Santo Estêvão, cheio da graça divina

Destacando-se entre as mais arrebatadoras páginas da Escritura Sagrada, o nobre holocausto do protomártir da Igreja se reveste de ainda maior brilho, considerado à luz desses tocantes  comentários de Dr. Plinio.

Após comemorar as radiantes alegrias do Natal, a Igreja celebra em 26 de dezembro a memória de Santo Estêvão, seu primeiro mártir. O holocausto desse extraordinário herói da Fé é assim narrado pelos Atos dos Apóstolos:

Naqueles dias Estêvão, cheio de graça e de fortaleza, fazia prodígios e grandes milagres entre o povo. Ora, alguns da sinagoga, chamada dos libertos, dos cirenenses, dos alexandrinos e dos que eram da Cilícia e da Ásia, levantaram-se para disputar com ele. Mas não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito que o inspirava. (…)

Tendo ouvido seu discurso, seus corações foram feridos pelo ódio e eles rangiam os dentes contra ele. Mas Estêvão, que estava cheio do Espírito Santo, tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus, e disse: “Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus”.

Eles levantaram então grandes gritos, taparam os ouvidos e se atiraram todos contra ele. E arrastando-o para fora da cidade, lapidaram-no. E as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo. E lapidaram Estêvão que rezava e dizia: “Senhor Jesus, recebei meu espírito”. Depois, tendo ajoelhado, gritou com voz forte: “Senhor, não lhes imputeis esse pecado”. E dizendo isso, adormeceu no Senhor.

Prodígios que suscitam o ódio dos maus

A narração é de extrema beleza, e cada frase mereceria um comentário próprio, pois a cena se desenvolve em lances sucessivos, com significados peculiares. O primeiro fato é que Estêvão opera maravilhas, definidas pelo Livro Sagrado com uma linguagem tão cheia de imponderáveis que nos deixa encantados. Logo no início encontramos uma bonita expressão, empregada para indicar a virtude do santo: cheio de graça e de fortaleza.

Quer dizer, era um homem na plenitude do vigor — não só de ânimo, mas também do sobrenatural, da graça que atua nele —, realizando prodígios e milagres entre o povo. Ora, à vista desses feitos espetaculares, a pertinácia dos que desejavam perseguir Estêvão é bem apontada pelos Atos dos Apóstolos: tomados de ódio, levantaramse para discutir sofisticamente com ele e atacá-lo. É o  segundo lance.

Porém, seus opositores não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito com os quais Estêvão falava. De modo que, depois de ter operado prodígios, ele também argumentou de maneira  maravilhosa, confundindo completamente os maus e os deixando sem palavras para lhe replicar. E estes que odiavam os milagres, detestaram ainda mais os seus argumentos. Trata-se, portanto, de uma ira crescente, à medida que Santo Estêvão vai manifestando as excelências depositadas por Deus em sua alma. Como se viu, a primeira manifestação dessa grandeza maravilha são seus  feitos prodigiosos, contra os quais se declarou a sanha dos adversários, em forma de discussão. Tendo o santo argumentado de forma irretorquível, aumenta-lhes o rancor — gratuito, em relação  ao bem enquanto bem.

Outra não é a razão dessa raiva. Enganado estaria quem pensasse ter ela eclodido porque Santo Estêvão foi inábil, porque cometeu algum equívoco ou porque não entenderam algo do que disse. Eles compreenderam perfeitamente, deram-se conta das maravilhas que Estêvão operava e ouviram argumentos contra os quais não tinham respostas. Então o odiaram, porque era bom e sem erro.

É semelhante, aliás, o procedimento de muitos fautores do mal. Atacam o bem e a verdade, porque não podem suportá-los. E quanto maior a manifestação da verdade e do bem, tanto maior o ódio que suscita nos maus. Esses que se mostraram hostis a Santo Estêvão eram da mesma laia dos que decidiram a morte de Nosso Senhor, dos que preferiram Barrabás ao Cordeiro imaculado. O ladrão, o facínora, foi considerado mais simpático, mais atraente e agradável do que Nosso Senhor, por causa do amor ao mal.

Nesses episódios se patenteia a iniqüidade e a malícia do pecado daqueles aos quais a Escritura chama de “filhos das trevas”, dos que cometem a falta, não por fraqueza ou debilidade, mas scienter et volenter. Daqueles que aborrecem o bem que não observam e se comprazem com o mal que praticam, e professam uma doutrina má em virtude da qual detestam a boa causa por sabê-la  benéfica.

Santo Estêvão teria sido imprudente?

Prosseguindo, a narração sagrada nos evoca a atitude de Santo Estêvão que, “tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de  Deus, e disse:

‘Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus’.”

É interessante fazer aqui uma composição de lugares, e imaginar o modo como Santo Estêvão externou essa magnífica afirmação. Há de ter sido de maneira tal que os ouvintes perceberam toda a sua veracidade, e viram que ele tinha razão. Reluzia nele um tamanho reflexo daquilo que dizia, uma superior evidência da autenticidade do que falava, que suas palavras eram irrecusáveis! O fato nos faz recordar outro, ocorrido no século XIX, e comentado por Dom Chautard. Conta este que um advogado esteve em Ars para assistir a um sermão de São João Batista Vianney. Depois, ao ser interrogado por seus amigos acerca do que presenciara naquela cidade, exclamou: “Vi Deus num homem”.

Ora, se isso se deu com São João Vianney, imaginemos como Santo Estêvão, no momento do seu êxtase, estaria transbordando de sobrenatural! Foi um resplandecer de graça mística tão imenso  que seus perseguidores não puderam suportar, e cresceram em ódio a ponto de resolver matá-lo.

Poder-se-ia perguntar se Santo Estêvão não foi imprudente, enfrentando desse modo a ira dos maus. Não agiria melhor se tivesse ido embora, sem forçar, por assim dizer, aquela gente a cometer  um assassinato sacrílego? Pelo contrário, ele cada vez se afirmava mais, aumentando a raiva dos seus contendores, até que chegaram ao homicídio.

Este crime não ocorreria, e Estêvão não perderia sua vida de apóstolo, se fugisse. Então, não procederia de forma mais sapiencial se ficasse quieto e procurasse escapar?

A primeira resposta a essa pergunta, encontramos na própria Escritura: Santo Estêvão estava cheio do Espírito Santo. Portanto, agia corretamente, sob a inspiração divina. O fato é que ele se achava engajado numa luta cujo desfecho era incerto. Nessa pugna, tentava ele com insistência penetrar naquelas almas, por meio de uma nova maravilha que operava. Para comovê-las e  conquistá-las, ele foi afirmando verdades sempre mais elevadas. Quando atingiu o ápice de seu apostolado, seus interlocutores, empedernidos no recusar o que Santo Estêvão dizia ou fazia,  cometeram o assassinato.

O método apostólico que ele empregou foi perfeito. Procurou tocar aqueles corações, iluminar aquelas inteligências. A cada rejeição, ele respondia com uma misericórdia maior, deixava  transbordar de seu íntimo uma graça mais intensa, exprimia um argumento mais fulgurante, realizava um prodígio mais admirável. Até o ponto em que eles recusaram tudo. Sua atitude foi  altamente sábia e apostólica. Ele poderia ter convertido aqueles homens se estes tivessem aberto suas almas ao efeito da ação salutar da santa vítima.

Porém, não quiseram ceder à bondade e à virtude de Estêvão. Ergueram-se contra ele e só açaimaram quando perpetraram o ignominioso assassinato.

A morte plácida dos justos

Cometeram-no — descrevem os Atos dos Apóstolos — depois de lançar grandes gritos e “tapar os ouvidos”, como se costumava fazer diante de alguém que proferisse uma blasfêmia. E num ódio que movia a todos,  atiraram-se contra Santo Estêvão, apedrejando-o mortalmente.

E pode-se bem imaginar que a sanha dos malfeitores crescia, à medida que o primeiro mártir da Igreja tomava atitudes cada vez mais sublimes, enquanto as pedras caíam sobre ele. Um curioso detalhe salientado pela Escritura é que “as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo”. Saulo, o futuro São Paulo, naquele tempo fariseu e encarniçado  Perseguidor dos cristãos.

A vida de Santo Estêvão vai se extinguindo sob a brutalidade da lapidação.

Procuremos imaginar a cena maravilhosa. Ele, qual segundo Cordeiro de Deus, olhos voltados para o céu, ferido e deitando sangue por todo o seu corpo, com contusões horrorosas, faz apenas esta  oração: “Senhor Jesus, recebei o meu espírito! Senhor Jesus, recebei o meu espírito!”

Que extraordinária impressão essa atitude devia causar nas almas boas!

E depois, “tendo ajoelhado, gritou com voz forte: Senhor, não lhes imputeis esse pecado!”

Então, a primeira prece — “Senhor Jesus, recebei meu espírito” —, ele a disse de pé. Mas, é natural, vergado pela violência das pedradas, não pôde mais se manter ereto. Caiu de joelhos, e nessa postura tão supremamente conveniente para a oração, ele pediu a Nosso Senhor que não lhes imputasse aquele pecado. Ou seja, ainda com voz forte, rogava o perdão para os seus próprios agressores.

No auge da tragédia, ele tem uma frase de uma simplicidade e de uma serenidade sublimes.

“E dizendo isso, adormeceu no Senhor.”

Tudo acabou, e veio a morte plácida dos justos. A tormenta se tinha transformado num sono, o martírio estava consumado, ele estava dormindo em Deus. Ao exalar o último suspiro, aquele  homem todo ensanguentado, certamente terá tido uma expressão de fisionomia tranquilíssima. Sua alma subia ao Céu. Como esse martírio é digno de ser o primeiro da história da Igreja, exemplo para os demais holocaustos dos que morreram testemunhando sua Fé em Cristo Jesus, Senhor nosso!

Plinio Corrêa de Oliveira

Universo Natalino

Uma das inocentes alegrias que o Natal proporciona às almas provém das tocantes canções com as quais os diversos povos louvam e homenageiam o Divino Recém-nascido.

Ao longo dos séculos, cada nação da Cristandade, e notadamente as da Europa, compôs seus cânticos natalinos típicos, cujas letras e melodias se unem aos costumes e culinárias locais para  conferirem mais luz e perfume à unção própria dessa grande festa católica.

Já tivemos ocasião de comentar o Stille Nacht, a canção de Natal universal, entoada no mundo inteiro, surgida no século XIX numa aldeia austríaca. Deu-lhe vida o povo alemão, o povo da  bravura, da proeza militar, mas também dessa profunda delicadeza de espírito que o levou a imaginar o sentimento de ternura de quem se colocasse junto à manjedoura do Menino Jesus e contemplasse aquela criança fraquinha, com todas as debilidades físicas da infância e, entretanto, o próprio Deus.

Em qualquer canção natalina germânica encontra-se essa nota de compaixão humana, contemplativa e súplice, diante do que há de mais frágil e suave. Será, então, Maria Durch ein Dornwald  ging, uma lenda cantada acerca de um bosque onde, por sete anos, apenas espinhos brotaram, sem flor e folhagem alguma.

Por essa rude floresta entra Nossa Senhora, trazendo ao braço seu Divino Rebento, e à medida que Eles caminham, os espinhos vão se transformando em rosas… Maria Santíssima, com sua  candura e força virginais, traz o Menino bem protegido sobre o seu coração.

Ambos penetram num bosque de espinhos. Ora, como podem essa flor de delicadeza ímpar que é a Mãe de Deus, e esse tesouro da Terra que é o próprio Homem-Deus, exporem-se a natureza tão agreste e hostil? Não é possível concebê-lo. Então, enquanto andam, os espinhos viram rosas de agradável fragrância. Nossa Senhora compreende: foi uma amabilidade de seu Filho para com Ela!  Jesus dorme junto ao seu coração, mas continua a governar a natureza. Ternura, enlevo, extremo respeito. Voltemos nossos olhos para a Espanha e seus célebres “villancicos de Navidad”.

À semelhança do povo alemão, o espanhol é feito para o heroísmo de uma autenticidade e arrojo inegáveis. Encara a coragem como lance individual, atira-se na peleja sozinho, como o toureiro diante do touro, “banderilla” na mão, disposto a todas as façanhas.

Entre as inúmeras dádivas que Deus concedeu à Espanha, está a de lhe ter envolvido por um panorama de montanhas as quais nos dão a impressão de haverem sido moldadas pela truculência de um gigante, um quebra-montes que, à força de pancadas e pontapés, desenhou aquelas cordilheiras, enquanto talvez dançasse uma jota ou cantasse uma saeta.

É uma natureza pobre, contrastando com a riqueza de vida e superabundância de coragem que leva o espanhol a realizar essa arte que nos deixam boquiabertos: são alegres na carência, na  necessidade, na falta de doces, de confortos. E essa felicidade de existir, de sentir a sua própria vida, de olhar para o Céu e pensar em Deus, está presente na canção de Natal espanhola. Eles oferecem ao Menino Jesus o seu júbilo por pertencer a esse povo, como se dissessem: “Senhor, Vós me deixais muito contente e cheio da coragem que Vós me destes! Homenagem a Vós, Senhor!”

A Santa Igreja vive na alma de povos diferentes, despertando distintos acordes com os quais eles cantam e glorificam o Natal de nosso Salvador

É um modo diverso, porém digno de festejar o Natal, pois é o povo que se oferece a si mesmo e a sua alegria como ação de graças a Deus. Gratidão preciosa, daquele que recebeu menos mas  demonstra toda a grandeza de sua alma.

Já o inglês, tão diferente do espanhol, apresenta uma analogia na maneira de entoar suas canções natalinas. A nação britânica canta também a sua alegria de viver e de ser conforme seus costumes peculiares.

Porém, não é saltitante nem procura se exprimir através dos superlativos como os castelhanos. A principal preocupação da música de Natal inglesa é ser equilibrada, procurando a beleza do  sentimento proporcionado, adequado, comedido.

E ele oferece ao Divino Infante a sua anglicidade, a sua personalidade, os seus problemas. Povo de gentlemen, dirige-se a Nosso Senhor como um gentleman, sem demonstrar tristeza nem  aborrecimento. Sabe que essa existência é árdua, mas não desanima, pois o Menino Jesus nos socorre e ampara.

São estes alguns exemplos de como a Cristandade canta o Natal. E servem para nos fazer compreender como a Igreja Católica vive na alma de povos diferentes, produzindo diferentes acordes.

Porque Ela é riquíssima e inesgotável em frutos de santidade, de perfeição. É como o sol quando atravessa vitrais de variegadas policromias: oscula o vidro vermelho e acende um rubi, o verde, e faz fulgurar uma esmeralda.

Assim o gênio da Igreja iluminando o povo alemão, o espanhol, o inglês ou qualquer outro, engendra maravilhas e inocências natalinas que devem nos cumular de admiração, comprazimento e  desejo de louvar o Verbo Eterno que se fez carne e habitou entre nós.

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plino 81 – Dezembro de 2004

A tríplice lição do Natal

Emmanuel:”Deus conosco”. A cada Natal, a graça vem bater no coração dos homens com particular intensidade, convidando-os a meditar sobre este acontecimento grandioso. Algumas considerações de Dr. Plinio muito auxiliam a penetrar nesse espírito natalino.

Segundo o acertado ensinamento de Santo Inácio de Loyola, o conjunto dos homens egoístas que vivem, não para Deus, mas para eles mesmos – triste maioria, sobretudo nas épocas de decadência como a nossa —  pendem para um destes três objetivos: as delícias, as riquezas ou as honras.

Por delícias, Santo Inácio entende os prazeres que os sentidos podem dar. São, antes de tudo, os deleites sensuais; depois, os da degustação, da vista, do olfato, do ouvido, enfim, tudo quanto uma vida de luxo pode oferecer de agradável, de gostoso.

Por riquezas ele entende a simples posse do dinheiro. É a avareza daqueles que procuram o dinheiro não por causa dos prazeres que este possa proporcionar (pois neste caso a moeda seria apenas um meio para satisfazer a primeira propensão), mas pela mania do dinheiro enquanto dinheiro, da riqueza enquanto riqueza. São pessoas que não tiram proveito nenhum de sua própria fortuna. Vivem às vezes de modo obscuro, apagado, banal, quiçá miserável, tendo apenas a alegria de se sentirem continuamente de posse de um grande patrimônio financeiro.

Há, por fim, os prazeres da honra. A estes, procuram não tanto pessoas que aspiram ao dinheiro nem à vida agradável, mas à consideração dos outros. Querem ser objeto de maiores homenagens, de elevadas atenções e reverências. Procuram o prestígio.

Assim, de acordo com a sábia classificação feita por Santo Inácio, o homem egoísta sempre opta por um desses três pólos.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, tal classificação está muito esquemática. Uma pessoa é capaz de ir atrás das três coisas ao mesmo tempo: gosta muito do dinheiro, muito das delícias e muito do prestígio”.

É verdade, respondo eu, mas é próprio necessariamente do espírito humano satisfazer-se mais com uma dessas coisas do que com as outras. De maneira que, depois de ter experimentado a todas, o indivíduo acaba se fixando em uma determinada, e fazendo desta a finalidade de sua vida. Ora, pelo ensinamento inaciano, na festa do Natal quis Nosso Senhor Jesus Cristo dar aos homens uma tríplice lição, provando-lhes que tais prazeres não valem nada diante do único e autêntico fim para o qual devem tender, isto é, amar a Deus sobre todas as coisas neste mundo, e depois adorá-Lo face a face na bem aventurança eterna.

Vinda do próprio Homem-Deus, esta lição é infinitamente sábia e verdadeira, e nenhum de nós tem o direito de não aceitá-la. Sensíveis ou não aos princípios religiosos, temos de ouvi-la e aprendê-la.

Nulidade das riquezas

Primeiro, quanto às riquezas mundanas. Sobre estas, o que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina no presépio?

Como Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, foi Ele quem criou o Céu e a terra, com tudo o que nesta existe de rico, de maravilhoso, de belo, tudo quanto aqui seja capaz de fundamentar a prosperidade de um homem. Mais. Ele é rico em sua essência, e não apenas criou todas as riquezas existentes, mas tem ainda o poder inesgotável de criar quantas outras queira. E sem o menor esforço, sem o menor empenho, sem a menor aplicação especial. Ele é onipotente e exerce sua onipotência com perfeitíssima facilidade, criando estrelas e universos como criou um grão de areia.

Ora, esse Deus infinitamente rico quis vir à terra como pobre. Quis nascer de um pai carpinteiro, de uma Mãe que executava em casa serviços domésticos; quis vir ao mundo numa manjedoura, lugar o mais modesto e rústico que se possa imaginar. Como aquecimento, quis ter apenas o bafo de alguns animais e as roupinhas que Nossa Senhora Lhe fez. Como asilo, preferiu não uma residência de homens, mas o local onde os bichos iam se abrigar e se alimentar. Foi aí que nasceu o Verbo de Deus!

Quis Ele mostrar, assim, quanto o homem deve ser indiferente às riquezas quando postas em comparação com o serviço do Altíssimo. E como, portanto, deve viver, antes de tudo, não para ser rico, não para ter grandes cabedais, mas para glorificar o Criador, amando-O, louvando-O e servindo-O nesta terra, e depois adorando-O no Céu por toda a eternidade.

Infelizmente, vemos em torno de nós homens que correm debandadamente atrás do dinheiro, que fazem da posse deste a única preocupação de sua vida, que colocam toda sua felicidade na sensação de que possuem grandes finanças, na ilusão de que nunca ficarão pobres e sim cada vez mais ricos. Tais homens são uns perfeitos insensatos. Por-que esses bens, por mais que valham, são uma parcela minúscula dos existentes no universo. E, para Deus, o que são senão um pouquinho de poeira e de lama?

Imaginemos o homem mais rico do mundo, um magnata. Imaginemos ainda que a relação de seus bens ocupem um catálogo do tamanho de uma lista telefônica: imóveis, dinheiro, títulos, créditos, objetos de valor, etc., etc. O que é tudo isto em comparação com Deus Nosso Senhor? Nada, absolutamente nada.

Amar as riquezas mais que a Deus é uma completa inversão de valores, é calcar aos pés a lição que Jesus nos deu no presépio. É não compreender que Nosso Senhor, ali, ensinou-nos que ao homem é permitido desejar, adquirir e conservar riquezas, desde que não faça disto o objetivo supremo de sua vida. A preocupação financeira deve ser necessariamente colateral, sob pena de se agir como um verdadeiro demente, por inverter a ordem dos valores, amando mais o que devia amar menos, e amando menos o que devia amar com mais intensidade.

Loucura de fazer das delícias a principal finalidade da vida

As delícias terrenas. Nosso Senhor Jesus Cristo, caso desejasse, teria ordenado aos anjos reunir no presépio as melhores e as mais deliciosas sedas, os mais agradáveis perfumes, teria mandado os Anjos tocarem e cantarem músicas as mais deleitáveis, pois se o fizeram para os pastores, com quanto maior gáudio não o fariam para o Menino Jesus?!O Divino Infante poderia ainda dispor de agasalhos super-eficazes, ser nutrido desde o começo com as melhores comidas. Numa palavra, poderia ter-se enchido de delícias logo no primeiro momento de sua vida terrena.

O que fez Ele? O contrário. Quis nascer deitado na palha, material cujo contato nenhum regalo dá ao corpo; quis estar numa manjedoura cujo odor não devia ser dos mais agradáveis; quis tiritar de frio, escolhendo para surgir no mundo à meia-noite de um mês de inverno. Como música, quis ter apenas o mugido dos animais. Em última análise, quis o oposto de uma situação de delícias. E quis assim mostrar aos homens o quanto é loucura fazer delas a principal finalidade da vida. A lição que Ele veio trazer é, pois, esta: desde que seja para o bem das almas, desde que seja para a glória de Deus, devemos desfazer-nos de todas as delícias, procurando apenas o bem da causa católica e a salvação de nossa alma, embora nos custe muito sacrifício e muita renúncia.

Insensatez de procurar as honras como meta da vida

No que diz respeito às honras, devemos entendê-las como sendo a aspiração do indivíduo de ver-se objeto de reverências por achar-se, a qualquer título, superior aos outros: mais inteligente ou mais jeitoso; mais engraçado ou mais diplomático; mais interessante ou mais simpático; mais qualquer coisa que tenha ou imagine ter, pela qual se julga no direito de uma atenção especial.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo quis nascer despido de tudo aquilo que pode trazer vaidade. Não obstante fosse Ele um príncipe da Casa Real de David, apareceu para o mundo como filho de pais modestos, numa época em que a sua linhagem régia havia perdido seu poder político, seu prestígio social e seu dinheiro. Ele, portanto, não era absolutamente nada na ordem terrena das coisas.

Além disso, quis nascer como um pária, fora da cidade, porque nela ninguém deu acolhida a seus pais. Nasceu na gruta dos pastores, para provar aos homens como são loucos aqueles que fazem do aparecer uma ideia fixa, em vez de procurarem servir a Deus e à Igreja, a insensatez daqueles que procuram ser mais, ser mais, e que fazem desta vaidade a meta de sua vida.

Se fizermos desses valores terrenos a finalidade de nossa existência, estaremos roubando aquilo que devemos unicamente a Deus. Cumpre, portanto, preocupar-nos antes de tudo com a dedicação inteira de nossas almas a Nosso Senhor, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica.

Tenhamos, dia e noite, diante dos olhos esta lição do Natal, e procuremos eliminar de nossos corações, com a energia de quem arranca uma erva daninha, as falsas ideias mundanas que nos levam a adorar o dinheiro, os prazeres e as honras.

Plinio Corrêa de Oliveira

Jubilosas esperanças no advento do Messias

As chamadas antífonas do “Ó” nos fazem ingressar pelo pórtico de uma alegria cada vez mais jubilosa, até o deslumbrante átrio do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dr. Plinio comenta o profundo significado dessa semana que antecede o nascimento do Salvador, a qual ensejou a devoção a Nossa Senhora do Ó — ou da Expectação — em Portugal e no Brasil.

Em 18 de dezembro inicia-se a última semana do Advento, denominada pela Igreja de “semana da expectação”(1), já com as vistas postas na festa do Natal. Durante esse período, a Esposa Mística de Cristo imagina o júbilo e a esperança da Santíssima Virgem diante do fato de que o Messias haveria de nascer, e Ela veria por fim a face bendita do Filho que estava gerando em seu imaculado seio.

Novos esplendores conhecidos pela divina Mãe

Há anos Nossa Senhora vinha suplicando a Deus que apressasse a chegada do Redentor e, sendo sua oração insondavelmente agradável ao Padre Eterno, d’Ele tudo alcançando, foi atendida nos seus rogos, e a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade afinal tomaria nossa natureza e habitaria entre nós. Maria foi convidada a ser a Mãe do Verbo, aceitou e gerou em seu claustro virginal o Filho do Altíssimo.

Ao longo dos nove meses de gestação, ia Ela concebendo a fisionomia adorável que Ele teria, e ao contemplar a face do Menino já nascido conhecerá um esplendor novo, uma maravilha nova a respeito da alma e da personalidade d’Ele. Verá chegar a redenção para a humanidade e o triunfo da glória de Deus sobre um estado de coisas marcado, durante milênios, pelo pecado original e pela influência do demônio.

Numa palavra, a Santíssima Virgem sente aproximar-se o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo, restando apenas uma semana para que, pelo nascimento do Salvador, o império de Satanás sofra um golpe mortal e comece a derrocar.

A expectativa de todos os séculos posta na véspera do Natal

Tal conjuntura cumula de esperança a alma da Mãe de Deus, e por isso Ela é chamada, nesse perío­do, Nossa Senhora da Expectação, ou Nossa Senhora da Esperança, ou ainda Nossa Senhora do Ó.

Esta última invocação se explica pelo fato de que, em cada um desses sete dias, a Igreja canta no Ofício Divino uma antífona que começa pela exclamação “Ó” [ver texto em destaque]. Exprimem elas as alegrias de Nossa Senhora ao perceber dentro de si o Corpo de Jesus já completo, seus primeiros movimentos, e a ideia de que Ele ali orava ao Pai, como de dentro do mais prodigioso dos sacrários, assim como o Santíssimo Sacramento, hoje, reza no interior dos tabernáculos nos altares de todo o mundo.

O intenso desejo de Nossa Senhora de dar à luz o Verbo Encarnado continha e sublimava os anseios de todos os profetas do Antigo Testamento por Aquele que, afinal, viesse redimir o gênero humano, esmagar o cetro de fumaça do demônio e apagar, pelo sacramento do Batismo por Ele instituído, a mancha original herdada de nossos primeiros pais. De fato, as exclamações “vinde, ó Emanuel! Ó Rei das nações!”, etc., expressam os pedidos de Adão o qual, após a queda, recebeu de Deus a promessa do Salvador, e ele viveu e morreu com essa esperança. Viveu e morreu na alegria penitencial de ser o antepassado do Redentor que, agora, achava-se no claustro imaculado de Maria Virgem.

Portanto, todas as expectativas de todos os séculos se concentravam nesses dias e nesses momentos que antecediam de tão perto o Natal.

Realização dos anseios do Antigo Testamento

Consideremos, pois, essas invocações.

Ó Sabedoria, que saístes da boca do Altíssimo, e atingis até os confins todo o universo e com força e suavidade governais o mundo inteiro: vinde ensinar-nos o caminho da prudência.

Ó Adonai(2), chefe da casa de Israel, que aparecestes a Moisés no fogo da sarça ardente e lhe destes a Lei no Monte Sinai, vinde restaurar-nos com a força de vosso braço.

Há mais de mil anos os hebreus meditavam sobre o episódio da sarça ardente e sabiam que Deus apareceria ao povo eleito de um modo muito mais real e palpável do que a Moisés. Donde o pedido que assim poderia ser expresso: “Vinde, ó Senhor, renovar aquele feito, porém com uma excelência incomparavelmente maior”.

Ó Raiz de Jessé, que estais de pé como sinal dos povos, diante do qual os reis guardarão silêncio e a quem os povos hão de invocar, vinde libertar-nos, não tardeis.

Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu da raiz de Jessé, ou seja, da Casa real de David (filho de Jessé), à qual pertencia a Virgem Maria. Diz a antífona que Jesus será invocado por todos os povos da Terra e diante d’Ele todos os reis ficarão mudos. Por isso implora: “vinde a nós, não tardeis”, pois a humanidade geme e não pode mais esperar pela libertação.

“Vinde salvar-nos, Senhor nosso Deus!”

Ó Chave de David e cetro da Casa de Israel, que abris e ninguém fecha, fechais e ninguém abre, vinde e tirai do cárcere o prisioneiro imerso nas trevas e nas sombras da morte.

Nosso Senhor fecha e ninguém abre, abre e ninguém fecha, quer dizer, Ele possui o domínio de todas as coisas.

Ó Oriente, esplendor da luz eterna e sol de justiça, vinde e iluminai aqueles que estão envolvidos pelas sombras da morte.

Em linguagem teológica, “justiça” designa o conjunto de todas as virtudes, o estado de graça.

O Redentor Divino é o “esplendor da luz eterna” e, por outro lado, o sol de todas as virtudes, iluminando os que vivem nas trevas e nas sombras da morte, ou seja, presos dos vícios e dos pecados.
De fato, Nosso Senhor veio ao mundo e da sua luz infinita nasceu a civilização cristã, com seus fulgores de santidade bafejada pela graça.

Ó Rei das nações e por elas desejado, pedra angular que reunis os dois povos [judeus e gentios], vinde e salvai o homem que formastes do lodo da terra!

Jesus Cristo é a pedra angular de toda a ordem humana e n”Ele os dissídios se reconciliam verdadeiramente, e não de um modo relativista. Além disso, o Filho de Deus salva o homem, criado do limo da terra.

E estando o Natal iminente, exclama-se:
Ó Emanuel, nosso Rei e Legislador, esperança e salvação das nações, vinde salvar-nos, Senhor nosso Deus!

São exclamações de tal maneira repassadas de desejo e fervor que quase se sente Cristo prestes a nascer, bem como a alegria de todas as nações esperando seu Salvador.

Pedir a implantação do Reino de Maria

Essas belas antífonas nos sugerem uma consideração sobre a época atual.

Disse o Papa Pio XI em sua encíclica Divini Redemptoris, escrita em 1937, que o mundo resgatado por Nosso Senhor Jesus Cristo se encontrava naquela época numa situação lastimável, ameaçado de cair mais baixo do que antes da Redenção.

Ora, com o passar das décadas esse estado lamentável do mundo não fez senão se agravar, a impiedade e a imoralidade grassando sem freios nos mais diversos ambientes da sociedade humana.

Razão pela qual ansiamos por uma renovação da face da Terra, um como que irresistível revigoramento dos frutos da Redenção — de si definitiva e super-suficiente — aplicados aos homens de nosso tempo, para que, regenerados e reconciliados com o Divino Salvador, trabalhem pela implantação do Reino de Maria.

Nas vésperas do Natal, essas antífonas devem exprimir um pedido ao Menino por intercessão de Nossa Senhora: assim como Ele atendeu a prece da Virgem Santíssima e apressou sua vinda ao mundo, abrevie igualmente os presentes dias e faça sentir sua ação mais enérgica, triunfal, invencível para reimplantar seu reino. E reimplantá-lo sob o aspecto mais requintado, magnífico, ou seja, Nosso Senhor reinar por Maria, com Maria e em Maria.

Rezemos com a firme confiança de que essa graça insigne nos será concedida, e assim transporemos com alegria, não só os dias piedosos que circundam a festa de Natal, mas também os umbrais do ano vindouro.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

1) Embora as antífonas do Ó continuem a ser rezadas na última semana do Advento, cumpre notar que essa exposição de Dr. Plinio data de 1965, seguindo ele, portanto, a Liturgia então em vigor.
2) Um dos nomes com que os hebreus invocavam o Altíssimo.

Espírito de reparação

Devido aos pecados cometidos em todo o mundo, ao comemorarmos o Santo Natal precisamos também fazer atos de reparação. Nossa Senhora, desde o primeiro instante em que Jesus nasceu, reparava junto ao Redentor os sofrimentos que Ele viria padecer.

Como estamos próximos da Natividade de Nosso Senhor, é interessante ter o pensamento voltado para esta grandíssima data.

Influxos da graça e do demônio no subconsciente

Tenho aqui uma ficha tirada das visões de Catarina Emmerich(1), que trata dos efeitos da vinda próxima de Nosso Senhor, sobre toda a natureza. Mas a palavra “natureza” é tomada não só no sentido dos reinos mineral, vegetal e animal, mas também e sobretudo do homem, quer dizer, de toda a Criação.

Então, Ana Catarina mostra que nas vésperas e com o nascimento de Jesus houve uma transformação, um movimento profundo nas almas e na matéria.

E isto é expresso de um modo muito bonito com estas palavras dela mesmo.

Todos os corações piedosos, que estavam aflitos com um santo desejo, palpitam sem querer nem saber, em presença da Redenção.

São estes movimentos profundos que há nas almas boas, quando alguma coisa grande se aproxima; elas sentem-se tocadas até o fundo para tudo quanto é bem, sem saber por quê.

Tudo está em movimento. Os pecadores sentem tristeza, ternura, arrependimento e esperança. Os que não querem arrepender-se, os pecadores empedernidos, os inimigos, os que hão de crucificar o Salvador sentem angústia, inquietação e confusão, cuja causa não compreendem, mas percebem um movimento indescritível no tempo, cuja plenitude se aproxima.

Dou muito valor a descrições dessa natureza, porque mostram muito os influxos profundos da graça e também do demônio no subconsciente das pessoas. Mas tocando no que a personalidade tem de mais interno e apresentando todo o papel do subconsciente nos grandes movimentos da História.

Movimento dos bons, dos maus e da natureza

Esta plenitude e a felicidade que traz consigo estão no coração puro, humilde e humano de Maria, que ora em presença do Salvador do mundo que n’Ela se fez Homem e que, como Luz feita carne, virá dentre em pouco a esta vida, a seus domínios, onde os seus não O conheceram.

Por que há homens que procuram e não encontram? Aqui eles deveriam ver que o bem produz sempre o bem, e o mal produz mal, quando não é destruído pelo arrependimento e pelo Sangue de Cristo.

Assim como os santos e os que vivem piedosamente, e as pobres almas do Purgatório, estão em constante relação entre si, trabalhando juntamente, ajudando-se e comunicando-se mutuamente os meios de salvação e santificação, assim vejo isto mesmo em toda a natureza.

Então há três movimentos: um de todos os maus, outro de todos os bons, e o terceiro, da natureza. Esses três movimentos são da ordem da Criação e, digamos, representam uma luta de uns com os outros, e são fatos fundamentais da História do mundo.

É inexplicável o que vejo, o que é simples e segue a Jesus recebe-O gratuitamente. Esta é a graça admirável deste tempo para sempre. Nestes dias o demônio está acorrentado, arrasta-se e treme. Por isso aborreço os animais que se arrastam pela terra.

Vejam que conclusão interessante! O animal que se arrasta pela terra é uma figura do demônio como, aliás, está escrito no Gênesis.

Também o demônio nauseabundo e detestável da heresia anda encurvado, e não pode fazer nada nestes dias. Tal é a graça eterna deste tempo.

Realmente, no tempo em que o Natal ainda não era comercializado, não estava transformado numa feira para impor o escoamento de produtos industriais, custe o que custar, sentia-se muito isto: uma doçura, uma cordialidade, uma alegria celeste, sobrenatural, que nenhum caráter meramente humanitário nem de longe tem. E exatamente a industrialização do Natal, a meu ver, é feita para acabar com essa atmosfera e colocar uma atmosfera de fundo diabólico, que é exatamente feita para liquidar os prejuízos que o demônio tem nesse tempo.

Comemoração do Natal numa atmosfera comercializada

Vejamos como essas influências sobre as quais eu falava são verdadeiras. Nas vésperas do nascimento de Nosso Senhor, os homens bons, os pecadores que não eram endurecidos, mas arrependidos, estavam alegres, e os maus, profundamente perturbados.

Pouco antes da Revolução Francesa, do protestantismo, notava-se completamente o contrário. Os homens bons profundamente angustiados, às vezes sem saber por quê; os ruins alegres, cheios de esperança. São as tais influências que percorrem o mundo e dão o sentido profundo da História.

Que devemos pedir à vista disso?

Em primeiro lugar que Nossa Senhora atue sobre a nossa fraqueza, dando-nos uma orientação exata quanto a essas influências para o lado bom e vantagem da nossa alma. E em segundo lugar que Ela nos dê um meio de resistência neste Natal à atmosfera comercializada e péssima que temos diante de nós. Por toda parte se veem essas cestas enormes com pseudo presentes, e nos postes das ruas, manifestações natalinas horrorosas, para preparar o Natal de mentira.

Que Maria Santíssima nos conceda também o espírito verdadeiro do Santo Natal, quer dizer, algo dessa alegria pela comemoração do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Atos de reparação na noite de Natal

Entretanto, eu gostaria de acrescentar algo que deve marcar as nossas festas de Natal.

Não podemos celebrar este Natal como se este fosse um ano qualquer. Imaginemos uma casa na qual a mãe de família está gravemente doente e sofrendo dores atrozes. Compreende-se que se faça uma árvore de Natal e, sobretudo, que haja um movimento de piedade a propósito dessa festa, e alguma coisa da alegria natalina.

Mas isto tudo deve ser dominado pela lembrança da mãe que está doente. Ou seja, há uma espécie de luz de tristeza, arroxeada.

E é bem isto que precisa existir também no nosso Natal, por razões que todos estão fartos de saber.

Devemos carregar a dor de nossa Mãe durante este Natal, porque é como filhos d’Ela que nós o celebramos.

Eu gostaria de insistir também num ponto: no momento do Santo Natal, precisamos fazer atos de reparação. Nossa Senhora, com certeza, desde o primeiro instante reparava junto ao Menino Jesus todos os sofrimentos que Ele viria padecer.

Portanto, o dia de Natal teve tristezas. E na situação atual, não ter essa tristeza é completamente inconcebível.

Então, o cálice está sendo bebido até a última gota e nós, em vez de pensarmos nos cálices com fel, cogitamos nas taças com champagne? Fazendo assim, como se pode ter alma reta? É evidentemente impossível.

De maneira que eu insisto: na própria noite de Natal, é preciso saber ter um espírito de reparação nos atos de piedade, que nesta ocasião vamos oferecer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/12/1965)
Revista Dr Plinio

 

1) Freira Agostiniana, mística, beatificada em 3 de outubro de 2004.

O eloquente silêncio da noite de Natal

Qual diamante incrustado nos Alpes, entre a Baviera e a Áustria, encontra-se a célebre cidade de Salzburg, em cujas cercanias surgiu a melodia celebrada pelo mundo inteiro como a música de Natal por excelência: o Stille Nacht.

Em sua versão original alemã, a primeira estrofe do Stille Nacht refere-se à “noite santa e silenciosa, onde tudo dormia, com exceção do venerável e altamente santo casal”. De fato, com inspirada perfeição, sua melodia reflete o imenso e recolhido silêncio de uma noite sagrada.

Nessa noite, onde parece não haver lugar senão para o silêncio, terá Nossa Senhora pronunciado alguma frase, além das manifestações, plenas de amor e afeto, com que as mães costumam se dirigir aos seus filhos recém-nascidos? E São José? Terá ele dito alguma palavra Àquele que era o seu Criador e Redentor? Ou preferiu não quebrar a sacralidade do momento nem mesmo dirigindo-se à sua Santíssima Esposa? Não consta nos Evangelhos ter havido qualquer diálogo ou palavra nessa hora: diante da manjedoura, seja da parte de Maria ou de seu Castíssimo Esposo, não havia outra atitude senão o respeitoso silêncio da adoração (Cf. Lc 2,16).

É verdade que, algumas horas depois, chegaram os pastores e narraram o que lhes havia dito o Anjo do Senhor (Lc 2,17); mas, com que tom de voz eles contaram a Maria a aparição da milícia celestial? Tudo leva a crer que contiveram o jorro de sua vivacidade pastoril e que contaram baixinho o que havia acontecido, a fim de não despertar o adorável Menino ou impedir o recolhimento de sua Mãe, que “conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19).

Na gruta de Belém havia, sobretudo, o eloquente silêncio do Menino-Deus: seu recolhimento dizia mais do que todos os sábios e doutores diriam ao longo da História. Jesus nada falou, mas disse tudo. Em seu silêncio não havia qualquer forma de omissão, mas sim uma mensagem cujo conteúdo, dotado de potência (Mc 1,27), remediaria todas as indigências do mundo antigo: era Deus que se revelava aos homens, com atitudes de menino e grandezas de Criador.

Com efeito, Jesus-Menino não necessitava falar, pois era a própria Palavra Divina, o “Verbo que se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Poderia haver silêncio mais eloquente?

Ainda hoje, como na gruta de Belém, para Ele falar às almas, basta seu divino silêncio. Ele nos fala com o palpitar de seu coraçãozinho, num tom harmônico e constante, pacífico e acolhedor que só pode ser escutado com o ouvido do coração.

O silêncio eloquente de seu Natal nos convida a imergir na verdadeira alegria da noite silenciosa, nos chama para o recolhimento, para a interiorização, para perceber a voz da graça dentro de nossa alma batizada e inabitada pelo Deus que se fez menino.

Que silêncio e que doçura da noite mais eloquente da História! Silêncio que transcende às leis físicas e ecoa por mais de dois mil anos, não pelas vastidões do Universo, mas de coração a coração em todas as santas e silenciosas noites de Natal.

Mistério de gloria e humildade

Conforme observava Dr. Plinio, o Natal, por sua natureza, “é uma festa diferente das celebrações da Páscoa, pois não exalta a vitória do Homem-Deus sobre o demônio e a morte, mas é o primeiro passo — quão humilde, quão velado, quão discreto — que o Rei glorioso haveria de encetar nos caminhos de sua dor, de sua luta, de seu triunfo”.

“Primeiro passo o mais elementar, pobre e indigente que imaginar se possa.

“Um casal posto em triste situação, considerada a ordem humana dos valores: Nossa Senhora na difícil posição de mãe prestes a dar à luz, montada num burrico, acompanhada por seu esposo, São José, modesto carpinteiro, desconhecido príncipe de uma Casa de David relegada à decadência. Ambos procuram hospedagem em Belém, sem encontrar quem os acolha. Não tendo onde ficar, vão para as montanhas vizinhas, para as grutas que servem de abrigo aos animais. E assim, no interior desse rude refúgio, na mais estrita intimidade, dá-se o fato mais importante da História: o Filho de Deus feito carne no seio puríssimo de Nossa Senhora vem ao mundo.

“Compreende-se, então, como a alegria do Natal é feita de contrastes. Uma grande intimidade, uma grande miséria, mas uma grande elevação. No meio da pobreza extrema, a maior riqueza do universo, o Filho do Onipotente reclinado em tosca manjedoura. O Rei da eterna glória ali está, e ninguém o vê, ninguém lhe dá valor, senão aquele venturoso casal. Glória representada no estado de um Menino débil, frágil, que chora, sente fome e estende seus tenros braços para a Mãe.

“Contraste de esplendor e abatimento! Festejado e adorado nos Céus por toda a coorte de anjos que O louvam num concerto magnífico e O celebram com brilho incomparável, o nascimento do Salvador acontece na Terra de modo tão apagado e despercebido do resto dos homens! Do resto, sim, à exceção da alma que vale mais que todas as almas abaixo da d’Ele, Nossa Senhora, reclinada e rezando ao seu Deus e Filho; à exceção do homem a quem estava reservada a honra de ser o pai adotivo do Unigênito do Altíssimo.

“É, portanto, sob um invólucro de miséria e de pobreza que nasce a maior de todas as glórias. Nasce à meia-noite, num lugar ermo daquelas vastidões do mundo antigo. Ao redor, apenas o silêncio, o abandono, o profundo repouso, tudo imerso nas penumbras noturnas. Dentro daquela gruta, aquele casal único, sob as coruscações de uma pequena fogueira, deitando luz suficiente para se ver o que ali se passava. E havia o Menino que era o Senhor de todos os séculos, o próprio Deus encarnado.

“A contemplação de tal cena nos move ao recolhimento e à quietude, como o Natal se deu na quietude e no recolhimento. Leva-nos a sentir em nosso interior as alegrias do advento de Jesus, mais do que a desejar proclamá-las a grandes sons. Infunde-nos um misto de reverência enternecida de quem toca tão altos mistérios, de quem não sabe agradecer a honra desmedida de partilhar a natureza humana com o Criador, e uma espécie de pena, de comiseração de Deus, porque Deus consentiu em fazer-se tão pequeno…

“Um respeito tão grande que chega ao temor, uma ternura tão profunda que quase nos desmancha a alma. Suma veneração, suma adoração, sumo carinho. Suprema glória, perto da qual não se é nada; suprema humilhação, perto da qual se é tudo.

“É a alegria do Natal, tão delicada que teme se expandir inteiramente, com receio de perder a sua doçura e intimidade. É a luz natalina, tão discreta que aguarda a meia-noite para refulgir dentro dela…”

Do primeiro ao último Natal…

Como o Natal seria comemorado pela Sagrada Família?

Embora não conheça nenhuma descrição a esse respeito, eu imagino que na noite de Natal Nossa Senhora e São José celebrassem o aniversário do Menino Jesus. Um dia tão grandioso, onde os próprios Anjos cantaram “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens por Ele amados”1, não seria festejado pela Sagrada Família?

Imaginemos o Menino Jesus aos dois anos de idade, deitado em sua caminha, e Nossa Senhora e São José aproximando-se para adorá-Lo, à meia noite do dia 24.  Em certo momento, o Menino acorda e abre os olhos. Que olhar! Abrindo os braços para ambos, Ele os abraça e os beija.

Assim devia ser esta santa noite até o primeiro Natal no qual São José não estava mais presente. Certamente, do Limbo ele comemorava e rezava. Mas, quem sabe se ele não aparecia para preencher o vazio de sua ausência?

Durante os três anos de sua vida pública, Nosso Senhor terá passado o Natal longe de sua Mãe Santíssima? Se assim foi, Ela estaria sozinha — acompanhada apenas pelos Anjos que, extasiados, viam-Na rezar —, entregue às recordações passadas e às previsões futuras. Apesar disso, a alegria natalina penetrava em sua alma, e Maria tinha um Natal feliz.

Após a Ascensão, não estando mais Nosso Senhor presente, a Igreja — que ainda pequenina crescia como uma plantinha — a cada ano tornava o Natal mais belo e mais sagrado, introduzindo uma nova cerimônia, uma novo ritual.

Com a subida de Nossa Senhora ao Céu, começou a longa série dos Natais em que, de modo visível, nenhum dos membros da Sagrada Família estava mais presente.

Assim, vai-se caminhando pelas vias — ora dolorosas, ora esplendorosas — da História, até o último Natal…

Como será o último Natal da História?

Pode-se imaginá-lo pouco antes do fim do mundo: toda a humanidade perdida, o pecado campeando no mundo, e um pequeno grupo de fiéis que ainda celebram o Natal.

Talvez haja até um contra-Natal, feito de blasfêmias, imundícies e opróbrios de toda ordem.

Entretanto, esse contra-Natal não tirará a alegria de um punhadinho de fiéis que estarão assistindo a uma Missa.

Em que catacumba seria celebrada essa Missa? Embaixo da terra ou num quartinho apertado do 200º andar de um prédio? De qualquer forma, seja onde for, o mesmo se passará: um vácuo no curso da dor é aberto, e surge uma alegria: Jesus nasceu, nasceu em Belém!

Após darem-se as últimas catástrofes e todos os homens morrerem, uma voz brada conclamando todos à ressurreição.

As sepulturas se abrem, de toda parte saem mortos que ressuscitam e se apresentam.

Nesta ocasião, mais uma vez Nosso Senhor Jesus Cristo virá visivelmente à Terra, em pompa e majestade, para julgar os vivos e os mortos. A História estará terminada!

O Céu será, então, um perpétuo Natal, uma perpétua felicidade!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)

Um Menino nascido para o combate

No dia de Natal a Cristandade é convidada a contemplar o Menino Jesus tão pacífico, o Príncipe da Paz que, de braços abertos, sorri para quem d’Ele se aproxima. Nesse momento, Ele recebe do que a humanidade tem de mais sublime e magnífico, ou seja, Nossa Senhora, o sorriso cheio de uma pureza e de uma luminosidade indizíveis. Logo depois, junto a Ela, um varão tão excelso que de algum modo teve proporção para ser seu esposo e pai jurídico do Menino Jesus: São José.

Acentua-se com razão tudo quanto há de belo, de poético no boi e no burro que, na gruta de Belém, olham para o Menino Jesus, bem como no contraste enorme entre Deus feito homem e aquelas criaturas irracionais que, com seu bafo, aquecem o ambiente onde está o Divino Infante.

Dir-se-ia que considerações de luta não caberiam nesse quadro. Entretanto, isso é assim apenas para quem não sabe ver na entrada do Menino-Deus no mundo a grande guerra d’Ele que se inicia. Com quanta propriedade o Menino Jesus é apresentado, no presépio, sorrindo e de braços abertos. Esse gesto significa a abertura do amor d’Ele para os homens, em todos os tempos e lugares, mas também a Cruz na qual, por amor aos homens, Ele seria pregado.

O Menino Jesus, vindo à luz do dia, ao entrar na Terra saído do claustro augusto e virginal de Maria, provavelmente abriu os seus braços em cruz e imediatamente ofereceu ao Pai Eterno a grande luta que ia começar.

Batalhador divino, mas pequenino, Deus infinito encarnado numa criança que quis ficar na dependência de tudo e de todos, sendo o Criador onipotente do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Ele vem à Terra contrariando as forças opostas do demônio, do mundo e da carne e, como um guerreiro que entra na liça para começar a guerra, ali está o Menino-Deus no presepe! 

É interessante notar que de todas as páginas do Evangelho, talvez em nenhuma o papel de Nosso Senhor enquanto gladífero venha tão bem acentuado quanto no momento em que o Profeta Simeão recebe de Nossa Senhora o Menino Jesus nos braços e profetiza: “Eis que este Menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição, para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações” (Lc 2, 34-35).

Portanto, aquele mesmo Menino tão encantador, que nos é apresentado no presépio na noite de Natal, é o grande divisor da humanidade. Ao longo de toda a História, Ele escandaliza os escandalosos, os sem-vergonhas, os maus, os hipócritas, denuncia-os, colocando-os mal à vontade, e eles sempre se insurgirão contra Ele. Aquela Criança conduzirá uma grande batalha até a consumação dos séculos.

Como seria interessante haver numa igreja, ao pé do presépio, uma inscrição recordando que aquele Menino tão engraçadinho e inocente, com os braços em forma de cruz, nasceu para o combate.

 

Senhor, venha a nós o vosso Reino

Se, em todas as épocas da história cristã a data do Natal abre uma clareira alegre e tranquila no curso normal e laborioso da vida de todos os dias, em nossa época a trégua natalícia assume um significado especial, porque vale por um grande e universal “sursum corda” clamado a uma humanidade tumultuosa e sofredora, que vai imergindo aceleradamente no caos da mais completa dissolução moral e social.

Nossa época é um vale sombrio entre duas culminâncias: a civilização do passado, da qual decaímos através de sucessivas catástrofes que começaram com a pseudo-Reforma, e culminaram com os totalitarismos da direita e da esquerda; e a civilização do futuro, para a qual caminhamos através de lutas e de dissabores que enchem, a cada momento, de cruzes o nosso caminho.

Por isso mesmo, porque vivemos nos últimos minutos de um mundo que expira, e já vemos os sinais precursores de um outro mundo que nasce, a lição do Natal tem para nós um significado profundo, que devemos meditar no dia de hoje.

Ruína do mundo antigo e a promessa de um Salvador

[Antes de tudo, tratemos brevemente] das aspirações que a humanidade pré-cristã nutria a respeito da vinda de um Salvador. O povo eleito esperava a salvação por meio de um Messias, nascido do tronco de David, conforme a autêntica e insofismável promessa de Deus. Todos os outros povos da terra, não tendo embora recebido as mensagens divinas por meio dos profetas, conservavam uma reminiscência da promessa de um Salvador, feita por Deus a Adão e Eva, quando da saída destes do Paraíso. E, por isto também, eles conservavam, ora mais ora menos deformada, a esperança tradicional de que um Salvador haveria de regenerar a humanidade sofredora e pecadora.

Esta esperança, entretanto, chegou ao seu auge na época em que Nosso Senhor veio ao mundo. Como afirmou um historiador famoso, toda a humanidade, então, se sentia velha e gasta. As fórmulas políticas e sociais utilizadas já não correspondiam aos anseios e ao modo de ver dos homens do tempo. Um imenso desejo de reforma sacudia diversos povos. A luta de classes fervera, não havia muito tempo, na Grécia, na Itália, na Fenícia, em outros países ainda. A organização política se tornava cada vez mais opressiva. Roma dilatara por todo o mundo as fronteiras de seu Império, e a Cidade Eterna era, naquela época, não a rainha, mas a tirana da humanidade inteira, que ela sujeitava às mais injustas extorsões para pagar as orgias dos patrícios romanos.

Em todos os países, o contraste entre a riqueza e a miséria era patente. De um lado, homens riquíssimos viviam no fausto e no luxo desordenado. Do outro lado, uma multidão de sem-trabalho infestava muitos bairros de grandes cidades de então. Finalmente, como negro fundo de quadro, milhões e milhões de escravos, acorrentados nos porões das naus, ou atrelados como animais aos carros de transporte, ou presos indissoluvelmente ao arado, gemiam sob o guante de uma opressão que parecia não ter mais fim.

Uma imensa corrupção de costumes se alastrava por todo o território do Império, e punha em ruína todas as instituições políticas. Os escândalos se multiplicavam nas fileiras da mais alta aristocracia e daí se projetavam sobre todas as camadas da sociedade. Augusto tentava em vão reagir contra a crescente decadência. Não surtiam efeito suas leis reacionárias. Era no seio de sua própria família que as aberrações mais monstruosas se multiplicavam. E todo mundo sentia que uma crise imensa ameaçava a sociedade de uma ruína inevitável.

Numa gruta de Belém, a salvação do mundo

Foi neste ambiente, enquanto os homens de Estado e os moralistas da época discutiam gravemente sobre tantos e tão insolúveis problemas, que, no estábulo de Belém, no meio de uma noite profunda, raiou para o mundo a salvação. É possível que, no momento exato em que o Salvador nasceu, o orgulhoso imperador romano estivesse em seu palácio, entregue às mais amargas reflexões que lhe sugeriam o fracasso de sua política moralizadora. É possível que, a pouca distância da casa imperial, se prolongasse pela noite adentro alguma daquelas descabeladas orgias que eram o tema obrigatório dos patins [mexericos] da época. Nem uns, nem outros, nem o genial imperador, nem os sibaritas que punham a perder a sociedade, tinham ideia do que naquele momento ocorria em Belém.

Entretanto, não era no palácio imperial, nem nas orgias aristocráticas, nem nos conciliábulos dos conspiradores, que o destino do mundo se decidia. A sociedade do futuro, oriunda da solução perfeita e completa dos mais importantes e vitais problemas da época, nascia em Belém, e era das mãos virginais de Maria que o mundo recebia o Messias que haveria de redimi-lo com seu sangue e reorganizá-lo com seu Evangelho.

Nossas esperanças têm de estar na Igreja e no Papado

Qual a lição primordial que daí devemos tirar?

É, em primeiro lugar, que, assim como para a humanidade do tempo de Augusto a solução dos mais intricados problemas sociais e políticos não foi encontrada a não ser em Cristo, assim também, em nosso tempo, é só na Igreja Católica, o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que devemos concentrar nossas esperanças.

É possível que, imitando inconscientemente a vigília de Augusto na noite de Natal, muito césar hodierno (que diferença de envergadura entre o César autêntico e seus fac-símiles contemporâneos!) tenha passado a noite de Natal, indiferente à piedade das massas que oram nas Igrejas, debruçado sobre uma mesa de trabalho, a excogitar meios para arrancar do atoleiro da crise contemporânea sua pátria sofredora.

É possível que, nessa mesma noite, as orgias desmandadas de muito palácio (não mais os palácios da aristocracia como na Roma antiga, mas os suntuosos “dancings” modernos, palácios que o mundo hodierno erige em honra de sua própria corrupção) façam estrugir o silêncio da noite com o som das músicas profanas do “réveillon”.

É possível que muito conspirador esteja tramando a revolução e a guerra, no silêncio da noite, enquanto o povo comemora o nascimento do Príncipe da Paz.

Sem embargo de tudo isto, não é dos novos césares, nem do conspirador de nossos dias e muito menos da sociedade que se corrompe nos “dancings”, que nos virá a salvação. Se somos católicos, devemos esperar a salvação exclusivamente de quem representa Cristo hoje na terra. É para [o Papa], e só para ele neste mundo, que devemos voltar nossos olhos.

As preces de Maria anteciparam a Redenção

Mas ainda há outra reflexão da maior utilidade. Todos os teólogos são acordes em afirmar que, se a salvação raiou para o mundo na época em que raiou, devemo-lo às preces onipotentes de Maria, que conseguiu antecipar o dia do nascimento do Messias. Ninguém pode dizer quantos anos ou quantos séculos teria ainda demorado a Redenção, sem as preces de Maria.

Não foi, pois, daqueles que, no tempo de Augusto, se agitavam nas praças públicas ou nos conciliábulos políticos para conseguir a reorganização do mundo, que esta reorganização veio. Ela veio da oração humilde e confiante da Virgem Maria, inteiramente ignorada por seus contemporâneos, e vivendo uma vida contemplativa e solitária, no pequeno recanto, onde a Providência a fez nascer.

Sem, com isto, desmerecer por pouco que seja a vida ativa, é preciso notar que foi por meio da oração e da contemplação, que se antecipou o momento da Redenção. E que os benefícios que o gênio de Augusto, o tino de todos os grandes políticos, todos os grandes generais, financistas e  administradores

de seu tempo não puderam dar ao mundo, Deus os dispensou por meio de Maria Santíssima. Quem mais beneficiou ao mundo não foi quem mais estudou, nem quem mais agiu, mas quem mais e melhor soube orar.

Que se realize o Reino de Cristo em nós e fora de nós

Se o mundo contemporâneo quiser sair do caos em que se encontra, ele deve, em primeiro lugar, voltar-se para a Igreja.

É com uma suave e austera lição, que se termina esta breve meditação de Natal. É sobretudo dos lutadores da Ação Católica, e das almas eleitas que Deus chamou ao estado sacerdotal ou ao religioso para viver a vida da ação ou a vida de oração, que, no plano humano, pode depender uma antecipação ou um retardamento da restauração do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Cônscios da grandeza desta missão, o que nós, os leigos que militam pela Igreja devemos fazer, é uma prece junto ao presepe do Senhor Menino.

“Domine, adveniat regnum tuum”.

“Senhor, venha a nós o vosso Reino”, que nós o realizemos em nós, para que depois, com vosso auxílio, o realizemos também em torno de nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído com adaptações, de “Legionário” nº 328, 25/12/1938. Títulos e subtítulos nossos)