A bondade de Dona Lucilia

Em Dona Lucilia havia uma apetência de espírito para o sobrenatural, porque ela queria ter sua principal relação com Deus, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, quem ela mais amava era Nosso Senhor Jesus Cristo. A bondade dela a conduzia a considerar as pessoas com muita elevação, envolvendo-as de doçura e afeto.

 

Dona Lucilia foi a última semente da árvore da Idade Média que, ao cair no solo, fez germinar o futuro. Ela é uma alma profundamente medieval, mas não apenas enquanto uma síntese do passado. Era chamada a ser, sobretudo, esse começo do futuro.

Uma bondade que ultrapassa a medieval

Por exemplo, no tocante à bondade. Não se pode dizer que a bondade dela fosse estritamente medieval. A Idade Média está ali dentro, mas é uma bondade que ultrapassa a medieval, é um desenvolvimento da que existia naquele período histórico. A bondade de Dona Lucilia é feita de uma elevação de espírito que multiplica a bondade pela bondade. Custo a realizar como é que existia na Idade Média a bondade debaixo desse ponto de vista.

Em mamãe havia uma tendência, uma apetência do espírito para um contato com Deus, porque ela queria ter sua principal relação com um Ser tão elevado, nobre e sublime, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, o que ela amava era Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso conduzia a que toda a bondade que ela tivesse fosse constituída de um modo de considerar os outros com uma elevação muito alta, envolvendo de doçura e afeto a pessoa a quem ela considerava. Esse afeto descia dessa eminência, por assim dizer, quase raptando a pessoa para uma esfera sobrenatural muito elevada também.

Tomemos, por exemplo, o cântico Anima Christi. Há quase uma diferença entre as palavras e o tom de voz com que aquilo deve ser cantado, de um lado, e a música do outro. Porque há qualquer coisa de arrebatado no estilo inaciano desse cântico. Mas existe ao mesmo tempo uma ternura levada a uma elevação, a uma coisa que é o extremo no gênero! Da elevação de quem considera a sublimidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e quase a fraqueza d’Ele.

No Anima Christi existe uma espécie de compaixão com que é tratado Nosso Senhor, mas, de outro lado, um arrebatamento. Há naquilo um misto de veneração muito profunda e respeitosa, e de ternura que, tomando em consideração a grandeza do Redentor, mas também a Ele chagado, tem quase receio de se exprimir, pelo medo de tocar n’Ele de um modo insuficientemente delicado. Mas no fundo e no centro está uma evocação da Pessoa d’Ele e dos sentimentos que essa Pessoa desperta. Assim, aquele cântico, de algum modo, descreve a Ele.

O Sagrado Coração de Jesus era o píncaro de seu amor

Havia tudo isso no modo de ser de mamãe, por onde o Sagrado Coração de Jesus era o ápice, o píncaro de seu amor. Isso dava a marca medieval dela. Porque, embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não tivesse nascido na Idade Média, ela levava a ternura do medieval para com Ele até o último ponto. É bonito que Nosso Senhor tenha aparecido em Paray-le-Monial, cujas origens remontam à Ordem de Cluny.

A consideração de tudo isso me levava a respeitá-la profundamente e, ao mesmo tempo, ter para com ela uma ternura a mais delicada possível. Mas com a sensação de que tudo quanto eu fizesse não bastava, pois ela estava acima disso.

Quando Dona Lucilia morreu, senti uma dupla lancetada: de um lado, a noção de que uma pessoa assim acabava de ser, inexoravelmente, “desfeita” pela justiça divina… Porque a morte é isso. Os dois elementos constitutivos do ser humano, a alma e o corpo, são separados. Portanto, nesse sentido desfeita. Aliás, se não fosse a ressurreição, seria um absurdo. Eu me lembrava de uma cançãozinha que se cantava quando as Filhas de Maria faziam procissão na Igreja de Santa Cecília: “Misteriosa justiça nos prende, só por filhos à culpa de Adão; mas a lei quebrantada anulou-a a tua santa e feliz Conceição.” Quer dizer, realmente é uma misteriosa justiça.

De outro lado, a irreparável ausência dela. Porque encontrar outra pessoa assim…  Pode levar a lanterna de Diógenes que não descobre nada…

Reveses e provas

Pouco antes de ser acometido de diabetes1, estávamos jantando, só ela e eu, em casa. Falávamos, mas o melhor da conversa era a presença. Portanto, eu estava mantendo a prosa quase por polidez, mas de fato me embevecendo fantasticamente com ela.

Lembro-me de ter pensado nisto: como seria difícil mãe e filho se quererem tão bem no mundo de hoje. E me vinha ao espírito a ideia: “Esta salinha de jantar é, no fundo, uma espécie de torrãozinho onde Nossa Senhora ainda conserva um pequeno resto, mas em mamãe um resto solar! Será que está nos desígnios da Providência permitir que tudo isso se dissolva com uma antecedência relativamente grande dos acontecimentos previstos em Fátima? Mamãe falece; de repente eu morro também, isto tudo aqui é vendido, se dispersa, e é mais uma coisa boa que desaparece no mundo…”

Quando me apareceu aquela infecção no pé, recordei-me imediatamente daquilo que eu tinha pensado. Passei os dias em casa fazendo todo o possível para que ela não percebesse a gravidade de meu estado de saúde.

Certa ocasião mamãe estava sentadinha junto à mesa da sala de jantar, eu passei pelo hall e tive um tombo sem que ela visse. A empregada me disse num tom meio atrevido e revoltado:

– Mas o que é que tem? O senhor informe a ela de uma vez sobre o estado em que o senhor se encontra!

Eu manifestei desagrado com ela e afirmei:

– A senhora não está vendo que eu não quero aborrecê-la?

– Mas assim, até esse ponto?

– Até esse ponto. Quem gradua isso sou eu.

Entrei na sala pensando: “O que eu tinha previsto está se realizando… Esse negócio que tenho aqui é uma gangrena.” Mandei chamar os médicos e afundei num túnel. Cogitei: “Um vendaval vai me tomar e ela ainda morrerá por esses dias…”

Ficava transido de pena de mamãe ao pensar o que poderia acontecer se eu morresse antes dela. E me punha o seguinte problema: Recomendo que não digam a ela que eu faleci? Porque o problema se punha. Quer dizer, para não lhe comunicarem que eu morri, tinha que entrar pelo caminho das mentiras. Mas ela, no estado em que se encontrava, tinha o direito à verdade?

Mas, de outro lado, se Deus a queria provar, possuía eu o direito de poupá-la dessa prova? Quer dizer… uma coisa tremenda!

A cadeira de rodas de Dona Lucilia

Quando me vieram avisar que ela estava morrendo, eu acabara de tomar o café da manhã e de ler o jornal. Dirigi-me ao quarto dela tão rápido quanto minhas condições físicas permitiam e, ao chegar, ela já estava morta. Chorei muito e, afinal de contas, fui para o meu quarto. Inexplicavelmente – creio que foi uma graça obtida por ela – invadiu-me uma paz, uma tranquilidade que era quase uma alegria.

Fui ao cemitério para o enterro, mas não ousei ir até a sepultura.

No dia seguinte parti para nossa sede, em Amparo, voltando de lá para a Missa de sétimo dia durante a qual se deu aquele fenômeno do raio de sol sobre as orquídeas, que tomei como sendo o sinal pedido por mim a Nossa Senhora de que mamãe não estava mais no Purgatório2.

Lembro-me, por exemplo, de uma bagatela. Eu me desagradava muito da cadeira de rodas dela. Eu gostaria que mamãe caminhasse. O passinho dela era uma das muitas coisas que me encantavam. Como ela conseguia andar com gravidade e com um passinho rápido! Dona Lucilia era muito grave no que ela fazia, mas rápida no andar. Não sei como ela conciliava isso.

Apesar de antiga e de já não se usar mais cadeiras de rodas daquele tipo, por ser mais alta tinha mais dignidade do que os modelos recentes. E eu não queria vê-la metida nessas cadeiras muito melhores, porém menos dignas. Então arranjei aquela mesma. Ela, então, vinha altinha sobre aquilo.

Quando ela morreu, mandei devolver a cadeira de rodas à Santa Casa e pagar o preço de um aluguelzinho. Uns cinco dias depois, comecei a sentir saudades da cadeira de rodas e ordenei perguntar à Santa Casa se podiam me vender.

São recordações que me dizem muito. Embora o recuo do tempo, neste caso, não melhore a perspectiva, nem me leve a querê-la mais bem por causa disso, por alguns lados convida a uma atitude mais admirativa em relação a mamãe.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 20/4/1991)

Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)

 

1) Em dezembro de 1967, em consequência de uma grave crise de diabetes, Dr. Plinio teve gangrena no seu pé direito, sendo submetido a uma cirurgia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para debelar a infecção. (Cf. Revista Dr. Plinio n. 117, pp. 4-5).

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 121, p. 19.

Dois olhos que são um firmamento

O principal ponto de adesão entre Dr. Plinio e sua mãe era o fato de ela estar continuamente voltada para uma “trans-esfera” muito nobre, elevada, doce, serena, lúcida, do alto da qual mantinha  relações com todo mundo. Isso que poderia parecer etéreo se exprime muitíssimo bem no Quadrinho de Dona Lucilia, especialmente nos olhos.

 

Dona Lucilia era uma senhora de família ou, como se diz hoje de uma maneira horrível, “de prendas domésticas”.

Vivia para o trabalho de uma existência de senhora, para dentro de sua casa. Não foi uma senhora de estudos, pois no tempo dela não era costume as senhoras estudarem. Tinha as ideias gerais  das senhoras que viviam no ambiente de homens cultos. Era profundamente católica. 

Estado de espírito sempre nobre, elevado e sereno

Mas eu não ousaria dizer que este ponto fosse o principal da adesão entre mim e ela. Certamente não haveria adesão se ela não fosse assim. Isso é certo, mas não é o fundamental. O principal  ponto de adesão era um modo de ser da alma dela que me parecia estar continuamente voltado para uma “trans-esfera”1 por onde, embora ela tomasse conta de tudo muito bem, o melhor da  atenção, do afeto dela estava voltado para essa “trans-esfera” muito nobre, elevada, doce, serena, lúcida, do alto da qual ela mantinha relações com todo mundo, de tal maneira que se percebia estar  sua alma, ao mesmo tempo, na “trans-esfera” e na pequena coisa concreta.

Lembro-me de que ela gostava muito de uma flor chamada primavera.

Na fazenda do Amparo de Nossa Senhora, onde eu costumo me hospedar, há uma trepadeira com essa flor. Sabendo que mamãe apreciava a primavera, os membros de nosso Movimento ali  residentes cortavam muitas daquelas flores e me davam para levar para ela, cada vez que eu voltava a São Paulo.

Quando chegava, eu lhe entregava as flores, e via os jeitos dela olhar encantada para elas. Às vezes, suave e discretamente, mamãe até parava um pouquinho a respiração e depois fazia algum  comentário. Mas eu notava que o comentário não era nada em comparação com o que estava no espírito dela a respeito daquilo. Entretanto, o que ela dizia estava relacionado com uma  “trans-esfera” da qual aquelas flores não eram senão o símbolo. Em última análise, uma relação com Deus Nosso Senhor, com Nossa Senhora e tudo o mais que tange o mundo sobrenatural.

Desse sentido elevadíssimo no qual Dona Lucilia habitava procediam todos os seus estados de alma, os quais constituíam o meu maior encanto por ela, e que procurei haurir e transformar em  meus, tanto quanto pude.

Este era o principal ponto de atração. É um pouco nebuloso, etéreo, mas a pessoa se dá conta disso olhando o Quadrinho. Porque vendo-o percebe-se o que isso quer dizer de concreto, embora seja um pouco inexplicável.

História de uma obra-prima

Se querem saber qual é o principal ponto de atração da alma de mamãe para a minha, olhem para o fundo do olhar dela no Quadrinho e compreenderão. Aquilo diz muito mais do que qualquer  palavra ou descrição.

Quando um discípulo meu pintou aquele quadro – tendo como base uma das últimas fotografias tiradas dela – fê-lo durante uma longa viagem, dentro de uma “Kombi”, nas condições mais  desfavoráveis que se possa imaginar para um trabalho desse tipo.

O resultado foi que ele terminou a pintura e não gostou. Então, apagou tudo, exceto os olhos, que lhe pareciam ter ficado bons. Assim, no pano restaram apenas aqueles dois olhos. E ele tinha a  impressão de que os olhos dela lhe suplicavam que retomasse a pintura. Ele então fez e, apesar de outras vicissitudes, saiu aquela obra-prima.

Pois bem, eu me comovo imaginando aqueles dois olhos no tecido. Seria quase o que mamãe foi para mim: dois olhos ao longo da vida…

Todo o resto, um tecido. Mas aqueles dois olhos eram, para mim, um firmamento! Recordo-me de quantas e quantas vezes eu olhava para os olhos dela profundamente. E mamãe tinha uma coisa  curiosa: quando ela se sentia analisada, tomava uma atitude bem fixa e se deixava olhar. Eu tinha a impressão de que pegava com a mão no fundo da alma dela, de tal maneira me ficava claro  quem ela era. E ficava encantadíssimo, mas encantadíssimo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1978)

1) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a trans-esfera.

O xale lilás

O xale tem algo de supérfluo que bem manuseado pode dar ares de nobreza, de dignidade. Para uma senhora que tem a idade do Sol quando se põe, convém um xale discreto, distinto, mas que orne os ocasos. E uma das cores adequadas para Dona Lucilia era o lilás, que possui alguma coisa do refletido, do tristonho, do organizado, daquilo que já caminha para o fim.

 

Embora um espírito não tenha cor, pois não é de natureza material, pode-se relacionar estados de alma a determinadas cores, procurando ver nelas o espírito que se reflete. Assim, poderíamos nos perguntar se existe um espírito cor de “amaretto”, nacarado ou dourado. A cor é apenas um símbolo material de um estado de alma espiritual, imaterial.

Cor, aroma, som, sabor e traçado de uma linha

Numa primeira abordagem, a resposta à pergunta resulta em uma banalidade, porque é claro que a estados de espírito correspondem cores. Por exemplo, ao negro corresponde o luto. E não é por  uma analogia, por uma relação convencional, mas por uma correspondência natural. O homem que está morto não vê, não sente. Ele está para com a vida como um cego para a feeria das luzes,  quer dizer, não vê.

Encontra-se numa noite, num escuro “eterno”, em que ele não vê nada. Por outro lado, há cores festivas que indicam estados de alma jubilosos, triunfais, como existem cores e tonalidades que  denotam o repouso. A experiência mostra que os artistas utilizam em suas obras esta ou aquela cor para exprimir um determinado estado de espírito. Logo, essa reversibilidade existe.

Entretanto, poderíamos ir mais longe e perguntar se nos seria possível, tratando com pessoas, perceber que cor corresponde a este ou àquele indivíduo como mentalidade e se, portanto, as pessoas têm cores, nesse sentido. Evidentemente não entra em consideração aqui a etnia. Se estabelecermos com uma pessoa um contato no qual ela não se sinta forçada a representar um papel, não tenha o empenho de se falsificar para se tornar agradável; portanto, tomada a pessoa na sua autenticidade, e suposto um convívio em que, pela continuidade, os vários aspectos dela vão aparecendo e se  completando – o que não implica em um convívio necessariamente muito longo, basta que seja proporcionado ao discernimento do observador –, poderíamos dizer que cada pessoa causa uma impressão dominante. A meu ver, essa impressão dominante seria redutível, simbolizável numa cor.

Até acho mais: se, como vimos, a cada pessoa poderia corresponder uma  cor ou uma tonalidade dentro de uma cor, donde decorreria matizações mais ou menos indefinidas, também a cada família poderia corresponder uma cor, como um aroma, um som, um sabor.

Isso ocorre também com as formas, pois o modo habitual de caminhar na vida, a conduta da pessoa ou da família seria passível se reduzir ao traçado de uma linha. Assim, há pessoas cuja conduta  é simbolizada por uma linha cambaleante, outras por uma linha reta, e outras ainda pela espiral.

O prático e o estético

A única pessoa que eu reduzi a uma cor, muitos anos depois de ter cessado minha convivência com ela, foi mamãe. Realmente o brilho de ametista era bem o “lumen” dela. Pude notar que o meu  gosto pela ametista, já quando Dona Lucilia era viva, correspondia a um modo de querê-la bem. Enquanto ela estava viva, eu nunca fiz esta reversão. A posteriori, quando cheguei a realizá-la, dei– me conta de quanto tudo que cercava mamãe estava imerso naquela luminosidade da ametista, de cor um pouco dada a escura. Não é, portanto, dessas ametistas um pouco esbranquiçadas.

É ametista de valor, de cor nutrida, quase de quaresma. O xale que ela usava continuamente estava em consonância com isso.

Em geral, quando se trata do assunto traje, nas épocas mais ou menos bem constituídas como ainda era o tempo em que ela viveu, ao menos por alguns aspectos, vê-se que há uma espécie de  composição entre o lado prático e o estético. As pessoas se fazem uma certa ideia do lado prático e depois com isso vêm algumas ideias do lado estético.

E fazem disso um total que não se sabe o que prepondera mais: o prático ou o estético. O xale é característico a esse respeito. A ideia é a seguinte. Naquela época havia muito medo dos resfriados.

E se compreende bem, porque não existiam antibióticos como hoje. E para curar um resfriado era preciso muito cuidado, porque senão degenerava com certa facilidade em gripe. E gripe podia  degenerar em pneumonia, e esta em tuberculose. E a tuberculose, que é uma moléstia infecciosa, matava um número muito grande de gente no tempo em que Dona Lucilia era moça. Basta dizer que nas peças de teatro, a maior parte dos heróis e heroínas que são apresentados morrendo, falecem de tuberculose.

De tal maneira essa doença se tornou frequente naquele tempo. E o resfriado era o começo de uma estrada descendente que chegava até a tuberculose. Então as pessoas tomavam um cuidado  enorme contra o resfriado, que hoje não se justifica mais com a facilidade que se tem em combater as doenças infecciosas. A ideia prática para evitar os resfriados, e sobretudo  as doenças de pulmão, era as senhoras protegerem os pulmões por meio do xale. Então vê-se que o xale envolve e protege essa parte mais sensível do corpo contra o perigo das pneumonias.

Ornato para exprimir a mentalidade

Dessa ideia prática apoderou-se a arte. E o xale usado pelas senhoras do tempo foi adotado como uma espécie de ornato, para a expressão da mentalidade delas. Então, o xale – como aquilo que  fica por cima do corpo, e que tem mais relação com o vestido, forma o busto da pessoa – era muito indicativo da mentalidade da senhora.

E numa senhora com xale aparece sobretudo o busto, que é formado pelo rosto, pescoço e a área do xale; e depois a saia. As saias eram longas e chegavam em geral até os pés. Portanto, tinham  outra importância indumentária, em comparação com esses saiotes vagabundos de hoje.

O xale, por outro lado, tinha algo de particularmente nobre, porque o verdadeiro e bonito do xale é ter qualquer coisa de supérfluo. Eram panos longos que a pessoa não colocava só para fechar  exatamente como um pulôver; dobrava-se o xale para um lado, depois para o outro. E o supérfluo bem manuseado pode dar ares de nobreza, de dignidade. De maneira que o xale facilmente  nobilitava a senhora que soubesse usá-lo.

Os modos de pôr, dobrar e arranjar o xale eram quase atitudes rituais. E a senhora mostrava a educação, a linha e a inteligência que possuía, a propósito do xale.

O xale de Dona Lucilia era semelhante aos que tinham incontáveis senhoras daquele tempo. Ela o usava daquela forma e se velava com o xale muito compostamente, suavemente.

Os xales dela tinham um misto de distinção e suavidade no modo de se apresentarem, que realmente me encantava. Uma senhora que tem a idade do Sol quando se põe A cor e os desenhos do xale eram relativos à situação e à idade da senhora que o usava. De maneira que a uma senhora idosa não ficava bem, por exemplo, um xale vermelho ou faiscante de lantejoulas douradas ou prateadas;  seria uma coisa medonha.

Para uma senhora que tem a idade do Sol quando se põe, convém um xale discreto, distinto, que orne os ocasos. E nessas condições, uma das cores adequadas para mamãe era o lilás, que tem ao  mesmo tempo algo do azul, não tem dúvida, mas alguma coisa do refletido, do tristonho, do organizado, daquilo que já caminha para o fim. O lilás ficava muito bem para ela. Aquele xale foi  trazido por minha irmã de uma viagem à Europa. Tenho quase certeza de que ela o comprou em Paris. Minha irmã tem muito espírito prático e ao mesmo tempo sabe vestir-se muito bem. E era  um xale que tinha três finalidades: aquece muito, pesa pouco – é importante que pese pouco sobre os ombros de uma senhora idosa – e orna bem.

Embora seja normal que uma pessoa, vestindo esse xale, o use sobretudo nas ocasiões em que está diante de pessoas estranhas, porque é um bonito ornato, ela de tal maneira gostou dele que  começou a usá-lo todos os dias.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/7/1980 e 25/8/1983)

A vitória é dos que sofrem bem

Apesar de todo o sofrimento, Dona Lucilia era suave, tranquila, sem o menor sinal de desespero, de estraçalhamento. Compreendia em toda a extensão quais eram as dores da vida, certa de que no  undo a vitória é dos que sofrem, tendo sempre os olhos voltados para o Sagrado Coração de Jesus.

 

Dona Lucilia nasceu num período muitíssimo diferente do nosso, que na Europa talvez já tivesse começado a declinar um pouco, mas no Brasil ainda vivíamos de cheio: era o regime chamado do romantismo.

Romantismo e “hollywoodismo”

O romantismo era uma escola de pensamento pífia, mas que tomou  conta do mundo, a qual erigia como princípio que o sentido verdadeiro da vida do homem estava na dor; se o  homem sofresse  muito ele realizava sua existência. Exatamente o contrário de um princípio pior ainda, que era “hollywoodiano”, segundo o qual a vida do homem está  no prazer; se ele gozasse intensamente a  vida, teria realizado sua finalidade.

Ela nasceu no último período do romantismo e assistiu o levantar-se do sol espúrio do “hollywoodismo”.

Pela escola do romantismo, a pessoa devia examinar sua própria vida e buscar nela o que era ou podia ser uma causa de sofrimento. Os partidários dessa escola diziam – e nisso tinham razão, pois  o mal absoluto não existe – que todo homem que examine bem suas condições de vida encontra razões de sofrimento, e deve estar atento a essas razões, compreendendo que elas muitas vezes não  são removíveis. Então, é preciso aceitar essa dor reconhecendo – outra coisa verdadeira – que ela é um fator de valorização da alma.Com efeito, em linguagem católica, a dor é um fator de  santificação e é necessário aceitá-la, embora, sendo possível, possamos e até devamos procurar remover os padecimentos que venham ao nosso encontro por permissão da Providência.

Por exemplo, uma doença. A pessoa está enferma, mas tratando-se bem pode ficar curada. O verdadeiro bom senso não é dizer: “Meu Deus, Vós mandastes sobre mim uma doença; abro os meus braços e me entrego!” Ora, tome remédio! Ou, atitude bem mais dura: faça regime, mas não choramingue aquilo que você pode remediar. Deus lhe enviou a doença, mas também o remédio e o dinheiro para comprá-lo.

Então compre o remédio, tome-o e acabe com essa enfermidade e com essa choradeira também.

Contudo, há doenças e sofrimentos que são irremovíveis. A pessoa precisa aceitá-los: “A Providência quis que toda a minha vida eu sofresse isso, vou aceitar de frente e não procurar fechar os  olhos ao significado da minha dor; pelo contrário, vou vê-la inteira, tudo o que eu perco, tudo quanto eu sofro e ainda sofrerei por causa disso, e preparar minha alma como um guerreiro se prepara para a guerra.”

E o enfrentar consiste muitas vezes em travar uma luta mais dura do que a própria doença ou a própria provação. Por exemplo, a pessoa tem uma enfermidade e padece com isso. A reação poderia ser: “Ai, ai, ai… Como estou sofrendo!”

A verdade não é essa: “Você está sofrendo? Está bom, mas sua vida não é feita só de sofrimento, há outras coisas boas: pão com manteiga, por exemplo. Coma o pão, a manteiga, trabalhe, lute,  ponha seu ideal onde deve estar, que é no serviço da Santa Igreja, na derrota de satanás, e meta o peito!”

Dureza de alma no trato

No caso de Dona Lucilia, ela via duas situações. No tempo desse romantismo, se dava à beleza física do  elemento feminino uma importância muito grande, sendo que a formosura do rosto tinha  uma importância muito maior do que a do corpo. A mulher podia ser uma “baleia”; desde que tivesse uma face fantástica, estava tudo aprovado. Mas se ela não era muito bonita de rosto, passava para o último lugar.

Em cada família a moça querida, admirada, apreciada era a filha bonita. E a filha que tivesse um rosto comum, por mais amável, gentil e cortês que fosse, tivesse bom gosto no modo de se vestir,
não sendo bonita passava para o segundo plano.

Ora, Dona Lucilia não era considerada bonita pelos contemporâneos dela, e por causa disso, no plano das moças de sociedade, ela passava para o segundo naipe. Então, nos afetos, nos carinhos – não direi dos pais e dos irmãos, mas do restante das relações – ela passava para um plano secundário, e no primeiro plano ficavam as outras.

A estupidez desse procedimento, o modo agudo com que isso muitas vezes se fazia sentir se mostravam naquilo que para ela era o verdadeiro sofrimento: a dureza de alma dos outros, e não o fato  de que ela ficasse no segundo plano. Falsa filosofia da vida Eu conto um casinho ocorrido com determinada família, e que faz sentir a coisa ao vivo.

Um advogado com um grande escritório em São Paulo ganhava muito bem, e tinha uma cliente que lhe dava muito boas causas. Era uma viúva – ou uma solteirona, não guardei bem esse pormenor –, muito rica. Essa senhora tinha já uns sessenta anos ou mais e adoeceu, mas não havia quem tratasse dela. Então esse advogado combinou com a esposa e convidaram essa senhora  para ir se tratar na casa deles.

Entrava caridade e, provavelmente, os negócios do escritório também. Mamãe frequentava assiduamente essa casa e, tendo ficado com muita pena dessa pessoa doente, tratava-a com todo o  cuidado, sendo muito amável e gentil. Nessa residência morava uma moça muito bonita que dizia: – Lucilia, você faz papel de boba.

Por que você a trata com tanto carinho, colhe flores para ela, mostra- -lhe livros com gravuras e tantas coisas para distraí-la, quando ela não lhe quer bem? Ela quer bem a mim.

– É que eu tenho pena dela – respondeu mamãe. Gargalhada da outra:
– Você é uma boba! Pena não existe, o que há é interesse. A outra tem interesse em me agradar e não em agradar você.

Enquanto ela estiver doente, ela vai receber suas carícias muito bem. Mas você esteja presente aqui na hora de ela ir embora, e vai ver o modo de ela agradecer a mim e a você. Eu, que uma vez por  dia me aproximo dela, dou uma prosinha de alguns minutos e vou embora, você verá os beijos que ela vai me dar. Quanto a você: “Lucilia, muito obrigado.”

Mamãe achou improvável tal atitude. Na hora da despedida, ela estava lá. A senhora doente disse à moça bonita: – Fulana, muito obrigada por tudo quanto você fez por mim, eu lhe  sou muito   agradecida, dá-me um beijo, e mais outro, de suas carícias não me esquecerei jamais.

Depois à mamãe, que estava ao lado da outra:
– Lucilia, estou agradecida; você me foi muito gentilzinha.

Essa é a vida, hein! Não sei se na  época dura em que estamos é preciso explicar que a vida é assim, pois se tem a impressão de que isso não é novidade para ninguém. O que estava subentendido  no modo de a moça bonita dizer era: “Eu sou bonita e você é feia. Portanto, para você ninguém dá importância. Você não consegue nada com ninguém, porque bonita sou eu.”

Isso constitui uma filosofia da vida, falsa, péssima, mas, queiram ou não, é uma filosofia da vida.

Fonte de toda consolação

Por outro lado, Dona Lucilia foi compreendendo que na época em que ela vivia as relações já não eram movidas senão por interesse, e que o afeto desinteressado fazia parte do tempo expirante do  romantismo.

Com a modernidade tinha entrado a brutalidade, o interesse pessoal, o pouco caso pelos outros que sofrem e o desprezo. Isso marcou uma grande tristeza na vida dela, por compreender que tudo  não era senão isolamento, pois todo mundo era assim e ela não teria possibilidade de encontrar quem tivesse para com ela a forma de afeto e de união de alma que ela quereria ter com tantas  pessoas.

Daí, então, uma espécie de problema axiológico: “Como é a vida? Como devo fazer? Como preciso entender as coisas?” Onde entrava uma profunda decepção e um modo muito severo,  inteiramente real e exato, de ver os outros.

Eu já tenho visto pessoas elogiarem exame médico com estas palavras: “Tal doutor fez um exame médico severíssimo.” Claro que isso é elogio, porque é para saber se está doente ou não. Não vai  fazer um exame frouxo para a doença passar desapercebida.

Se é para curar mesmo, o exame tem que ser severíssimo. Antigamente usava-se muito esta expressão: “O médico exigiu uma radiografia.” Quer dizer, os doentes não tinham muita vontade de se  deixarem radiografar, porque a radiografia às vezes dá susto, e tiravam o corpo. Não podiam, pois “o médico exigiu”, ou seja, queria dizer: “Eu não me sinto seguro e não vou carregar um  diagnóstico errado nas costas; portanto, faça uma radiografia que eu analiso e trato do seu problema, do contrário, não o farei.” Ora, Dona Lucilia fez um exame severíssimo da vida. Com seu bom  senso, sua retidão moral, ela radiografou a existência e compreendeu como era.

Daí uma grande decepção, mas também uma enorme consolação, pois se vê bem tudo quanto nela confluía ao Sagrado Coração de Jesus, que exatamente é “Fons totius consolationis”, segundo uma  das invocações da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus: Fonte de todas as consolações. É verdade que se na vida encontrarmos apenas decepções, encontraremos a Ele, que é a Fonte de toda  consolação.

Um caminho semeado de espinhos

Isso se aplica também ao apostolado. Entra-se para a vida de católico militante, renuncia-se a uma porção de potocas para se dar inteiramente ao Sol de Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo;  ter a vida transcorrida sob a doce luz de Nossa Senhora, “pulchra ut luna, electa ut sol, terribilis ut castrorum acies ordinata” – bela como a Lua, eleita como o Sol e terrível como um exército em  ordem de batalha.

Pensa-se: “Oh, que legião de amigos magníficos me aguarda lá! Todos tão bons, renunciaram a tanta coisa, o coração deles é movido, como o meu, pela graça de Deus e pelos mesmos ideais, que  maravilha!” A partir de determinado momento aparece uma decepção, depois outra, e vê-se que nem tudo é maravilha… Ora é um companheiro de apostolado que está em crise, e começa a nos  atormentar e a exercitar nossa paciência; um outro faz não sei o quê, e compreendemos que entramos num caminho como a “Via Crucis” de Nosso Senhor Jesus Cristo: sacrossanta, linda, mas cujo chão é semeado de espinhos os quais, às vezes, nos varam o corpo de lado a lado.

Quando isso acontece, a pessoa deverá dizer: “Eu conhecia esse caminho, não me deixaram ter ilusão e não tive. Agora chegou a hora.” E paga o preço. Este é o preço do Céu. Quem pensa assim     pode estar crivado de sofrimentos, mas sua alma é como um céu azul em dia límpido, pois ela está límpida, livre de desespero.

Por exemplo, nos olhos claros e serenos de Jesus moribundo não há o menor sinal de desespero. Nada!

Tranquilos e certíssimos do Céu. Ele disse ao bom ladrão: “Tu hoje estarás comigo no Paraíso.” O que quer dizer: “Eu vou estar no Paraíso, e é daqui a pouco”. As dores estão aumentando, a  liquidação de seu corpo O estraçalha, Ele compreende ter chegado o fim e que Longinus já se encontra afiando a sua lança para varar barbaramente o Coração d’Ele, símbolo do amor que Ele nos  tem. Tudo isso Jesus conhece, mas sabe também que quanto  mais esses acontecimentos avançarem, mais Ele se aproxima do Céu.

Na hora da morte, um grande Sinal da Cruz

Daí aquela palavra final, que indica todas as esperanças d’Ele: “Consummatum est”. O preço foi pago por inteiro, sofri tudo, agora é o Céu diante de Mim. Isso explica também porque uma alma como a de mamãe, tendo sofrido muito, era suave, tranquila, sem o menor sinal de desespero, de estraçalhamento, submissa à dor, mas compreendendo em toda a extensão quais eram as dores da  vida, e certa de que no fundo a vitória seria dos que sofrem.

Nada mais característico do que o momento de ela sofrer a dor da morte. Já havia amanhecido, portanto  ela poderia me mandar chamar para assistir aos últimos momentos dela, tanto mais que    eu estava no quarto ao lado. Mamãe percebia sua respiração  cada vez mais curta e sabia ter um problema do coração, próprio das pessoas na avançadíssima idade que ela alcançara, e não podia ter dúvida de que a hora do “consummatum est” estava chegando. Ela não quis nem sequer me incomodar nessa hora e por isso não me mandou chamar! Apenas quando chegou o momento, ela fez  um grande Sinal da Cruz e “efflavit spiritum”(1).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1995)

1) Do latim: expirou.