Monte Saint Michel – expressão da alma humana e simbolo de Deus

Se me fosse dado passar uma tarde diante do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados seriam para mim esses momentos. Ali me agradaria estar, ora contemplando e analisando o mosteiro, ora  pensando em temas elevados que teriam com ele uma certa afinidade, sentindo sempre o calor de sua presença como ponto de referência para o voo variegado da cogitação de alguém que  descansa. Por onde enveredariam essas análises e reflexões?

* * *

O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos, uma unidade na variedade, que simboliza de modo muito eloquente determinados valores sobrenaturais, bem como certos movimentos e qualidades da alma humana. Esse simbolismo é mais bem compreendido se considerada a relação entre os diversos elementos que compõem o cenário.

Primeiro, o mar e a elevação rochosa. Para se medir a importância do mar nesse panorama, basta imaginarmos que, depois da praia, não houvesse mais o oceano, mas começasse a se alastrar ali uma megalópole contemporânea. Como tudo mudaria e perderia sua beleza tão singular!

Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se enriquece com a presença do mar e seus diversos movimentos! Ora ele vem meio caprichoso, “boudeur”, fazendo um pouco de fronda, inunda a praia, enche todos os espaços em volta do monte e acaba por se chocar contra os rochedos que ele mesmo talhou, e com os quais construiu uma espécie de muralha natural para conter seu próprio  ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas da areia. Ora são ondas que vêm e vão, lambendo a praia em todas as direções, como se o mar inteiro estivesse se espreguiçando e olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do alto o observa.

E nisso temos a expressão de um estado de alma. Pois uma das formas de admirar o Mont Saint Michel seria a de alguém que, morando em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto se  espreguiça, de sua janela o contempla. A admiração comporta essa atitude de espírito. Considerando o mar, poderíamos ainda ver seus diferentes movimentos se acercando ou não do mosteiro,  admirá-lo a distâncias diversas, como um símbolo dos movimentos — legitimamente vários — da apetência humana.

* * *

Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso que aparece junto ao monte, quando as águas refluem e dele se afastam. A pergunta que nos vem à mente é esta: seria mais bonito que o mar tocasse  continuamente no mosteiro, e nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno? Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a grande praia tem seu papel. Em determinados momentos, ela permite ao  mosteiro conter o mar à distância, e como que dominar em torno de si uma periferia, tendo a seus pés areias  submissas e rasas.

E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos também analogia com outro estado de alma do homem, quando este exerce alguma  função de mando e senhorio. Por sua vez, o rochedo lucra  bastante em ser único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me inegável que sua beleza ficaria diminuída se houvesse quinze morros como ele, encostados uns nos outros, formando uma  espécie de cordilheira que avançaria para o mar.

O fato de ser único quase nos faz esquecer de sua altura. Pois quem está cercado de areia por todos os lados, tem todas as  alturas. Ele, nessa planície, não é um anônimo: é supremo.

Ele é ele, envolto por elementos rasos, dominando-os só por si. Muito mais do que sua altura, vale sua unicidade. A esta característica do Mont Saint Michel correspondem também algumas  disposições da alma humana. De fato, há coisas que ela admira quando são únicas e não vêm acompanhadas de outras igualmente belas. Por exemplo, uma joia constituída apenas de uma fina   corrente  de platina, da qual pende um brilhante  grande e claríssimo, posta sobre um fundo de veludo negro, pode ser mais esplêndida do que uma outra emoldurada por cem pedras preciosas. Às vezes é mais bonito ostentar essa valiosa companhia, outras vezes é apresentando- se como único. São estados do belo, que equivalem a estados do espírito humano: ora cada um de nós lucra  sendo visto no seu contexto, ora considerado na sua unicidade.

E para alçarmos logo o supremo voo dessas comparações, digamos que esse aspecto do Mont Saint Michel é uma pequena imagem do por onde o próprio Deus é único. Essa  é uma rocha firme e  alta, no meio de areias e praias movediças, como Deus é eterno e supremo no meio do movediço das coisas que Ele criou.

* * *

O rochedo e a vegetação. Destruamos esta e veremos como a aparência daquele fica prejudicada. Porque é agradável vislumbrar algum aspecto do mosteiro a perder-se na mata cerrada, a qual  imaginamos fresca, coberta de sombras, e talvez umedecida por duas ou três fontes que, nascidas do alto, por ela  correm num suave e apaziguante murmúrio…

Sem dúvida, é interessante ver o edifício como que se desfazendo em sombras e mistérios. Tanto ou mais bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se ao rochedo que lhe serve de alicerce e  dominando-o; é contemplá-lo na elegância de suas linhas que avançam para o céu, e na solidez de suas pedras que resistem e se afirmam diante dos elementos adversos.

É bela a alma humana quando, com franqueza, proclama sua personalidade, se exprime e se define. É igualmente bela quando, com discrição, conserva alguma coisa consigo, exclusivamente sua.  Ter seus mistérios e suas explicações, ter suas proclamações mas também suas intimidades, constitui um jogo de aspectos muito nobre para o espírito humano. Então, não será algo em nós que  aprecia sua própria penumbra, e se deleita em olhar para o Mont Saint Michel? E não será algo em nós, sedento de proclamar-se, de afirmar-se e de ser uma fortaleza, que se identifica com esse  monte que assim se declara à luz do sol?

Sim, em todo homem se encontram essas várias disposições. Temos,   em nossa alma, facetas que  gostariam de se mostrar inteiras, sem véus; temos zonas delicadas que confiamos a poucos; e  outras  que, embora façam parte de nossa riqueza, nem nós conhecemos e tão-só as pressentimos, pois são vistas apenas por Deus. Resultado, a alma humana encontra na variedade do Mont Saint Michel uma expressão de si mesma, uma semelhança e uma alegria.

* * *

O mosteiro, mais bem um conglomerado de prédios distintos, tem algo de fortaleza, algo de residência e algo de igreja. Ombreando-se por entre as irregularidades do morro, as casas de uma pequena aldeia se eclipsam à sombra do grande e proeminente edifício religioso. No interior deste, um claustro que exprime ordenação e sabedoria extraordinárias, nascidas da piedade medieval,  filha ela mesma da ordem e da sapiência da Igreja Católica. Imaginemos a vida entre essas paredes sagradas: monges estudando em magníficas bibliotecas ou cantando o Ofício na igreja; um que  se acha recolhido em sua cela, desenhando lindas iluminuras num pergaminho, enquanto outro na oficina entalha um bonito  capitel para uma coluna ainda desprovida de ornatos.

Depois, na periferia das construções, há espaços para a luta e a guerra. Confundindo- se com as rochas, erguem-se como que muralhas nas quais podemos figurar monges cruzados resistindo e  expulsando, passo a passo, os invasores que debalde intentam conquistar a fortaleza  inexpugnável.

Como tudo se encaixa bem no Mont Saint Michel! Síntese de oração, de estudo, de recolhimento, de arte e de luta. Unicidade que encontra sua máxima expressão na torre do campanário, forte,  desafiante, inamovível, como se fora um pesa-papéis colocado sobre papéis diferentes, como quem diz: “O vento não os faz esvoaçar nem os tira daqui!” No alto dessa torre, uma flecha. No cimo da  flecha, a estátua do Arcanjo, que parece proclamar: “A síntese, a correlação de todos esses aspectos é tão vária e tão imensa que se perde nas nuvens, abisma-se no céu!”

E então poderíamos dizer que, no seu conjunto, o Mont Saint Michel é um magnífico símbolo do Sapiencial e Imaculado Coração de  Maria, Rainha dos Doutores, Rainha dos Profetas, Rainha dos  Mártires  e dos Guerreiros, Rainha de todos os Santos. Mais. Símbolo d’Aquele que veremos  face a face na bem-aventurança eterna, no seu vulto inteiro, embora não na totalidade de cada uma das  suas perfeições: Deus Nosso Senhor, infinitamente claro e infinitamente misterioso, pelos séculos  dos séculos. Amém!

Anjos proféticos

Há certamente um Anjo da Guarda específico para cada vocação. Assim como houve espíritos angélicos agindo na criação do canto gregoriano, devem existir Anjos que estimulam dotes naturais em quem possui uma vocação profética.

Muitas vezes a linguagem da Escritura, da Igreja, da Liturgia se dirige a Deus pedindo a Ele alguma coisa diretamente. Outras vezes nós rogamos a Deus, mas considerado Nosso Senhor Jesus Cristo, quer dizer, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Às vezes nós pedimos por meio dos Santos, dos Anjos e principalmente de Nossa Senhora.

Cadeia de intermediações até Deus

Esses pedidos são feitos tomando em consideração que Deus age, em um imenso número de casos – se não sempre – por intermediários.

Quando analisamos mais detidamente, vemos que esses intercessores estão colocados, eles mesmos, numa linha de intermediação. De maneira que, por exemplo, nós rezamos para os Anjos da Guarda, mas estes, de fato, atuam sob a direção de outros Anjos mais altos.

A cadeia de intermediações até Deus é tão intensa que não podemos escolher de modo totalmente lógico este ou aquele intercessor, porque o número é grande demais para termos tudo isso em vista. Então nós agimos de acordo com certas apetências internas da alma que eu creio serem, na maior parte dos casos, moções da graça. Assim, por exemplo, dirigimo-nos ao nosso padroeiro, ou a um Santo que praticou especialmente uma virtude que nos é penoso exercer, ou, pelo contrário, um Santo que teve particular facilidade em praticar certa virtude; nós admiramos isso e pedimos a ele, ou recorremos ao nosso Anjo da Guarda, ou ainda a alguma pessoa falecida de nossa família, em cuja virtude confiamos.

É um tal quadro que, apenas por essas moções interiores, a pessoa pode de fato escolher um procedimento próximo daquilo que Deus quer.

Não se trata aqui de não fazer a vontade do Criador. Porque se Ele quer que nós tateemos na penumbra; procedendo assim estaremos fazendo sua divina vontade. Portanto, o problema de quem tateia na penumbra não é saber como tatear, de cada vez, como Deus deseja, mas é, sobretudo, este: “Uma vez que a Providência quer que eu tateie, resigno-me em tatear. Embora eu possa não tatear direito, estarei fazendo o que Deus quer até quando eu erre, porque Ele me pôs na penumbra”.

Por isso, devemos agir com o espírito livre e confiante, segundo a propulsão que tenhamos internamente, pedindo ora uma coisa, ora outra, desde que tudo esteja na direção de fazer a vontade d’Ele, que é condição de todo bem.

Ter a maior liberdade possível dentro da linha dos Mandamentos

Assim, quando um religioso roga algo por meio de seu Superior, ou do Anjo da Guarda, ou de Nossa Senhora, sou propenso a acreditar que se move toda uma engrenagem sobrenatural, se é que se pode usar uma palavra tão vulgar como “engrenagem”, para designar uma realidade tão magnífica como é a interligação de todos os servidores de Deus, até chegar aos pés do trono d’Ele.

Eu compreenderia uma oração assim: “Ó vós que eu não conheço, no Céu, mas por meio de quem Deus quer ser especialmente servido nesta ocasião, eu vos peço que…” Seja Anjo, seja Santo canonizado, seja uma alma santa que está no Paraíso.

Ou então, se Deus quiser a especial intercessão de uma pessoa que eu não conheço, posso pedir ao meu Anjo da Guarda que, por meio do Anjo da Guarda dela, leve-a a rezar por mim. Com toda a abertura, com todo o espírito filial devo caminhar assim.

Sou muito propenso, em matéria de vida espiritual, a que se tenha a maior liberdade possível dentro da linha dos Mandamentos, naturalmente. Quer dizer, naquilo que não contrarie a Deus, muita abertura.

Santa Teresinha do Menino Jesus usava esta expressão: “Dis au juste que tout est bien!” – “Diga ao justo que tudo está bem!” Ou seja, se está seguindo a boa regra, viva sossegado, não se atrapalhe nem se incomode.

Eu seria propenso a achar que Deus habitualmente – e talvez sempre – não age diretamente. E quando rezamos diretamente ao Criador, a nossa oração deve passar pelos caminhos das intermediações para chegar até Ele. Então pedimos a Deus porque sabemos ser o Doador de todos os bens, mas o correto seria nós supormos que todas as graças passam por um número incontável de intermediários, que nem sabemos bem como e quem são.

Cada vocação tem seu Anjo da Guarda, e às vezes é um Serafim

Para termos uma ideia, consideremos o seguinte: cada um de nós, para chegar até Adão, quantos antepassados tem? São incontáveis!

Porém, se não conhecemos a lista dos nossos antepassados até Adão, os nossos ancestrais que estejam no Céu, muito provavelmente, têm conhecimento de todos os seus descendentes. Quantos dos nossos antepassados estarão no Céu? Quantos se encontrarão no Purgatório? Quantos não estarão nem no Céu nem no Purgatório…? Não podemos saber. Entretanto, os que se salvaram não rezam de modo especial por todos os seus descendentes? Eu acho que sim.

Ora, na linha dessa descendência, alguns têm mais realce e outros menos nos planos divinos. Naturalmente, os ancestrais amarão mais aqueles com maior importância nos desígnios de Deus e, portanto, rezarão especialmente por esses.

Não seria uma coisa muito razoável fazer uma oração especial para pedir aos nossos antepassados que rezem por nós? A mim me parece muitíssimo razoável, assim como rezar para que saiam do Purgatório os que lá estiverem, à maneira de um dever anexo à obrigação de honrar pai e mãe.

E o que dizer do recurso aos Anjos?

Todos nós temos nossos Anjos da Guarda. Há certamente um Anjo da Guarda específico para cada vocação. Não me espanta que sejam espíritos da categoria de um Arcanjo e até de um Serafim, conforme as condições especiais de cada vocação. Pois bem, não seria razoável rezarmos ao Serafim que, aos pés de Nossa Senhora, está mais especialmente rogando por nós, e pedir que ele e toda a coorte dos espíritos angélicos dependentes dele rezem continuamente por nós para realizarmos a nossa vocação? A meu ver, nesse abandono em que nos encontramos, se não recorrermos aos espíritos celestes, privamos a nossa luta de elementos de defesa incomparáveis.

O cantochão e o polifônico

Que relação isso tem com o profetismo? No espírito dos que possuem uma missão profética, até que ponto os Anjos inspiram aquilo que eles devem pensar? Qual é o papel do Anjo e qual o do Profeta na execução de uma determinada missão terrena?

Tomem o cantochão. Não houve um “Cristóvão Colombo” do cantochão, que tenha descoberto essa “América” do mundo sonoro… Existiram, sem dúvida, grandes compositores, muitos deles anônimos. Embora provavelmente em sua grande maioria eles não tenham sido canonizados, o surto do cantochão corresponde a um movimento de santidade dentro da Igreja.

Apesar de não se confundir com a santidade, esse movimento constitui uma certa forma de virtude, que pode estar no conjunto das virtudes de um santo e fazer um bem enorme. O bem que o cantochão tem feito, não há palavras para exprimi-lo! Mas, por um desígnio qualquer da Providência, talvez os maiores homens desse estilo de música tenham ficado no anonimato.

Então, alguém dirá: “Tal Santo não sabia cantochão, enquanto tal outro era ‘o rei do cantochão’. Algum dos dois não foi santo?”

Não. São formas de virtudes especiais. Como, por exemplo, um é grande filósofo, outro um excelente artista, etc. São dons naturais que Deus fez iluminar pela graça. Nesses casos, a santidade consistia também em fazer valer aquele dom, natural e sobrenatural, recebido de Deus. Se não fizessem valer isso, não seriam santos. Mas não quer dizer que todos os santos deveriam ter tido esse dom.

Parece que no surto que levou ao canto gregoriano entrou uma ação angélica. Porque há nisso uma forma qualquer de beleza superior à cogitação humana.

Essa ação angélica se fez sentir enquanto Anjos atuando sobre homens provavelmente com talentos afins. E da conjugação do talento afim com a ação do Anjo saiu uma beleza que o talento, só por si, nunca daria. De maneira que ao ouvirmos certas músicas do cantochão – a meu ver, também do polifônico – dizemos: “Não é possível; isto um homem não compôs!” Entrou ação angélica.

Então, assim como podemos imaginar Anjos das melodias celestes e terrenas, não poderíamos conjeturar Anjos que agem estimulando dotes naturais, reflexões em quem tem uma vocação profética? Anjos, eles mesmos, tendo por natureza e por graça muita coisa de profético, e que seriam Anjos proféticos, patronos daqueles que devem exercer uma missão profética? Compraz-me muito essa hipótese.

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 4/10/1986)