspectos do primeiro e do terceiro pisos. Este último acompanha as linhas dos anteriores, mas sem as colunatas, apenas com suas janelas  ogivais e o extenso parapeito, primorosamente cinzelado.

Três andares, três ordens ao mesmo tempo muito semelhantes e muito distintas, extremamente harmoniosas, e que terminam em lindas mansardas ornamentais, feitas para ilustrar o topo do palácio. Já as fachadas laterais são arrematadas por dois torreões altos, de pontas esguias e rendilhadas.

E por fim, de alto a baixo, como florão de honra em função do qual tudo está construído, uma torre alta, toda enfeitada e ornada, constituindo o centro do edifício e conferindo a este “unum” e nobreza. De fato, a glória da “Casa do Rei” se encontra, sobretudo, nessa torre central. Ela é digna, altiva, afável. Ela nos deixa encantados quando a contemplamos de fora; honrados se nos permite transpor seus umbrais; e tranquilos, se nos concede o favor de nos acolher em um de seus aposentos, onde nos há de proporcionar um agradável e reconfortante repouso…

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2003)

Nunca se ouviu dizer….

Minha Mãe, dai-me a graça de nunca me sentir longe de Vós.
Dai-me a certeza de que a palavra ‘longe’, para efeito de vida espiritual, foi cancelada da Doutrina Católica, uma vez que Vós existis. Pois, se é verdade que muitos estão longe, Vós, Senhora, estais sempre perto.
Senhora, convencei-me de que Vós estais ao alcance, não de mãos que se estendem, mas de m„os que se juntam para rezar,rezar e rezar seriamente.
Nunca se ouviu dizer que alguém que tenha recorrido a vossa proteção e reclamado vosso socorro, fosse por Vós desamparado. Mãe minha, fazei-me compreender que, se nunca se ouviu dizer, não serei eu o primeiro a não ser atendido, o primeiro a ser uma exceção. Assim, pois, régia Senhora, fazei que sempre me volte a Vós com confiança. Amém.
Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta por Dr. Plinio para se rezar a Nossa Senhora)

O valor da família na sociedade cristã

Em sua obra magistral dedicada ao estudo das alocuções de Pio XII à Nobreza e ao Patriciado Romano, Dr. Plinio salienta o importante papel da família na estrutura harmônica de uma civilização  hierárquica e cristã.

Dado ser o estado matrimonial a condição comum do homem, é fazendo parte da respectiva família, como chefe ou membro, que ele se insere no imenso tecido de famílias que integra o corpo social de um País.

A par da família, o corpo social é constituído também por outros grupos intermediários. E a inserção de um indivíduo num desses grupos constitui também um modo de integração dele nesse corpo. Tal é verdadeiro, por exemplo, no que diz respeito à corporação de artífices ou à de mercadores, bem como às universidades, ou ainda aos órgãos diretivos que constituem o poder municipal urbano ou rural.

Se se atender à gênese do Estado, ver-se-á que, de um modo ou de outro, ele se originou de entidades pré-existentes, cuja “matéria-prima” era a família. Pois esta dera origem a grandes blocos familiares que os gregos designavam como “génos” e os romanos como “gens”. Estes últimos, por sua vez, formaram grandes blocos de “tonus” também ainda familiar, mas cujas correlações genealógicas se perdiam na noite dos tempos, e tendiam a diluir-se na confusão: eram as fratrias entre os gregos e as cúrias entre os romanos. “A associação” diz Fustel de Coulanges(1) “continuou naturalmente a crescer, e segundo o mesmo sistema. Muitas cúrias ou fratrias, agruparam- se e formaram uma tribo”.

Por sua vez, a conjunção das tribos formou a cidade, ou melhor, a civitas. E com isto o Estado. A família fecunda, um pequeno mundo A experiência demonstra que habitualmente a vitalidade e a unidade de uma família estão em relação natural com a sua fecundidade. Quando a prole é numerosa, ela vê o pai e a mãe como dirigentes de uma coletividade humana ponderável pelo número dos que a compõem como — normalmente — pelos apreciáveis valores religiosos, morais, culturais e materiais inerentes à célula familiar. O que nimba de prestígio a autoridade paterna e materna. E, sendo os pais de algum modo um bem comum de todos os filhos, é normal que nenhum destes pretenda absorver todas as atenções e todo o afeto dos pais, instrumentalizando-os para o seu mero bem individual. O ciúme entre irmãos encontra terreno pouco propício nas famílias numerosas. O que, pelo contrário, facilmente pode surgir nas famílias com poucos filhos.

Também nestas últimas se estabelece não raras vezes uma tensão pais-filhos, em resultado da qual um dos dois lados tende a vencer o outro e a tiranizá-lo.

Os pais, por exemplo, podem abusar da autoridade, subtraindo-se ao convívio do lar para utilizar todo o tempo disponível nas distrações da vida mundana, deixando os filhos relegados aos cuidados mercenários de “baby-sitters” ou dispersos no caos de tantos internatos turbulentos e vazios de legítima sensibilidade afetiva. E podem tiranizá-los também — é impossível não mencionar — por meio  das diversas formas de violência familiar, tão cruéis e tão freqüentes na  nossa sociedade descristianizada.

Na medida em que a família é mais numerosa, vai-se tornando mais difícil o estabelecimento de qualquer dessas tiranias domésticas. Os filhos percebem melhor quanto pesam aos pais, tendem a ser-lhes por isso gratos, e a ajudá-los com reverência — quando chegado o momento — na condução dos assuntos familiares.

Por sua vez, o número considerável de filhos dá ao ambiente doméstico uma animação, uma jovialidade efervescente, uma originalidade incessantemente criativa no tocante aos modos de ser, de agir, de sentir e de analisar a realidade quotidiana de dentro e de fora de casa, que tornam o convívio familiar uma escola de sabedoria e de experiência, toda feita da tradição comunicada solicitamente pelos pais, e da prudente e gradual renovação acrescentada respeitosa e cautamente a esta tradição pelos filhos.

A família constitui-se assim num pequeno mundo, ao mesmo tempo aberto e fechado à influência do mundo externo.

A coesão desse pequeno mundo resulta de todos os fatores acima mencionados, e esteia-se principalmente na formação religiosa e moral dada pelos pais em consonância com o pároco, como  também na convergência harmônica das várias hereditariedades físicas e morais que, através dos pais, tenham concorrido para modelar as personalidades dos filhos. Esse pequeno mundo diferencia-se de outros pequenos mundos congêneres, isto é, das outras famílias, por notas características que lembram em modelo pequeno as diferenciações entre as regiões de um mesmo País, ou os diversos países de uma mesma área de civilização.

A família assim constituída tem habitualmente como que um temperamento comum, apetências, tendências e aversões comuns, modos comuns de conviver, de repousar, de trabalhar, de resolver  problemas, de enfrentar adversidades e de tirar proveito de circunstâncias favoráveis. Em todos estes campos, as famílias numerosas possuem máximas de pensamento e de procedimento corroboradas pelo exemplo do que fizeram os seus antepassados, não raras vezes mitificados pelas saudades e pelo recuo do tempo.

Linhagens e profissões

Ora, sucede que esta grande e incomparável escola de continuidade — incessantemente enriquecida pela elaboração de aspectos novos modelados segundo uma tradição admirada, respeitada e querida por todos os membros da família — influencia muito os indivíduos na escolha das suas atividades profissionais, ou das responsabilidades que queiram exercer em favor do bem comum.

Daí decorre que, com freqüência, haja linhagens de profissionais provenientes do mesmo tronco familiar, por onde a influência da família penetra no âmbito profissional. É verdade que, no consórcio assim formado entre atividade profissional ou pública, de um lado, e família de outro, também estes vários tipos de atividades exercem a sua influência sobre a família. Estabelece-se assim uma simbiose natural e altamente desejável. Mas importa sobretudo notar que, o mais das vezes, o próprio curso natural das coisas conduz a que a influência da família sobre as atividades  extrínsecas a ela seja maior do que a de tais atividades sobre a família.

Noutros termos, quando a família é autenticamente católica, e conta não só com a sua natural e espontânea força de coesão, mas também com a sobrenatural influência da mútua caridade que lhe  provém da graça, a organização familiar atinge as condições ótimas para marcar com a sua presença todos ou quase todos os corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e por fim também  o próprio Estado.

A partir destas considerações, é fácil compreender que a influência benfazeja de linhagens cheias de tradição e de força criativa, em todos os graus da hierarquia social, desde os mais modestos aos mais elevados, constitui um precioso e insubstituível fator de ordenação, quer da vida individual, quer do setor social privado, quer da vida pública. E que, pela própria força dos costumes, a direção efetiva de vários corpos privados acabe por ir ter às mãos de linhagens que se destacam como mais dotadas para conhecer o grupo social, coordená-lo, dar-lhe o lastro de uma robusta tradição e o impulso vigoroso de uma contínua melhoria no modo de ser e de agir.

Nesta perspectiva, é legítimo que, no âmbito de alguns desses grupos, se forme uma elite para-nobiliárquica, uma linhagem preponderante para-dinástica, etc. Fato que contribui também para dar origem, nas sub-regiões e regiões rurais, à formação de “dinastias” locais, de algum modo análogas à família dotada de majestade régia.

Pais régios e reis paternos

Todo este quadro faz ver uma nação como um conjunto de corpos os quais se constituem, por vezes, de corpos menores; e assim, gradualmente, em linha descendente, até chegar ao simples indivíduo. Seguindo em linha inversa o mesmo percurso, percebe-se claramente o caráter gradativo e, enquanto tal, também hierárquico, dos vários corpos que intermedeiam entre o simples indivíduo e o mais alto governo do Estado.

Tendo em vista ser o tecido social constituído por toda uma abundante contextura de indivíduos, de famílias e de sociedades intermediárias, conclui-se que, sob certo prisma, a mesma sociedade é um conjunto de hierarquias de diversas índoles e naturezas que coexistem, se entreajudam e se entrelaçam acima das quais paira apenas, na esfera temporal, a majestade da sociedade perfeita, que é a do Estado; e, na esfera espiritual — a mais elevada — a majestade da outra sociedade perfeita que é a da Santa Igreja de Deus.

Assim vista, tal sociedade de elites é altamente participativa. Ou seja, nela, categoria, influência, prestígio, riqueza e poder são participados de alto a baixo, de maneiras diversas segundo cada degrau, por corpos com peculiaridades próprias. De tal maneira que outrora se pôde dizer que no lar, mesmo o mais modesto, o pai era rei dos filhos; e no ápice, o rei era o pai dos pais.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Nobreza e elites tradicionais análogas, nas alocuções de Pio XII ao Praticiado e à Nobreza Romana”, Livraria Editora Civilização, pp. 108-111. Título nosso.)

Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2002)

 

1) La Cité Antique, Librairie Hachette, Paris, Livro III, p. 135.

Um auge de amor de Deus

Comentando afrescos de Giotto, Dr. Plinio afirma entre outras coisas que logo após o nascimento de Jesus, Maria Santíssima observou o olhar lúcido e cheio de amor que Ele deitava sobre Ela. O Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento.

 

O  afresco pintado por Giotto na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, representando o casamento de São José com a Santíssima Virgem, tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação do pintor, corresponde a uma parte do Templo de Jerusalém.

Nossa Senhora com porte ereto e virginal

O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, debaixo da qual há uma espécie de camisa e uma meia-túnica que desce da cintura até o chão. É um ancião já de cabelos brancos, abundantemente barbado, numa atitude de piedade e recolhimento, que não visa ser a de um santo, mas de um prelado digno, respeitável, pois não tem em torno da cabeça a auréola de santidade. Ele está exercendo funções na cerimônia.

Identificamos São José pelo fato de ele estar com a mão direita passando uma aliança a Nossa Senhora, e com a esquerda segurando uma vara com flores. Era o tal bastão que floresceu, indicando ser ele o esposo escolhido pela Providência para Maria Santíssima.

Segundo uma antiga tradição, São José é apresentado como muito mais idoso do que Nossa Senhora. Daí notar-se na pintura a diferença de idade entre ambos. Ela ainda mocinha e com o recato, a compostura de uma pessoa toda virginal está vestida com uma túnica de um cor-de-rosa muito claro, quase se diria branco. O colorido não é bem exatamente o da meia-túnica do sacerdote, nem de uma espécie de meia-túnica de São José, mas são cores muito claras todas elas, que falam a respeito de virgindade, pureza, delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. Nossa Senhora está cingida com uma coroa de flores. Todo o seu porte é ereto e virginal.

São José toma um pouco o papel de esposo e de pai diante d’Ela. Sua atitude já é um tanto protetora em relação a Nossa Senhora, que Se deixa proteger. Ela está muito bem, apesar de sua aparente timidez junto ao sacerdote respeitável e a São José.

Em volta encontram-se as pessoas que estão assistindo às bodas. Não sei que papel terá no quadro esse personagem vestido de um verde muito claro. Alguns estão comentando o acontecimento, vestidos em trajes semelhantes aos romanos, mas com coloridos que não parecem ser de tecidos romanos, são mais orientais. Tudo indica que na mente de Giotto esta cena se desenrola no Templo de Jerusalém.

Realizado o casamento, organiza-se um cortejo com os esposos. É uma vista do cortejo que, com certeza, se encaminha para a festa. Nota-se que todos estão adornados, vestidos para uma solenidade, cabelos muito bem penteados.

Comunicações místicas do Menino Jesus com sua Mãe virginal

Esse outro afresco representa Nossa Senhora chegando à casa de Zacarias e sendo acolhida por Santa Isabel. A Santíssima Virgem está muito bondosa, muito meiga. Mas Santa Isabel, sobretudo, está respeitosa. Notem como ela faz uma inclinação e contempla Nossa Senhora, maravilhada. Esta olha comprazida para sua prima, mas não Se inclina. É natural: cada uma delas trazia em si um menino; mas no claustro de Santa Isabel não se encontrava senão o precursor do Menino que estava no claustro virginal de Maria. Sem dúvida é uma honra imensa ter concebido São João Batista – Nosso Senhor o comparou a Elias –, mas conceber o Homem-Deus não há comparação com nada!

No afresco representando o Nascimento do Menino Jesus, São José está dormindo, as ovelhinhas estão ali perto, o burrico também e os Anjos enchem o céu, cantando a glória de Deus. Os pastores estão ouvindo o cântico celeste. “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). É exatamente o que a Liturgia, no dia 24 para 25 de dezembro, deverá estar cantando.

É noite. Nossa Senhora acaba de dar à luz o Menino-Deus de um modo misterioso e maravilhoso. A atitude d’Ela é de uma pessoa inteiramente sadia, que está aconchegando melhor seu Divino Filho numa manjedoura. Mas com um desembaraço de movimentos que não é o de uma mãe da qual acaba de nascer sua criança. Compreende-se: o processo de nascimento é dolorido e difícil em virtude do pecado original, mas em Nossa Senhora não. Ela foi virgem antes, durante e depois do parto. Esse nascimento se deu de modo milagroso, de maneira a não representar um esforço para Ela. Ali está seu Filho, e Ela, como quem tivesse acordado de um sono brando, abrisse um pouco os olhos para ver o Menino, e vai dormir dali a pouco de novo.

De fato, é uma cena lindíssima, que empolga! Pode-se imaginar a situação de Maria Santíssima ao ver, pela primeira vez, o fruto do Divino Espírito Santo nas suas próprias entranhas. E que fisionomia tinha o Homem-Deus que acabava de nascer d’Ela! O Menino Jesus tomava toda a atitude de uma criança dessa idade. Ele teve, durante toda a vida, a atitude própria às idades que foi percorrendo, até os 33 anos com que Ele morreu.

Porém, como Ele possuía a natureza humana ligada à divina pela união hipostática, em uma só Pessoa, teve de fato uma inteligência plena desde o primeiro instante em que sua Santíssima Mãe O concebeu. Já no claustro materno Ele rezava, oferecia a Deus reparações, O adorava e implorava pelos homens. O Menino Jesus começou a sua vida inteiramente consciente, desde o primeiro momento em que passou a existir.

De maneira que essa Criança, com o todo de um bebê, teve, entretanto, incontáveis comunicações místicas, talvez diretas, não se sabe como, com sua Mãe virginal já desde o período da gestação. Nossa Senhora sabia que seu Filho era uma Criança inteiramente inteligente. Mas olhava para Ele, um Menininho, a quem a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade estava unida hipostaticamente.

Maria Santíssima compreendia ser lúcido e cheio de amor o olhar que Ele deitava n’Ela, e que os dois estavam Se conhecendo: o Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe, e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento!

Serenidade medieval que exprimia a graça de Deus

De acordo com uma bela tradição, os magos vindos do Oriente eram reis. Por isso, no afresco de Giotto vemos esses dois reis em pé, atrás, com coroa ou um diadema cingindo a cabeça. Eles vêm trazendo os seus presentes, recebidos pelo Menino Jesus no colo de Nossa Senhora, que está sentada numa espécie de troneto sobre um estradozinho ricamente atapetado. Ela mesma está também ricamente vestida. Para receber reis tinha que Se vestir com aparato. Mais adiante há uma tribunazinha onde estão vários personagens santos; nota-se isso pelas auréolas. Atrás de Nossa Senhora há um Anjo e São José.

É interessante o seguinte: um dos reis está adorando o Menino Jesus e osculando os pés d’Ele. Os dois outros monarcas estão tranquilos, comprazidos em oração diante de Nossa Senhora e de seu Divino Filho, vendo o seu companheiro de viagem, seu irmão na realeza, adorar assim o Menino. Estão contentes com tudo e esperam chegar a vez deles, sem impaciência, com essa tranquilidade, serenidade medieval que exprimia bem a presença, o espírito, a graça de Deus na alma desses personagens.

Logo atrás dos três reis há um gorducho que está freando ou dando um jeito qualquer no camelo, para este não criar problemas. Esse já não tem nada do sobrenatural, do tranquilo, do sereno dos demais; é um homem movimentado e prestando atenção em tudo, de nariz pontudo, olhos saltados e mandão. Está bem à altura de tratar com camelos.

Até o Templo tem algo de esguio e virginal

Outro afresco traz a cena da Apresentação do Menino Jesus no Templo. Vemos a Santíssima Virgem e São José de um lado, de outro o Profeta Simeão e atrás está a Profetisa Ana. Interessa principalmente a atitude de São José e de Nossa Senhora. Quem apresentou ao Profeta o Menino foi Ela, que está com as mãos estendidas como quem O acaba de entregar. São José, recolhido e modestamente em segundo plano, acompanha a cena. Não creio que haja meios para decifrar quem é o terceiro personagem.

Uma atmosfera de santidade e pureza domina o quadro todo, a ponto de o próprio templozinho ter qualquer coisa de esguio e virginal. Notem como Giotto coloca um fundo meio azulado com numa tonalidade um tanto escura, que dá muito relevo à parte central do tema, ou seja, o Menino Jesus, o Profeta Simeão, Nossa Senhora, São José e a Profetisa Ana.

Na pintura que representa a fuga para o Egito, Maria Santíssima vai montada num simples burrico, São José à frente guiando, e eles apresentam todos os sinais exteriores da pobreza. Entretanto, a dignidade d’Ela é de uma princesa; seu porte retilíneo, as costas sem a menor inflexão, a cabeça alta indicam a resolução com que Ela enfrenta os riscos da viagem, que parece estar no começo.

São José vai caminhando na frente, mas atentíssimo ao que acontece com a Mãe e a Criança. Nossa Senhora não. Ela parece confiar em São José e em Deus; por isso mantém-se recolhida em oração com o Menino que está como que dormindo e agarrado à Mãe, um pouco para dar a entender a intimidade entre os dois, e como é cheio de propósito que Ela reze a Ele por aqueles que estão contemplando o quadro.

O sangue dos primeiros mártires começa a subir ao Céu

O Rei Herodes mandou matar todas as crianças de dois anos para baixo porque os Magos tiveram a inocência de procurá-lo, perguntando se tinha ouvido falar do Rei dos Judeus que tinha nascido. Herodes achou que dois reis no mesmo reino não cabiam e que, portanto, era preciso eliminar esse menino. Houve, assim, uma matança geral de inocentes. Estes foram os primeiros mártires da Igreja Católica. Por que mártires? Por uma razão muito simples: eles foram mortos por ódio à Fé, a Deus, ao Menino que lhes dera a honra de nascerem na mesma cidade que Ele. Mortos assim, embora não tivessem consciência de si mesmos, foram todos para o Céu como mártires. E são os Santos Inocentes cuja festa se celebra no dia 28 de dezembro, com um nexo, por motivos óbvios, com a festa de Natal.

É interessante notar o seguinte: quando os Anjos aparecem na noite de Natal, eles cantam “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Os primeiros atos que se desenrolam a partir do Natal são cheios de luz, de bênção e de paz, é verdade, mas carregados de ameaças para o futuro. O que parece, para um espírito superficial, estar em contradição com a ideia de “paz na Terra aos homens de boa vontade”, porque pareceria que os homens de boa vontade não sofreriam nem perseguições, nem lutas, nem qualquer dificuldade. Dentre os pais e as mães desses meninos, provavelmente alguns seriam homens de boa vontade. Entretanto, o que eles tiveram? O morticínio de seus filhos. Uma coisa, portanto, de assustar!

Vê-se numa espécie de tribuna um personagem que proclama um edito. Imediatamente lotam a cena os algozes, os executores, à procura das crianças, e as pessoas tentam se esquivar. No primeiro plano uma mulher que evidentemente não quer entregar o filho. Mais adiante percebem-se cenas de uma agitação e de uma violência, que leva a admitir como provável que já nesse magma estão sendo mortas as primeiras crianças. O primeiro sangue de mártires começa a subir ao Céu. É uma coisa extraordinária!

Alguém perguntará: “Eles não são batizados?” Essas crianças foram batizadas no próprio sangue. Constituem, portanto, as primeiras almas batizadas, decorrentes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco depois de Ele ter nascido.

Uma resposta afirmada majestosamente

Essa outra cena mostra o encontro de Jesus no Templo. Nela vê-se um aspecto interno do Templo de Jerusalém, todo meio romanizado. Por exemplo, aquela espécie de abóboda seguida de dois outros compartimentos colaterais é de estilo romano a conta inteira.

Dentro do Templo, de um lado e de outro, encontram-se os doutores da Lei discutindo a interpretação desse ou daquele ponto da Escritura. Mas o Menino Jesus já Se destacou tanto entre eles que ocupa a presidência dos sábios e está falando como verdadeiro Doutor. As pessoas estão perto d’Ele pasmas com o que Jesus diz, procurando ouvi-Lo com muito interesse e aproveitando as lições que Ele dava.

À esquerda, de pé, Nossa Senhora e, mais atrás, com sua vara florida, São José. A cena faz entender que o Santo Casal não compreendia a atitude do Menino Jesus. Maria Santíssima está numa atitude de quem pronuncia a famosa pergunta: “Meu Filho, por que agistes assim conosco?” (Lc 2, 48). Nosso Senhor parece estar dando doutoralmente – eu quase diria majestosamente – a resposta: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2, 49).

No céu chamejam raios e brilhos de glória

No Rio Jordão, São João batiza Nosso Senhor Jesus Cristo. O batizado se dava na forma de um verdadeiro banho e Nosso Senhor é apresentado, portanto, com uma parte do tronco desnuda por causa do banho. No céu chamejam raios e brilhos de glória.

Notem a situação um tanto paradoxal: dir-se-ia que a grande figura ali seria quem batiza, e o neófito, uma figura secundária. Mas Nosso Senhor é apresentado, apesar da grandeza de São João Batista, com uma majestade divina, uma seriedade e uma tranquilidade extraordinárias, que fazem d’Ele um verdadeiro Rei e dominador. Ele não está com nenhum atributo da realeza, ao contrário, apresenta-Se com o busto desnudo. Entretanto, vejam o jeito d’Ele e a própria atitude de São João Batista, como é respeitosa e até um pouco inclinada, embora segura, e em nada intimidada. No céu, a Glória de Deus transparece.

Nas Bodas de Caná – outro afresco presente na Cappella degli Scrovegni –, a narração do Evangelho dá a entender que havia muitas pessoas, a ponto de esgotar a provisão de vinho da família, o que deu origem ao milagre da transmutação da água em vinho. Porém, para economizar espaço, Giotto representou apenas a cena central, ou seja, a mesa principal das bodas, onde se encontram Nossa Senhora, São José e Nosso Senhor Jesus Cristo que está dando ordem para a água se transmutar em vinho.

É interessante ver como o pintor imaginou a cena: as várias talhas alinhadas nas quais estava a água que se transmutaria em vinho.

Por se tratar de uma festa, os anfitriões queriam ocultar a rudeza da pedra e por isso estenderam sobre a parede uma cortina de bom tecido, suspensa a uma altura maior do que a de um homem comum. Esse era um costume frequente na Idade Média.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/11/1988)