26 de dezembro – Santo Estêvão, cheio da graça divina

Santo Estêvão, cheio da graça divina

Destacando-se entre as mais arrebatadoras páginas da Escritura Sagrada, o nobre holocausto do protomártir da Igreja se reveste de ainda maior brilho, considerado à luz desses tocantes  comentários de Dr. Plinio.

Após comemorar as radiantes alegrias do Natal, a Igreja celebra em 26 de dezembro a memória de Santo Estêvão, seu primeiro mártir. O holocausto desse extraordinário herói da Fé é assim narrado pelos Atos dos Apóstolos:

Naqueles dias Estêvão, cheio de graça e de fortaleza, fazia prodígios e grandes milagres entre o povo. Ora, alguns da sinagoga, chamada dos libertos, dos cirenenses, dos alexandrinos e dos que eram da Cilícia e da Ásia, levantaram-se para disputar com ele. Mas não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito que o inspirava. (…)

Tendo ouvido seu discurso, seus corações foram feridos pelo ódio e eles rangiam os dentes contra ele. Mas Estêvão, que estava cheio do Espírito Santo, tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus, e disse: “Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus”.

Eles levantaram então grandes gritos, taparam os ouvidos e se atiraram todos contra ele. E arrastando-o para fora da cidade, lapidaram-no. E as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo. E lapidaram Estêvão que rezava e dizia: “Senhor Jesus, recebei meu espírito”. Depois, tendo ajoelhado, gritou com voz forte: “Senhor, não lhes imputeis esse pecado”. E dizendo isso, adormeceu no Senhor.

Prodígios que suscitam o ódio dos maus

A narração é de extrema beleza, e cada frase mereceria um comentário próprio, pois a cena se desenvolve em lances sucessivos, com significados peculiares. O primeiro fato é que Estêvão opera maravilhas, definidas pelo Livro Sagrado com uma linguagem tão cheia de imponderáveis que nos deixa encantados. Logo no início encontramos uma bonita expressão, empregada para indicar a virtude do santo: cheio de graça e de fortaleza.

Quer dizer, era um homem na plenitude do vigor — não só de ânimo, mas também do sobrenatural, da graça que atua nele —, realizando prodígios e milagres entre o povo. Ora, à vista desses feitos espetaculares, a pertinácia dos que desejavam perseguir Estêvão é bem apontada pelos Atos dos Apóstolos: tomados de ódio, levantaramse para discutir sofisticamente com ele e atacá-lo. É o  segundo lance.

Porém, seus opositores não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito com os quais Estêvão falava. De modo que, depois de ter operado prodígios, ele também argumentou de maneira  maravilhosa, confundindo completamente os maus e os deixando sem palavras para lhe replicar. E estes que odiavam os milagres, detestaram ainda mais os seus argumentos. Trata-se, portanto, de uma ira crescente, à medida que Santo Estêvão vai manifestando as excelências depositadas por Deus em sua alma. Como se viu, a primeira manifestação dessa grandeza maravilha são seus  feitos prodigiosos, contra os quais se declarou a sanha dos adversários, em forma de discussão. Tendo o santo argumentado de forma irretorquível, aumenta-lhes o rancor — gratuito, em relação  ao bem enquanto bem.

Outra não é a razão dessa raiva. Enganado estaria quem pensasse ter ela eclodido porque Santo Estêvão foi inábil, porque cometeu algum equívoco ou porque não entenderam algo do que disse. Eles compreenderam perfeitamente, deram-se conta das maravilhas que Estêvão operava e ouviram argumentos contra os quais não tinham respostas. Então o odiaram, porque era bom e sem erro.

É semelhante, aliás, o procedimento de muitos fautores do mal. Atacam o bem e a verdade, porque não podem suportá-los. E quanto maior a manifestação da verdade e do bem, tanto maior o ódio que suscita nos maus. Esses que se mostraram hostis a Santo Estêvão eram da mesma laia dos que decidiram a morte de Nosso Senhor, dos que preferiram Barrabás ao Cordeiro imaculado. O ladrão, o facínora, foi considerado mais simpático, mais atraente e agradável do que Nosso Senhor, por causa do amor ao mal.

Nesses episódios se patenteia a iniqüidade e a malícia do pecado daqueles aos quais a Escritura chama de “filhos das trevas”, dos que cometem a falta, não por fraqueza ou debilidade, mas scienter et volenter. Daqueles que aborrecem o bem que não observam e se comprazem com o mal que praticam, e professam uma doutrina má em virtude da qual detestam a boa causa por sabê-la  benéfica.

Santo Estêvão teria sido imprudente?

Prosseguindo, a narração sagrada nos evoca a atitude de Santo Estêvão que, “tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de  Deus, e disse:

‘Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus’.”

É interessante fazer aqui uma composição de lugares, e imaginar o modo como Santo Estêvão externou essa magnífica afirmação. Há de ter sido de maneira tal que os ouvintes perceberam toda a sua veracidade, e viram que ele tinha razão. Reluzia nele um tamanho reflexo daquilo que dizia, uma superior evidência da autenticidade do que falava, que suas palavras eram irrecusáveis! O fato nos faz recordar outro, ocorrido no século XIX, e comentado por Dom Chautard. Conta este que um advogado esteve em Ars para assistir a um sermão de São João Batista Vianney. Depois, ao ser interrogado por seus amigos acerca do que presenciara naquela cidade, exclamou: “Vi Deus num homem”.

Ora, se isso se deu com São João Vianney, imaginemos como Santo Estêvão, no momento do seu êxtase, estaria transbordando de sobrenatural! Foi um resplandecer de graça mística tão imenso  que seus perseguidores não puderam suportar, e cresceram em ódio a ponto de resolver matá-lo.

Poder-se-ia perguntar se Santo Estêvão não foi imprudente, enfrentando desse modo a ira dos maus. Não agiria melhor se tivesse ido embora, sem forçar, por assim dizer, aquela gente a cometer  um assassinato sacrílego? Pelo contrário, ele cada vez se afirmava mais, aumentando a raiva dos seus contendores, até que chegaram ao homicídio.

Este crime não ocorreria, e Estêvão não perderia sua vida de apóstolo, se fugisse. Então, não procederia de forma mais sapiencial se ficasse quieto e procurasse escapar?

A primeira resposta a essa pergunta, encontramos na própria Escritura: Santo Estêvão estava cheio do Espírito Santo. Portanto, agia corretamente, sob a inspiração divina. O fato é que ele se achava engajado numa luta cujo desfecho era incerto. Nessa pugna, tentava ele com insistência penetrar naquelas almas, por meio de uma nova maravilha que operava. Para comovê-las e  conquistá-las, ele foi afirmando verdades sempre mais elevadas. Quando atingiu o ápice de seu apostolado, seus interlocutores, empedernidos no recusar o que Santo Estêvão dizia ou fazia,  cometeram o assassinato.

O método apostólico que ele empregou foi perfeito. Procurou tocar aqueles corações, iluminar aquelas inteligências. A cada rejeição, ele respondia com uma misericórdia maior, deixava  transbordar de seu íntimo uma graça mais intensa, exprimia um argumento mais fulgurante, realizava um prodígio mais admirável. Até o ponto em que eles recusaram tudo. Sua atitude foi  altamente sábia e apostólica. Ele poderia ter convertido aqueles homens se estes tivessem aberto suas almas ao efeito da ação salutar da santa vítima.

Porém, não quiseram ceder à bondade e à virtude de Estêvão. Ergueram-se contra ele e só açaimaram quando perpetraram o ignominioso assassinato.

A morte plácida dos justos

Cometeram-no — descrevem os Atos dos Apóstolos — depois de lançar grandes gritos e “tapar os ouvidos”, como se costumava fazer diante de alguém que proferisse uma blasfêmia. E num ódio que movia a todos,  atiraram-se contra Santo Estêvão, apedrejando-o mortalmente.

E pode-se bem imaginar que a sanha dos malfeitores crescia, à medida que o primeiro mártir da Igreja tomava atitudes cada vez mais sublimes, enquanto as pedras caíam sobre ele. Um curioso detalhe salientado pela Escritura é que “as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo”. Saulo, o futuro São Paulo, naquele tempo fariseu e encarniçado  Perseguidor dos cristãos.

A vida de Santo Estêvão vai se extinguindo sob a brutalidade da lapidação.

Procuremos imaginar a cena maravilhosa. Ele, qual segundo Cordeiro de Deus, olhos voltados para o céu, ferido e deitando sangue por todo o seu corpo, com contusões horrorosas, faz apenas esta  oração: “Senhor Jesus, recebei o meu espírito! Senhor Jesus, recebei o meu espírito!”

Que extraordinária impressão essa atitude devia causar nas almas boas!

E depois, “tendo ajoelhado, gritou com voz forte: Senhor, não lhes imputeis esse pecado!”

Então, a primeira prece — “Senhor Jesus, recebei meu espírito” —, ele a disse de pé. Mas, é natural, vergado pela violência das pedradas, não pôde mais se manter ereto. Caiu de joelhos, e nessa postura tão supremamente conveniente para a oração, ele pediu a Nosso Senhor que não lhes imputasse aquele pecado. Ou seja, ainda com voz forte, rogava o perdão para os seus próprios agressores.

No auge da tragédia, ele tem uma frase de uma simplicidade e de uma serenidade sublimes.

“E dizendo isso, adormeceu no Senhor.”

Tudo acabou, e veio a morte plácida dos justos. A tormenta se tinha transformado num sono, o martírio estava consumado, ele estava dormindo em Deus. Ao exalar o último suspiro, aquele  homem todo ensanguentado, certamente terá tido uma expressão de fisionomia tranquilíssima. Sua alma subia ao Céu. Como esse martírio é digno de ser o primeiro da história da Igreja, exemplo para os demais holocaustos dos que morreram testemunhando sua Fé em Cristo Jesus, Senhor nosso!

Plinio Corrêa de Oliveira

25 de dezembro – A Igreja Católica vivendo na alma dos povos

A maravilhosa fragrância do Natal

Como o Sol quando atravessa vidros de cores variadas, assim é a ação da Igreja na alma dos povos produzindo acordes diferentes para cantar o Natal. Através dos cânticos natalinos de cada nação compreendemos como a Igreja Católica é riquíssima, inesgotável em frutos de santidade e de perfeição. Não terá, ela mesma, sua própria canção de Natal?

 

Vamos fazer o comentário a algumas músicas natalinas de diferentes nações e considerar nelas o modo de cada povo cantar o Natal.

Povo da bravura e da proeza, mas dotado de delicadeza de alma

Comecemos pelos alemães, conhecidos no mundo inteiro principalmente como sendo um povo filosófico e militar. Enquanto militar, o povo da bravura, da proeza e, em certo sentido, da cavalaria, das Cruzadas. Entretanto, dotados de tal delicadeza de alma para a canção de Natal, que compuseram o cântico natalino universal: o “Stille Nacht”, no qual eles imaginaram e interpretaram o sentimento de ternura que deveria despertar em alguém que visse no presepe uma Criança fraquinha, com todas as debilidades físicas da infância, chorando, com frio, mas sendo o próprio Deus. Destinado, porém, a sofrer tanto! Quando abre seus braços para as pessoas, já forma uma cruz que faz pensar na dor insondável pela qual Ele vai passar, e convida a considerar todo o amor que O levou a padecer isso por nós, para nosso bem e nossa salvação, sem outra finalidade a não ser esta.

Tudo isso desperta a ternura no mais alto grau. E num paradoxo porque se trata da ternura para com Quem é infinitamente mais do que nós. É um sentimento paradoxal, porém não contraditório. Deve ser, pois, uma compaixão altamente delicada, fruto de um elevado critério de sentimento para tornar-se digna de ser apresentada Àquele que, de fato, merece essa compaixão, mas que é Deus. A compaixão humana para o que há de mais delicado, entretanto ao mesmo tempo admirativa e súplice, pela qual quem tem pena faz um pedido Àquele de quem possui comiseração, é outro paradoxo de uma grande beleza.

Em qualquer canção natalina alemã encontramos esses sentimentos ligados magnificamente e formando o espírito do Natal alemão, o qual lucra em ser considerado não só como o Natal ocorrido na Terra Santa no dia em que Nosso Senhor nasceu, mas o Natal como o alemão o festeja. Quer dizer, imaginar a igrejazinha da paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando dez para a meia-noite; os aldeões caminhando com os tamancões, porque a neve está enchendo o caminho e ainda cai aos flocos; a igreja bem aquecidazinha dentro, todo mundo entra depressa para poder tirar seus capotões e se sentir mais à vontade. Ao longe estão as casinhas da aldeia, e vê-se a fumaça que sobe das chaminés… É a comemoração do Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, deliciosas e substanciosas guloseimas da culinária alemã que já estão no forno para a festa de Natal que se segue à solenidade litúrgica.

Tudo isso constitui, dentro da inocência da neve, um quadro só que completa os sentimentos da canção natalina alemã.

A inflexão da voz comenta o sentido da palavra cantada

No “Stille Nacht” há um misto de submissão de espírito, reverência e compaixão, de um lado e, de outro, uma alta cogitação. Ao longo do cântico nota-se esta alternativa: quando a melodia desce é a ternura vigilante pousando sobre o berço; que nada toque no Menino, que nada O moleste. O Menino está chorando, mas a Mãe O consola… Então, aquele desvelo… Mas depois, em certo momento, a melodia se eleva e traz a ideia de que é Deus Quem está ali.

“Schlafe in himmlischer Ruh” quer dizer “durma em celestial tranquilidade”. O pensamento então é: o Menino está dormindo, mas a tranquilidade com que Ele dorme é celeste, pois esse Menino não é da Terra, mas do Céu. Daí a ênfase dada, pela melodia, à palavra “himmlischer”, que significa “celeste”. Assim, é característico dessa canção que a própria inflexão da voz faça um comentário do sentido da palavra cantada. Aqui há um conceito de música que, a meu ver, só é superado pelo gregoriano.

O Menino transforma os espinhos em rosas perfumadas

“Maria durch ein Dornwald ging, der hat in sieben Jahrn kein Laub getragen.

Was trug Maria unter ihrem Herzen? Ein kleines Kindlein ohne Schmerzen.

Da haben die Dornen Rosen getragen, als das Kindlein durch den Wald getragen”(1).

O pressuposto dessa outra música é Nossa Senhora com o Menino Jesus. A Virgem Santíssima extremamente moça e trazendo consigo o Menino. Evoca uma ideia de juventude, de delicadeza, de virginal fragilidade e de virginal força. Ela anda com o Menino, mas vê-se que está sozinha, porque a canção não se refere a mais ninguém, e traz bem protegido sob seu coração o Menino, numa floresta que há sete anos não produz senão espinhos.

Então, há uma espécie de contraste: Como aquela flor de delicadeza que é Maria Santíssima, com aquele Menino, o tesouro do Universo, podem estar sujeitos a uma trajetória através de tantos espinhos? Que coisa horrorosa! E se acontecer algo ao Menino do qual uma gota de Sangue, por si só, vale mais do que todo o Céu e toda a Terra?

Esse Menino Ela traz bem junto ao Coração e O protege. Prevalece a ideia de Nossa Senhora cuidando de seu Divino Filho e como que atemorizada pelos espinhos que O cercam. Estes fazem parte da natureza hostil, amaldiçoada, daquele lugar que há sete anos não produz nada. O Menino que em seu seio virginal repousa e parece estar fora do uso da razão é o Homem-Deus. De maneira que sabe tudo, pode tudo, dá a solução para tudo. Então, o perigo para Ele, representado pelos espinhos, o agreste e o hostil de quanto O envolve, Ele resolve: pelo seu poder transforma os espinhos em rosas que, com seu perfume, agradam a Mãe d’Ele. Assim, Nossa Senhora vai atravessando a floresta e, vendo os espinhos se transformarem em rosas perfumadas orientadas para Ela, compreende: foi uma amabilidade de seu Filho. Ele está dormindo… Entretanto, governa a natureza!

Todas essas ideias encontram-se nessa canção. O começo é um pouco jovial; depois vêm a ternura e o respeito. Tudo tratado com um tom de voz que é um pouco o de uma pessoa que conta uma história – isto é uma lenda, não aconteceu – para um menino ouvir. Por onde a ternura é um pouco para o Menino Jesus e um pouco para a criança que está ouvindo, a quem se conta uma coisa delicada e ela fica contente. Isso explica os mil tons e entretons da canção.

Entretanto, lembrem-se de que é o povo dos grandes exércitos, das grandes invasões, das grandes batalhas; do qual, na sua fase imperial última, faziam parte os couraceiros com capacetes encimados por águias. É esse povo que na hora da ternura sabe cantar assim. Isso desbarata uma espécie de preconceito pacifista e sentimental segundo o qual quem guerreia não tem sentimento e, talvez pior ainda, quem possui sentimento não deve combater. Não é verdade. O equilíbrio magnífico dessas coisas se encontra na alma alemã quando é retamente católica.

O espanhol se oferece a si próprio e a sua alegria em ação de graças a Deus

Consideremos agora a canção natalina popular espanhola.

Para entendermos bem esse estilo de música devemos levar em conta que, assim como o povo alemão, também o espanhol é feito para o heroísmo. Contudo, são tipos de heroísmo muito diferentes.

O alemão é feito para avançar em conjuntos de grande quantidade. O espanhol é individualista ao último ponto e concebe a coragem como lance individual. Ele se joga na peleja sozinho, vai batalhando, se atraca, mata ou morre, mas é ele que se arrisca inteiro.

Entre as muitas coisas boas concedidas por Deus aos espanhóis está uma natureza pobre completada por um panorama montanhoso, do qual se tem a impressão de que um gigante qualquer, um quebra-montes, esteve passando por lá, quebrando as montanhas a murros e pontapés enquanto dançava e cantava uma jota ou uma saeta; uma paisagem trágica, sob um Sol que calcina, esturrica aquilo tudo.

Mas eles têm uma riqueza de vida e uma superabundância de coragem de viver, que lhes confere uma qualidade que deixa outros povos boquiabertos: são alegres na pobreza. Resolvidos a viver sem terem necessidade de molas, doces, confortos, ou tantos outros “tóxicos” para acharem a vida agradável. Eles lá vão, cantando de “banderilla” na mão, por cima do touro!

Tudo o que torna a vida bastante agradável para muitos povos, o espanhol não tem. Mas ele possui uma coisa que poucos encontram na opulência: a alegria de viver, de sentir a sua própria vida, de olhar para o Céu e pensar em Deus.

Em canções alemãs como a “Stille Nacht” há um misto de alegria e de tristeza: o Menino nasceu, alegria; mas Ele nasceu para ser vítima; tristeza.

Já a canção natalina espanhola manifesta mais a alegria do espanhol a propósito do Natal, do que canta o Menino Jesus. Mas oferece a Ele a sua alegria de ser espanhol, como quem diz: “Senhor, Vós me deixais muito alegre e cheio da coragem que Vós me destes! Homenagem a Vós, Senhor!”

Ninguém ousaria afirmar não ser um modo muito digno de cantar o Natal. Porque o espanhol se oferece a si próprio e a sua alegria em ação de graças a Deus. É a ação de graças mais preciosa. E é assim que devemos interpretar muitos dos cânticos natalinos espanhóis.

O inglês gosta da proporcionalidade

Tratemos agora de um aspecto da canção natalina inglesa.

O inglês e o espanhol são dois povos tão diferentes, mas há uma analogia no modo de cantar e apresentar a música de Natal. O espanhol, embora pronto para a morte e tendo feito um pacto com ela, é, entretanto, otimista. Enquanto ele não morre, está achando que vai vencer e se alegra com isso. Se vem a morte, ele se mete dentro dela de “banderilla” em punho! Chegou a hora da morte, lá vai! Não tem medo.

O inglês canta também a alegria de viver, à sua maneira. Porém, seu estilo não é saltitante e não procura exprimir-se através dos superlativos como o espanhol, mas se exprime por meio de uma canção cuja principal preocupação é ser equilibrada. Enquanto o espanhol exclama e vai ao extremo, o inglês mantém a proporção, quase como quem diz: “O tema é extremo, mas eu não saio da proporção devida, porque gosto da coisa nas proporções adequadas. E faço da proporcionalidade o meu encanto predileto.”

E ele oferece ao Menino Jesus a sua anglicidade, o seu modo de ser e os seus problemas. É um povo de gentis-homens. Por isso, há uma canção que se dirige ao “gentleman” exortando-o a não estar triste nem aborrecido porque o Menino Jesus o ajuda.

No início, essa canção tem um tom delicado e ligeiramente infantil, quase como se fosse um menino falando a outro. Toda a inocência infantil está posta ali. Depois desabrocha o homem, e vem o “gentleman” com seus problemas, inclusive o pecado. O “gentleman” luta contra o pecado, e às vezes é derrotado. Mas vem já a promessa de misericórdia: “Se você cair, não desanime; o Menino o tira das garras de satanás.”

Faz lembrar os espinhos que se transformam em rosas, ao olhar de Nossa Senhora. Eis um comentário da canção inglesa de Natal.

O cântico da Igreja

Assim compreendemos como a Igreja Católica, vivendo na alma de povos diversos, produz acordes diferentes. Porque ela é riquíssima, inesgotável em frutos de santidade e de perfeição. É como o Sol quando atravessa vidros de cores variadas: ao passar por um vermelho, acende um rubi; ao transpor um pedaço verde, faz fulgurar uma esmeralda. No fundo, é o Sol. Durante a noite aquele vitral não quer dizer nada.

O gênio da Igreja passando pelo alemão faz isso, pelo espanhol realiza aquilo, e assim por diante. No fundo, é a Igreja. É a Divina Providência Quem faz essas maravilhas. E nós devemos saber gostar disso, ficar alegres e louvar a Deus.

Ora, a Igreja não terá, ela mesma, sua própria canção de Natal? Será que as nossas pátrias terrenas são capazes de nos modelar de maneira a nascerem tão belas músicas natalinas, e não há um cântico de Natal modelado pela Pátria de nossas almas que é a Igreja? É uma pergunta válida.

Encontramos a resposta ao ouvir um canto gregoriano de Natal como, por exemplo, o “Puer natus”.

O interior da alma do varão católico deve ser sereno, cheio de significado e elevado como o interior de uma igreja! A vitalidade dele é inesgotável porque sobrenatural, e resulta de uma paz profunda, de uma vontade indomável de herói e, ao mesmo tempo, voltada completamente para as coisas do Céu.

Nas outras canções, são as almas católicas de cada nação que cantam, nas quais está presente a Igreja. No cântico da Igreja, é ela mesma quem canta. Aqui o Sol não passa por nenhum vitral, é direto. O vitral é muito bonito, mas o Sol é o Sol! Isso é feito para ser cantado por todos os povos. É a alma da Igreja universal em todas as latitudes, em todos os lugares, sempre serena, com uma alegria que sobe diretamente ao Céu, um recolhimento que exclui todas as coisas da Terra e, sem agitação nem folia, vai dizendo com toda naturalidade o que tem a dizer.

Serenidade e dignidade do gregoriano

Vejam a saudação angélica narrada no Evangelho: uma cena sublime! Um Anjo que desce para junto de uma Virgem e Lhe comunica que Ela vai ser a Mãe de Deus, e que conceberá do Divino Espírito Santo. Como isto é anunciado? O Anjo entrou onde Ela estava e disse: “Ave, cheia de graça!” E transmite a mensagem. Não tem literatura, não tem enfeite, não tem florido nem nada.

O Evangelho conta que Ela ficou perturbada e pensava qual o significado dessa saudação. Tendo recebido a explicação, Ela dá a resposta mais simples do mundo: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra.”

Imaginem um ator lírico pondo isso numa peça de teatro. A atriz se levantaria, dançaria a dança da alegria, depois iria se ornar e perfumar para responder ao anjo… Aqui não. “Ecce ancila Domini, fiat mihi secundum verbum tuum”. Serena, tranquila, mas dizendo tudo admiravelmente!

Nosso Senhor na Paixão. Situação trágica. Ele, na previsão do que vai acontecer, começa a tremer e a chorar. E diz: “Meu Pai, se for possível afaste de Mim esse cálice”. A frase mais simples que pode haver. “Se não for, faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Resposta? Baixa do céu um Anjo e traz a Ele o cálice de uma bebida que Lhe dá aquela força que O leva até o alto do Calvário. Tudo simples, sereno, mas com significado, com suco. É o que eu disse do interior de uma igreja. Cada palavra dessas tem no seu interior uma catedral!

Em função disso compreendemos a serenidade, a tranquilidade dessa música, sua dignidade e seu caráter profundamente religioso. É a voz da Igreja cantando, sob o sopro do Espírito Santo, o dom que Deus fez à Santíssima Virgem.

É o que torna, a meu ver, o canto gregoriano superior a toda outra forma de música. Não tem comparação.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/1/1989)

 

 

1) Cântico para Tempo do Advento: Maria andava por um roseiral que por sete anos não florescia. / O que levava Maria sob seu Coração? Uma pequenina Criança, sem dores. / Então, dos espinhos brotaram rosas, quando o Menino passava pela floresta.

25 de dezembro – A inebriante alegria do Natal

A maravilhosa fragrância do Natal

Com o intuito de avivar a confiança de que a atmosfera sacral dos Natais de outrora deverá reflorescer sobre a Terra, Dr. Plinio narra alguns fatos de sua infância.

Após um ano de lutas, sofrimentos e dificuldades, aproxima-se o Natal. As festas do Santo Natal, bem como as da Páscoa, a meu ver, têm a característica de interromperem o tempo. E ainda que se esteja na situação mais aflitiva, o Natal ergue uma muralha, deixando de um lado as desgraças e as lágrimas, e, do outro, os sinos que anunciam as alegrias natalinas.

Não se trata de uma alegria vulgar, mas uma alegria muito mais profunda e leve, que parece ser feita de luz. Feita da luz que é o “lumen Christi”, a qual passou a brilhar sobre a Terra na noite de Natal, e que a cada ano de alguma forma volta a brilhar, trazendo com ela a verdadeira alegria e a verdadeira paz de alma até para os mais atormentados.

ALEGRIA POR CIMA DAS AFLIÇÕES

Imaginemos, por exemplo, o que se dava nas catacumbas. O que deveria ser uma noite nas catacumbas? Lembro-me da Catacumba de São Calixto, em Roma, que me causou profunda impressão. Seus corredores são estreitos e altos — talvez a altura sirva para assegurar certa ventilação, pois se sente que nela circula certo vento. Mas as paredes se afunilam para cima, causando a impressão de que no alto vão se encontrar; isto ao menos para mim dava sensação de asfixia. E por todos os lados terra e sepulturas. Em certo ponto vê-se uma clareira, da qual filtra um pouco de luz, permitindo ver uma sala quadrangular com pinturas, muito antigas, feitas, por alguma técnica, diretamente sobre a terra; estas representam de modo ingênuo cenas do Evangelho. Ali se encontra um altarzinho, pois se trata de uma capela onde se celebrava a Missa, junto aos restos de novos mártires, mortos de modo cruel. O corpo do mártir ficava, muitas vezes, jogado na arena, todo estraçalhado. Terminado o martírio, o povo se retirava. Ao anoitecer, católicos heroicos, eles mesmos candidatos ao martírio, pois caso fossem pegos seriam também martirizados, em meio às trevas se arrastavam até o Circo Máximo ou até o Coliseu para pegar aqueles restos, os quais traziam em panos, embebidos em perfume, até as catacumbas onde entravam por um orifício oculto feito no chão.

Quando os que lá esperavam rezando recebem a notícia de que ali estão os restos de um de seus irmãos na Fé, imediatamente do fundo da terra ouve-se um cântico de triunfo. Pois aquele companheiro que na véspera tinham visto e com quem tinham conversado — até que devido a uma vistoria policial na catacumba fosse capturado e, cheio de aflição, levado para ser martirizado — após tantos sofrimentos ele está no Céu. Por isso todos cantavam de alegria.

Quando alguém recebe graças especiais, até nessa situação ela pode sentir alegria, a tal ponto que havia mártires que apesar de triturados pelas feras morriam alegres.

INEBRIADOS PELO SANGUE DE CRISTO

Agrada-me ouvir cantar o Anima Christi, no qual há uma jaculatória que diz: Sanguis Christi, inebria me! Sangue de Cristo, inebrie-me! O que isso quer dizer? O que é esta embriaguez do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo? Um exemplo é o do mártir que tendo comungado do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, embriagado da alegria, fruto da graça do Espírito Santo, procede como um ébrio, não tendo medo diante do perigo e da dor. Pelo contrário, de tal modo o inunda a alegria sobrenatural que se lhe dissessem que a fera não vem, ele era capaz de ficar desapontado, pois para ele a boca do tigre era a porta do Céu, e as presas que ele vê enquanto a fera uiva são para ele os instrumentos benfazejos que vão romper os laços que o prendem à Terra, permitindo que sua alma possa voar junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A graça pode produzir esse efeito, e não é tão raro que o faça.

Em algo sentimos este efeito da graça quando, em meio a aflições, tormentos e lutas, vemos nossas almas encherem-se das santas alegrias do Natal, que vencem até as maiores angústias. Ao menos para os que não rejeitam essa graça.

A NOITE DE NATAL DE OUTRORA

Para que se sinta um pouco o que é esta graça, creio não ser descabido narrar algumas recordações, na tentativa de fazer reviver aqui aquilo que na pobre São Paulo de hoje, embora tão rica, quase não se nota mais: as alegrias e vivas impressões que outrora se sentiam nas noites de Natal.

Como era um Natal no ano de 1920? Portanto, Natal dos últimos anos de minha infância?

Havia qualquer coisa que alguém poderia dizer tratar-se de imaginação, mas digo que tenho a convicção interna de não se tratar de imaginação, mas da graça, que era dada a mim, como a todas as crianças de meu tempo, ao menos as que eu via e conhecia.

Era uma graça geral. As crianças, já alguns dias antes do Natal, viam-se invadidas por uma expectativa e por uma alegria na esperança das festas que iam se realizar. A perspectiva da festa, no que ela tem de terrena, desempenhava um papel na alegria das crianças. Elas sabiam que São Nicolau, o santo Bispo afável, viria de noite enquanto todos dormiam e colocaria presentes junto a elas: nos lares abastados, grandes caixas; nos lares mais pobres, com menos condições financeiras, caixinhas de presentes pequenas, mas cheias de afeto. Mas em todo lugar onde houvesse uma mãe, digna realmente de assim ser chamada, um pai solícito e merecedor deste título, alguma coisa punham junto à cama do filho. O que para o filho consistia uma maravilha, que ele esperava com alguns dias de antecedência.

INUNDADAS PELAS ALEGRIAS DE NATAL, AS CRIANÇAS FICAVAM MELHORES

Esta alegria se fazia sentir dois ou três dias antes do Natal. Ao andar um pouco, correr pelo jardim, brincar, tudo se fazia cheio de um bem-estar próprio à inocência da infância, à espera do Natal. Esta alegria em boa medida era motivada por alguma coisa mais alta e que já era um prenúncio da alegria estrita e definidamente religiosa do Natal que estava por vir. Algo de especial começava a nos encher as almas.

Nesses dias, todas as crianças ficavam melhores: as que mentiam, passavam a mentir menos; as que não mentiam censuravam alguma que mentisse; as que eram pouco observantes dos horários de casa tornavam-se mais pontuais. Sentia-se em todos mais limpeza de alma. E esta alegria de ter a alma limpa não se compara a nenhuma outra ao longo da vida. O que pode se comparar ao bem-estar, por exemplo, de alguém que se confessa e sai do confessionário com a certeza de ter sido perdoado?

Quem não se lembra com saudades de alguma vez ter se aproximado do confessionário com um problema de consciência e de lá ter saído transbordante de alegria pela certeza de haver sido perdoado? Essa alegria faz em algo lembrar aquela que se sentia nos dias que antecipavam o Natal, ainda sem ter se confessado.

Um princípio de pureza, de limpidez, de honestidade, de bondade e de candura parecia se fazer sentir sobre a Terra, atuando nas almas de todos os homens. As pessoas começavam a ser mais benévolas entre si, oferecendo-se favores. As crianças egoístas de bom grado emprestavam seus brinquedos, as birrentas faziam pequenos favores. E os mais velhos, por mais que não sentissem a mesma alegria que as crianças, por lembrarem-se dos Natais em suas infâncias, esforçavam-se por causar a impressão de estarem participando do mesmo contentamento, tornando-se especialmente solícitos e afáveis.

BEM-ESTAR NATURAL E SOBRENATURAL

Os pais, ao menos os meus, levavam as crianças para ver os brinquedos de Natal. Em geral as melhores lojas de brinquedos eram alemãs e inglesas. Lembro-me de várias: Casa Fux, Casa Grümbach, Casa Lebre e outras. Entre elas havia uma onde minha mãe e a Fräulein costumavam levar minha irmã, uma prima que morava em nossa casa e eu. Esta ficava na Rua XV de Novembro; chamava-se Casa Mappin. Como o Natal vinha se aproximando, as crianças ao saírem de casa iam com roupa de gala, todas enfeitadas. Assim íamos também nós ver os presentes, os quais muito nos encantavam. Mamãe ficava prestando atenção para ver qual deles mais nos agradava. Por coincidência e para nossa maravilha e surpresa, São Nicolau trazia justamente aquele…

Uma das partes culminantes da preparação do Natal, para mim, sensível à gastronomia desde muito cedo, era quando íamos tomar um lanche na Casa de Chá do Mappin. O fundo desta Casa dava para um barranco profundo, embaixo do qual começava o Brás; era um descampado por onde entrava muito vento; nós ficávamos sentados lá, pois a Fräulein e eu éramos grandes apreciadores de vento. Este, mais o chá, os sanduíches, as torradas e o chocolate, me regalavam. Eu tinha a impressão de que o bem-estar de meu corpo em contato com aquele vento era análogo à alegria de minha alma em contato com as graças de Natal que se aproximavam, o que me cumulava ainda mais de desejo de que o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo chegasse o quanto antes.

Notava-se esta alegria natalina até nas mães que levavam as crianças pelas ruas do Centro, o qual se enchia especialmente; as crianças, todas alegres e satisfeitas, algumas já levando presentes, dando risadas e conversando. Quando passava uma criança assim mais vistosa, mais engraçada, as mães piscavam para a mãe daquela como que a dizer: “Mas que engraçadinha…” E a mãe ficava toda satisfeita. E assim era uma alegria geral.

DE ALEGRIA EM ALEGRIA ATÉ O ÁPICE DO NATAL

Voltando para casa começavam os mistérios… Numa determinada sala não se podia entrar, pois a árvore de Natal estava sendo preparada, como em todo ano, com alguma novidade, uma estrela enorme, um anjo novo ou outros enfeites.

Quando uma criança conseguia ver algo da surpresa, corria para contar às outras, que tomavam a notícia com ar de grande importância. Em meio a essas alegrias passava-se o tempo até a noite de Natal, hora em que se ia à Missa do Galo. Aí o ambiente era completamente diferente.

Nós, morando perto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, para lá íamos a pé. Todas as casas estavam abertas e as luzes acesas. Andando pelas ruas percebia-se, em casas modestas como nas ótimas, que eram quase palácios, uma árvore de Natal acesa e ouvia-se lá de dentro um gramofone, dos mais antigos, tocando músicas de Natal. Percebia-se em cada família a alegria de Natal, todos estavam acabando de se aprontar para sair, deixando apenas um criado a tomar conta da casa. Logo os sinos começavam a tocar, avisando que a Missa ia começar.

Chegando-se à igreja, esta se encontrava feericamente iluminada, o altar se encontrava todo cheio de flores. Numa manjedoura via-se o Menino Jesus deitado. Quando soava meia-noite, o padre entrava e começava a Missa, durante a qual se sentia algo aparentemente contraditório, um misto de recolhimento e de explosão de contentamento.

Quando já se tinha idade, comungava-se. A Comunhão era o ápice! Encantava-me a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, que tinha nascido em Belém, numa daquelas noites, estava realmente presente em mim; era a hora dos pedidos, mas, sobretudo, tinha-se uma indescritível sensação de intimidade. Eu tinha uma estampa do Sagrado Coração de Jesus que representava Nosso Senhor segurando um menino, de cabelos cacheados pretos, e Ele com a mão em volta de seus ombros, apertando o menino para junto do peito. Em baixo desta havia uma jaculatória que dizia mais ou menos assim: “Ó Bom Jesus, tende piedade de mim!” Eu a rezava pensando: Nosso Senhor nesta hora está fazendo isso comigo…

Depois da Missa, tinha-se a impressão de que as graças de Natal se difundiam por todas as casas. Quando chegávamos à nossa, parecia que esta já não era a mesma que tínhamos deixado. Havia nela algo de religioso, de sacral, de recolhido, que causava verdadeira maravilha. A par desta atmosfera recolhida, sentia-se habitar na casa uma alegria, como igual não se sentia o ano inteiro. Começavam os cumprimentos e as felicitações, ao que eu era muito sensível, sobretudo aos carinhos e felicitações vindos de mamãe, com os quais eu já vinha contando como um complemento da noite de Natal. É impossível descrever o que é o ósculo de uma mãe católica a um filho que ela deseja que seja católico também! Depois das saudações, começava a festa de Natal, a qual já tive oportunidade de descrever outras vezes.

DELÍCIAS QUE SE SENTIAM ATÉ DORMINDO

Terminada a festa de Natal, chegava a hora das delícias do sono, o qual era melhor na noite de 25 para 26. Porque como se sabia na noite anterior que São Nicolau viria entregar o presente, queríamos surpreendê-lo, mas sendo ele muito hábil, isto nunca acontecia. Porém, mantinha-se esta esperança. Até que, mais ou menos às quatro horas da manhã, sentia-se sobre os pés o peso da enorme caixa de presentes, e logo vinha a curiosidade de saber se São Nicolau tinha acertado, mas eu pensava: “Não posso acender o abajur porque meus pais, notando, me censurarão. De outro lado, como é gostoso sentir o peso desse presente, pelo qual posso avaliar o valor e o prazer que o presente me dará!” Pouco depois o sono infantil tomava domínio da situação e a criança dormia. Acordando de novo pouco depois, na sofreguidão de que o momento de se levantar tivesse chegado, para poder ver o presente, não sendo ainda hora, voltava a dormir.

Até que antes da hora de acordar, a criança já estava de pé, rompendo as fitas, os laços e os barbantes, para ver o presente, o qual era sempre um muito bonito, um dos quais se tinha gostado em alguma casa de presentes.

Por isso, o sono da noite de 25 para 26 era um sono pesado e gostoso, pela sensação da consciência tranquila, pelas influências do Natal Sagrado, sob cujo perfume se dormia, sabendo que no dia seguinte ainda se teria a recordação do Natal. Ainda tinha um feriado, para comer os últimos doces, beber os últimos ponches, brincar mais uma vez com os brinquedos, até se familiarizar com eles. Não se olhava com pesar para o implacável dia 26 que vinha. A noite de Natal era, portanto, um hiato luminoso, cheio de algo que não se consegue descrever, mas que todos sentiram, cada um em sua época.

DIA VIRÁ EM QUE OS VERDADEIROS NATAIS REFLORESCERÃO NA TERRA

Até que ponto os que são mais jovens sentiram isso? Receio que, quando muito, tenham visto apenas ligeiros fins disso.

Televisões ligadas o dia inteiro, rádios vociferando canções de Natal comercializadas, lâmpadas fluorescentes e laicas penduradas em torno de árvores, em jardins de prédios e em apartamentos, igrejas vazias. Eis o Natal moderno!

Põe-se a pergunta: O que resta de tudo o que descrevi? Será que de tudo isto só ficou a recordação? Muito mais do que isto, resta uma esperança! E no intuito de avivar essa esperança é que narrei estes fatos. Mas, de tudo isso só resta uma esperança? Não! Temos uma certeza! graças à promessa divina: “…as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16-18).

Esta certeza nos diz que um dia, após lutas, provações e batalhas, os verdadeiros Natais reflorescerão na Terra. E quando se assistirem a esses Natais, talvez alguém se lembre desta descrição que acabo de fazer, e tenha a convicção viva de que não é algo que está nascendo, mas é uma longa concatenação histórica que sai do fundo das águas da provação e volta à luz. Trata-se da verdadeira alegria do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

NATAIS MAIS BELOS DO QUE OS DE OUTRORA

Apesar de toda a decadência que se nota nas festas de Natal atualmente, se comparadas com as de meu tempo, não hesito em afirmar que o Natal dos que, hoje em dia, lutam para permanecer fiéis ao verdadeiro espírito católico é ainda mais bonito do que os de outrora. E se eu, quando menino, pudesse ver como seriam os Natais que eu deveria passar nestes dias, sem dúvida exclamaria: “É para isso que eu nasci!”

Devemos, pois, lembrar que essas alegrias de Natal, sob o sorriso de Nossa Senhora, descerão sobre nós, ainda que estejamos na mais terrível aflição. Também nos deve animar a confiança de ver realizada a promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” Quando isto se der, que suavidade, harmonia e doçura terão as festas do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)

25 de dezembro – A maravilhosa fragrância do Natal

A maravilhosa fragrância do Natal

A partir das revelações de uma célebre mística alemã sobre a noite de Natal, Dr. Plinio se compraz em evocar as magnificências, as delicadezas e os perfumes com que Deus Pai, por meio de incomparáveis manifestações de toda a natureza, ornou o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, sob os olhares enlevados de Maria Santíssima e São José.

Nada mais oportuno, por ocasião do Natal, do que comentarmos algo a respeito do advento do Verbo Encarnado ao mundo, nascido da Imaculada Virgem Maria.

VIDENTE COM GRANDE LUCIDEZ

As considerações de hoje se baseiam nos escritos deixados pela vidente Ana Catarina Emmerich. Mística alemã do século XIX, ela foi favorecida por diversos êxtases e revelações, publicadas com o devido “imprimatur”.

Antes de analisarmos suas descrições, seria interessante salientar o aspecto profundamente racional que elas apresentam, e como Ana Catarina demonstra um tato extraordinário e um grande senso das coisas ao resolver problemas muito delicados que aparecem no curso de suas visões. Essa atitude fala em abono da lucidez da vidente e da veracidade de suas narrativas.

 

O MENINO RECLINADO SOBRE FLORES E ERVAS FINAS

Descreve ela, então, o que se teria passado na noite de Natal. São José, tendo sido avisado por Nossa Senhora sobre o iminente nascimento do Menino, dedicou-se a preparar o presépio na gruta de Belém para receber o Filho de Deus. O modo como o fez é extremamente belo: estendeu uma camada de ervas finas e, acima destas, lindas flores que encontrou na pradaria próxima, cobrindo tudo com uma colcha modesta trazida pela Virgem Santíssima.

Parece-me de rara graciosidade essa ideia de que o Menino Jesus poderia dormir sua primeira noite sobre flores — quiçá alguns lírios do campo que Salomão, em toda a sua glória, não conseguiu imitar — e, coisa ainda mais esplêndida aos olhos de Deus, envolto numa colcha tecida por Nossa Senhora.

Segundo a vidente, mais ou menos uma hora antes do nascimento, após outro aviso de Maria Santíssima, São José acendeu várias lâmpadas que tinha levado para essa ocasião e as suspendeu em traves de madeira que haviam num e noutro lado da gruta. Eram os primeiros fogos que brilhavam em louvor do Menino Jesus.

MAGNÍFICA E INTENSÍSSIMA LUZ DOURADA

Chega então o momento ápice do nascimento do Homem-Deus. Nas visões de Ana Catarina Emmerich, como este se passou?

É dogma de fé que Nossa Senhora foi virgem antes, durante e depois do parto. Portanto, seria mister apresentar esse nascimento virginal cercado de imenso mistério. E ela narra o seguinte: São José, embora pai jurídico (e não natural) daquele menino, não devia presenciar aquele instante glorioso, pois era algo a ser visto apenas por Deus e Nossa Senhora. Então — delicadezas da Providência! — um carneirinho se aproximou da gruta e começou a balir, fazendo um barulho que poderia importunar Nossa Senhora naquele momento. Repassado de solicitude para com a divina Mãe, São José saiu e foi atrás do pequeno animal para sossegá-lo e afastá-lo dali.

Ora, ao retornar à gruta, a parte que ele havia acomodado para dormitório de Nossa Senhora, separada por paupérrimas esteiras, encontrava-se imersa em magnífica e intensíssima luz dourada. São José percebeu que Maria estava de joelhos, as mãos cruzadas sobre o peito, e voltada para o Oriente, em altíssima meditação. O patriarca entendeu que não devia avançar mais. A luz dourada o afastou desta cena, única, cujo real conteúdo só terá sido presenciado por Deus e os anjos.

UM MENINO BELO COMO O RELÂMPAGO

São José retirou-se para outro canto da gruta e ali se pôs em oração. Narra Ana Catarina Emmerich que uma luz muito brilhante começou a espargir de Nossa Senhora e a envolver todo o ambiente. À medida que esse fulgor ganhava intensidade, a Virgem Maria ia se elevando do solo, e já se achava a boa distância deste quando São José finalmente deixou seu lugar para ver o que se passava. Nossa Senhora, então num êxtase maravilhoso, comunicou-lhe: o Menino nasceu!

São José volta seus olhos para o chão e vê o Menino Jesus, uma criança — no dizer de Ana Catarina — bela como o relâmpago, isto é, mais luminosa e esplêndida que a própria luz que clareava a gruta naquele momento. Era o “lumen Christi”, perto do qual se eclipsam todas as outras luzes.

Em seguida, dá-se esta cena: Nossa Senhora sai do êxtase, desce de novo para o chão e permanece uma hora inteira contemplando o Menino que tinha nascido sobre um pano estendido por Ela. Portanto, o Homem-Deus havia nascido na maior penúria material possível. Passado esse período de adoração, Maria Santíssima se levanta, toma o Menino belo como o relâmpago e o coloca nos braços de São José. Imagine quem possa a felicidade do esposo virginal de Nossa Senhora ao sentir aquele frágil corpo do Deus humanado! Ele também adora o Filho do Altíssimo reclinado nesse primeiro presépio que foram seus próprios braços. Em seguida, O deposita na manjedoura, ao lado da qual se ajoelham a Virgem e ele, permanecendo os dois em oração, num silêncio angélico e celestial.

PRIMEIRA ADORAÇÃO NOTURNA DA HISTÓRIA…

Entretanto, todo o ambiente, até as próprias pedras da gruta, fremia de esplendor e de alegria, notando-se um como que regozijo, inclusive nos seres inanimados, porque o Menino Jesus tinha nascido. Na verdade, esse gáudio da gruta era o de toda a natureza, transformada por aquele acontecimento indescritível. As flores desabrochavam e exalavam perfumes magníficos; os aromas das folhagens eram estupendos, e uma luz cada vez mais intensa começou a brilhar sobre a gruta, e foi este fulgor que chamou a atenção dos pastores acampados nas redondezas.

Vemos, por essas descrições, o tato com que Ana Catarina apresenta o nascimento do Menino Deus, com seus delicados aspectos, a conduta de São José, a atitude de Nossa Senhora, o parto misterioso, enfim, tudo perfeito, como poderia ter acontecido.

Narra ainda a vidente que, após algum tempo, estando o Menino na manjedoura, São José se preocupa com Nossa Senhora, e embora Esta não demonstrasse cansaço algum, ele leva para junto do presépio uma cadeira e o leito da Santíssima Virgem, caso Ela quisesse repousar. Os dois continuaram recolhidos em elevada prece, e assim começava a primeira adoração noturna da História. Se pensarmos no Menino belo como um relâmpago e na Mãe formosa como a lua, compreenderemos um pouco mais da maravilhosa fragrância do Natal.

INUSITADA ALEGRIA SENTIDA EM TODA A TERRA

Como acima notamos, Ana Catarina diz que a luz brilhando sobre a gruta serviu de aviso aos pastores de Belém, os quais tomavam assim conhecimento do nascimento de Jesus. Ela descreve esse aspecto do Natal de um modo muito edificante, atraente e piedoso, próprio a incutir devoção e fervor às nossas almas. Ao lê-la, entendemos que seria lógico e razoável que as coisas tivessem se passado assim. Palavras dela:

Vi em muitos lugares, até nos mais distantes, uma inusitada alegria, um extraordinário movimento nessa noite. Vi o coração de muitos homens de boa vontade reanimados por uma ânsia repassada de felicidade; e em troca, os corações dos perversos, roídos de temores.

Essa descrição nos faz pensar nos dias melhores que a Providência reserva para a Cristandade, quando Nossa Senhora exercer de fato sua realeza sobre o mundo, e então tudo quanto é bom, nobre e belo florescerá na humanidade: os homens desejarão o bem com alegria, o sacrifício, a dedicação e a renúncia no entusiasmo de sua alma.

A NATUREZA FESTEJA O NASCIMENTO DO SALVADOR

Até nos animais eu vi manifestar-se a alegria nos seus movimentos, e como que brincarem.

Imaginemos uma magnífica noite do Oriente, a bela natureza banhada por um luar soberbo e envolta numa temperatura amena. Carneiros, cabritos e outros animais começam então a saltar e a brincar, pássaros esvoaçam e cantam, as flores deitam seu melhor perfume. É a festa da natureza pelo nascimento do Salvador.

Faço notar o quanto é razoável que isso se tenha dado. De fato, é de acordo com a ordem natural das coisas que, vindo ao mundo o Menino Jesus, ao qual está sujeita toda a natureza, esta se alegrasse com a presença de seu divino Benfeitor e externasse tal contentamento manifestando um colorido melhor, uma beleza maior, etc.

As flores levantavam suas corolas, as plantas e as árvores tomavam novo vigor e verdor, espargindo suas fragrâncias e perfumes. Eu vi brotar fontes de água da terra.

Esse brotar das fontes de água da terra parece-me altamente simbólico. O manancial que jorra, a vida que aflora no solo, representa as graças que se espalham sobre os homens. A água significa vida e vigor para a terra; a graça é fator vivificante para a alma humana.

O céu era de um vermelho escuro sobre Belém, enquanto se via um vapor tênue e brilhante sobre a gruta do presépio e no vale dos pastores.

Outra bela descrição. Já ouvimos falar de auroras róseas, conhecemos crepúsculos avermelhados, mas um céu noturno com esse tom de vermelho profundo deve ter tido um esplendor especial. E sobre a gruta, uma névoa iluminada, atraente, repleta de mistérios.

A TORRE DOS PASTORES, SÍMBOLO DA IGREJA

A certa distância da gruta do presépio se encontrava o que chamavam a Torre dos Pastores: um grande conjunto de andaimes, feitos de madeira, tendo por base imensos blocos do próprio rochedo. Estava rodeada de árvores verdes e se alçava sobre uma colina isolada, no meio da planície. Cercada de escadas, tinha galerias e pequenas torres, todas cobertas de esteiras.

Ana Catarina explica que este era o ponto de observação para onde convergiam todos os pastores da região, e ali permaneciam durante a noite vigiando seus rebanhos.

Penso que essa torre dos pastores é um belo símbolo da Igreja Católica: os Bispos, com seus rebanhos, se achegando à única torre existente na Igreja, no sentido estrutural da palavra, que é a Cátedra de São Pedro. Do alto desta, o Pastor dos pastores deita seu olhar vigilante para defender o redil contra os lobos e ladrões.

Diz ainda a vidente que essa torre emergia do meio de árvores, no alto de uma colina inteiramente isolada. O resto era planície. Mais uma vez, algo que lembra o Papado, pois em confronto com este tudo é planície. Ele é a suprema autoridade, o mais augusto hierarca da Igreja e, como tal, o maior hierarca do universo, porque nenhum homem poderoso na ordem temporal pode se comparar com o Romano Pontífice.

Desde longe [a torre] produzia a impressão de um grande barco cheio de mastros e de velas. A partir dela desfrutava-se de esplêndida vista de toda a região, vendo-se até Jerusalém. As famílias dos pastores habitavam nesses lugares, num raio de duas léguas. Possuíam granjas isoladas, com jardins, e se reuniam junto da torre em cujos depósitos guardavam os utensílios de uso comum.

É interessante imaginarmos essas casas das famílias dos pastores esparramadas em volta da torre, com seus jardins e granjas. Sobre tudo isso cai a noite, tornando-se misteriosa, magnificamente purpúrea, e, ao longe, uma névoa branca, iluminada, que começa a nascer. Como terá sido o deslumbramento dos vigias diante desse espetáculo?

O ANÚNCIO DOS ANJOS AOS PASTORES

No nascimento de Jesus Cristo, vi três pastores muito impressionados com o aspecto daquela noite tão maravilhosa. Então, tomados de admiração, perceberam a luz extraordinária sobre a gruta do presépio. Subiram ao mirante, dirigindo sua vista até a gruta. E enquanto olhavam, desceu sobre eles uma nuvem luminosa, dentro da qual notei um movimento à medida que se acercava.

Entende-se que se trata do anúncio dos anjos, os quais não aparecem de repente, mas são precedidos de uma nuvem luminosa que prepara o coração dos pastores para a boa nova. Cada vez mais brilhante e bela à medida que se aproxima, essa nuvem eleva gradualmente o espírito daqueles homens simples, que vão se tomando de encanto e admiração com tudo o que viam.

Aos poucos, dentro da nuvem foram se delineando formas vagas, depois rostos e, finalmente, ouviram-se cânticos muito harmoniosos, alegres, cada vez mais claros. Apareceu um anjo que lhes disse: “Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor. Por sinal eu vos dou isso: encontrareis o Menino envolto em panos, deitado sobre um presépio”. Enquanto o anjo dizia essas palavras, o resplendor se fazia cada vez mais intenso ao redor dele. Vi cinco ou sete grandes figuras de anjos, muito belos e luminosos, que levavam nas mãos uma espécie de bandeirolas largas, onde se viam letras do tamanho de um palmo, e ouvi que louvavam a Deus cantando: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”.

A bonita frase do Evangelho se reveste de uma cadência única, e nos exprime essa maravilhosa verdade: a paz desce do Céu aos corações de boa vontade, como fruto da glória que eles tributam a Deus nas alturas.

ACONTECIMENTO CERCADO DE MAGNIFICÊNCIAS

Mais tarde tiveram a mesma aparição os pastores que estavam junto à torre; anjos também apareceram a outro grupo de pastores, perto de uma fonte, a leste da torre, a três léguas de Belém. Não vi que os pastores fossem em seguida à gruta do presépio, porque uns se encontravam a légua e meia de distância e outros, a três. Eu os vi consultando-se uns aos outros acerca do que levariam ao recém-nascido, e preparando os presentes com toda pressa. Chegaram à gruta do presépio ao raiar da alva.

Procuremos imaginar a invulgar beleza da aurora que se seguiu a uma noite tão magnífica. E como se reveste de particular atração a cena em que esses pastores, homens simples e de boa vontade para os quais era prometida a paz, no meio de todo o esplendor da natureza em festa, sob uma aurora magnífica, aproximando-se da gruta do presépio a fim de adorar o Salvador!

Percebemos, assim, de quantas magnificências foi cercado por Deus o Natal de seu Filho, dado ao mundo por Maria Santíssima, sob o paternal e maravilhado desvelo de São José.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 22 e 23/12/1975)

25 de dezembro – A paz da noite de Natal

A paz da noite de Natal

Após ter assistido a uma representação da história do menino do tambor, Dr. Plinio explica que, por ocasião do Natal, o Menino Jesus não só recebe aqueles que O visitam na manjedoura, mas vai à procura de todos os homens, de todas as idades, línguas, condições sociais, e lhes diz alguma coisa que de um modo especial lhes toca o coração.

A lindíssima apresentação que tivemos aqui, desses reis magos poéticos, com seus turbantes, desse menino tão mais poético do que os reis magos, com seu chapeuzinho de cone truncado, lembrando um pouco o chapéu de São Charbel Makhluf, daqueles arenais imensos e sem fim, daquelas montanhas que não têm nome, porque o vento as faz e as desfaz. Panorama mutável do deserto, no qual se passa a infância séria, equilibrada, um pouco triste, mas profunda e alegre, daquele menino que, conforme a narração, foi educado pelo seu velho e pobre pai, pois perdera a mãe; portanto na orfandade dos carinhos que não recebeu, e na solidão dos companheiros — muitas vezes, maus — que não teve.

A REALIDADE HISTÓRICA E A REALIDADE SOBRENATURAL

O menino só conhecia o seu velho pai e a grandeza dos arenais do deserto; retinha um só presente que recebera do progenitor, mas fora galardoado pelo seu pai por um presente muito maior do que todos que poderia ter: a capacidade de alma de se alegrar com um só presente; isso vale mais do que ter mil presentes! E dessa situação ele tirou para si a condição de compositor. Um menino que brinca em produzir ritmos e melodias, que maravilha!

Como é bonita a figura desse menino, bem como a solução dada para o seu caso! Ele, afinal de contas, sabe do Menino Jesus e vai tocar o seu tamborzinho para o Divino Infante. É tocante imaginar o Menino Jesus, para quem os anjos, no mais alto dos Céus, estão cantando sinfonias inapreciáveis, e diante do Qual chega um menino rufando um tamborzinho. O Divino Infante abre os olhos e, com misericórdia, ouve aquele toque, se agrada e atrai aquela alma. Seria, talvez, o primeiro amigo do Menino Jesus. Que vocação maravilhosa!

Tudo isso é muito emocionante, mas se considerarmos um outro aspecto do assunto, talvez nos comovamos ainda mais. Nós temos o hábito de pensar no Menino Jesus, que estava na manjedoura, e as pessoas iam até Ele para adorá-Lo: os Reis Magos, os pastores — bem entendido, Nossa Senhora e São José —, e outros que terão passado por lá. Essa é a realidade histórica.

Mas há uma realidade teológica, uma realidade sobrenatural, que não se dissocia dessa, e é tão mais comovedora e não menos real: o Menino Jesus que, de um modo invisível, na noite de Natal, sai, digamos assim, tocando o seu tamborzinho pelo mundo afora à procura de almas, pedindo a esta, àquela, àquela outra que venham a Ele, que O amem, O conheçam, sejam d’Ele. O Divino Infante tem muito mais do que um tamborzinho para atrair os homens e encantá-los: são as sagradas e inefáveis pulsações de seu Coração.

Ao que corresponde isso de real?

NOSSO SENHOR SE MANIFESTA PARTICULARMENTE PARA CADA UM

Se deixarmos a metáfora e formos diretamente ao fato, isso tem de real o seguinte: Considerem as diversas imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo; a que mais me toca — já entra nisso alguma coisa de subjetivo, de pessoal —, é o próprio Santo Sudário de Turim.

Não é Jesus Menino, mas Nosso Senhor morto. Não está nos braços de Nossa Senhora, amorosamente carregado, mas jacente no sepulcro. Todas as chagas da Paixão estão n’Ele representadas. Quando eu olho o Santo Sudário, a graça toca a minha alma — como a de todos os católicos. E, em função da minha mentalidade, da forma de virtude que nos planos da Providência devo ter, a graça me toca de um modo especial, de maneira a ver em Nosso Senhor, no seu Santo Sudário, este, ou aquele aspecto.

Então eu O aprecio, O analiso com a objetividade de uma mente, graças a Deus, sã e que vê a realidade como ela é. E aquilo tudo se ressalta de um certo modo, com certa fisionomia, certas características, que foram feitas para que eu as considerasse; de maneira que para mim, homem concebido no pecado original, o Santo Sudário apresenta uma certa forma de beleza, de atração que não mostrará para nenhuma outra alma do mundo, porque Nosso Senhor se manifesta sob um aspecto especial para cada alma.

Nenhuma alma é igual à outra, e cada uma delas, por mais humilde e modesta que seja, em um certo sentido é suprema e tem qualidades que Deus não deu a mais ninguém. Podem ser qualidades do tamanho de um centésimo da superfície de uma ponta de alfinete; mesmo assim o Criador deu somente a ela.

Assim também Nosso Senhor se manifesta a cada alma em consonância com aquilo que lhe deu, de maneira que ela ame a Deus daquele jeito. Portanto, cada homem que passe pela Terra tem a missão de adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, vendo um certo aspecto de sua Pessoa divina, sua santidade inefável, insondável e perfeita. Se tivéssemos aqui uma imagem d’Ele, todos estaríamos vendo a mesma imagem, mas focalizando alguma coisa, condicionada à santidade que Deus quer de cada um.

O MENINO JESUS VAI À PROCURA DE TODOS OS HOMENS

Ora, é noite de Natal. Nosso Senhor está numa manjedoura. E numa cidade católica se encontraria em todas as igrejas um presépio, e também em outros locais, em oratórios, em lugares públicos, numa vitrine de uma casa comercial especialmente adornada etc.

E um homem, que vai andando por meio de todas essas representações de Nosso Senhor Menino, é, de repente, tocado por uma delas mais especialmente destinada a ele, a qual se fixa em sua alma; ele para e diz: “Meu Senhor e meu Deus!”

Às vezes, entretanto, não é no momento. O homem para, olha e depois vai para casa. Em determinada hora, digamos, à noite, ao se preparar para dormir, lhe vem à memória aquela figura. Ele reza: “Meu Senhor e meu Deus!”

E isto mais ou menos se dá para cada homem. Numa noite de Natal aparece, de modo inteiramente definido, este aspecto de Nosso Senhor. Isto é mais subtil, mais complexo, é uma realidade de fundo. A realidade de superfície é menos marcada. A pessoa vê em quatro, cinco Natais, de quatro ou cinco anos consecutivos, uma mesma imagem, ou duas, três, ou cinco imagens diferentes. Em certo momento, na memória, essas imagens se sobrepõem e, de repente, a pessoa observa uma que tem tudo aquilo que ela sentiu nas outras; então, diz: “Ah! Meu Senhor e meu Deus! Aí está Jesus Cristo Nosso Senhor, como eu amo especialmente”.

Isto equivale a afirmar que o Menino Jesus, pela graça, visita todas as almas. E Ele faz o papel não mais daquele que recebe a visita, mas de quem vai atrás de todos os homens, de todas as idades, línguas, condições sociais, e os procura nessas noites. E lhes diz alguma coisa que lhes toca o coração de um modo especial.

AO DAR À LUZ, NOSSA SENHORA SE ENCONTRAVA NUM ÊXTASE ALTÍSSIMO

Há uma prova curiosa disso na canção “Stille Nacht, heilige Nacht”. Todos conhecem como esta melodia nasceu. O vigário da igreja de uma cidadezinha do interior da Alemanha e um professor compuseram a letra e a melodia dessa música, que exprimia a emoção deles diante da manjedoura. A Providência tinha preparado na alma deles uma emoção de Natal, que era para o mundo inteiro.

Stille Nacht! Heilige Nacht! Alles schläft, einsam wacht. Stille Nacht: Noite silenciosa. Heilige Nacht: Noite santa. Alles schläft: Tudo dorme. Einsam wacht: Fica sozinho acordado, isolado. Nur das traute hoch heilige Paar. O venerável e altamente santo casal.

Quem é o venerável e altamente santo casal? Quando se aproximou a meia-noite, Nossa Senhora e São José estavam em oração. Uma coisa admirável!

A Santíssima Virgem devia estar num êxtase altíssimo, como talvez místico nenhum na Igreja jamais tenha tido, quando bate nos relógios dos anjos a meia-noite. E, de um modo virginal, sem dor nem sofrimento para Ela, o Menino Jesus vem ao mundo: “Stille Nacht! Heilige Nacht”! De Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do parto, nasce o Menino Jesus!

COMO A SANTÍSSIMA VIRGEM E SÃO JOSÉ VIRAM O DIVINO INFANTE

Como Ele se apresentou para Maria Santíssima? Se para cada homem Jesus tem um aspecto, como era o aspecto d’Ele para sua Santa Mãe? E para São José? São perguntas que se podem pôr. Evidentemente, eu creio não ser temerário afirmar que para Nossa Senhora, à Qual nenhuma outra criatura pode ser comparada, Ele deve ter aparecido, ao mesmo tempo, com todas as majestades, venerabilidades, todos os encantos, doçuras e afabilidades que teve para todos os homens, desde aquele momento até o fim dos tempos. Era a Mãe d’Ele, concebida sem pecado original e que nunca deixara de dar uma correspondência perfeita a cada uma das graças que havia recebido.

É claro que a Santíssima Virgem O viu e O entendeu completamente, como ninguém antes, nem depois; e que Ela O adorou totalmente. A adoração somada de todos os homens até o fim do mundo, a de todos os anjos, não dava a adoração de Nossa Senhora.

Se pudéssemos ver a São José adorando o Menino Jesus naquela noite, talvez ficássemos instantaneamente santos. Ele era o esposo de Nossa Senhora, o que mais se pode dizer? É possível haver honra maior do que ser o esposo, o alter ego, o outro eu mesmo de Nossa Senhora, o pai adotivo do Filho de Deus?

Pode-se imaginar o que nos ocorreria na alma só de ver, por uma fresta das pedras da gruta, São José rezar? Acho que qualquer um de nós podia se converter e tornar-se um grande santo. Acho que só de ouvirmos o respirar de Nossa Senhora, e sentirmos que seu Coração Sapiencial e Imaculado pulsava mais forte porque ali estava o Menino Jesus, nós nos converteríamos. Cada pessoa é chamada a adorar o Menino Jesus de um modo especial

Pois bem, se foi assim para Nossa Senhora, para São José, em proporções menores é para todos os homens. E nos dias que precedem o Natal, que já vêm ungidos com uma alegria natalina, a graça começa a nos trabalhar.

Ouvindo o Stille Nacht, vendo tal ou qual imagem do Menino Jesus, sentimos de um modo um pouco diferente. É Ele que vai atrás do coração de cada um de nós. E, sem percebermos, diz pela voz da graça no fundo de nossa alma: “Meu filho, assim sou Eu para você. Adore-Me, porque desse modo nenhum outro homem Me adorará.”

Percebe-se a beleza que há nisso, e como Nosso Senhor pode ser comparado àquele menino do tambor, neste sentido: o menino foi atrás d’Ele; Jesus vai procurar todos os homens, meninos ou velhos, grandes ou pequenos, sábios ou ignorantes, pecadores — e às vezes pecadores imundos —, e toca seus corações dizendo a cada um: “Meu filho, não queres vir a Mim? Pelo menos desta vez, neste instante, deixe-Me te comover um pouco! Aqui estou Eu à tua procura, no interior de tua alma.”

Esse é o sentido profundo da noite de Natal. Aquele palpitar das almas nessa solenidade é uma manifestação da graça obtida por Ele. E é por essa graça, a qual devemos pedir por intermédio da Virgem Maria, que nossas almas pulsam de um modo especial na noite de Natal.

Eu imagino o Menino Jesus apresentando-Se ao olhar de Nossa Senhora e de São José já com os braços abertos em forma de cruz. Podemos ver nisso o prenúncio não só do santo sacrifício do Calvário, mas das Missas incontáveis que, na noite de Natal, pela Cristandade inteira, e por toda a Terra, se celebra e as pessoas que vêm porque Nosso Senhor as atraiu, falando-lhes na alma de modo especial e que depois voltam para casa com algo que não percebem claramente, mas que é uma especial mensagem do Menino Jesus para elas.

Reúnem-se em torno de uma mesa, e todos estão de acordo, em harmonia entre os vários aspectos do Menino Jesus, que estão presentes na alma de cada um. Forma uma espécie de sinfonia, e esta é a paz da noite de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/12/1984)
Revista Dr. Plinio 177 – Dezembro de 2012

25 de dezembro – A Sabedoria do Menino Jesus na Manjedoura

A Sabedoria do Menino Jesus na Manjedoura

Será que ao dirigir-se a Jesus Menino devemos fazê-lo como a uma criança sem discernimento? Ou como a Alguém dotado de extraordinária Sabedoria? Tal Sabedoria existe na alma de uma criança? O que pedir a Ele no dia do Natal? Com profunda piedade unida à doutrina, Dr. Plinio discorrerá sobre estas e outras questões.

Diante da proximidade da festa supremamente significativa do Santo Natal de Nosso Senhor, parece-me que deveríamos nos perguntar: Como devemos nos preparar para o dia de Natal? E, sobretudo, como prepararmo-nos para o momento culminante deste dia, a Santa Missa? E ainda como nos prepararmos para os dois momentos auges dentro dela, a Consagração, e a Comunhão?

COMO PREPARAR-SE PARA O NATAL

Para esta preparação há uma dificuldade. Creio existir em muitas pessoas a ideia, apresentada pela iconografia comum, de que ao adorar o Menino Jesus, adora-se uma criança com todas as suas características e, portanto, até mesmo com a inteligência e falta de discernimento próprias a todo recém-nascido. Torna-se assim difícil a adoração de um ente em relação ao qual não se tem nenhuma comunicação de pensamento; e que sendo verdadeiro Deus é também homem, e em sua natureza humana não tem a sabedoria, a inteligência e a penetração de espírito do homem adulto. De tal maneira que a fisionomia humana que nós temos representada diante de nós, não nos convida a uma comunicação de alma como diante de uma pessoa que começa a pensar e a refletir. Por isso, a meditação clássica que se faz diante de um presépio consiste em ver o Menino Jesus tão criança, tão pequeno, tão frágil, e estabelecer o contraste entre a imensidade de Deus e aquela pequena criatura na qual Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, com a qual Ele assumiu a união hipostática.

JESUS, APESAR DE MENINO, POSSUÍA TODA A INTELIGÊNCIA E DISCERNIMENTO

Então se faz geralmente uma meditação a respeito da humildade de Deus, ou do desejo extremo de nos salvar que levou Nosso Senhor a Se reduzir àquela condição de frágil criatura posta numa manjedoura. Esta ordem de ideias é muito boa, ao ponto de ter se tornado comum, talvez demasiado comum. É possível, portanto, que se queira para esse Natal uma ordem de ideias mais perfeita, ao menos ao nosso modo de ver.

Deveríamos então nos perguntar se a iconografia católica, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como uma criança sem discernimento, olhando para as coisas sem ver bem o que é que são, sem entender o que está em torno de si, se essas imagens correspondem a algo de verdadeiro e, portanto, se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha essa inteligência própria à primeira infância.

A isso se deve responder o seguinte: Nosso Senhor Jesus Cristo, de algum modo, realmente teve as várias idades pelas quais Ele passou. Portanto, possuiu verdadeira alma infantil, de adolescente, de moço e de homem maduro. Porém, isso não quer dizer que Ele, em sua infância, tivesse a fraqueza e a falta de discernimento próprias a este estado.

SAPIENTÍSSIMO DESDE O VENTRE MATERNO

Ensina a Teologia que desde o momento da Encarnação, ainda mesmo no ventre de Nossa Senhora, Jesus já possuía toda a inteligência e lucidez, sendo, portanto, uma criança sapientíssima, embora a manifestação de sua sabedoria se desse de acordo com o comum de uma criança. Portanto, ainda que inteligentíssimo, Ele era realmente uma criança.

Assim sendo, vê-se que a iconografia católica não erra, porém mostra apenas um aspecto da verdade. Com certeza, para aqueles que tratavam com o Menino Jesus, Ele deveria causar a impressão de uma criança sujeita às condições comuns de criança. Porque o milagre não podia aparecer n’Ele de um modo irrecusável. Mesmo em sua vida pública, Ele praticou numerosos milagres que não possuíam o caráter de evidência; eram milagres mais ou menos como os que se dão em Lourdes; claros o bastante para que uma pessoa de boa-fé possa crer, mas não tão manifestos que excluam a necessidade da Fé. Pois, se o Menino Jesus, posto numa manjedoura, começasse a falar e dissertar, como se fosse um homem dotado de uma sabedoria extraordinária, seria patente tratar-se de um menino inteiramente incomum, e a Fé teria que ceder lugar à certeza. Por isso, Ele possuía as aparências de criança, pois por humildade Ele quis respeitar o tempo necessário e ir gradualmente Se revelando.

JESUS VEIO AO MUNDO CONHECENDO TODO O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO

Quando consideramos Nosso Senhor Jesus Cristo Menino, devemos considerar este mistério: Sendo verdadeira criança, parecendo possuir apenas um discernimento pueril, tem em Si toda a sabedoria da qual a natureza humana é capaz. De maneira que aquela Criança na manjedoura tinha incomparavelmente mais inteligência, conhecimento e santidade do que tiveram todos os entes que existiram antes e depois d’Ele sobre a Terra.

Devemos por isso considerar que ali deitado na manjedoura, Nosso Senhor Jesus Cristo via tudo quanto deveria fazer na Terra. Ele conhecia tudo o que em torno d’Ele se passava. Pela vontade d’Ele, todas as coisas eram de forma tal qual Ele queria. Ao contemplar Nossa Senhora, o Menino Jesus sabia ser Ela como era por vontade sua. Enquanto Maria O adorava, Ele percebia claramente que por sua vontade Ela o fazia e correspondia a essa adoração com uma generosidade, uma bondade perfeita, que inundava Nossa Senhora de gáudio.

Por sua vez, olhando para Ele, Nossa Senhora conhecia o grau de discernimento e santidade que havia n’Ele. Travava-se assim um diálogo mudo, mil vezes mais eloquente do que um diálogo falado, diálogo maravilhoso e insondável, no qual a Virgem Mãe se comunicava com seu Filho que revelava a Ela os mistérios de sua sabedoria e santidade, deixando-A arrebatada de enlevo, e fazendo-A crescer cada vez mais em santidade.

NO PRIMEIRO NATAL, JESUS VIA TODOS OS NATAIS DA HISTÓRIA

Talvez o primeiro diálogo de Nosso Senhor com Nossa Senhora tenha consistido em considerar o seguinte: Pela vontade de Jesus, que acabava de nascer, é que estavam naquele lugar pobre. Pela vontade d’Ele os pastores vieram visitá-Lo. Ele sabia, já ao encarnar-se, que deveria morrer na Cruz, e talvez naquele momento tenha oferecido ao Padre Eterno tudo quanto Ele faria nesta Terra, para o cumprimento de sua missão.

É preciso ressaltar que Ele não pensava apenas em sua vida terrena, mas pensava na missão da Igreja por todos os séculos. Ele tinha a intenção de que seu nascimento fosse o primeiro Natal, e conhecia todos os Natais que viriam depois, até o fim do mundo. Sem dúvida, sabia de todas as magníficas festas de Natal nas esplêndidas catedrais da Idade Média; nas belas e nobres festas, em tantas igrejas do “Ancien Régime”; nas comovedoras e veneráveis igrejas dos séculos passados.

Ele viu também os Natais modernos, carentes de sentido sobrenatural, e celebrados talvez com um estado de espírito oposto ao que se deveria ter. Mas, sem dúvida, viu com imenso agrado os que permaneciam fiéis ao verdadeiro espírito do Natal, mantendo-se verdadeiramente católicos apesar das perseguições, das lutas e das dificuldades.

Quem sabe se o último dia do mundo não será um Natal?

Ele previu os esplêndidos Natais do Reino de Maria, e conheceu também os tristes Natais no tempo em que a humanidade do Reino de Maria começará a decair inexoravelmente, talvez entrando pelo caminho que levará ao fim do mundo. Ele previu até mesmo o último Natal.

Como será este último e grandioso Natal?

Eu o imagino da seguinte maneira: poucos fiéis esparsos pela face da Terra, festejando sozinhos o verdadeiro Natal, talvez sem se conhecerem, e percebendo que nada mais pode durar porque a Igreja Católica está em seus últimos haustos…

Quem sabe se à meia-noite do dia vinte e quatro do último dezembro da História, quando tudo parecer completamente perdido, um raio percorrerá o céu do Oriente ao Ocidente, um terror se apoderará dos povos, os anjos aparecerão, a abóbada celeste se enrolará como um pergaminho, e virá o Filho do Homem, em toda a sua majestade, para julgar vivos e mortos. Talvez enquanto alguns poucos fiéis, ao som do “Stille Nacht”, comemoram o nascimento de Cristo Nosso Senhor, Ele volta à Terra em meio às glórias do Natal e, de repente, começa a surgir a aurora, os mortos começam a ressuscitar, os justos aclamam Nosso Senhor, Nossa Senhora aparece à frente do cortejo das almas eleitas, e começa o julgamento.

PEDIR A GRAÇA DE PERMANECER FIEL AO VERDADEIRO ESPÍRITO DE NATAL

E, se admitirmos essa hipótese, é conveniente deitarmos o olhar para esses últimos irmãos, vítimas da última perseguição, e procurarmos compreender o sentido profundo do Natal para os que são perseguidos, desde o Natal das catacumbas até o Natal do fim dos tempos.

De tudo isso nos devemos lembrar ao aproximarmo-nos do Santíssimo Sacramento, quando O adorarmos após o milagre da Transubstanciação e quando O recebermos na Santa Comunhão. Então, por meio de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, roguemos a Nosso Senhor que nos prepare espiritualmente para as provações que podem sobrevir.

POSTO NA MANJEDOURA SÓ PARA MIM

Peçamos a Nosso Senhor perdão pelas faltas que tenhamos cometido, e supliquemos-Lhe que Se digne misericordiosamente fechar os olhos para nossos pecados, da mesma forma que nascendo fechou os olhos para as infidelidades do povo eleito e do mundo antigo. Roguemos que Ele assim inicie conosco uma nova era de graças, de misericórdia e de bondade, uma era de paz, na qual, inteiramente reconciliados com Ele, possamos ser os filhos que Ele nos convida a ser. Essas são algumas das orações que podemos oferecer a Ele, unidas a gemidos de arrependimento e manifestações de esperança, confiança e certeza de que, se Ele veio à Terra para salvar os homens, veio para nos salvar a nós; e que se Ele esteve na manjedoura para o bem dos homens, lá esteve para o meu bem.

Ainda que não houvesse senão um homem, e esse fosse eu, Ele teria Se encarnado e seria posto na manjedoura por amor a mim. De maneira que é legitimo imaginar que o Menino Deus lá está por causa de mim. Por isso devemos pedir a Ele que esse ato de amor maravilhoso não seja estéril em nossas almas, e que a bondade d’Ele passe por cima de nossos pecados e arrase os obstáculos edificados por nós, e, finalmente, nos converta fazendo-nos pertencer completamente a Ele. É isso que por meio de Nossa Senhora aconselho pedir na noite de Natal.

OFERECER OS PEDIDOS NUMA BANDEJA DE OURO

Tenhamos em conta que bem junto ao presépio estava Nossa Senhora. Diz o Evangelho que os pastores O encontraram com Maria, indicando que só com Nossa Senhora, e junto a Ela, se encontra Nosso Senhor. Consideremos também que no momento em que veio ao mundo o Salvador, Ela conhecia que tudo quanto Ele deveria sofrer, o faria por nós. Ela pediu a Ele todas as graças necessárias para cada um de nós. E ainda agora no Céu continua a pedi-las.

Unamo-nos a esse pedido. Usando a expressão de São Luís Grignion, coloquemos nosso pedido nas mãos de Nossa Senhora, como um camponês que põe uma fruta comum numa bandeja de ouro, para oferecer ao rei. A salva de ouro são as mãos e o Imaculado Coração de Nossa Senhora. Peçamos que Ela recolha nosso pedido e o apresente a seu Divino Filho.

Com a certeza de sermos bem recebidos e atendidos, pois Nossa Senhora nunca recusa coisa alguma do que lhe peçamos, podemos transpor o Natal.

ORAÇÃO PARA O MOMENTO DA TRANSUBSTANCIAÇÃO

No auge do Natal, no momento da Transubstanciação, para mim a oração ideal é a “Salve Regina” ou o “Memorare”, pedindo a Nossa Senhora que me torne bem consciente de que nunca se ouviu dizer que Ela tenha recusado um pedido, e, portanto, naquela hora sacrossanta não recusaria o meu. E então peço a graça de ser inteiramente d’Ela. Apesar dos meus defeitos e ingratidões, que Ela tome conta de mim, e me faça inteiramente d’Ela, para eu ser o herói e o santo que Ela quer que eu seja. Esta é, em especial, a oração que nós devemos fazer na noite de Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1971)

25 de dezembro – A tríplice lição do Natal

A tríplice lição do Natal

Emmanuel:”Deus conosco”. A cada Natal, a graça vem bater no coração dos homens com particular intensidade, convidando-os a meditar sobre este acontecimento grandioso. Algumas considerações de Dr. Plinio muito auxiliam a penetrar nesse espírito natalino.

Segundo o acertado ensinamento de Santo Inácio de Loyola, o conjunto dos homens egoístas que vivem, não para Deus, mas para eles mesmos – triste maioria, sobretudo nas épocas de decadência como a nossa —  pendem para um destes três objetivos: as delícias, as riquezas ou as honras.

Por delícias, Santo Inácio entende os prazeres que os sentidos podem dar. São, antes de tudo, os deleites sensuais; depois, os da degustação, da vista, do olfato, do ouvido, enfim, tudo quanto uma vida de luxo pode oferecer de agradável, de gostoso.

Por riquezas ele entende a simples posse do dinheiro. É a avareza daqueles que procuram o dinheiro não por causa dos prazeres que este possa proporcionar (pois neste caso a moeda seria apenas um meio para satisfazer a primeira propensão), mas pela mania do dinheiro enquanto dinheiro, da riqueza enquanto riqueza. São pessoas que não tiram proveito nenhum de sua própria fortuna. Vivem às vezes de modo obscuro, apagado, banal, quiçá miserável, tendo apenas a alegria de se sentirem continuamente de posse de um grande patrimônio financeiro.

Há, por fim, os prazeres da honra. A estes, procuram não tanto pessoas que aspiram ao dinheiro nem à vida agradável, mas à consideração dos outros. Querem ser objeto de maiores homenagens, de elevadas atenções e reverências. Procuram o prestígio.

Assim, de acordo com a sábia classificação feita por Santo Inácio, o homem egoísta sempre opta por um desses três pólos.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, tal classificação está muito esquemática. Uma pessoa é capaz de ir atrás das três coisas ao mesmo tempo: gosta muito do dinheiro, muito das delícias e muito do prestígio”.

É verdade, respondo eu, mas é próprio necessariamente do espírito humano satisfazer-se mais com uma dessas coisas do que com as outras. De maneira que, depois de ter experimentado a todas, o indivíduo acaba se fixando em uma determinada, e fazendo desta a finalidade de sua vida. Ora, pelo ensinamento inaciano, na festa do Natal quis Nosso Senhor Jesus Cristo dar aos homens uma tríplice lição, provando-lhes que tais prazeres não valem nada diante do único e autêntico fim para o qual devem tender, isto é, amar a Deus sobre todas as coisas neste mundo, e depois adorá-Lo face a face na bem aventurança eterna.

Vinda do próprio Homem-Deus, esta lição é infinitamente sábia e verdadeira, e nenhum de nós tem o direito de não aceitá-la. Sensíveis ou não aos princípios religiosos, temos de ouvi-la e aprendê-la.

NULIDADE DAS RIQUEZAS

Primeiro, quanto às riquezas mundanas. Sobre estas, o que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina no presépio?

Como Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, foi Ele quem criou o Céu e a terra, com tudo o que nesta existe de rico, de maravilhoso, de belo, tudo quanto aqui seja capaz de fundamentar a prosperidade de um homem. Mais. Ele é rico em sua essência, e não apenas criou todas as riquezas existentes, mas tem ainda o poder inesgotável de criar quantas outras queira. E sem o menor esforço, sem o menor empenho, sem a menor aplicação especial. Ele é onipotente e exerce sua onipotência com perfeitíssima facilidade, criando estrelas e universos como criou um grão de areia.

Ora, esse Deus infinitamente rico quis vir à terra como pobre. Quis nascer de um pai carpinteiro, de uma Mãe que executava em casa serviços domésticos; quis vir ao mundo numa manjedoura, lugar o mais modesto e rústico que se possa imaginar. Como aquecimento, quis ter apenas o bafo de alguns animais e as roupinhas que Nossa Senhora Lhe fez. Como asilo, preferiu não uma residência de homens, mas o local onde os bichos iam se abrigar e se alimentar. Foi aí que nasceu o Verbo de Deus!

Quis Ele mostrar, assim, quanto o homem deve ser indiferente às riquezas quando postas em comparação com o serviço do Altíssimo. E como, portanto, deve viver, antes de tudo, não para ser rico, não para ter grandes cabedais, mas para glorificar o Criador, amando-O, louvando-O e servindo-O nesta terra, e depois adorando-O no Céu por toda a eternidade.

Infelizmente, vemos em torno de nós homens que correm debandadamente atrás do dinheiro, que fazem da posse deste a única preocupação de sua vida, que colocam toda sua felicidade na sensação de que possuem grandes finanças, na ilusão de que nunca ficarão pobres e sim cada vez mais ricos. Tais homens são uns perfeitos insensatos. Por-que esses bens, por mais que valham, são uma parcela minúscula dos existentes no universo. E, para Deus, o que são senão um pouquinho de poeira e de lama?

Imaginemos o homem mais rico do mundo, um magnata. Imaginemos ainda que a relação de seus bens ocupem um catálogo do tamanho de uma lista telefônica: imóveis, dinheiro, títulos, créditos, objetos de valor, etc., etc. O que é tudo isto em comparação com Deus Nosso Senhor? Nada, absolutamente nada.

Amar as riquezas mais que a Deus é uma completa inversão de valores, é calcar aos pés a lição que Jesus nos deu no presépio. É não compreender que Nosso Senhor, ali, ensinou-nos que ao homem é permitido desejar, adquirir e conservar riquezas, desde que não faça disto o objetivo supremo de sua vida. A preocupação financeira deve ser necessariamente colateral, sob pena de se agir como um verdadeiro demente, por inverter a ordem dos valores, amando mais o que devia amar menos, e amando menos o que devia amar com mais intensidade.

LOUCURA DE FAZER DAS DELÍCIAS A PRINCIPAL FINALIDADE DA VIDA

As delícias terrenas. Nosso Senhor Jesus Cristo, caso desejasse, teria ordenado aos anjos reunir no presépio as melhores e as mais deliciosas sedas, os mais agradáveis perfumes, teria mandado os Anjos tocarem e cantarem músicas as mais deleitáveis, pois se o fizeram para os pastores, com quanto maior gáudio não o fariam para o Menino Jesus?!O Divino Infante poderia ainda dispor de agasalhos super-eficazes, ser nutrido desde o começo com as melhores comidas. Numa palavra, poderia ter-se enchido de delícias logo no primeiro momento de sua vida terrena.

O que fez Ele? O contrário. Quis nascer deitado na palha, material cujo contato nenhum regalo dá ao corpo; quis estar numa manjedoura cujo odor não devia ser dos mais agradáveis; quis tiritar de frio, escolhendo para surgir no mundo à meia-noite de um mês de inverno. Como música, quis ter apenas o mugido dos animais. Em última análise, quis o oposto de uma situação de delícias. E quis assim mostrar aos homens o quanto é loucura fazer delas a principal finalidade da vida. A lição que Ele veio trazer é, pois, esta: desde que seja para o bem das almas, desde que seja para a glória de Deus, devemos desfazer-nos de todas as delícias, procurando apenas o bem da causa católica e a salvação de nossa alma, embora nos custe muito sacrifício e muita renúncia.

INSENSATEZ DE PROCURAR AS HONRAS COMO META DA VIDA

No que diz respeito às honras, devemos entendê-las como sendo a aspiração do indivíduo de ver-se objeto de reverências por achar-se, a qualquer título, superior aos outros: mais inteligente ou mais jeitoso; mais engraçado ou mais diplomático; mais interessante ou mais simpático; mais qualquer coisa que tenha ou imagine ter, pela qual se julga no direito de uma atenção especial.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo quis nascer despido de tudo aquilo que pode trazer vaidade. Não obstante fosse Ele um príncipe da Casa Real de David, apareceu para o mundo como filho de pais modestos, numa época em que a sua linhagem régia havia perdido seu poder político, seu prestígio social e seu dinheiro. Ele, portanto, não era absolutamente nada na ordem terrena das coisas.

Além disso, quis nascer como um pária, fora da cidade, porque nela ninguém deu acolhida a seus pais. Nasceu na gruta dos pastores, para provar aos homens como são loucos aqueles que fazem do aparecer uma ideia fixa, em vez de procurarem servir a Deus e à Igreja, a insensatez daqueles que procuram ser mais, ser mais, e que fazem desta vaidade a meta de sua vida.

Se fizermos desses valores terrenos a finalidade de nossa existência, estaremos roubando aquilo que devemos unicamente a Deus. Cumpre, portanto, preocupar-nos antes de tudo com a dedicação inteira de nossas almas a Nosso Senhor, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica.

Tenhamos, dia e noite, diante dos olhos esta lição do Natal, e procuremos eliminar de nossos corações, com a energia de quem arranca uma erva daninha, as falsas ideias mundanas que nos levam a adorar o dinheiro, os prazeres e as honras.

Plinio Corrêa de Oliveira

20 de dezembro – Santo Filogonio – Fundador de uma luta santa

São João da Mata – Finalidade nobre e santa

É uma glória especial dar começo a qualquer boa obra. Por isso costumamos homenagear o fundador de uma cidade, de uma dinastia, de uma diocese, o primeiro povoador de um país.

Portanto, a “fortiori”, devemos homenagear também aqueles que levantem uma luta santa. Neste caso, são os fundadores da reação. Eles possuem o mérito e a glória de terem sido os primeiros a combater quando estavam isolados e não sabiam com quem haveriam de contar. Tendo corrido o risco da aventura de levantar o estandarte, tornaram-se os pais espirituais de toda a luta que veio depois.

São Filogônio deve ser extraordinariamente digno de nossa veneração, porque foi dos que suscitaram a luta contra um precursor de Lutero, chamado Ario.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/12/1965)

17 de dezembro – São João da Mata – Finalidade nobre e santa

São João da Mata – Finalidade nobre e santa

São João da Mata foi suscitado especialmente pela Providência para a obra da redenção dos cativos católicos capturados pelos maometanos e resgatados mediante pagamento.

Esses prisioneiros, tratados como escravos, ficavam sujeitos a tentações medonhas, o que era agravado pelo fato de não terem padres para se confessar. Podemos imaginar o tormento de certas almas que, tendo pecado e podendo morrer de um momento para o outro, encontravam-se em risco de irem para o Inferno, por não contarem com a absolvição sacramental.

Para tirar essas almas deste tormento, São João da Mata e seus religiosos expunham-se ao perigo de, eles mesmos, tornarem-se escravos dos mouros.

Eis a finalidade nobre e santa, a forma de heroísmo desenvolvida por São João da Mata.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

16 de dezembro – Santa Adelaide: pecadora por natureza, imperatriz pela graça

Santa Adelaide: pecadora por natureza, imperatriz pela graça

Geralmente tem-se a ideia de que uma santa sempre se conforma com a situação na qual se encontra, por pior que seja, e nunca ousa enfrentar as dificuldades com heroísmo. Bem o contrário disso, Santa Adelaide empregou todos os meios legítimos para libertar-se do jugo em que se achava.

No dia 16 de dezembro celebra-se a memória de Santa Adelaide, Imperatriz, a respeito da qual Omer Engerbert, na “Vida dos Santos”, diz o seguinte:

Esposa do Imperador Oto I

Santa Adelaide foi uma maravilha de graça e de beleza, segundo escreveu Santo Odilon de Cluny, que foi seu diretor espiritual e biógrafo.

Filha de Rodolfo II, Rei da Borgonha, nasceu em 931, casando-se aos 15 anos com Lotário II, Rei da Itália. A filha deste casamento foi, mais tarde, Rainha da França. Adelaide tinha 18 anos quando seu marido morreu, segundo se crê envenenado por seu rival Berengário. Este, em breve, proclamou-se Rei da Itália e ofereceu a mão de seu filho à viúva de sua vítima. Recusando-se Adelaide a fazer-lhe a vontade, Berengário apoderou-se de seus Estados e conservou-a presa no castelo de Garda. Aí ela sofreu os maiores ultrajes, mas ninguém conseguiu demovê-la.

Conseguindo fugir, dirigiu-se ao castelo de Canossa, propriedade da Igreja. Dessa fortaleza inexpugnável enviou um apelo a Oto I, Rei da Germânia, que correu em seu auxílio com um poderoso exército. Cingiu ele a coroa da Itália em Pavia, e foi mais tarde sagrado Imperador em Roma. E casou-se com Adelaide. O filho desse segundo casamento, Oto II, sucedeu seu pai e, a princípio, revoltou-se contra sua mãe. Temendo pela vida, ela refugiou-se na Borgonha. Foi então que conheceu Santo Odilon, e espalhou benefícios pelos mosteiros franceses. Mais tarde, voltando à Alemanha, mandou ao túmulo de São Martinho o mais rico dos mantos usado por seu filho, já então arrependido.

“Quando chegardes ao túmulo do glorioso São Martinho — escreveu ela àquele a quem encarregara dessa missão — dizei: ‘Bispo de Deus, recebei esses humildes presentes de Adelaide, serva dos servos de Deus, pecadora por natureza, imperatriz pela graça. Recebei também esse manto de Oto, seu filho único, e vós, que tivestes a glória de cobrir com vosso próprio manto Nosso Senhor na pessoa de um pobre, orai por ele.”

Logo que pressentiu chegar o seu fim, Adelaide se fez transportar a um mosteiro para morrer e repousar junto ao túmulo de Oto, o Grande, seu segundo marido.

Encarcerada, consegue fugir da prisão

Vemos aqui um outro tipo de iluminura medieval. Não é mais a da santa que vive no convento, portanto, no recolhimento e na paz do claustro, mas a da heroína. A Idade Média é fecunda em heróis e heroínas que passam pelas maiores aventuras, pelos maiores riscos, e não têm nenhum ideal de segurança social, de aposentadoria, mas querem e veem no risco, na luta, na incerteza — quando a serviço de uma causa elevada, em defesa de direitos efetivos e legítimos —, algo que dá à vida o seu sentido.

A existência de Santa Adelaide foi uma sucessão de altos e baixos. Era filha de Rodolfo II, Rei da Borgonha, e casou-se com Lotário II, Rei da Itália; teve uma filha que foi Rainha da França. Quando a santa tinha 18 anos, seu marido morreu, e Berengário, ao que parece, havia mandado envenená-lo.

Este se proclamou Rei da Itália e quis que ela se casasse com um filho dele. Ela deveria, portanto, contrair matrimônio com o filho do assassino do seu próprio esposo; teria uma vida fácil, agradável, e certamente não sofreria o que sofreu. Tendo ela recusado, foi encarcerada e durante muito tempo ficou exposta aos piores ultrajes. Mas, de repente, fugiu.

Como me agrada a fuga dessa santa! Como isso é diferente da ideia que habitualmente se faz de uma bem-aventurada! Segundo essa concepção, a santa presa fica sentada de lado, chorando, pensando em tudo, menos em fugir, e incapaz de fazê-lo; ela tem dificuldade em se mover, e não tem esperteza nenhuma, não sabe iludir os carcereiros, nem ter um gesto hábil para pular um obstáculo qualquer e sair correndo.

Inocência da pomba e astúcia da serpente

Mas essa é uma santa diferente. Infelizmente, o autor não nos conta como foi sua fuga. É uma santa que corresponde à imagem verdadeira dos santos, e não a essa figura caricaturada que eu fiz. O santo tem a virtude da fortaleza e a da prudência. E com fortaleza e prudência a pessoa foge de todos os lugares de onde deve e possa fugir. Santa Adelaide, portanto, precisava fugir do lugar onde estava presa, desde que materialmente fosse possível. Ela foge, e assim liberta-se do tremendo jugo em que se encontrava.

Entretanto, ela soube para onde fugir, porque em vez de ir para um lugar qualquer, dirigiu-se para Canossa, a terrível fortaleza da Idade Média, a qual se tornou ilustre pelo fato de que São Gregório VII ali recebeu Henrique IV, que lhe foi beijar os pés, pedindo-lhe perdão. Canossa era um feudo da Igreja e, por isso, não podia ser invadido por um soberano temporal. Santa Adelaide ali estava, portanto, inteiramente tranquila; ela não só sabia fugir, mas também onde refugiar-se. Era boa política; tinha a inocência da pomba e a astúcia da serpente.

Força de alma, denodo, intrepidez

E nesse lugar ela fez uma coisa que também não se esperava de uma santa: arranjou um marido e bem escolhido. Escreveu para o Rei da Germânia, que era o herdeiro presuntivo do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, rogando-lhe para ir defendê-la. Ele foi e depois a pediu em casamento. Então começa para ela uma nova vida.

Notem quantas mudanças nessa existência, quanta força de alma, quanto denodo, quanta intrepidez essas alterações supunham e quanta verdadeira virtude nessa magnífica santidade!

Ele foi sagrado Imperador em Roma e casou-se com a santa. O filho desse casamento, entretanto, foi um homem mau e começa aí mais outra tragédia; revoltou-se contra sua própria mãe, e por isso ela teve novamente que fugir e dirigiu-se para a Borgonha. Foi nessa região da França que ela conheceu Santo Odilon, e se tornou célebre; com certeza Santa Adelaide possuía bens, pelas liberalidades que fez aos conventos da Borgonha.

Mas seu filho se arrependeu, e creio que foi devido às orações de Santa Adelaide. Porque o fato de ela mandar um manto para São Martinho tem todo o aspecto de um pagamento de uma promessa, como quem dissesse a esse santo: “Se vós converterdes o meu filho, eu vos enviarei o manto dele”.

Tomar a iniciativa da luta

Então ela escreveu uma magnífica mensagem, da qual o fato mais bonito é o título que ela arranjou para si: “Adelaide, pecadora por natureza, imperatriz pela graça”. É um tal contraste de títulos, há uma tal grandeza na simplicidade desse contraste, que mereceria ser o epitáfio dela: “pecadora por natureza”, porque todos os homens por natureza são pecadores; ainda quando santos e não pecam, na sua natureza são pecadores; “imperatriz pela graça”. É uma coisa que ficaria bem num vitral, debaixo da figura nobre, serena e forte dela: “Santa Adelaide, pecadora por natureza, imperatriz pela graça”.

Peçamos a Santa Adelaide que nos dê uma graça que tenha relação com isso: é o espírito de luta, de intrepidez e — não hesito diante da expressão — o espírito de aventura.

São Tomás de Aquino diz que o suprassumo da virtude da fortaleza ocorre quando, sendo necessário, oportuno e criterioso, o homem não espera o inimigo vir a ele, mas toma a iniciativa da luta, cria a situação e investe contra o adversário.

Devemos pedir esse espírito de fortaleza, mas ao mesmo tempo, esse espírito de prudência, essa sagacidade, essa capacidade de discernir, de perceber, de escolher as situações, de dispor dos meios adequados para chegar aos fins que temos em vista.

E então, no nosso epitáfio, poderá ser escrito: “Nós fomos lutadores e amamos inclusive o risco, levado não até a temeridade, mas a um extremo que os tontos diriam ser temeridade. Teremos sido pecadores por natureza; mas, pela graça soldados intrépidos de Nossa Senhora”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/12/1968)