Fidelidade perfeita, humilde e despretensiosa

Fundador, doutor e grande escritor, Santo Afonso atingiu os píncaros da sublimidade na inação, na oração e na dor. Não somente na dor física, mas sofrendo pelas aflições, tristezas e desmoronamentos que se operavam na Igreja Católica. Ele media bem o inconveniente terrível dos inimigos internos da Igreja, e não hesitava em chamá-los de Judas. Santo Afonso é um exemplo de fidelidade perfeita e sem jaça, sem esmorecimento, nem conformes, abnegada, humilde, despretensiosa!

 

No primeiro dia de agosto a Igreja comemora a festa de Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo e Doutor da Igreja. Consideremos alguns dados a respeito de sua vida(1).

Uma preciosa existência coroada por uma morte prolongada sobre a cruz

De nobre família, foi grande devoto da Bem-Aventurada Virgem Maria. Doutor por excelência da Moral católica, que fora falseada pelo jansenismo. Fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, viu-se excluído dela pela Santa Sé mal informada.

Os últimos anos de sua vida Santo Afonso Maria passou-os em casa dos redentoristas em Nocera. Desde então, sua vida foi apenas uma morte prolongada sobre a cruz. Estava velho, enfermo, sofrendo tentações violentas. Sua grande devoção era ao Santíssimo Sacramento e também à Virgem Mãe de Deus. Até então tinha pregado todos os sábados ao povo as virtudes de Maria, mas foi proibido de continuar pelo seu médico e seu confessor.

O que mais o preocupava era a glória de Deus e os males da Igreja. Muitas vezes se oferecia em sacrifício por uma e por outra intenção. Tendo sabido que os jesuítas tinham se estabelecido na Rússia e na Prússia, não deixava de dar graças a Deus. “Afirma-se que eles [jesuítas] são cismáticos, dizia, mas não é justo. Sei que o Papa os reconhece como membros da Igreja e os protege. Roguemos a Deus por estes santos religiosos, porque o seu instituto é uma obra favorável ao bem das almas e da Igreja. Cismáticos, cismáticos, o que é isso? O Papa Ganganelli foi instrumento de Deus para os humilhar, e Pio VI é também instrumento para os exaltar. Roguemos a Deus e ele não os deixará de abençoar”.

Ficava profundamente emocionado quando sabia que alguns espíritos se mostravam incrédulos ou dispostos a se tornarem tais. Seu pesar era ainda maior ao saber do triunfo dos jansenistas. “Pobre sangue de Cristo, calcado aos pés e desprezado – repetia ele – e, o que há de pior, desprezado por pessoas que se dizem chamadas a restaurar a pureza da doutrina e o fervor dos primeiros fiéis. Por um beijo, Judas entregou Jesus Cristo, e também por um beijo eles traem Jesus e as almas. É um veneno oculto, dão a morte antes que se perceba.”

Introduzido na glória celeste com uma vida carregada de méritos

Quantos ensinamentos dentro desta ficha! Em primeiro lugar, o estado sacrifical de Santo Afonso de Ligório. Um fim de vida que era aflição e miséria, ele não podia mais fazer outra coisa senão sofrer, e esta foi provavelmente a parte mais preciosa de sua existência. Ele que tinha sido fundador, doutor, grande escritor, sublimava sua vida morrendo pregado na cruz para nos ensinar que a oração e o sofrimento valem incomparavelmente mais do que todas as obras, e quando um homem vive para rezar e sofrer, ele tem uma vida fecundíssima inteiramente justificada; enquanto que alguém, embora faça toda espécie de obras, mas não reza e não sofre é um homem inútil e, como tal, nocivo. É este o ensinamento que daí se desprende.

É claro que Nossa Senhora quis que esse grande Santo continuasse vivo para a sua alma chegar aos píncaros da sublimidade, e que esses píncaros fossem atingidos na inação, na oração e na dor. Não somente dor física, mas a que tanto devemos pedir: a dor pelas aflições, tristezas, pelos desmoronamentos que se operam na Igreja Católica.

Naquele tempo, a Santa Igreja estava sendo preparada para uma convulsão, a Revolução Francesa, e era necessário que o Corpo Místico de Cristo evitasse essa catástrofe ou pelo menos se preparasse convenientemente para ela. E Santo Afonso de Ligório, de seu leito de dor, comentando cada apostasia, sondando e lamentando as devastações perpetradas pelos jansenistas, mais preocupado com as chagas da Igreja do que com as suas próprias feridas, considerava essa real e trágica situação.

Quando sua alma chega à inteira crucifixão, dá-se com ele o que ocorreu com Nosso Senhor Jesus Cristo: o momento do “consummatum est”. Santo Afonso então foi chamado e entrou para a glória celeste com a vida carregada de méritos. Isto é viver, isto é morrer!

Quantos Judas temos em torno de nós?

Ele media bem o inconveniente terrível dos inimigos internos da Igreja, e não hesitava em chamá-los de Judas, considerando que eles combatem a Igreja por dentro, atraiçoando-a como Judas traiu o Divino Mestre; e Santo Afonso gemia por causa dessa traição.

Quantos Judas temos em torno de nós?  Em outros tempos, poder-se-ia afirmar que os dedos da mão bastavam para contar os Judas que eram conhecidos. Entretanto em nossos dias devo dizer outra coisa: os dedos da mão, em determinados setores, talvez fossem demasiados para contarmos quem não é Judas. Esta é a realidade, ao menos por omissão, superficialidade de espírito, falta de generosidade, de dedicação.

Nesta situação, como nós devemos ter uma dor maior pelo mal que padece a Igreja Católica do que teve Santo Afonso Maria de Ligório! Se ele, com muito menos, sofreu tanto, que direito tenho eu de, por exemplo, considerar como o grande acontecimento do dia tal coisinha que se passou comigo, e ferver, arder, aborrecer-me? O que é isso em comparação ao sofrimento da Igreja? Não é nada. Se eu elevasse a minha alma até a consideração das dores da Igreja Católica, eu passaria sobre tudo isso desapegado, desprendido, aceitando tudo o que fizessem contra mim, ainda que os outros não tivessem razão.

Mas tal é a debilidade da natureza humana que muitas vezes isso não é assim, e nós devemos preparar nossas almas para que sejam cada vez mais desse modo, dispostos a toda humilhação, a toda incompreensão, a aceitar o incompreensível se for preciso, para num ato de suprema lucidez conformarmo-nos com tudo e cumprirmos nosso dever de todos os modos. É isto que Nossa Senhora pede de nós.

Embora fracos, sejamos fiéis!

Por outro lado, vemos como Santo Afonso Maria de Ligório se condoía com o Sangue que Nosso Senhor Jesus Cristo derramou inutilmente. Há uma frase no Antigo Testamento, mas que se refere profeticamente ao Divino Redentor: “Quæ utilitas in sanguine meo?” – Qual a utilidade de meu sangue? (Sl 29, 10). Como se Ele dissesse: “Eu derramei todo o meu Sangue, e até o que restava de água e Sangue em meu Coração, mas afinal de contas por utilidade de quem? A quem aproveita, quem deseja isto?” Então Santo Afonso tem esta expressão: “Pobre Sangue de Cristo!” Quando presenciamos as abominações que se veem hoje, somos também chamados a dizer: “Pobre Sangue de Cristo…”

Para nós só há uma consolação: a de termos, pelo menos, a possibilidade de utilizar o Sangue de Cristo e as lágrimas de Maria em nosso favor, pedindo que Eles tenham pena de nós e façam com que nossa generosidade seja uma reparação a tantos ultrajes. De maneira que do alto do Calvário Jesus e Maria nos sorriam e encontrem alguma alegria na nossa fidelidade. E, embora fracos, sejamos fiéis de uma fidelidade perfeita e sem jaça, sem esmorecimento, nem conformes, nem condições, abnegada, humilde, despretensiosa! Eis o que devemos ser, mais do que nunca, nesta hora. É este espírito de fidelidade que nós precisamos pedir a Santo Afonso Maria de Ligório.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/8/1967)
Revista Dr Plinio 269 (Agosto de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

Santo Agostinho – Águia de Hipona

A águia, no momento em que está levantando seu voo, é muito bonita.

Porém, ainda mais belo é o pensamento humano, quando expresso de tal modo que se possa perceber o seu voo. Assim é Santo Agostinho: em seus ímpetos de alma, mostra um voo incomparável.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Joana de Chantal Profundidade e desapego

O que teria levado Santa Joana de Chantal a abandonar seus parentes, rompendo vínculos afetivos, para fundar uma Congregação religiosa de contemplativas? Dir-se-ia que da formação recebida do suave São Francisco de Sales resultariam atitudes bem diversas. A consideração de algumas características do espírito desta grande Santa e de seu formador projeta luz sobre o problema e nos ajuda a compreender os desígnios de Deus.

Santa Joana Francisca Frémiot de Chantal, que viveu de 1572 a 1641, fundou, com São Francisco de Sales, a Ordem da Visitação. Era viúva do Barão de Chantal, com quem tivera seis filhos. Depois do falecimento de seu marido, ela começou a sentir um atrativo para percorrer as vias mais altas da vida espiritual e passou, então, a ser influenciada por São Francisco de Sales(1).

Objeto de uma ”suave” formação

Este Santo, como sabemos, era famoso pela suavidade. Ele escreveu livros de vida espiritual que jamais seria suficiente elogiar, por exemplo, a “Filoteia” e o “Tratado do Amor de Deus”. Entretanto, sobre a suavidade dele muita coisa de errado se diz. Temos em Santa Joana de Chantal um exemplo a respeito do modo pelo qual ele tratava as senhoras a quem queria influenciar.

Certa ocasião, São Francisco de Sales encontrava-se com Madame de Chantal — a futura Santa Joana de Chantal — em um jantar, e ela estava muito bem vestida. Então ele perguntou-lhe: “Madame, a senhora pensaria de novo em casar-se?” E ela, um pouco assustada com a pergunta, respondeu: “Mas, Monsenhor, não!” Disse ele: “Numa casa onde não há artigo para vender, não se põe tabuleta…” Quer dizer, por que a senhora está tão enfeitada, se não quer se casar? Aí percebemos qual era a qualidade dessa doçura. O dito não deixava até de ter uma ironia bem mordiscante e beliscante!

Passou sobre o corpo de seu próprio filho

Sob o bafejo da orientação dele, Joana de Chantal foi se transformando numa grande santa. Em certo momento, ela quis adotar o estado religioso. Deu-se, então, este episódio clássico de sua vida, fruto da direção de São Francisco de Sales:

Chegado o dia de sua partida, Santa Joana, que era viúva, devia deixar os seus familiares para ir para o convento que ela ia fundar. A santa viúva, que morava com seu sogro, ajoelhou-se pedindo-lhe a bênção e que lhe perdoasse se lhe desgostara em alguma coisa, e recomendou-lhe seu filho. O ancião de 86 anos estava inconsolável, abraçou sua nora e desejou-lhe completa felicidade. Os habitantes da região de Monteron, sobretudo os pobres, acreditando que com essa partida tudo perdiam, testemunhavam publicamente a sua dor. Em Dijon, ela fortificou-se com a Santa Comunhão contra a fraqueza que ela previa aproximar-se quando da separação de seu filho.

Enfim, chegando a hora, disse adeus a todos os seus parentes. Depois, ajoelhando-se aos pés de seu pai, pediu-lhe a bênção e que cuidasse do filho que ela deixava. Monsieur Frémiot, o velho presidente do Parlamento de Bourgoin, sentia-se desfalecer. Abraçou chorando a sua filha e disse: “Meu Deus, não me compete mudar os vossos desígnios. Eu vos ofereço esta filha querida, recebei-a e consolai-me”. Depois, deu-lhe a bênção e ajudou-a a se erguer. O jovem Chantal, seu filho de 15 anos, correu para ela e prendeu-se a seu pescoço, esperando comovê-la. Não tendo êxito, deitou-se ante a porta por onde ela deveria sair e lhe disse: “Sou muito fraco, senhora, para vos reter, mas ao menos dirão que passastes sobre o corpo de vosso filho para abandoná-lo”. A santa chorou amargamente passando pelo jovem, mas instantes depois, temendo que pensasse que se arrependia de sua decisão, voltou para os que a acompanhavam e com uma face serena disse: “É preciso que perdoeis a minha fraqueza, pois deixo meu pai e meu filho para sempre, mas encontrei o meu Deus em toda parte”.

Vemos o trágico da cena! Santa Joana de Chantal era viúva, uma pessoa boníssima, cumpridora dos seus deveres de família e capaz de atrair toda a amizade, todo o afeto de uma família boa. Portanto, era muitíssimo estimada por todos os seus. Quando ela era o arrimo — do ponto de vista afetivo e não financeiro — de seu velho sogro, de seu pai, de seu filho, Deus a tocou com a graça da vocação e pediu-lhe que estraçalhasse aqueles vínculos de afeto constituídos em torno dela, para ser fundadora de uma nova família religiosa. E fundadora contemplativa, de maneira tal que não mais a poderiam ver. E ela, cuja bondade tinha criado aqueles vínculos, era chamada a renunciar a eles e, por assim dizer, destruí-los. Era uma superação de toda a vida anterior dela. Santa Joana até então tinha sido ótima, como membro de família. Deus pedia-lhe que oferecesse algo a mais do que a bondade que se tem na família, e era a bondade que se adquire adotando o estado religioso e rompendo com os laços de família, entretanto, tão santos. E então, se determina aqui uma situação trágica: ela vai abandonar seu sogro, seu pai e seu filho.

Uma cena que não se passaria hoje

Atualmente se perdeu o senso de gravidade das coisas. Se imaginássemos a mesma situação realizada hoje, teríamos uma diferença muito grande de ambientes que constituiria no seguinte: tudo se passaria com muito menos solenidade e gravidade. Não podemos supor hoje uma senhora viúva, moça, que deixe a casa paterna para entrar em um convento e que faz todo esse cerimonial antes de ir embora: ajoelha-se diante do ancião de 86 anos, pede-lhe perdão por tudo quanto lhe fez, e lhe roga a bênção; e o ancião, quase como uma figura de tragédia grega, se despede dela com lágrimas e a entrega a Deus. Depois, a despedida de seu velho pai: nova genuflexão, novas lágrimas. E por fim o lance dramático do filho, que se pendurou ao pescoço da mãe, pedindo-lhe para não entrar no convento. Ela recusou-se. Ele, então, deitou-se na soleira da porta e disse: “Já que eu não tive força para vos reter, ao menos se dirá que a senhora passou sobre o corpo de seu filho para ir para o convento”. Quer dizer, “a senhora está me abandonando!” Percebemos o trágico de todos esses lances.

Por que em nossos dias esta cena não se passaria com tanto cerimonial? Porque fomos habituados a não entrar no fundo do significado das coisas, e a nos incomodarmos somente conosco. Resultado, para o velho sogro o problema importante é o jornal que chega de manhã, o leitezinho que ele toma, a televisão, o chinelo, a saúde, os cuidados pessoais de toda ordem. Lê uma notícia sobre transplante de coração para ver se seria possível transplantar um nele, prolongando sua vida por mais 30 anos. Isso é o importante! A nora, que vai ou não para o convento, é uma coisa acessória, porque, se ela faltar, ele contrata uma enfermeira, e a vida continua do mesmo jeito.

Ademais, a ideia de ir para o convento não se reveste daquele aspecto semitrágico de antigamente. O senso da Cruz, da gravidade das coisas, o senso de toda a renúncia que significa alguém tornar-se religioso, o senso de toda a dignidade que a pessoa assume ao abraçar esse estado, daquele conúbio com Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a serenidade que traz, os espíritos perderam a noção disto. O resultado é que os grandes lances não têm mais essa acuidade, esse caráter dramático; são episódios banais.

As pessoas assistem, na televisão ou no cinema, a tantos dramas, romances, tantas despedidas, tantos reencontros, que todo mundo está saturado. Assim, os atos da vida cotidiana que teriam grandeza se esvaziam completamente.

Profundidade de espírito e amor a Deus

Então, qual é a grande lição que devemos tirar daí? Antes de tudo, considerar o espírito profundo de Santa Joana de Chantal que correspondeu à vocação, compreendeu que a família é uma instituição tal que, quando Deus lhe dá tudo, ela se supera e tende a produzir religiosos, missionários, guerreiros, apóstolos que são obrigados a se separar dela. E esta espécie de superação, por onde ela se entrega completamente, é a glória da família.

Também a profundidade de espírito desta Santa — renunciando a tudo para ser religiosa — e do ambiente de Civilização Cristã em que ela vivia, onde tudo se media, se pesava, e que, por causa disso, se revestiam de solenidade e de características próprias todos os atos da vida.

Essa profundidade de espírito prepara a alma para amar a Deus. O Reino dos Céus é dos violentos(2) , está escrito no Evangelho. O Reino dos Céus é dos profundos, pois é a violência dos profundos — tantas vezes chamados de fanáticos pela linguagem da impiedade — que agrada a Deus.

Peçamos a Nossa Senhora que nos obtenha essa profundidade de espírito, e que nosso Movimento procure incutir em seus membros, de todos os modos, essa profundidade, que é a seriedade, a abnegação, e o contrário do egoísmo, de modo a termos almas capazes de encher-se da graça de Deus, nosso Senhor, concedida pelas mãos de Maria.

Suavidade e exigência

Santa Joana de Chantal fundou a Ordem da Visitação cujas freiras são estritamente contemplativas. Encontramos nessa Ordem outro traço do espírito dela e de São Francisco de Sales: o sentido de não ter propriedade particular é levado tão longe nessa Ordem, que as religiosas se consagram a serviços comuns, por exemplo, bordados, vendidos para a manutenção delas. São Francisco de Sales, que fez essa regra com Santa Joana de Chantal, determinou o seguinte: nunca uma freira faça um bordado inteiro; os bordados são rotativos dentro da casa, para ninguém ter apego ao trabalho que fez.

Vemos como, nos últimos pormenores, foi levada longe a noção de propriedade comum para produzir o desapego completo. De tal maneira o direito de propriedade é de acordo com a natureza humana, que quando um indivíduo é chamado a um estado de vida no qual não deve possuir, é necessário um grande zelo para não se apegar à propriedade. Por isso os grandes fundadores de Ordens tomam muito cuidado para evitar qualquer forma de apego, de apropriação.

Dois aspectos dignos de nota são, em primeiro lugar, a importância das Ordens contemplativas. Numa época cheia dessas Ordens e em que havia muitas vocações para elas, São Francisco de Sales funda, com Santa Joana, mais uma Ordem contemplativa. Vemos, assim, o quanto isso é um tesouro que nunca haverá na Igreja em quantidade suficiente. Não há o que baste, desde que a Ordem seja realmente fervorosa.

Outra consideração interessante é a necessidade dessas Ordens contemplativas constituírem famílias de almas na Igreja, cada uma com seu espírito próprio, formando uma espécie de mosaico onde se vê um tom diverso em cada Ordem. Na Visitação, a suavidade, mas, de outro lado, a extrema exigência em tudo aquilo que se refere à verdadeira virtude.

Temos, assim, alguns dados que podem servir para uma meditação sobre a vida de Santa Joana de Chantal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 21/8/1965 e 20/8/1968)

 

1) Não possuímos os dados bibliográficos da ficha lida por Dr. Plinio nesta conferência.
2) Cf. Mt 11, 12.

Nossa Senhora, Rainha da História

Inúmeras vezes, em suas conferências, Dr. Plinio falou a respeito da realeza de Nossa Senhora. Suas elevadas explicitações eram frutos  de uma autêntica piedade mariana.  Imaginando como teria  e desenvolvido a Humanidade no Éden,  caso não houvesse o pecado original, Dr. Plinio narra  o movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora.

 

Com que alegria eu atendo ao pedido que me apresentaram para fazer uma exposição a respeito de Nossa Senhora como Rainha da História!

Para se entender em que sentido Maria Santíssima tem esse título, é preciso compreender o que significa Rainha e História. Esses são temas familiares a nossas almas; tratarei apenas de explicitá-los.

A História tem necessariamente um “unum”

Imaginemos que alguém, ao fazer um histórico de um hotel, o concebesse da seguinte maneira: o que se passou nos quatrocentos ou quinhentos quartos do hotel. Não seria, portanto, a história dele como uma instituição, um estabelecimento que fornece comida, alojamento, com épocas em que os hóspedes são mais numerosos ou menos, a renda é maior ou menor; onde surgem problemas com os empregados, há mudanças de donos porque antigos proprietários morreram ou o venderam.

O histórico seria, portanto, composto de histórias do que se passa naquela população ambulante, os hóspedes que vêm de diversos lugares, passam lá algum tempo, depois voltam ou nunca mais aparecem; são eles animados por desejos, esperanças, realidades diversas, e um hóspede que entra não tem ideia de quem o antecedeu nem de quem o sucederá. Isso não forma a História.

Um historiador que trabalhasse essas informações poderia, quando muito, escrever “histórias em um hotel”. Escolheria esses e aqueles personagens interessantes que passaram pelo hotel, e explicaria em que períodos de suas vidas estiveram lá, quais eram presumivelmente seus pensamentos, suas preocupações, o que faziam, por que ali se hospedaram e, talvez pelo registro das ligações interurbanas do hotel, com quem teriam falado etc. Isto seriam histórias num hotel, mas não a história de um hotel.

Por quê?

A História, como um “unum”, é diferente das histórias fragmentadas e esparsas como as acima imaginadas. Ela é uma narração que tem o mesmo agente, temas conexos, e cuja ação é contínua através dos tempos. Essa é a perfeita História.

Por exemplo, História de uma nação: há um mesmo agente, quer dizer, a nação tomada no seu conjunto, que está agindo. Em geral, os temas têm certa continuidade: relações com os países fronteiriços, problemas internos culturais, sociais, econômicos que vão mudando com o tempo, mas nascem um do outro.

Mas, se não houver uma continuidade de agentes e de temas; mais ainda, se não existir uma continuidade daqueles em relação aos quais a História se desenvolve, ela não forma um todo.

Nossa Senhora é a Rainha de todos os povos

Ora, quando dizemos que Nossa Senhora é Rainha da História, não afirmamos que Ela é a Rainha apenas da História deste ou daquele país, nem sequer de um bloco de países. Por exemplo, Rainha da História dos povos cristãos Ela o é, sem dúvida, a título especial dos povos católicos. Mas a Virgem Santíssima é genericamente Rainha da História de todos os povos. E as relações longínquas entre a Coreia e o Japão, a Coreia e a China, a China e o Japão — relações triangulares complexas, atormentadas, que se desenvolveram entre esses três povos de raça amarela e vizinhos ao longo dos séculos — não tinham a Nossa Senhora como ponto de referência, mas sim como Rainha.

A triste História intertribal da América do Sul, das várias nações de índios cujas tribos se atacavam umas às outras, colaboravam entre si por terem inimigos comuns, se ignoravam e por vezes se perdiam nas vastidões da “jungle”(1) americana; toda essa movimentação dos homens é a História. E Nossa Senhora é a Rainha dessa História, ainda para os povos que A ignoravam. Ela é a Rainha da História inteira.

Digo de propósito “da História inteira”, porque não se refere apenas a tudo o que aconteceu em determinada época, mas desde que o homem foi criado até o momento em que os últimos justos vivos serão chamados a participar do julgamento dos outros — porque serão amados por Deus —, e os malditos escorraçados pela justiça divina. Enfim, enquanto houver homens vivos haverá História, e Nossa Senhora será a Rainha dessa História.

“Post-scriptum” marial da História

Qual é a relação de Nossa Senhora com o centro em torno do qual se move a História?

Compreendendo o “unum” da História, entenderemos melhor como Ela é a Rainha da História. Então, a glorificação de Maria Santíssima como Rainha da História aparecerá claramente aos nossos olhos.

No Reino de Maria haverá uma esplendorosa catedral em honra de Nossa Senhora Rainha da História. Será talvez a catedral de todos os esplendores do Reino de Maria. A vitória sobre o dragão da Revolução para a implantação do Reino d’Ela fecharia uma era na História e abriria outra. Mais ainda: de algum modo terminaria a História e começaria a post-História.

Há uma tese, que nos é cara, de que a História propriamente não se encerraria agora e, portanto, não estaríamos no fim do mundo, embora todas as aparências sejam de fim de mundo. Em razão dos acontecimentos que ocorrem atualmente, podemos dizer que é o fim de um mundo, mas não o fim do mundo.

Porque, pela intercessão de Nossa Senhora e para a realização de uma glória d’Ela, sem a qual a História não pode encerrar‑se — por causa d’Ela e não devido a nós —, a História terá a sua post-História. Como numa carta se pode colocar um “post-scriptum” mais belo do que a própria carta, na História será escrito o “post-scriptum” marial da História: o Reino de Maria. Todas as riquezas, todo o bom gosto e, sobretudo, toda a piedade do mundo devem se mobilizar para comemorar a abertura dessa post-História, que é o fecho de ouro da História do mundo.

Antes mesmo de nascer, Nossa Senhora já reinava na História

Vejamos qual será a continuidade dessa História.

Antes da Torre de Babel, os homens constituíam um só todo, moravam no mesmo lugar, ou em locais tão próximos que tinham contato contínuo entre si. Em suma, o gênero humano não estava disperso pela Terra, todos os povos giravam em torno de alguns acontecimentos centrais e eram o eixo da História.

Nossa Senhora ainda não havia sido criada, mas já era com vistas a Ela e a seu Divino Filho, o Qual haveria de vir, que a História era tecida.

Deus, ao governar a História — e quem pode duvidar que Ele seja o Rei da História? —, tinha em vista a Encarnação do Verbo no claustro puríssimo de Maria Virgem, e, por causa disso, dirigia a História caminhando para esse ponto, esse destino. Nossa Senhora estava, portanto, presente nos planos de Deus e, antes de nascer, já reinava na História, porque tudo era dirigido por Ele de modo tal que desse glória a Ela.

Há alguns reis que o são desde meninos; outros que, estando ainda no claustro materno quando lhes morre o pai, herdam a realeza antes mesmo de terem nascido; mas ninguém é rei antes de ter sido concebido. Nossa Senhora, séculos antes de ser concebida, já era Rainha. Desde sempre Ela estava nos planos do Padre Eterno, no amor do Verbo, nas ansiedades de seu Divino Esposo, o Espírito Santo, e, por causa disso, tudo corria em direção a Maria Santíssima. Isto é ser Rainha!

Depois da dispersão da Torre de Babel — que estava sendo construída por pessoas tomadas de orgulho, pretendendo que ela chegaria até o Céu —, os homens foram para as direções mais variadas. A História nos mostra que uns perderam contato com os outros. Como um planeta que tivesse explodido no céu, dando origem a muitas estrelas pequenas e algumas Vias Lácteas, a Humanidade eclodiu, fazendo surgir corpúsculos, grupos humanos que se ignoraram uns aos outros do modo mais completo.

Entretanto, acima disso pairava um “unum”, o qual fazia com que a História humana se desenrolasse. Qual era esse “unum”, e como Nossa Senhora é Rainha desse “unum”?

Fivela que prende o reino angélico ao reino animal

De fato, o gênero humano tem uma unidade. Nos planos de Deus, os homens constituem intermediários entre os anjos, seres puramente espirituais, e, de outro lado, os animais, seres materiais; e mais abaixo estão as plantas e os minerais. O ser humano é, por assim dizer, a fivela que prende o reino angélico ao reino animal.

Embora não sejamos, nem de longe, elevados como os anjos — os de menor categoria entre eles, quando têm aparecido a simples mortais, mostram-se tão esplendorosos, que quem os vê começa a tremer pensando estar diante do próprio Deus —, entretanto temos este título de glória: somos o liame que une o imensamente grande com o imensamente pequeno, onde, portanto, a harmonia se afirma, triunfa.

Essa é uma explicação pela qual convinha que nesse ponto de junção, ou seja, o gênero humano, o próprio Deus se encarnasse para honrar a Criação inteira. De nenhum modo o Criador poderia honrar tanto a Criação, quanto se encarnando. Ele se põe no centro de sua obra; a corola da flor do universo somos nós, homens. No centro dessa corola está Nosso Senhor Jesus Cristo e junto d’Ele, com o véu de mãe, está Nossa Senhora.

O homem simboliza, melhor do que o anjo, todo o universo

Na mente de Deus, esta categoria da criação tão magnífica, de uma posição tão excelente, tão honrada por Ele, deveria realizar uma glória especial.

O que vem a ser aqui a glória?

É o deleite que Ele tem com a honra que recebe pelo fato de que seres à sua imagem e semelhança Lhe prestam culto e veneração. E a homenagem oferecida pelo homem simboliza melhor a de todo o universo do que a homenagem prestada pelo anjo.

A estrela mais distante e da qual, talvez, não tenhamos conhecimento até o fim do mundo — corpo material com reluzimento e propriedades físicas e químicas no equilíbrio do universo —, entretanto, participa de nós e temos algo com que a honramos, porque ela é matéria, e a matéria está presente em nós. E se as estrelas não tivessem brilho, mas pudessem conhecer e soubessem que há homens, elas começariam a cintilar.

Deus quis que esse gênero humano assim constituído tivesse certa forma de beleza e de excelência física, que não fosse senão o espelho de algo muito mais magnífico, precioso e nobre, que condiciona a beleza física, que é a beleza espiritual: o “lumen” do intelecto, a força da vontade, o cognoscitivo e o vibrátil da sensibilidade, formando em cada homem um exemplar e um padrão especial de beleza.

História da Humanidade se não tivesse havido pecado original

Caso não tivesse havido o pecado original, Deus intencionava nesta linha criar cada ser humano com seu papel nesse universo de beleza: nasceria e, depois de passar algum tempo no Paraíso terrestre, seria chamado ao Céu, sem a morte, e brilharia por toda a eternidade, cintilando diante de Nosso Senhor.

É claro que, neste plano, toda a História desenvolvida no Éden teria como ponto central a Encarnação do Verbo. O amor de Deus por essa espécie de criaturas iria se manifestando cada vez mais, de maneira tal que os homens até então existentes, e a própria natureza, exprimissem um santo, calmo e ardoroso alvoroço: “O que virá agora, já que Ele nos ama tanto?” E, em certo momento, viria o insuspeitado, o inimaginável: o próprio Deus se faria carne e habitaria entre nós. E apareceria o Homem ultra‑ arquetípico, elevado a uma glória incomparavelmente maior do que a simples natureza pode dar, mas Homem, ligando sua natureza humana à natureza divina, formando uma só Pessoa, a segunda da Santíssima Trindade.

Movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora

Como se daria isso?

É claro que o gargalo magnífico, pelo qual se chegaria até esse acontecimento único, seria Nossa Senhora, a Virgem perfeita, da qual Ele nasceria. Ela, a incomparável, a única para cuja construção gradual tudo confluísse, de maneira que os profetas teriam dentro de si uma palpitação, que era um pressentir de Maria que viria. A perfeição de todos os seres humanos de algum modo prenunciaria a d’Ela; poderíamos assim imaginar uma ascensão gradual da Humanidade até Nossa Senhora, a flor que se abriria e o Verbo estaria em seu interior. Rainha da História…

Não estaríamos no alto do morro do qual se desce, mas depois haveria algo mais alto. Porque as criaturas, conhecendo a Encarnação do Verbo e Nossa Senhora, convivendo com Ele e com Ela — por quanto tempo não se sabe —, num convívio pacífico, amoroso, reverente, como gostamos de imaginar ter sido na noite de Natal, no dia de Pentecostes, nas grandes festas de Nosso Senhor Jesus Cristo; haveria aquela paz, alegria, glória, sabedoria, majestade e, ao mesmo tempo, misericórdia e bondade indizíveis; surgiria então — eu emprego um termo moderno e desdourado — uma pista de voo ainda mais alta.

No alto do morro se construiria uma catedral; e muito mais magnificente do que o morro seriam os séculos da História cristã.

Como seria a festa da gloriosa Ascensão do Verbo Encarnado? Ele subiria ao Céu certamente sem Paixão, sem cruz. E, depois, a Assunção de Nossa Senhora? Como seriam as alegrias de todo o gênero humano? Os homens ficariam no Paraíso terrestre e Nosso Senhor viria apenas nas espécies eucarísticas? Ou, com a ausência do pecado, a inocência do gênero humano — podemos imaginar a beleza do gênero humano inocente! — levaria Deus Nosso Senhor a tornar a presença d’Ele frequente entre homens?

Ninguém pode ter ideia, porque viriam alcandores sobrepujados por outros alcandores, no ápice dos quais sempre estaria Nossa Senhora, Rainha de todos os anjos e santos; Rainha de tudo aquilo quanto a graça engendrasse de grande, porque d’Ela nasceu Nosso Senhor Jesus Cristo, o Homem‑Deus.

Portanto, por mais que a História glorificasse Maria Santíssima e Nosso Senhor, Ela pairaria acima de tudo e atrairia a Si a História. Aí está a Rainha da História: o movimento ascensional de toda a História rumo a Ela para chegar a Ele.

Com a Virgem Maria a História se evanesce em santidade, virtude e beleza

Para que isto tivesse tido a sua verdade, não era preciso que, depois de Adão e Eva, nenhum outro homem pecasse. O pecado original propriamente, o pecado do gênero humano, foi cometido em Adão e Eva porque eles eram o gênero humano naquele tempo. Mas seus descendentes já não continham todo o gênero humano. De maneira que os pecados deles não seriam pecados originais, nem se transmitiriam aos seus descendentes.

Caso aqueles que pecassem fossem postos fora do Paraíso, deveriam aguentar a vida nesta Terra como pudessem. E surgiria a sub‑História, como as notas ao pé da página de um livro. O grande eixo central da História seria dos homens que teriam continuado no Paraíso.

Em determinado dia a coleção dos homens estaria completa. E Nossa Senhora representaria às Três Pessoas da Santíssima Trindade: “Vede, o número misterioso, intencionado por Vós, está completo. No Céu, os lugares dos anjos malditos, que apostataram, estão também preenchidos, vosso plano está realizado; a História chegou ao auge de sua glória!”

Como seriam esses homens perfeitíssimos do final da História? Como seria, então, o Reino de Maria? Aquela época em que os homens pudessem dizer a Nossa Senhora: “Vós realizais o que há de mais maravilhoso na História. Vós sois o ponto terminal, a História convosco se evanesce em santidade, virtude e beleza. Vós sois o aroma que se desprende da flor, ou seja, o melhor que a flor deita de si. Vós sois o aroma da História, o perfume de todas as misericórdias e todas as justiças daquele Infinito que nos criou”.

A História terminaria quando o último justo tivesse atingido o píncaro de sua justiça, e Deus dissesse ao gênero humano: “Ó salvos no Céu, ó salvos na Terra, ó amados por toda parte, acabou!”

Que glória e que hino! Todos os homens deixando o Paraíso terrestre para viver no Céu! Mas, não se restringindo às belezas insondáveis da visão beatífica e do Céu empíreo, eles de vez em quando desceriam à Terra e, olhando os diversos lugares, comentariam uns com os outros: “Lembra‑se? Lembra‑se?”

Devido ao pecado original, Deus não desistiu de seu plano, mas o transcendeu

Esse era o plano e essa seria a linha reta da História. Não se realizaram… O homem pecou. Mas, no momento trágico de sua expulsão do Paraíso terrestre, Deus revelou ao homem que a História continuaria, Ele realizaria seu plano e viria a Virgem que esmagaria a serpente. O Criador profetizou ao homem a História, a qual não seria de paz, de beleza e de harmonia, mas de luta, de guerra; o gênero humano cindido entre duas raças, a da Virgem e a da serpente, e a vitória permanente da Virgem sobre a serpente, calcando-a aos pés.

Nessa profecia estava contida a promessa do Salvador que viria. E, portanto, da Encarnação do Verbo e de tudo quanto aconteceu em virtude disso.

Deus não desistiu de seu plano nem da História que os homens desfiguraram pelo seu pecado. Ele os transcendeu em magnificência, fazendo dessa luta uma História de algum modo mais bela do que a História daquela paz.

A nossa grande guerra contra os filhos do demônio, por vários aspectos, é mais bela do que a própria História do Paraíso.

Considerem a hipotética História do Paraíso: que magnificência! Mas seria uma História que não teria mártires, cruzados, nem homens que estraçalhassem o erro pelo vigor de sua lógica.

Sendo verdadeiro o provérbio português “quanto maior a altura, tanto maior é o tombo”, também é verdade que quanto maior é o tombo, tanto mais alto é o soerguimento. E a altura da vitória se medirá pela profundidade do tombo, e por mais outro tanto que se elevará acima.

Esta é a História com a post-História, a História do Reino de Maria que vem se aproximando.

Se Nossa Senhora era a Rainha da História, nos planos cheios de bondade, impregnados de encanto paradisíaco de Deus Nosso Senhor, por essa mesma razão Ela é Rainha da história dos tormentos, das aflições, das lutas, das angústias, das incertezas, das batalhas, das polêmicas, da vitória. Portanto, Ela é verdadeiramente a Rainha da História.

Poder-se-ia perguntar: “E a História triangular de chineses, coreanos e japoneses, que ligação tem com tudo isso?” Aliás, é a História noturna, porque longe do Sol da Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Para ver as coisas simplificadamente, toda essa História correu até o momento em que São Francisco Xavier chegou ao Japão, pregando a Nosso Senhor Jesus Cristo. De um modo ou de outro, tudo havia sido um conjunto de tentames da Providência para aproximar esses povos e prepará‑los para aquela hora de bem‑aventurança.

Uns rejeitaram, outros aceitaram e batalharam. Eles ignoravam qual era o ponto central em torno do qual lutavam, a fim de que se soerguessem tanto quanto possível de dentro da lama do paganismo, para poderem estender as mãos ao apóstolo magnífico que lhes fora mandado pelo zelo de Santo Inácio; e aos missionários que se lhe seguiram, ao longo da História desses povos.

O centro é este: o momento magnífico da vitória do Reino de Maria, em que eles deverão converter‑se. E Nosso Senhor e Nossa Senhora, ainda que eles não soubessem, eram o centro dessa História. Maria Santíssima é ou não é a Rainha dessa História?

Leme e figura de proa

Rainha em que sentido?

Como nós gostamos muito de lógica, de definições bem feitas, buriladas, lapidadas e de cada coisa colocada em seu lugar, estou certo de que todos desejam entender bem qual é aqui o papel da rainha.

Até aqui eu descrevi a rainha como uma espécie de modelo ideal, que exerce uma presidência honorífica, atrai pelo esplendor, inspira pela magnificência de sua ação de presença e de seu exemplo. Mas uma rainha não é apenas isso.

Em ponto muito pequeno, puramente terreno, “in partibus infidelium”, nas regiões dos infiéis, há uma rainha cujo papel, de certa forma, é análogo ao que foi dito: a Rainha da Inglaterra. Se se comparasse um fósforo com o Sol, ainda haveria exagero no tomar em consideração o papel do fósforo, de tal maneira é grande a desproporção entre essa Rainha e a Rainha da História. A Rainha da Inglaterra tem uma ação de presença, ela encanta, deslumbra, anima. Porém ela não reina, porque reinar não é só isso; é governar. Dizer que a rainha não governa, mas reina, equivale a afirmar que é uma figura de proa no navio.

A figura de proa tem seu papel no navio, porque é um estandarte. Mas é uma coisa inteiramente diferente do leme. Para reinar é preciso ser leme e figura de proa.

Maria Santíssima dirige a História…

Em que sentido Nossa Senhora tem nas mãos o leme da História?

Ela conhece as intenções de Deus a respeito da História; tais intenções são o plano de Deus condicionado às orações, aos atos de virtudes e aos pecados dos homens.

Depois da Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo, os homens pertencem a seu Corpo Místico, formando com Ele uma unidade sobrenatural em cuja realidade interna o mais delicado disso se passa. Tomando essa verdade em consideração, é do modo pelo qual reagimos às graças, dizendo sim ou não, e também da maneira pela qual os outros aceitam ou recusam os favores divinos, que Deus realiza um balanço geral. Nesse balanço Ele faz pesar a sua bondade e a sua justiça infinitas.

Mas o próprio Deus, na sua insondável bondade, quer mais do que Ele mesmo faz. Os homens são tão ruins que Deus daria aos homens menos do que Ele quer. Por uma disposição de sua sabedoria, verdadeiramente magnífica, Deus constituiu esta situação: uma criatura inteiramente humana, mas absolutamente perfeita; além disso, Filha do Padre Eterno, Mãe de Deus Filho e Esposa do Divino Espírito Santo, que sempre está em condições de retocar, ao menos em parte, o que homens fazem e, por assim dizer, corrigir — se a palavra “corrigir” não fosse inadequada —, reformar, rever, segundo os planos da misericórdia de Deus, aquilo que sua justiça faria. De maneira que Maria Santíssima está sempre pedindo: “Meu Pai Eterno, meu Filho adorável, meu Esposo perfeitíssimo, recuai um pouco, adoçai um tanto, ajeitai aqui, fazei mais acolá…”

E a rogos de Nossa Senhora, que nunca deixou de ser atendida, Deus como que passa a borracha sobre o plano da História escrito a lápis, e deixa a Santíssima Virgem traçar a ouro o plano verdadeiro, o qual corresponde ao mais fundo da intenção d’Ele.

Deus não A teria criado se não fosse isso. Mas se não A tivesse criado, ficaria difícil ou impossível — hesito diante do termo — fazer a História tão bela como é. Nossa Senhora enfeita essa História. E somente por isso, de um lado, Ela é a Rainha da História, porque Ela imprime, por um profundo consentimento de Deus, à História um rumo, que Deus sem Ela não teria imprimido. Nossa Senhora, portanto, dirige o leme da História.

De outro lado, Maria Santíssima não se limita a isso. Ela pede também, para alguns, o castigo. É natural. Quando surgir o Anticristo, virá o momento em que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, com um sopro de sua boca, o exterminará. Mas esse momento não será apressado por Nossa Senhora? Ela dirá: “Eis que os últimos bons que restam bradam e pedem que venhais! Vinde, por favor, vossa Mãe Vos pede.” E pelo sopro dos lábios de Nosso Senhor estará encerrada a História.

Compreendemos, então, a direção da História, direção “intercessiva”. Deus é quem dirige tudo, mas a intercessão de Nossa Senhora é segundo os planos do Criador. E Ela realiza a vontade de Deus, obtendo a modificação dos planos d’Ele. Deus reina, mas por meio de Maria Santíssima, a Quem Ele quis dar toda a glória que se pudesse imaginar a uma tão excelsa missão de intercessora de todo o gênero humano. Assim, Ela dirige a História.

…e a modela como um artista faz com a argila

Há mais. Nossa Senhora dirige a História geral dos homens, que é composta pelas Histórias de cada nação; e a História de cada nação é composta pelas histórias de cada família; e a história de cada família se compõe das histórias de cada homem. E, como família, entendo pai e mãe, unidos em legítimo matrimônio, e filhos dele decorrentes; e também as famílias espirituais, suscitadas por Maria Santíssima ao longo da História. É a reação delas que condiciona a História.

Nossa Senhora intervém na história de cada um de nós, do último mendigo que possa estar implorando misericórdia, porque é um bêbado e um inútil, até o maior potentado da Terra. Por todas as pessoas a Santíssima Virgem intervém até o último momento de suas vidas, pedindo ao Padre Eterno, a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Divino Espírito Santo que mandem graças para converter esse, melhorar aquele. E são derramadas graças que a pessoa pode recusar totalmente, ou só a meias. Por isso a história, mesmo dos malditos, sofre certa inflexão devido a algum pedido da Virgem Maria.

Até lá vai o poder de Nossa Senhora. E a oração d’Ela, interveniente junto a cada homem e “intercessivamente” junto a Deus, modela a História como um artista modela a argila para fazer uma imagem. Portanto, Maria Santíssima é operante na História.

O fator determinante de todo o curso da História é nossa atitude diante das graças que recebemos através de Nossa Senhora. Todos os nossos pedidos sobem ao Céu por meio d’Ela, e só são gratos a Deus porque são apresentados por Ela.

É conhecido o princípio de que, se o Céu inteiro pedisse sem Maria Santíssima não obteria; Ela, pedindo sozinha, obtém. Tal é a gloriosa, magnificente e régia intercessão de Nossa Senhora.

Considerando tudo isso, compreendemos bem o que significa o poder d’Ela como Rainha da História.

Aspecto “catedralício” da História

Um homem inteligente, que olha para uma catedral, não tem a visão apenas das pedras com as quais ela é construída; sobretudo ele vê o “unum”, que é a catedral.

Se a uma pessoa que foi olhar uma catedral perguntamos:

— O que você viu?

— Um montão de granitos.

Pensamos: “É claro que ele viu uma quantidade enorme de granito, mas se viu só isso ou principalmente isso é um estúpido.”

O modo de relacionar esses granitos entre si forma uma coisa muito superior: a catedral. O granito foi “per accidens”, por acaso, circunstancialmente, um meio para se chegar a ver a catedral.

Assim Nossa Senhora vê a História da Humanidade, da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a História d’Ela e do seu Divino Filho.

Quer dizer, Maria Santíssima vê o plano de Deus e a inter‑relação do agir da Humanidade e do agir de Deus, mas da Humanidade formando um todo; e dentro da Humanidade, outros todos: as nações, as regiões, as famílias. Ou seja, Ela contempla todos os componentes e o grandioso todo do gênero humano que é a fivela entre o anjo e a criatura meramente material; o gênero humano ao qual Nossa Senhora e, em sua natureza humana, o Divino Filho d’Ela pertencem, com honra insondável para o gênero humano.

Então, Maria Santíssima vê o conjunto dos pecados que conduzem a um grande movimento único de pecado: a Revolução. Mas Ela observa também o conjunto das virtudes e um grande movimento único que combate os pecados. E, como um homem não estúpido contempla uma catedral, os olhos virginais de Nossa Senhora veem o aspecto “catedralício” da História, isto é, a Revolução e a Contra‑Revolução.

A Virgem Maria é Rainha da Contra‑Revolução e, em certo sentido, Rainha da Revolução.

Como? A Revolução como tal é uma rebeldia contra Nossa Senhora, e Maria Santíssima não pode ser Rainha dessa rebeldia, a não ser neste sentido: Ela tem o direito, a missão e o poder de punir, e manda como a rainha sobre o escravo revoltado.

Aí está uma exposição sobre Nossa Senhora como Rainha da História.

Que a misericórdia de Maria Santíssima pouse sobre esta reunião, e faça com que produza frutos de salvação para nós e dê glória a Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1982)

 

1) Selva.

 

Alma de fogo, de sofrimento e de luta

São Bernardo de Claraval era um monge da Ordem religiosa cisterciense, uma rama dos beneditinos, reformada por ele e destinada a praticar uma austeridade maior do que a imposta pelas regras monásticas mais duras de seu tempo. Ele tinha a convicção de que, por meio do sofrimento, o homem expia os próprios pecados e os dos outros.

Foi uma alma de fogo, que queria de todos os modos evitar o paganismo o qual ia ressuscitando ignobilmente de dentro de sua própria sepultura, para dar no neopaganismo moderno: era a Revolução nascente.

São Bernardo resolveu ser um homem de sofrimento e de luta, e recolheu-se no claustro, para onde chamou muitas almas generosas.

A Europa encheu-se de conventos cistercienses, cujos monges começaram a praticar uma regra que até hoje é o espanto e a admiração dos homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/9/1989)

Santa Clara de Assis Modelo de consagração a Deus

Na véspera de conduzir seus discípulos a uma histórica demonstração de Fé e catolicidade pelas ruas de São Paulo, Dr. Plinio procura avivar em suas almas as chamas do amor de Deus,  comentando-lhes alguns expressivos episódios da vida de Santa Clara de Assis, modelo heroico de entrega e devoção ao serviço divino.

No dia 12 de agosto, após termos celebrado a festa de Santa Clara de Assis, nosso movimento realizará, sob o patrocínio dessa insigne contemplativa, um grande cortejo pelas ruas de São Paulo. Parece-me de assinalada beleza que algo tão ativo se efetue sob o signo de tão intensa contemplação.

Encontro com São Francisco

Consideremos, portanto, alguns aspectos e episódios mais significativos da vida dessa admirável santa, baseados numa biografia escrita por Dom Guéranger em sua obra “L’Anné Liturgique”. Discorrendo sobre a conversão de Clara, aponta o autor:

Quando São Francisco pregava em Assis, na igreja de São Jorge, uma jovem de nobre família tinha resolvido ir com sua mãe e sua irmã para ouvir uma das suas instruções. Clara ouviu palavras de amor ardente, contemplou a fisionomia transfigurada de São Francisco e desde este momento o escolheu como guia de sua alma. Ela confiou seu desígnio a uma tia e com ela foi a Santa Maria dos Anjos. Quem poderia dizer o que se passou na alma do pai Seráfico, nesta primeira entrevista com aquela que deveria ser sua auxiliar na obra que o Céu lhe confiou?

Com efeito, Santa Clara, juntamente com São Francisco de Assis, fundou o ramo feminino da Ordem franciscana cujas freiras, em homenagem a ela, são chamadas de clarissas.

Inteira consagração ao serviço divino

Prossegue o biógrafo:
São Francisco desvendou a Clara as belezas do Esposo Celeste, a excelência da virgindade. Em seguida, a entreteve com tudo aquilo que tinha de mais caro no coração: o poder e os encantos da pobreza e a necessidade da penitência. Surpresa, enlevada, Clara o ouviu e atendeu ao chamado divino em sua alma. Em pouco tempo a sua deliberação estava fixada: ela quebrará todos os vínculos que a unem à  terra e se consagrará a Deus.

Ou seja, depois de se converter, Santa Clara se consagra inteiramente a Nosso Senhor. Vejamos agora como isso se fez.

Na noite de Domingo de Ramos do ano 1212, ela deixou furtivamente a casa paterna e, em companhia de algumas amigas íntimas, tomou o caminho de Santa Maria dos Anjos. Francisco e alguns frades foram ao encontro delas com tochas nas mãos e as introduziram no santuário de Maria. Foi ali, no meio da noite, que se passou a cena dos desponsórios espirituais de Santa Clara. Francisco lhe perguntou o que ela queria e a santa respondeu: “O Deus do Presépio e do Calvário. Eu não quero outro tesouro nem outra herança”. Enquanto Francisco lhe cortava os cabelos, ela depositou tudo quanto tinha de precioso — suas jóias, seus ornamentos — e recebeu o hábito e o véu grosseiros, a corda, e se consagrou a Deus para todo o sempre.

Cena esplendorosa

Devemos considerar o esplendoroso da cena. Na pequena cidade de Assis forma-se um cortejo de moças que, movidas pela graça do chamado divino, abandonam o império das famílias que lhes queriam longe dessa vida de penitência. Andam pelas ruas tortuosas de Assis, a passos lentos para não despertar a atenção alheia. Saem do perímetro da cidade e, no campo, entre Assis e o pequeno convento de Santa Maria dos Anjos, encontram um outro cortejo, ainda mais celeste que o delas, encabeçado pelo próprio São Francisco. Este era um outro Cristo na Terra, pois, além de um dia ser tocado por chagas nos mesmos lugares em que Jesus foi ferido, aparentava até semelhança fisionômica com Nosso Senhor.

Então, com alguns dos santos que o ajudaram a fundar sua obra, São Francisco sai de encontro a Clara e suas amigas, à luz de tochas que eles portam nas mãos. Os dois séquitos se unem e se dirigem à igreja de Nossa Senhora onde, no silêncio da noite, com as portas provavelmente fechadas, Santa Clara renuncia ao mundo e se consagra a Deus. Como simbólica afirmação dessa entrega, deixa que São Francisco lhe corte os cabelos e dá assim o passo definitivo do qual nascerá a Ordem das Franciscanas, cujos frutos renderam e ainda renderão glória a Deus de tantas formas e tantos modos.

Colateralmente faço notar a necessidade de medirmos o genuíno valor das coisas santas e católicas, como o da cena acima descrita, para fazermos o confronto com a profunda decadência na qual o mundo vai imergindo, tornando-se indiferente a essas maravilhas.

Numa cena repassada de beleza, Santa Clara e suas companheiras se encontram com São Francisco e seus frades nos arredores de Assis, e todos se dirigem ao pequeno convento onde ela se consagraria para sempre ao serviço de Deus

Seguir o exemplo da consagração de Santa Clara

Será, talvez, a grande lição a colhermos desse lindo episódio da vida de Santa Clara. Pode-se dizer que valeria a pena ter nascido apenas para, neste momento, constatarmos a decadência religiosa e moral em que vamos soçobrando, sentirmos a alma dilacerada de dor, pulsando de indignação face a esse declínio, e tomar a deliberação de devotar a vida inteira para impedir que tal decadência continue a prejudicar as almas. Dessa forma estaremos fazendo uma consagração semelhante à de Santa Clara, que deixou tudo para entrar no convento.

Se a crise do homem contemporâneo nos é indiferente, e julgamos mais importante a “vidinha” de todos os dias, o ter um automóvel novo, uma vistosa roupa, um bom colchão de molas, o sucesso na profissão, etc., então é o caso de perguntar onde está nossa Fé, nosso amor a Deus sobre todas as coisas.

Uma afirmação de Fé

Nesse sentido, volto a lembrar do desfile que nosso movimento realizará no centro de São Paulo. Mais do que uma comemoração pelo êxito do abaixo-assinado contra o divórcio, será uma afirmação de nossa Fé, de nossa convicção dos princípios católicos que abraçamos e sustentamos, a afirmação de que desejamos, antes de tu-do, ser autenticamente filhos da Santa Igreja.

Não deverá ser um mero espetáculo, mas um propósito firmado diante de Deus, de Nossa Senhora, dos anjos e santos, de todos os membros do movimento que ali es-tiverem, um propósito de viver fundamentalmente para glorificar a Igreja. E nada mais. Se alguém morrer depois de ter feito esse propósito de modo sério, teria ganho sua existência, pois valeria a pena ter nascido para tal.

Incalculável importância da vida interior

Também a esse propósito convém recordar outro fato conhecido da vida de Santa Clara, quando ela pôs em fuga os sarracenos que sitiavam o seu mosteiro, avançando para eles com o santo cibório na mão. Mais uma cena de extraordinária beleza: esta virgem consagrada a Deus que não recua diante do invasor e o enfrenta, segurando a âmbula repleta de partículas consagradas. Diante dela, ostensório vivo que leva o Santíssimo Sacramento nas mãos, os agressores recuam e fogem.

Outra admirável lição para nós. Normalmente, a Providência quer que procuremos os meios materiais para enfrentar e derrotar os adversários da Igreja. Porém, quando esses meios faltam, não devemos julgar que Deus nos abandonou. Pelo contrário, Ele nos prepara para recebermos suas melhores graças, a fim de compreendermos como esses meios são secundários. Santa Clara não precisou de exércitos nem de armas para repelir o inimigo às suas portas.

Portanto, uma alma que faça um autêntico ato de generosidade interior, renunciando a si mesmo e rumando para sua santificação, poderá realizar maior bem para a causa católica do que, por exemplo, todo o nosso cortejo desse dia 12 de agosto o qual, entretanto, com a ajuda de Maria Santíssima, há de ser um grande feito.

Vemos, assim, o valor incalculável da vida interior.

Peçamos, então, a Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra, que, a rogos de Santa Clara de Assis, cumule nossas almas dessas resoluções, dessas considerações, bem como desse espírito de consagração e de entrega ao serviço divino.

Plinio Corrêa de Oliveira

Balduíno IV, o protótipo do católico – I

Nada foi tão belo quanto o começo das Cruzadas. E nada mais triste do que o ocaso plúmbeo, pardacento, feio no qual elas se afundaram. Mas Deus suscitou no Oriente uma das mais altas figuras  do mundo do tempo das Cruzadas decadentes: um rei leproso. Seu heroísmo e dedicação à Causa Católica fazem dele o protótipo do cavaleiro, do guerreiro, do rei e do leproso; em suma, o  protótipo do católico.

 

Os comentários que farei a seguir só podem ser sentidos em toda a sua importância e expressão se tomarmos em consideração os tempos nos quais os fatos que serão narrados se desenrolaram, ou seja, a Idade Média, no ocaso das Cruzadas.

O brilho da graça das Cruzadas refulge até hoje

As Cruzadas representaram um dos mais belos movimentos de alma que a Igreja teve, ao longo de todos os séculos de sua existência. Como tudo quanto de belo que se passa na Igreja, a esse  movimento de alma correspondia uma grande graça.

Era a graça das Cruzadas, da qual um resto de brilho ainda refulge no olhar poluído e cansado do homem contemporâneo, porque quando se fala das Cruzadas, todo mundo compreende.

Ao ser dito: “Fulano tem o espírito de um Cruzado”, entende-se que comum, mas iluminado de Religião, de Fé, de certezas de toda ordem, com uma disposição e um ânimo extraordinários para  suportar qualquer forma de dor, de sofrimento, de risco.

Um ímpeto de guerra, uma capacidade de impacto sem precedentes, e provavelmente sem consequentes na História. Todos esses conceitos se reúnem e brilham aos olhos com uma luz de Fé,  quando se fala a respeito das Cruzadas.

Nada foi tão belo quanto o começo das Cruzadas. Por causa disso, nada foi mais triste do que o ocaso plúmbeo, pardacento, feio no qual elas se afundaram. A razão desse afundamento nós conhecemos. Os primeiros Cruzados eram varões inspirados por uma grande Fé. Mas começaram a se misturar com eles homens que faziam a guerra santa preocupados em obter o brilho, que na  opinião pública do Ocidente lhes alcançaria uma participação heroica nas Cruzadas. Quer dizer, ter refulgido de heroísmo nas Cruzadas dava, no Ocidente, o que hoje chamariam “um grande  cartaz”. E facilmente  até promovia o indivíduo na escala nobiliárquica, que era a escala de ascensão política, social e econômica naquele tempo. De maneira que havia um interesse humano,  conjugado com o interesse sobrenatural em ser Cruzado.

Com o declínio da influência da Religião, os Cruzados interesseiros foram se tornando mais numerosos do que os autênticos, legítimos, que o eram por verdadeiro espírito de Fé. Com isso, as  Cruzadas foram se tornando guerras de conquista, para que os combatentes obtivessem reinos e feudos cômodos na península balcânica e, sobretudo, na Terra Santa e na África do Norte,  fundando ali um Reino de Chipre, por exemplo, ilustre naquele tempo.

O rei era a síntese e a personificação do país…

Entretanto, os guerreiros indo às Cruzadas por essas razões, as ocasiões de pecado que a guerra traz consigo os solicitavam muito: as rivalidades, as rixas, as injustiças da partilha das vantagens  obtidas e, naturalmente, também o pecado da carne, porque nos saques daquelas cidades conquistadas apresentavam-se mil ocasiões de tentações.

Assim, o ideal da Cruzada foi se rebaixando e poluindo cada vez mais. Nesse ocaso triste das Cruzadas, em que as próprias Ordens de Cavalaria estavam afetadas na sua integridade, na sua   fidelidade ao primitivo espírito, a Providência quis que elas brilhassem enviando-lhes um rei, que não me espantaria nem um pouco se, pelo menos no Reino de Maria, fosse canonizado.

Para compreendermos bem quem era esse rei, suscitado como uma espécie de réplica de Deus à ambição vulgar e ao espírito egoístico da maior parte dos Cruzados da decadência, precisamos  tomar em consideração o que era naquele tempo um rei e depois, no extremo oposto, o que era um leproso.

O rei não era uma figura meramente decorativa, mas sim um ungido de Deus, pois recebia uma investidura por meio de uma cerimônia religiosa: uma coroação ou uma unção – ou ambas as coisas juntas – feita por mãos de eclesiástico, em geral um bispo. Isso fazia do monarca um representante de Deus na Terra, encarregado de fazer prosperar a causa de Deus na ordem civil, como um bispo ou um papa tem a missão de incrementá-la na ordem espiritual.

Ademais, homem dotado de um grande poder e, por isso, ultra reverenciado, cortejado por todo mundo. Ele estava no ápice de toda espécie de hierarquia temporal, era a síntese e a personificação do país. Não se podia ser mais do que o rei.

…e o leproso, a abominação dos homens

No extremo oposto nós temos o leproso, considerado a abominação dos homens. Porque naquele tempo não se tinha o processo de cura ou de detenção da infecção leprosa, que hoje se conhece; e  quando um indivíduo era atingido por essa doença, consideravam- no irremissivelmente perdido.

No entanto, a lepra – ao menos em muitas de suas manifestações, frequentes naquele tempo – é uma doença lenta, que vai matando o indivíduo aos poucos e de um modo horroroso, porque ele  vai apodrecendo paulatinamente. As extremidades incham, entumecem e depois vão caindo de podres. Então, começam a cair os dedos, os artelhos, o nariz; as orelhas incham desmedidamente e  caem também… A pessoa torna-se uma espécie de chaga viva: o rosto todo, uma chaga; os olhos vermelhos, incandescentes, porque a lepra ataca o globo ocular. O leproso fica todo ele devorado  por essa putrefação que, naturalmente, acaba levando-o deste mundo.

Os antigos tinham horror à lepra, evidentemente. Por causa disso, afastavam o leproso do convívio humano. Estava, portanto, no extremo oposto de um rei procurado e admirado por todos. O leproso causava terror, fugia-se dele. Havia até a obrigação de ser internado num leprosário, e passar ali a vida inteira.

O processo de internamento de alguém em um leprosário era muitas vezes o seguinte: uma vez declarada leprosa pela autoridade competente, a pessoa era levada pela família à igreja, ficava  deitada num caixão de defunto e o padre recitava sobre ela orações especiais, declarando-a afastada do convívio social. Era conduzida, então, dentro do caixão aberto, em cortejo da aldeia até o  leprosário próximo. Depunham o caixão às portas do leprosário, e todos iam embora. Ali moravam apenas leprosos e um ou outro padre, freira, ou leigo de alma heroica, que lá viviam para ajudar  aqueles desventurados.

Assim, o leproso imergia naquele inferno vivo pelo medo que a sociedade tinha de que ele se tornasse um foco de contágio.

Vemos, assim, como o leproso e o rei estão em extremos opostos. Ora, aprouve à Providência Divina suscitar no Oriente, como uma das mais altas figuras do mundo das Cruzadas decadentes, um rei leproso.

Um rei leproso, protótipo do guerreiro

A figura de um rei leproso é dramática. Um homem que carrega consigo uma doença da qual todo mundo tem medo, mas que, pelo jogo das circunstâncias, deve ficar no seu cargo, pois ele sabe que assim fará à Igreja um bem que em meio àquela decadência nenhum outro realizaria.

Então ele é, ao mesmo tempo, procurado e tido com horror por todas as pessoas.

Vivendo no esplendor de um palácio, cercado de todo aquele luxo, ele é o podre, o horripilante, o verme posto no meio da flor. É a contradição entre o fausto que o rodeia e a hediondez da  decrepitude física de um homem que vai apodrecendo em vida.

Apesar da lepra, esse homem, por amor à Igreja Católica, deu todas as provas de vigor físico, combatendo como qualquer guerreiro, e na vanguarda, metendo terror nos seus adversários, de tal maneira ele foi grande batalhador! Enfrentando, de outro lado, provações terríveis, porque ele carregava o peso enorme de sustentar uma avalanche que caía.

Era um mundo todo deteriorado, moralmente leproso, contra o qual ele devia reagir. Os íntimos, os próximos dele não valiam dois caracóis. Apesar de tudo, ele precisava manter em pé o  estandarte da Cruz no Oriente Próximo durante toda a vida dele.

Veremos, então, desenrolar-se a tragédia desse rei leproso – Balduíno IV, último monarca de Jerusalém, reino do qual o primeiro rei foi Godofredo de Bouillon –, com manifestações de heroísmo fantásticas e de uma dedicação à Causa Católica extraordinária, que fazem dele o protótipo do cavaleiro, do guerreiro, do rei e do leproso. Numa palavra só: o protótipo do católico, porque ele  carregou com coragem todas as crises, tudo quanto ele devia sofrer no seu pobre corpo chagado e na sua alma.

Uma forma de silêncio que só pesa sobre os esplêndidos

Comentarei algumas notas biográficas tiradas do livro Os Templários, de Georges Bordonove (1). Nada na história das Cruzadas é mais  emocionante que o reino doloroso de Balduíno IV.

A meu ver, ele poderia se chamar o “rei das dores”, porque o reino dele foi um reino doloroso, e ele teve o reinado das dores. Todas as dores confluíram nele. Nada, entre os vários exemplos  famosos, pode atestar melhor o império de um espírito de ferro sobre a carne débil. Este foi um rei sublime, de que os historiadores tratam só de passagem. O que faz perguntar por que, até aqui, nenhum escritor nele se inspirou, exceto talvez o velho poeta alemão Wolfram von Eschenbach. Nem o romance, nem o teatro o invocam e, entretanto, sua breve existência, cheia de  acontecimentos coloridos, forma uma apaixonante e dilacerante tragédia.

Isto mesmo indica ter sido um homem muito bom. Porque o quadro seria por demais tentador para uma peça de teatro, um filme, uma biografia, uma leitura espiritual. Se a memória desse  homem está de tal maneira posta à margem, quando poderia tanto dar pretexto para escritores famosos se tornarem ainda mais célebres, é evidentemente porque ele foi ótimo. Esta forma de  silêncio só pesa sobre os esplêndidos, e já equivale, por si mesma, a uma presunção de canonização.

Brincando de batalha, não sentia as machucaduras

O destino sorria à sua infância. A palavra destino é péssima. A Providência é que sorria à infância dele. Robusto e belo. Ele era dotado de inteligência aguçada, de sua raça angevina.

Quer dizer, a família dele era nobre, procedente de Anjou, na França. Tinha se dado a ele por preceptor Guilherme de Tiro, que se tomou de uma grande preocupação e dedicação, como é  conveniente a um filho de rei.

Portanto, ele foi educado esmeradamente. O pequeno Balduíno tinha muito boa memória, conhecia suficientemente as letras. O que não era tão frequente na nossa querida Idade Média. Retinha muitas histórias, e as contava com prazer.

Um dia… Aí começa a tragédia.

…em que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém, descobriu-se que tinha os membros insensíveis. Os outros meninos gritavam quando se lhes feria. Balduíno, porém, não dizia  uma só palavra.

Esse fato se repetiu em muitas ocasiões. A tal ponto que o Arcediago Guilherme alarmou-se. Primeiro pensou que o menino fazia uma proeza, desprezando queixar-se. Então, dirigindo-lhe a palavra perguntou porque sofria aquelas machucaduras sem se queixar. O pequeno respondeu que as crianças não o feriam, ele não se ressentia em nada dos arranhões. Então o mestre examinou  seu braço e sua mão, e certificou-se que estavam adormecidos.

O primeiro sintoma da lepra é a diminuição da sensibilidade. Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo. Os médicos aos quais foi confiado não podiam sustar a  infecção, nem mesmo retardar a lenta decomposição que afetaria as suas carnes. Toda a sua vida não foi senão uma luta contra o mal irredutível.

Por duas vezes, fez com que Saladino fugisse

E mais ainda, muito mais, foi testemunha dos poderes de um homem sobre si mesmo, e a encarnação assombrosa dos seus mais altos deveres. Balduíno IV foi rei digno de São Luís, um santo, um homem, enfim, e é isto que, sobretudo, importa à nossa admiração sem reticências, a quem nenhuma desgraça chegou a destruir o vigor da alma, as convicções, a altivez, as qualidades de coração,  o senso da responsabilidade, dos quais ele hauria o revigoramento e a coragem.

Balduíno, no meio disso tudo, ainda era um homem não só corajoso, mas digno e altivo. Para se conservar digno e altivo nessas condições é preciso ter fibra de alma! No fim de 1174, Saladino,  senhor de Damasco, veio sitiar Alepo. Os descendentes de Noredim pediram socorro aos francos. Raimundo de Trípoli atacou a praça forte de Homs. Balduíno IV empreendeu uma avançada vitoriosa sobre Damasco.

Essas iniciativas fizeram com que Saladino abandonasse seu desejo inicial. Saladino era um grande guerreiro. Fugiu, por causa da pressão que Balduíno exerceu contra ele. Em 1176, o sultão  voltou à carga, e a mesma manobra sustou seus planos. Quer dizer, mais uma vez, Balduíno fez fugir Saladino.

Balduíno venceu seu exército em Damasco e Andujar, e trouxe um belo lucro da expedição. Nessa ocasião, ele tinha apenas 15 anos.

Nessa idade já era um tão famoso chefe de guerra!

Nos combates, reivindicava para si o lugar de perigo

Apesar de sua doença, cavalgava como um homem de armas. Empunhava eximiamente a lança. Sabe-se que a lepra debilita. Podemos imaginar o que é empunhar uma lança numa batalha? Toda espécie de movimentos, que força isso significa! Com o pretexto de ser leproso, ele podia ficar perfeitamente na retaguarda. Mas reivindicava para si, eximiamente, o lugar de perigo.

Nenhum dos seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de que estava investido, e de sua própria finalidade. Ou seja, ele foi precocíssimo no compreender qual era a  nobreza de um rei.

Percebendo as rivalidades existentes entre os que o cercavam… Entre os católicos, portanto. Era a putrefação do espírito católico naquele tempo. …compreendeu quão necessária era sua presença  à cabeça dos exércitos católicos.

Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos, ajuntava-se a angústia moral. Seu estado o impedia de se casar, de ter um descendente. Ele não era senão um morto vivo, um morto  coroado, cujas pústulas e purulências se disfarçavam sob o ferro e sob a seda. Mas que se mantinha de pé, que se lançava à ação, movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e  devoradora chama de sacrifício!

Era, pois, inexplicável aos olhos de todo mundo como esse homem lutava.

Por sagacidade, deixa Jerusalém desguarnecida

Um novo Cruzado acabava de desembarcar. Chamava-se Filipe de  Alsácia, Conde de Flandres, e parente próximo de Balduíno. O problema de Balduíno era o seu sucessor. Se ele tivesse um filho, poderia educá-lo como quisesse. Era básico que houvesse um  sucessor da categoria dele para manter o estandarte da Cruz na Terra Santa. Mas ele não teria sucessores descendentes dele. Seriam parentes, e que parentes… Assim, ele via não só a lepra  destruir-lhe o corpo, mas sua obra meio fadada a desaparecer, como desapareceu, e ele retardando algo que não conseguiria evitar. Apesar disso, com uma coragem prodigiosa, ele resistiu.

O pequeno rei esperava muito desse apoio. Estava claro que era necessário ferir Saladino no coração de seu poder, isto é, no Egito, se se quisesse abalar a unidade muçulmana. Mas isso precisamente era o que propunha o Basileu, Imperador de Bizâncio.

O Egito, uma vez conquistado em parte, Damasco não poderia deixar de subtrair-se ao poder cambaleante de Saladino. Mas Filipe de Alsácia opinava de outra forma.

Ninguém lhe poderia impedir de guerrear na Síria do Norte. E, o que era mais grave, de levar consigo parte do exército franco. Saladino respondeu invadindo a Síria do Sul. Balduíno reuniu o que lhe restava de tropas, desguarneceu audaciosamente Jerusalém, e partiu para Ascalon, onde Saladino investia. Este, logo que foi informado, subestimou seu adversário. Ele acreditava que a queda  de Ascalon era uma questão de dias, e marchou sobre Jerusalém, com o grosso de seu exército.

Prosterna-se com o rosto na areia diante do Santo Lenho

Balduíno compreendeu suas intenções e  saiu de Ascalon. Fez um longo périplo e caiu, repentinamente, sobre as colunas de Saladino em Montgisard.

O efeito da surpresa não compensou a desproporção dos efetivos em luta. Balduíno sentiu a hesitação dos seus. Desceu então do cavalo, prosternou-se com o rosto na areia diante do madeiro da verdadeira Cruz, que era levado pelo Bispo de Belém. Orou com a voz cheia de lágrimas. E, com o coração convertido, seus soldados juraram então não recuar, e considerar traidor aquele que  voltasse atrás.

Rodeando o Santo Lenho, o esquadrão de trezentos cavaleiros se lançou impetuosamente. O vale entulhava-se com a bagagem do exército de Saladino, diz o “Livro dos Dois Jardins”. Os cavaleiros  francos surgiram ágeis como lobos, latindo como cães. Atacavam em massa, ardentes como chamas. E puseram em fuga o invencível Saladino que, se salvou a própria pele, foi graças à rapidez de  seu cavalo e ao devotamento de sua guarda. Retornou ao Egito, abandonando milhares de prisioneiros. Balduíno logrou, enfim, uma vitória sem precedentes.

Com apenas 300 homens, obtém vitória contra Saladino

Essa vitória merece uma pequena análise. Para isso, relembremos rapidamente os acontecimentos narrados: Saladino foi sitiar a cidade de Ascalon, e Balduíno IV julgou que podia pegá-lo lá.

Então, para salvar Ascalon, desguarneceu Jerusalém. Saladino, percebendo que a capital do reino e a Cidade Santa dos católicos estava desguarnecida, saiu às pressas de Ascalon e foi atacar  Jerusalém, certo de que tinha levado vantagem sobre Balduíno. Este contava apenas com trezentos homens. Ao ver que Jerusalém seria cercada, resolveu interceptar o exército de Saladino no  caminho entre Ascalon e Jerusalém. Quando os guerreiros católicos viram aquela multidão de maometanos, não tiveram coragem. Temos, então, a cena épica: o rei leproso que desce de seu  cavalo, prosterna-se com o rosto na areia, diante do Santo Lenho, e pede a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Maria, enquanto Rei de Jerusalém, que não permita que a Cidade Santa pereça.

Vem uma dessas graças sobrenaturais que não se podem explicar senão por um verdadeiro sopro do Espírito Santo, uma verdadeira Pentecostes pequena, por onde todos mudam completamente.

Ele se levanta, e trezentos soldados apenas, chefiados pelo rei leproso – com que dores, com que sacrifícios, mas com que vigor de alma, com que zelo! –, investem sobre os maometanos. A  investida é tremenda. Inclusive usaram o recurso de guerra psicológica: ladravam para meter medo. Saladino não pôde resistir, teve que fugir a galope para o Egito. E uma das mais famosas  batalhas da Terra Santa foi assim ganha pelo rei leproso.

O Varão de todas as dores teve uma consolação pensando no “rei das dores”

Vejam como nós devemos meditar a respeito dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Divino Redentor, pregado na Cruz, conhecia todo o futuro; e no meio das tristezas sem conta que Ele  tinha a propósito do porvir, sabia que destino teria cada um dos fragmentos do Santo Lenho, daquela Cruz que Ele estava tornando sagrada pelo seu sacrifício, pois ali estava derramando o seu Sangue.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi comparado pelo Profeta Isaías a um leproso tão chagado que, do alto da cabeça até a planta dos pés, não havia n’Ele nada que estivesse sadio. Do alto da Cruz, o  Divino Leproso previu que um dos fragmentos do Santo Lenho seria adorado por um filho leproso, em certa ocasião, no deserto.

O Redentor conheceu e ouviu o brado de entusiasmo dos guerreiros francos; contemplou a adoração angélica daquele homem que estava com o rosto em terra, bradando o seu “Quis ut Deus!” para  altar por cima dos maometanos. E o Divino Salvador Se consolou. O Homem de todas as dores teve uma consolação no alto da Cruz, pensando naquele “rei das dores”. Balduíno arrancou algo à maneira de sorriso dos pobres lábios “leprosos” de Nosso Senhor Jesus Cristo expirante.

Devemos desejar ter a alma como a de Balduíno IV

Foi só isso? Não. Nosso Senhor Jesus Cristo  também sabia que no dia 21 do mês de outubro de 1972 essa epopeia seria lembrada. E que os filhos recrutados, pela intercessão de Maria, para defenderem a causa d’Ele no século XX, haveriam  de se embevecer, sabendo que, a propósito do Rei Balduíno IV, Nosso Senhor também Se lembraria deles. E o consentimento de alma que damos à epopeia de Balduíno também consolou nosso  Divino Redentor no alto da Cruz.

De 1174 para 1972, que enorme espaço de tempo! Pois bem, passaram- se os séculos, essa história dormiu na poeira de quantos livros, na indiferença de tantos homens, mas ela estava reservada,  como uma joia, para uma meditação que nos fizesse desejar ter a alma como de um Balduíno, ainda que fracos de corpo, fortes de alma dessa maneira, e com essa confiança invencível que  Balduíno possuía. Só com trezentos combatentes, com um corpo chagado e leproso, ele teve, entretanto, a graça de receber um sopro do Espírito Santo para si e para os seus, e alcançar essa vitória extraordinária. Um dos mais belos feitos da Civilização Cristã!

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/10/1972)

1) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977. c. XII, p. 108-111.

Rainha da Contra-Revolução

Nossa Senhora enquanto Rainha dos Anjos é a Rainha da Contra-Revolução. Ela dirige a Contra-Revolução dos Anjos que atuam sobre nós e os acontecimentos da Terra, de maneira a se passar tudo como Ela quiser.

Maria Santíssima tem todos os matizes, todas as glórias, todas as cores, todas as belezas da Contra-Revolução. É a Imaculada Conceição esmagando a cabeça da serpente, a Rainha dos Anjos que comanda o exército angélico, como o exército dos Santos – “Regina Sanctorum Omnium”, Rainha de todos os Santos. É a Rainha dos contrarrevolucionários, nossa Mãe, que nos guia e nos ama especialmente por esta razão. E Nossa Senhora é o arquétipo da virtude dos anjos que, tendo decaído, terminaram por ser lançados no Inferno, e que devemos substituir no Céu. Assim, há um nexo especial entre nós e Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1988)

São Raimundo Nonato – "Os exemplos arrastam…"

São Raimundo Nonato, religioso mercedário, ofereceu-se para substituir alguns cristãos prisioneiros na cidade de Túnis.

Tendo sido aceita a proposta, iniciou-se para ele uma série de horrendos tormentos: seus lábios foram cruelmente perfurados e transpassados por um cadeado de ferro, para que assim não pudesse falar de Jesus Cristo aos carcereiros.

Após oito meses de atrozes sofrimentos, alguns mercedários de Espanha acudiram com o valor necessário para resgatá-lo.

Com fortaleza de alma inabalável, de volta a Europa, São Raimundo foi por toda parte — com os lábios mal cicatrizados e com dores horríveis — pregando a Cruzada.

A eficácia de sua pregação era incomparável, pois — ante este homem que em meio a tantos sofrimentos permaneceu inquebrantável e ainda mais cheio de ânimo e coragem — não havia quem não se sentisse arrastado a segui-lo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1967)

São Fiacre – O perfume da Idade Média

São Fiacre viveu no século VII e é o patrono dos jardineiros. Contemplando sua vida, nota-se a maravilha de uma graça que se evola e perfuma toda a História. Isso descansa nossas almas e nos  coloca diante da perspectiva de que o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

 

No dia 30 de agosto comemora-se a festa de São Fiacre, anacoreta. A respeito dele vejamos uma linda ficha retirada do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Filho de um rei da Escócia

São Fiacre nasceu no começo do século VII, de uma ilustre família irlandesa. Os escoceses afirmam que ele era filho de um de seus reis, e que foi educado com os seus irmãos pelo Bispo de Connan. Fiacre aproveitou bem essa educação, pois abandonou, jovem ainda, seus pais e sua família, para servir a Deus em terra estrangeira e na solidão.

Indo para a França, procurou o Bispo de Meaux para pedir que lhe cedesse algum lugar isolado em sua diocese. O Bispo de Meaux, que era também um Santo, encheu-se de alegria e disse a Fiacre:  Tenho, não longe daqui, uma floresta de meu patrimônio, que os habitantes chamam Breuil, e acredito ser própria à vida solitária.”

Os dois Santos foram visitar o lugar e o bispo deu ao emigrado irlandês o que lhe seria necessário. São Fiacre, com a bênção do prelado, limpou o bosque, ergueu uma igreja em honra da  Santíssima Virgem, com uma casa ao lado onde habitava, e recebeu  os hóspedes que ele alimentava com o produto de seu jardim.

Mais tarde construiu uma espécie de hospital, onde ele mesmo servia os pobres e, muitas vezes, os curava pela virtude de suas orações. Mas não permitia nunca que as mulheres penetrassem em  sua ermida. O artigo que impede as mulheres de entrarem em mosteiros de homens é uma regra inviolável  entre os monges irlandeses.

São Fiacre não se desfez dessa regra enquanto viveu, e ainda hoje vê-se, por respeito à sua memória, que as mulheres não entram no lugar onde ele vivia em Breuil, nem na capela, onde foi enterrado.

Ana de Áustria, Rainha da França, dirigindo-se para esse lugar em peregrinação, contentou-se em rezar à porta do seu oratório. Os escoceses contam que, durante esse tempo, tendo vagado o trono da Escócia, os deputados desse país vieram implorar a São Fiacre que subisse ao poder, mas ele recusou, humilde, mas firmemente. O santo anacoreta morreu a 30 de agosto de 670, e foi  enterrado em seu oratório.

Milagres sem conta tornaram seu nome célebre na França, onde geralmente os jardineiros o honram como seu patrono. Com efeito, rezando em seu oratório e trabalhando no seu jardim, São  Fiacre mereceu um trono no Céu. Um jardim, também como um oratório, pode tornar-se um lugar de meditação e de prece.

Modelo de fidelidade ao primeiro propósito

Não sabemos o que mais especialmente assinalar nessa narração: a beleza das várias peripécias que a vida desse Santo teve, ou o conjunto dos fatos que se ligam para deixar um perfume de  legenda em torno dele.

Do ponto de vista da pulcritude das peripécias, poucas coisas são mais belas do que imaginarmos um Santo, filho de um rei, que vai para um lugar distante, foge das pompas da realeza, põe-se  numa floresta, encontra-se com outro Santo, e os dois se dirigem juntos a um lugar na floresta onde acham um ponto adequado para viver; e esse príncipe passa lá a vida inteira, renunciando às  honras da realeza.

Mas, depois de praticar por longo tempo a vida eremítica, ele recebe uma oportunidade de se arrepender do que fizera, uma ocasião para voltar ao trono do qual talvez tivesse nostalgia. Ele recusa  essa segunda possibilidade, e morre como simples jardineiro e humílimo guardião de hospital, na floresta de Breuil, na França, na Diocese de Meaux.

Acho que talvez a segunda recusa seja mais nobre e bela do que a primeira. Porque uma coisa é um homem deixar algo dele. Muitas vezes, pelo costume que ele tem daquilo que vai abandonar, o  indivíduo não sente a falta que lhe fará; depois, ele ainda não experimentou a amargura daquilo para onde ele vai, não imagina bem a coisa como ela é. Pode-se conjeturar que para um príncipe  habituado a um palácio real, e um pouco farto das pompas régias, seja muito sedutor e atraente a ideia de, em certo estado de espírito, ser um solitário na floresta.

Mas depois que o príncipe deixou o principado e foi morar na floresta, ele viu quanto dói não ser príncipe, e a floresta já perdeu a sua poesia; ele passa a encetar uma luta contra bichinhos, contra  o calor, contra mil coisas prosaicas da vida de todos os dias, e tem a oportunidade de aquilatar bem o sacrifício que fez. Então, na segunda ocasião recusar pode ser muito mais nobre do que na  primeira.

Lembro-me de um caso contado por um ímpio inglês do século XIX, que em certa ocasião fora visitar uma Cartuxa na Espanha. Olhando para o lugar com um belo panorama, aqueles frades  procedendo muito bem, ele teve uma exclamação: “Que lindo local!” E o cartuxo – naturalmente é uma piada ímpia –, rompendo  a regra de silêncio, disse para ele: “Lindo para ver, horrível para ficar.”

E caiu no silêncio de novo, para terminar seus dias na Cartuxa. O dito era ímpio, mas exprimia algo de verdadeiro. As situações mais belas ao entrar, depois são, às vezes, duras de ficar. E vemos  esse homem que permanece a vida inteira fiel ao primeiro propósito de sua juventude. Aqui está uma beleza de fidelidade, de continuidade que devemos apreciar.

É próprio da Igreja civilizar e até dulcificar a natureza

De outro lado, notamos também que quadro extraordinário: o  silêncio da floresta de Breuil, na Diocese de Meaux, naquele isolamento – de uma natureza que era mais vigorosa do que a natureza  europeia de hoje –, entra dia, sai dia, entra noite, sai noite, ninguém passa, e apenas aquele Santo reza, isolado! E como é próprio da Igreja civilizar e até cultivar, plantar e dulcificar a natureza,  São Fiacre vai, aos poucos, empurrando a erva daninha e a natureza selvagem de perto de si, e assim vai nascendo em torno de sua cabaninha um jardinzinho. Podemos imaginar o Santo que acaricia a florzinha, planta mais um pouco e dá glória a Deus franciscanamente, pela admiração à flor que vem nascendo.

Depois, o viajante que é um perseguido e passa por ali, o Santo o consola, dá-lhe um bom conselho, e o forasteiro conta posteriormente na cidade que existe naquela floresta um eremita…Vem,  então, um doente que o Santo cura. Aos poucos, aquilo se transforma numa ermidazinha e num hospitalzinho, e aquela obra toda vai se ampliando e, mais do que isso, como um perfume de odor agradável a Deus, a reputação desse Santo se estende por toda a zona.

Vai além da floresta de Meaux, ganha as aldeias, chega até às capitais, e os príncipes e as princesas organizam excursões para beijar o pé do Santo, que os recebe com humildade, respeitosamente,  deixa-os fazer, cura-os, consola-os, etc. Então se diz que um novo Santo surgiu na França, é o grande São Fiacre. Assim, há um aroma de Jesus Cristo que se espalha por toda uma região.

Fiacre, um nome que repercute até os dias de hoje

Para termos ideia da sua personalidade basta notar isto: a permanência da proibição imposta por ele, não permitindo que as mulheres entrassem lá. Pois bem, as próprias mulheres amaram essa  proibição. E mesmo quando uma rainha esteve em visita ao local, ela que, como soberana, podia violar a clausura de acordo com o Direito Canônico, não a transgrediu porque São Fiacre não tinha  querido. Ela ajoelhou junto à porta e, com toda a majestade de Infanta da Espanha, de Arquiduquesa d’Áustria, de Rainha da França – não se podia ser mais do que isso! – osculou as grades que  outrora São Fiacre tinha feito para que ela não entrasse. Isso tudo indica uma espécie de veneração que se estende de geração em geração, e torna São Fiacre célebre na França.

Como vimos, São Fiacre é, até em nossos dias, o patrono dos jardineiros na França, e concorre com um outro Bem-aventurado Fiacre, que dirigia carros de rua em Paris no século XVI, e do qual  veio o nome de fiacre para os carros de aluguel, que durante algum tempo havia na Europa. Recebiam o nome de fiacre por causa do segundo São Fiacre. E assim o nome Fiacre vem retumbando até os dias de hoje.

Essa é a beleza da vida dos Santos, a maravilha dessa graça que se evola e perfuma toda a História, e descansa nossas almas. Depois de passarmos o dia com aborrecimentos, às vezes também com  decepções, considerar a festa de um São Fiacre é algo que nos dá repouso, distensão e nos faz compreender um pouco daquele perfume que, outrora, teve a Idade Média. Régine Pernoud escreveu   um livro intitulado A Luz da Idade Média. Nós poderíamos redigir um com o título “O perfume da Idade Média”, com todos esses imponderáveis que a Idade Média trazia consigo.

Em meio às trevas dos dias de hoje, podemos pensar no que será o Reino de Maria, após os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. Quem sabe se ouviremos também falar da glória de  algum Santo que, num lugar inteiramente ermo, deserto, onde só há árvores – e sobre o qual algum erudito de então dirá ter sido a região central de uma grande megalópole contemporânea –, glorificará a Deus, num isolamento espantoso.

Então, diremos a um de nossos irmãos de vocação: “Lembra-se do tempo em que se comentavam as peculiaridades daquele centro urbano horroroso? Agora não resta nada, mas existe a glória de  tal Santo, de cuja vida se contam tais e tais episódios”. E nossos olhos se fecharão em paz, com a ideia de que o perfume do Céu voltou para a Terra, e o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

Esta é a perspectiva que encontramos diante de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/8/1968)

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XV, p. 339-344.