26 de outubro – Santa do glorioso castigo

Santa do glorioso castigo

Depois de oferecer a vida por sua superiora, Santa Gibitrudes foi levada ao Juízo, mas Deus mandou-a voltar à Terra devido a faltas veniais que cometera e não expiara. Ele é tão sublimemente intransigente que não quis suportá-la na sua presença enquanto tivesse aqueles defeitos.

A biografia que temos para comentar é de uma Santa da qual nunca ouvira falar. Trata-se de uma monja beneditina do século VII, Santa Gibitrudes. A ficha é tirada do livro Vidas dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Constância ante os primeiros obstáculos

Sobre Santa Gibitrudes, um monge, chamado Jonas, escreveu:

Uma virgem, chamada Gibitrudes, nobre pelo nascimento e pela Religião, converteu-se e deixou o século para ganhar a comunidade (de Eboriacum), e a mãe do mosteiro, Burgondofara, recebeu-a com alegria, como a um gracioso presente, porque ela era sua parenta. Queimava-a um tal ardor, que sempre a graça do Espírito Santo parecia inflamá-la.

Estava ela ainda na casa paterna quando, a conselho do Espírito Santo, decidiu votar-se ao culto da Religião, e rogou ao pai e à mãe que lhe erigissem um oratório onde pudesse ser a serva de seu Criador.

Os pais julgaram-na erradamente: os dois eram nobres da raça franca e não se importavam ainda com a vida que leva ao Reino dos Céus. Pelo contrário, desejavam fruir das honras do século, e por isso queriam da filha uma posteridade, antes que dar penhor do Céu. Todavia, nada conseguiram fazer para demover a jovem do que trazia no espírito: cederam ao seu desejo e lhe construíram uma pequenina capela.

Como a jovem ali ia dia e noite, a astúcia do hábil inimigo propôs-se tomá-la como alvo. E começou, por meio de sua ama, a causar-lhe obstáculos, a impedir que ela fosse ao oratório. A moça, vendo-se atormentada, principiou a procurar a clemência do Criador, a fim de que aquela que lhe impedia de orar e queria roubar-lhe a luz da alma fosse privada da luz exterior.

A bondade divina não se fez esperar! Bem cedo a mulher, atacada de um mal dos olhos, viu-se despojada da luz necessária e o Árbitro clemente redobrou o temor dos pais castigando o pai com febres. Se bem que inflado pela nobreza, pelo exemplo da filha ele aspirava já ao temor divino; pediu à filha que rogasse ao Senhor por si e, se recuperasse a saúde por sua intercessão, seguir-lhe-ia a vontade.

A este pedido da fé, respondeu a saúde por longo tempo diferida; o fogo da febre deixou-o e o pai recuperou a saúde de outrora. A jovem, então, pediu licença para ir à comunidade de Eboriacum.

Ali levou ela a vida religiosa por muitos anos, quando, um dia, Burgondofara foi tomada de febres, levando a crer que os liames da presente vida dela se desligariam.

“Põe em ordem os teus sentimentos!”

Gibitrudes, vendo a mãe do mosteiro perto da última hora, entrou, angustiada, na basílica e pediu ao Senhor, com lágrimas, que se lembrasse da antiga misericórdia, a fim de que não deixasse morrer a mãe, mas que, a ela mesma, recebesse no Céu com as companheiras, e ali não chamasse a mãe senão para as seguir.

Depois das lágrimas, ouviu uma voz vinda do alto que lhe disse:

– Vai, serva de Cristo, o que pediste obtiveste. Ela, de boa saúde, pode ser unida aos bem-aventurados doutra vez, mas tu serás primeiramente desligada dos entraves da carne.

No mesmo instante, foi tomada pela febre e rendeu a alma pouco depois. Já os Anjos a haviam tomado e levavam além do éter; deposta diante do tribunal do eterno Juiz, via bandos de vestes brancas – foi ela mesma que o referiu depois – toda a milícia do Céu de pé diante da glória do eterno Juiz.

Ouviu uma voz partindo do trono que dizia:

– Volta, porque não estás inteiramente desapegada do século. Está escrito: “Dá e te será dado”, e, ademais, vê-se na oração: “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. Tu te lembras dos sentimentos de rancor para com três de tuas irmãs? Não curaste a ferida com o remédio da indulgência. Corrige, pois, as tuas fraquezas, põe em ordem os teus sentimentos, que manchaste com o tédio e com a negligência!

Ó maravilha! Voltando e tomando a vida anterior, ela revelou com tristes gemidos a sentença que recebeu, e confessou as faltas. Chamou as companheiras, pelas quais votara sentimentos de cólera, e pediu perdão para que não incorresse na danação eterna por causa de uma dissimulação.

Novamente saudável, viveu mais seis meses no século; depois, presa da febre, predisse o dia da morte e anunciou a hora em que deixaria o mundo.

A morte foi tão feliz que, na cela, onde o corpo jazia inanimado, acreditava-se sentir exalações de bálsamo. Para nós, que lá estávamos no momento, pareceu-nos um grande milagre.

No trigésimo dia, quando lhe celebrávamos uma Missa, segundo o costume da Igreja, um tal perfume encheu a nave que se diria haver ali todos os eflúvios das essências e dos aromas. A justo título, o Criador fazia brilhar, por seus dons, as almas que lhe foram dedicadas aqui, as que, por seu amor, nada do século quiseram amar”.

O milagre é um prêmio da fé…

A ficha pode parecer tão extraordinária, pelos milagres por ela narrados, que talvez desperte em alguém um sentimento de desconfiança. Não se tratará de uma lenda que teria sido incorporada à História? Será que realmente fatos tão extraordinários se passaram? Tanto mais quanto, se nós acompanharmos a vida dos Santos mais recentes, não notamos milagres dessa ordem. E se não os há, por que os haveria naquele tempo? E neste caso, não estaríamos no nosso direito de duvidar de acontecimentos dessa natureza?

A meu ver, essa seria uma dúvida sem propósito, porque dois dados são indiscutíveis e devem chamar nossa atenção.

O primeiro é: nas épocas de muita fé, Deus Nosso Senhor realiza milagres mais estrondosos do que nos tempos de pouca fé. Dir-se-ia que isso é um paradoxo, pois onde há pouca fé Ele deveria fazer milagres portentosos, e onde já existe muita fé, não haveria necessidade de tais milagres.

Mas o contrário é verdade. O milagre é um prêmio da fé. E quem pede com muita fé pode obter favores tão contrários à ordem normal, que constituam milagres. Exatamente por causa disso, nas épocas de muita fé os milagres excepcionais são mais numerosos.

Na época em que o espírito de dúvida penetra nas almas, e elas começam, a priori, a negar a possibilidade do milagre ou exigir provas muito mais amplas e meticulosas do que seria necessário para reconhecer a existência do milagre; quando as almas não têm apetência do extraterreno, do sobrenatural, do divino e, a “fortiori”, do metafísico e do sublime, a graça se retrai e a ação de Deus vai se tornado mais escassa, rara e difícil de obter. É um castigo para aqueles que não quiseram crer.

Ora, no século VII nós estávamos numa época de fé, a Igreja vivia os primeiros séculos de reconstrução da sociedade medieval que daria na Cristandade. Nesse tempo era natural que os milagres fossem estupendos. Aquelas pessoas pediam e obtinham coisas que realmente as maravilhavam, mas nem tanto as robusteciam na fé, pois já possuíam a fé vigorosa que fora a causa daquele pedido.

No Santuário de Aparecida do Norte, há um recinto chamado “sala dos milagres”, onde as pessoas depositam objetos em gratidão ou cumprimento de promessas, por graças recebidas, em muitas das quais, se devidamente estudadas, poder-se-ia reconhecer o caráter de milagre. Vendo a fé com que aquele povo vai rezar lá, compreende-se que suas orações sejam atendidas. Suponhamos que aquela fé decaísse muito. O número de graças de que a sala guarda recordação não diminuiria também? Sem dúvida. Porque a oração feita com pouca fé é pouco atendida.

…fruto da pregação da Santa Igreja Católica

Alguém dirá: “Mas então não há saída para um povo que cai no despenhadeiro da falta de fé. É um círculo vicioso: ele se emendaria se soubesse de milagres; por outro lado, ele não conhece os milagres porque estes não vêm ao povo fraco na fé. Então ele está perdido, amarrado na sua própria incredulidade e condenado”.

Isso não é verdade. A causa ordinária e comum da fé não é o milagre, mas a pregação da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. É a própria existência da Igreja, a apetência que o espírito humano, tocado pela graça, tem de conhecer as verdades que a Esposa de Cristo ensina e de amá-las como elas são. Eis a causa determinante da fé. O milagre é uma causa excepcional da fé. O grande favor de Deus não é de alguém ter crido por causa de um milagre, mas o de acreditar mesmo sem vê-los.

Atesta-o o famoso episódio de São Tomé que, ao lhe ser anunciada a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, teve dúvida. Quando lhe apareceu o Ressuscitado, ele acreditou. Então, o Divino Mestre exigiu que ele pusesse a mão em seu sagrado flanco para, tocando, constatar ser mesmo Ele. E depois fez este comentário: “Tomé, creste porque Me viste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

Poder-se-ia objetar: “Mas, Dr. Plinio, então o senhor reduz muito o papel do milagre, o qual deixa de ser uma tão grande graça”.

Não. Em relação aos fracos na fé, o milagre é uma graça por onde Deus arromba, por assim dizer, a alma de alguns especialmente favorecidos e que não quiseram crer. Para estes, o milagre é um grande bem, uma extraordinária dádiva, porém mais felizes eles teriam sido se tivessem crido sem o milagre.

Para os que têm fé, o milagre é de muito valor como uma prova do amor de Nosso Senhor, que rompe seu próprio procedimento normal para atender à súplica de alguém consagrado a Ele, como essa freira, e que Lhe pede um favor.

Assim, vemos como Santa Gibitrudes, sendo consagrada a Nosso Senhor, pediu e obteve graças esplêndidas, entre as quais, a de ficar cega aquela mulher que a atrapalhava na sua vocação.

Existem situações em que se pode pedir a desgraça dos outros

Alguns, talvez, poderão ficar surpresos: “Como é possível alguém pedir que outrem fique cego?! Compreende-se que se implore para uma pessoa recuperar a vista; mas que fique cega… ”

Há casos em que tal oração é perfeitamente legítima, justa. A Santa teve, provavelmente por imponderáveis, conhecimento de uma determinada situação moral, ou recebeu uma comunicação interior, por onde ela ficou vendo que aquela mulher seria absolutamente refratária a qualquer graça. Absolutamente falando, Deus poderia lhe dar graças tão grandes que ela se convertesse. Quiçá aquela mulher tivesse uma alma tão endurecida e merecesse tais castigos que Ele não quisesse conceder-lhe tais graças.

Assim, para a moça restava apenas a seguinte alternativa: ficar gravemente ameaçada de perder a sua vocação ou pedir que a outra se tornasse cega. Ademais, para sua perseguidora era muito melhor ficar cega nesta Terra, mas não causar a perdição de uma alma, do que conservar a vista e comprometer uma vocação. Mas, sobretudo, era muito melhor para a glória de Deus que aquela moça se tornasse uma Santa e que a cega aguentasse depois, com virtude, a sua cegueira.

Há situações, portanto, nas quais se pode pedir o mal dos outros, mas não em qualquer conjuntura. Então, basta uma pessoa estar me atrapalhando, me amolando, prejudicando minha salvação, para eu rogar que ela fique cega? Não é assim. Há todo um conjunto de circunstâncias a serem consideradas. Contudo, existem casos em que se pode pedir a morte, a doença, a desgraça dos outros para que eles não prejudiquem a execução de um desígnio da Providência. Se nos secretos desígnios de Deus não houver outro meio para afastar aquele obstáculo senão a punição daquela pessoa, pedir que ela seja castigada é uma coisa que se pode perfeitamente fazer, com critério.

Para que esse pedido seja bem feito são necessárias duas condições: quem peça faça-o sem nenhum apego pessoal. Logo, não é por raiva, birra, agastamento ou comodismo, mas apenas pelo zelo por sua própria santificação. Em segundo lugar, que por via das dúvidas, na hora de pedir, acentue muito: se esta for a vontade de Deus. Se não houver outro meio de remover do caminho este obstáculo à minha santificação, então rogo que isso se realize. Nessas condições é perfeitamente legítimo pedir.

Severidade e misericórdia não se excluem, mas se completam

Vemos a prova disso no lance final da vida de Santa Gibitrudes. Ela ofereceu sua vida pela superiora e, ao morrer, teve até uma visão esplêndida na qual contemplava a revoada dos Anjos com seus hábitos. Naturalmente, é um símbolo, pois sendo puros espíritos os Anjos não usam hábitos. Levada ao juízo divino, recebeu a comunicação de que havia três freiras de quem ela guardava birra, e ela não podia estar na presença de Deus mantendo com esse defeito.

Vemos nisso um misto da sublime bondade e condescendência do Criador, e sua sublime intransigência. Deus é tão sublimemente intransigente que uma freira para quem Ele fizera milagre tão excelso, não queria, entretanto, suportá-la na sua presença, enquanto ela tivesse aqueles defeitos.

Mas Ele é tão sublimemente misericordioso que praticou este milagre: levou a freira à sua presença e denunciou o pecado que ela, certamente por própria culpa, não via. Mandou-a de volta à Terra para pedir perdão pelo pecado e expiar. Tendo ela expiado e implorado perdão, então levou-a para o Céu. Notem a misericórdia extraordinária d’Ele com ela, ao lado da severidade. E como a severidade e a misericórdia, longe de se excluírem, se completam.

Nós vemos isso na própria alma da Santa. Para Nosso Senhor fazer por ela tudo quanto realizou, é óbvio que é uma grande Santa. Entretanto, tais são as contradições que cabem na pobre alma de uma criatura humana, que esta pode ser elevada em virtudes debaixo de muitos pontos de vista e, portanto, atrair de fato o amor de Deus, mas ter alguns defeitos dos quais ela precisa ser purificada e que a Providência não tolera.

E é neste modo contraditório de ser das criaturas que brilha de uma maneira especial a justaposição da justiça e da misericórdia de Deus. Justo para com um defeito, misericordioso para com o próprio defeito em atenção às altas qualidades, e escolhendo um modo magnífico para curar a freira, no fundo, de uma falta que não era um pecado mortal, pois se o fosse o Criador não faria isso. Não levaria essa alma em estado de pecado mortal para a própria presença d’Ele, para ver os Anjos. Evidentemente eram faltas veniais. Entretanto, naquela alma, sobretudo, Deus não queria tolerar essas faltas. Ele poderia dar graças comuns para ela se arrepender e ir ao Céu sem esse milagre. Mas quis fazê-lo para provar, por essa narração, quanto Ele ama excepcionalmente as almas que O amam excelentemente. E não poderia haver para ela um castigo mais glorioso do que a punição que ela recebeu. Ela poderia chamar-se “a Santa do glorioso castigo”.

Que glória nessa punição!  Que estupendo ser amada de tal maneira que, para receber esse castigo, ela é tirada desta vida, colocada na presença de Deus, sua alma é novamente reintegrada a seu corpo, e lhe é restituída a vida, tendo recebido do próprio Deus a lição que precisava receber. Ele poderia mandar um Anjo fazer isso, mas Ele mesmo o realizou. Pode haver maior glória e maior prova de amor? Era castigo, entretanto.

Olhar luminoso para perceber nossos próprios defeitos

Alguém poderia perguntar: “Mas por que Deus fez isso assim? Foi só por essa Santa?”

Se fosse só por ela já estaria perfeitamente bem feito. Isso se deu no século VII. Nós estamos no século XX, que já vai caminhando para seu fim. Quantos séculos depois, em terras que ninguém imaginava, naquele tempo, que existissem, está-se comentando essa ficha e a sucessão desses fatos! E nós ainda estamos nos extasiando com a maravilha operada por Deus, com esse jogo complexo e de variados aspectos de que estou dando notícia.

Quer dizer, isso foi feito para ficar brilhando na História da Igreja até o fim dos tempos. Quando acabar o mundo e chegar o dia do Juízo Final, é possível que algum daqueles sobre os quais meus olhos estão caindo neste momento, encontre uma Santa que lhe esteja sorrindo de modo particular. E a Santa use como insígnia uma chibata luminosa mais do que muitos sóis, e feita de uma matéria mais preciosa do que o ouro. E a Santa se aproxima de um de nós e diz: “Sabes quem sou? Eu sou Gibitrudes, a Santa do glorioso castigo. Rezei por ti naquela noite em que soubeste do meu castigo e de minha glória. E agora te encontras perto de mim e estamos todos salvos. Olhemos para Nossa Senhora e glorifiquemo-La e, por meio d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo”.

E nós, então extasiados com a glória de Santa Gibitrudes, nos lembraremos desta pobre conferência, e daremos glória a ela. E nos sentiremos associados à santa alma dela.

Como é bom, então, encerrarmos esta reunião dizendo: “Santa Gibitrudes, rogai por nós. Dai-nos a graça de não nos acontecer o que ia vos sucedendo, ou seja, ter alguns defeitos que por culpa nossa não vejamos. Se não merecemos um castigo tão glorioso quanto o vosso, é verdade também que nós tivemos, pelo menos, uma ajuda luminosa que foi a vossa. Tínhamos defeitos ocultos, mas o vosso exemplo, séculos depois, nos trouxe à presença de vossa biografia. E foi um convite para, na noite de 26 de outubro de 1976, nós vos pedirmos: Santa Gibitrudes, tornai luminoso nosso olhar no exame de consciência, de maneira a percebermos tudo o que está oculto, e nossas almas compareçam diante de Nossa Senhora límpidas como foi a vossa, na segunda vez em que diante de Deus aparecestes. Santa Gibitrudes, rogai por nós!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/10/1976)

 

1) ROHRBACHER, René François. Vidas dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Vol. XIX, p. 42-45.

25 de outubro – Não leiam ou leiam meu próximo artigo

Não leiam ou leiam meu próximo artigo

Poucos contrastes há tão frisantes em São Paulo – onde, entretanto eles não faltam, e de toda ordem – do que entre a Avenida Tiradentes e o Convento da Luz, com o Museu de Arte Sacra, que lhe ficam exatamente à margem. Um longo muro, que toma talvez mais de meio quarteirão, separa os dois mundos.

Do lado de fora, a avenida, com seu movimento emaranhado e ruidoso, complicado ainda pelas máquinas superpotentes destinadas à construção do metrô. Muro adentro, quase a mesma atmosfera de há duzentos anos atrás: a tranquilidade, a meditação, a oração e o bom gosto ali deitaram raízes e vêm florescendo há tanto tempo, que chegaram a impregnar de uma vez para sempre a atmosfera de um aroma espiritual sutil e envolvente. Tal envolvimento começa sem que a pessoa se dê conta, desde o momento em que transpõe o largo portão em cuja grade se lê a data de 1870. Penetra-se desta maneira em um jardim de uma despretensão, uma singeleza e uma calma desconcertante. E a não se visitar o lindo museu, caminha-se diretamente para a Igreja. A esta se acede por um átrio calçado de um venerável granito desgastado pelos passos de gerações e gerações de fiéis. Logo em seguida, uma alta porta ouro e branco, em estilo barroco, sólida e sisuda como se fosse a própria face da Meditação, apaga no espírito de quem entra a recordação de toda tralha que ficou a mexer-se e a febricitar pela rua. Entra-se no templo. E tudo é sorriso. Aquele sorriso leve, nobre e superiormente sério que constitui um dos encantos de nossa arte colonial. Alta cúpula, proporções graciosas, altares e imagens cheias de mimo e dignidade. A atenção se fixa, por fim, no presbitério.

Do alto do retábulo, uma imagem da Imaculada Conceição, na penumbra, faz descer de seu nicho sucessivos e ininterruptos eflúvios de meiguice materna, condescendência e esperança de socorro.

Um pouco aquém um tabernáculo, de linhas imponentes como se fora um palácio luisquatorzeano. No chão, uma lápide de mármore assinala dormir ali seu repouso final Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, o franciscano fundador da Casa. Como elogio póstumo só estas palavras simples e supremas: “animam suam in manibus suis semper tenens, placide obdormivit in Domino die 23 decembris. Anno 1822”. – Ter sempre em mãos a própria alma para a governar continuamente!… Que elogio! Quanto isto vale mais do que dirigir um avião superpotente, um país inteiro, ou até um banco (uso aqui a escala de valores característica de certa mentalidade supermoderna). A memória de Frei Galvão resistem à poeira destes 150 anos. Continuamente por ali passam pessoas de todas as idades e classes sociais, pedindo graças de toda ordem. E são  atendidas. Daqui a 150 anos quem frequentará as sepulturas dos homens superpotentes, para quem sobem hoje tantos aplausos e tantas petições… nem sempre atendidas?

Enquanto os olhos estão postos no Sacrário, onde – segundo indica uma lamparina rubra como se fosse um rubi – está realmente presente o Rei dos Reis e Senhor dos Exércitos, e o espírito vagueia por temas desta índole, ouve-se inesperadamente, a certas horas do dia, um conjunto de vozes femininas, de uma pureza que os anos não fanam, a recitarem, em “rectus tonus”, salmos, antífonas e lições. Só então se percebe que, nos fundos da Igreja, uma imensa treliça oculta a olhares profanos esposas de Cristo, cujas faces uma rigorosa clausura impede de serem vistas. Ali passam, há mais de 150 anos, sucessivas gerações de freiras Concepcionistas, apartadas das coisas do mundo, mas voltadas à oração e à expiação, para que Deus perdoe e regenere este mesmo mundo.

Do grau desse distanciamento das coisas terrenas, um simples fato – verdadeiro “fioretti” – pode dar adequada ideia. Contou-me certa vez o grande Arcebispo paulista, D. Duarte Leopoldo, o caso de uma religiosa que entrara em clausura, em remotos tempos em que São Paulo ainda não conhecia estradas de ferro. Quando então apareceram os primeiros trens, seus apitos, rasgando os ares pacatos da urbe de então, chegavam aos ouvidos das religiosas. Como podia entretanto vê-los a velha freira, já que a clausura lhe proibia olhar pelas janelas? Comovido pela observância da religiosa, D. Duarte lhe deu licença para, por uma vez, uma só vez, postar-se à janela quando passasse um comboio. Mas a freira pediu licença para recusar a regalia. Queria morrer sem ver o trem, para com esta mortificação sofrer ainda mais pelos pecados do mundo. Não tardou muito que “animam suas in manibus suis semper tenens”, partisse para contemplar a glória celeste, ao lado do Fundador.

Alguns há a quem a narração deste pequeno fato terá asfixiado. Recomendo-lhes que não leiam meu próximo artigo; não o entenderiam. Os outros, a quem tenha deleitado com um pouco de ar puro, talvez gostem de conhecer o que narrarei sobre a fundadora dessa colmeia de anjos, Madre Helena Maria do Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira 28 de julho de 1974

25 de outubro – Frei Galvão

Frei Galvão

“Animam suam in manibus suis semper tenens” — reza a inscrição na lápide de mármore sob a qual repousam os restos de Frei Galvão, no Convento da Luz. Simples e supremo elogio de quem dominou a própria alma e traçou para si um caminho de salvação. Sensível à voz de Nosso Senhor Jesus Cristo, obedeceu em tudo à vontade d’Ele, custasse o que lhe custasse, doesse ou não doesse, e assim alcançou a perfeição para a qual foi chamado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/2/1989.

Em visita ao Brasil, o Papa Bento XVI canonizou,  no dia 11 de maio, este santo nascido em nosso país:  Santo Antônio de Sant’Ana Galvão.)

24 de outubro – Firmeza, doçura e senso do dever

Firmeza, doçura e senso do dever

Ao contemplarmos o olhar de Santo Antônio Maria Claret, não é difícil perceber, ao lado de muita firmeza, uma bondade e uma doçura incontestáveis. É um homem movido por um alto senso do dever, fundado nas mais altas concepções religiosas e metafísicas. Esse varão está profundamente persuadido de que a posição por ele tomada é a certa, a Religião que ele professa e ensina é a verdadeira, de que ele é um ministro de Deus, e prega a doutrina imutável e eterna da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/10/1987)

24 de outubro – Santo Antônio Maria Claret, sacerdote fervoroso e pregador ardente

Santo Antônio Maria Claret, sacerdote fervoroso e pregador ardente

Florão da estirpe dos homens providenciais que Deus suscita em todas as épocas para servirem de modelo e guia aos seus semelhantes, Santo Antônio Maria Claret — cuja festa se celebra no dia 24 deste mês — reluz no céu da Igreja por seu extraordinário vigor de alma e sua destemida devoção ao Papado. Assim no-lo apresenta Dr. Plinio, ao nos evocar os principais aspectos da vida desse Santo.

Em 24 de outubro é comemorada a festa de Santo Antônio Maria Claret (1807-1870), Bispo e Confessor. Além de se destacar como insigne defensor da autoridade pontifícia, foi um grande devoto de Nossa Senhora, havendo fundado a Congregação dos Filhos do seu Imaculado Coração, conhecidos como claretianos.

Tive oportunidade de admirar o perfil de Santo Antônio ao ler uma pequena biografia dele — com a qual me maravilhei! —, a fim de reunir elementos para pronunciar uma conferência em Rio Claro, cidade do interior paulista. Não pretendo repetir aqui essa palestra, embora os extraordinários e numerosos aspectos da existência deste Santo pedissem comentários mais extensos. Limitar-me-ei, portanto, a considerar os lados mais marcantes de sua vida.

Fachada da Basílica do Vaticano

Período de tibieza na juventude

A Igreja desaconselha que se faça comparação entre os heróis da Fé elevados à honra dos altares. Não direi, pois, que Santo Antônio Claret foi o maior de seu tempo. Porém, penso que, se em cada quadra histórica alguns Santos sobrepujam os outros em importância aos olhos de Deus, nos planos da Providência um desses terá sido sem dúvida Santo Antônio Maria Claret.

Mais do que Fundador de uma congregação religiosa, ele nos aparece como um varão exponencial, dominando completamente sua época, pelo simples fato de ter existido.

Imagine-se um homem de baixa estatura, espanhol de temperamento ardoroso, catalão apimentado, filho de uma família bastante piedosa, dedicada à fabricação têxtil. Ainda jovem, morando em Barcelona, sentiu apelos divinos para algo de mais elevado, embora indefinido, pois não pensava na vocação sacerdotal. Mas, naquela cidade, envolveu-se com questões de tecelagem e se enfronhou nos assuntos práticos desse negócio, começando a esquecer o fervor da sua piedade dos tempos de menino. Passou alguns anos absorto no cuidado de máquinas, teares e coisas semelhantes.

Praça de São Pedro no dia da proclamação do dogma da Infalibilidade Papal

Praticava ainda a religião, mas, nesse período de sua vida, pode-se dizer que Santo Antônio Maria Claret — para usar a nossa expressão caseira — tendia a ser um “sabugo” 1. Continuava a frequentar a igreja, assistia à Missa aos domingos, comungava algumas vezes por ano e também recitava o Rosário. Mas, fora do cumprimento estrito dessas práticas de piedade, só tinha pensamentos para o seu trabalho na indústria têxtil.

Certo dia, indo nadar com os companheiros no litoral, o movimento muito forte das ondas o arrastou mar adentro. Apelou à Santíssima Virgem e, de forma inexplicável para ele, percebeu que flutuava na superfície do oceano, sendo levado por força misteriosa até a praia, sem ter tragado sequer uma gota de água. Salvo em terra, associou o episódio a uma lembrança que tinha tido, durante a Missa, das palavras de Jesus Cristo no Evangelho: “De que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se finalmente perde a sua alma?” (Mt 16,26).

Padroeiro dos “sabugos”

Eis um primeiro ponto de afinidade de Santo Antônio Maria Claret conosco. Pois ele resolveu levar uma vida nova, o que, sob certo ponto de vista, foi uma recauchutagem, uma “desensabugagem”(1) de sua alma.

Algo de semelhante acontece em nosso grupo. A Santíssima Virgem atrai as pessoas as quais, uma vez fixadas, em geral entram no processo de “ensabugamento”. E se a misericórdia d’Ela não o impedir, acabam nesse lamentável estado de tibieza. A partir daí começa a segunda fase: é preciso remar até conseguir que elas se recauchutem ou se “desensabuguem”.

E quando correspondem à graça, experimentam uma espécie de nova conversão. Em seguida, inicia-se a terceira fase de sua vida espiritual. Se, com o auxílio de Nossa Senhora, não tivéssemos o cuidado de “desensabugá-las”, é de se temer que muitas dessas pessoas não perseverariam na vocação.

Então, com profundo respeito, podemos dizer que Santo Antônio Maria Claret nos aparece como o padroeiro dos “sabugos”. Por sua fidelidade à graça da conversão, tornou-se um modelo de “desensabugado”, digno de ser imitado por nós. Ele alcançou esse triunfo sobre a própria indolência espiritual porque sempre nutriu particular devoção a Nossa Senhora, e a Santíssima Virgem, que o predestinava a grandes feitos, ajudou-o a se reerguer e se “desensabugar”.

Rumo aos píncaros da santidade

Desde esse momento, com imenso fervor, ele empreendeu a marcha ininterrupta até atingir os píncaros de santidade, como veremos.

Ordenado sacerdote, tornou-se missionário. E revelou-se como o típico pregador popular (e gostaria de acentuar a palavra “popular”), com algumas características eminentes. Por exemplo, tinha voz possante, capaz de se fazer ouvir pelas multidões que enchiam as praças públicas onde ele pronunciava seus sermões, pois o espaço interno das igrejas era insuficiente para conter todos os fiéis desejosos de escutá-lo. E não raro, as mesmas praças se verificavam pequenas para reunir o público que comparecia às suas pregações.

Imaculado Coração de Maria, em homenagem ao qual Santo Antônio Maria Claret fundou a sua congregação religiosa

Quando se dirigira de uma cidade para outra, sua fama de orador sacro era tal que grande parte da população de onde falara o acompanhava, processionalmente, até deparar com os habitantes da localidade vizinha, para a qual ele falaria. Durante o encontro, o Santo fazia um sermão de despedida de uns e de saudação aos outros, comovendo a alma de todos.

Sendo um orador popular muito vivo, interessante, ardente, profundo, sólido, substancioso e dotado de carismas extraordinários, davam-se fatos espetaculares durante as suas homilias. Por exemplo, às vezes ele interrompia suas palavras, apontava para uma mulher na assistência e lhe dizia de súbito: “A senhora pensa que não morrerá tão cedo, e terá vários anos pela frente. Sua morte se dará dentro de… — suspense! — seis meses”. Naturalmente, a indicada desmaiava, caía em prantos, etc.

Noutras ocasiões afirmava: “Vou expulsar o demônio que está pairando sobre este auditório”. E em seguida pronunciava a fórmula do exorcismo. Estrépito, raio em céu sereno, caem os sinos do campanário e a população fica apavorada. Havia conversões em massa, pois bem podemos imaginar o efeito de pregações dessa natureza.

Santo Antônio compreendia de modo claro ter sido destinado por Deus à vocação de missionário junto ao povo. Nunca desejou tornar-se teleólogo profundo, nem orador de alto porte, como um Pe. Antônio Vieira, um Bossuet, Bourdaloue, etc. Nascera para falar ao vulgo, e com sua oratória popular esplêndida, convertia multidões.

Compreendeu, igualmente, ser um homem feito para suscitar zelo, mais do que coordenar o zelo que suscitara. Por isso, passava pelas províncias despertando por toda parte o amor a Deus, deixando depois que outros utilizassem aquela semente e aquele fogo para melhores finalidades. Era, portanto, um modelo de desprendimento, sem a preocupação de colher para si, mas plantando para que outros colhessem.

Arcebispo em Cuba e confessor da Rainha

Depois de uma estupenda pregação nas Ilhas Canárias, afinal, foi promovido a Arcebispo em Cuba, então colônia espanhola cuja situação moral se apresentava muito decadente. Santo Antônio Maria Claret dedicou-se à conversão da Ilha, e quando começou a obter a emenda dos costumes, desencadeou uma reação intensa contra ele. Sofreu tantas e tão fortes oposições, e até atentados, que a Rainha da Espanha acabou intervindo e o retirou daquelas terras.

De volta à metrópole, Santo Antônio Maria Claret se instalou na corte, como confessor da Rainha Isabel II. Mulher de maus bofes, passou a se modificar e melhorar no contato com Santo Antônio, até que uma reviravolta política a destronou e a exilou para a França. Foi ele, portanto, quem provocou pelo seu zelo esse terremoto na Espanha, ao mesmo tempo em que desempenhava uma obra insigne, como missionário, em todo o país.

Santo Antonio Maria Claret

Defensor da infalibilidade pontifícia

Nesse período, fundou a Congregação dos Filhos do Imaculado Coração de Maria, cujo nome exprime o culto fervoroso que ele dedicava à Mãe de Deus, sob essa invocação.

Alguns anos mais tarde, durante o Concílio Vaticano I, deu-se um dos célebres episódios da vida de Santo Antônio Maria Claret. Ele já estava idoso, doente, porém aureolado pelas mais altas graças que se possa receber. Por exemplo, o Santíssimo Sacramento nunca se deteriorava dentro dele, de uma comunhão a outra, de maneira que era um sacrário vivo, assim como Nossa Senhora que tinha Jesus vivendo n’Ela durante o período da Encarnação e da gestação.

Pois bem, ao ouvir no Concílio Vaticano I pronunciamentos de alguns bispos contra a infalibilidade papal, Santo Antônio se levantou e fez um famoso sermão em que declarou: “Oxalá pudesse eu consumar minha corrida, confessando e dizendo da abundância do meu coração esta grande verdade: creio que o Sumo Pontífice Romano é infalível”.

A atitude de alguns irmãos seus no episcopado o acabrunhou e o encheu de desgosto, a tal ponto que sofreu um começo de apoplexia, pela qual viria a falecer pouco depois, na França, recolhido numa Cartuxa. Era o ano de 1870.

E assim terminaram os dias desse magnífico varão de Fé, ao qual nos honramos de tomar por patrono, como grande promotor que foi da devoção a Nossa Senhora, em especial ao Imaculado Coração de Maria, bem como por seu ardoroso amor à Santa Sé Apostólica. Além disso, é modelo para nós, pois demonstrou que, nas camadas populares, ao contrário do que pretende a Revolução, uma pregação autêntica e boa produz maravilhosos resultados.

Todas essas razões nos levam a, no dia de sua festa, confiar de modo particular no patrocínio de Santo Antônio Maria Claret, e lhe pedir que nos alcance as melhores graças do Céu.

1 ) Metáfora empregada por Dr. Plinio para exprimir o estado de espírito de quem, tendo aderido com certo ardor a um ideal, deixa-se depois arrastar pelo desânimo, a languidez e a inação. Esse perdeu o fervor com que realizava as boas obras e o entusiasmo que tinha em cumprir a vocação, assim como a espiga de milho que perde seus grãos e se transforma em sabugo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/10/1987)

(1) – ensabugar – neologismo da espiga sem o milho aplicado às almas que deixam de florescer e dar frutos.

24 de outubro – Santo Aretas, firmeza e grandeza

Santo Aretas, firmeza e grandeza

A coragem e firmeza de Santo Aretas diante do martírio fazem reluzir mais uma das maravilhas produzidas pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana nos povos que se põem sob seu maternal domínio.

No livro do Frei José Pereira de Santana, “Os dois Atlantes da Etiópia”, encontramos alguns dados biográficos de Santo Aretas. Trata-se de uma prédica de Santo Aretas aos católicos da cidade de Najran, na Arábia, antes de ser martirizado pelo tirano Dun’an.

Invectiva cheia de grandeza

Ouvi-me, inumano Rei, doutores da Sinagoga, apóstatas franitas, bárbaros confederados, cortesões ilustres e esclarecidos habitantes de Najran.

Isto, sim, é saber dirigir uma apóstrofe!

“Apóstatas” é uma palavra de alta expressão. “Fulano é um apóstata!” Todo o horror da apostasia se descarrega nestes dois “tas”: “após–ta-ta”. Tem-se a impressão de que é uma coisa que caiu, que rola em dois “tas” e que se desfaz.

Um “apóstata franita” dá a impressão de ser alguém que se deu a uma das heresias mais infectas, aliciantes e, ao mesmo tempo, mais digna de rejeição.

“Bárbaros confederados” é também uma forma de ultraje; soa como se fossem bárbaros requintados, de tal maneira ligados a outros bárbaros que formam uma coesão de barbárie, uma espécie de ultra barbárie, pior do que todas as barbáries.

Então, os doutores da Sinagoga, os apóstatas franitas e os bárbaros confederados, todos juntos num conglomerado imundo, nefando e agressivo contra o Santo que está sozinho. Vai ser martirizado, mas, antes de morrer, diz o que quer. Não falta grandeza a essa introdução.

Cântico de coragem, transbordante de Fé

E continua:
Companheiros, amigos, parentes e outros quaisquer dos circunstantes, sejais nobres ou plebeus, ou católicos ou infiéis, ouvi-me todos, vos suplico, pois com todos falo. Bem vos pudera dizer que canto, se observardes que, por artifício dos anos, me converti em cisne nacional, conservada na cabeça a candura, no coração, sem temor de morte, a alegria.

Há uma lenda que diz que o cisne, quando vai morrer, canta. É o seu último canto, de uma beleza maviosa. A ideia é muito bonita. Imaginar um cisne que, antes de morrer, emite um canto suavíssimo em que vai toda a “cisnicidade” dele transformada em sons que batem na água, repercutem pelas árvores e morrem no céu. É uma coisa também à qual não falta poesia.

Este Santo diz que ele é como um cisne, que, antes de ser martirizado, dá o seu último canto. Mas é uma beleza! É preciso ser oriental para saber fazer isso.

Diz o seguinte:
Eu me converti em cisne nacional pois conservei na cabeça a candura, no coração, a alegria, embora não tenha temor da morte.

Ele vai morrer, mas é cândido, puro, é alvinitente na sua fronte, nas suas ideias e na sua alma; ele é alegre, apesar de que vai morrer. Com esta alegria e com esta candura ele vai deitar o seu canto de cisne, e esse canto é bom que todos ouçam.

Falo primeiramente contigo, ó Rei. Mais que as feras, como já te lancei em rosto, és desumano. Respondendo às cem razões em que me acusas queixoso, condenas injusto: verdade é que sou, co-mo dizes, a total causa, motor e única cabeça da firmeza dos najranenses, mas não dos seus padecidos escravos.

Desprezaram o meu conselho sem advertirem que, em proporção das minhas cãs, era o mais maduro. Perigaram, pois, nesse desprezo e naquela resistência se perderam. O que sempre a todos persuadi foi que perseverassem confiantes na oposição, pois, não obstante serem tuas forças superiores às nossas, mais fortes que as tuas armas eram os nossos muros, e mais inconquistáveis que estes, os nossos corações.

Com que poder saiu, em outro tempo, a pelejar contra tantos milhares de madianitas um Gedeão? Pois se es-te, porque o Céu amparava, pôde vencer com tão poucos a tantos soldados, que razão havia para que não triunfassem também os nossos do teu poder, tendo certa, do Senhor do Céu, a proteção e mais vigorosas forças do que as daquele príncipe?

Não imagines que és do castigo que experimentamos o autor, senão um instrumento; por tuas mãos nos castiga Deus a temeridade de crermos que seria fiel ás criaturas, quem, além de ser traidor do seu soberano, era mais que laivoso rebelde ao seu Criador.

Chama-me, ó tirano, zelador da honra de Deus. A este Senhor justa-mente invoco contra ti, vendo que desprezaste a sua lei, destruíste os seus templos, profanaste os seus altares, extinguiste, finalmente, os seus sacerdotes. Sabe, pois, que eu, à imitação do mesmo profeta que a tantos reis idólatras vaticinou a morte, te asseguro que, brevemente, serás desta púrpura despojado e deposto da monarquia.

De sorte que, sem ficar dos teus domínios parte alguma isenta, a todos sujeitará Deus ao etiópico império de Elesbão. Este insigne varão e pode-roso príncipe será, da nossa derrotada Cristandade o restaurador, prevalecendo-te de tal modo em desagravo de Jesus Cristo contra ti que, por Ele, verá admirada Najran suas igrejas nova-mente recuperadas e a ti, como soberbo edifício, sem que jamais seja reedificado, aos seus pés caído.

Firmeza e resolução

Santo Aretas, depois de dizer que iria deitar o canto do cisne, diz ao Rei: “Tu, ó Rei, és pior do que as feras e, entretanto, tu tens razão quando dizes que eu sou a causa, motor e única cabeça da firmeza e resolução com que os najranenses lutam contra ti”.

Percebe-se, pelo texto, que o Rei quis tirar a Fé a esses najranenses e que eles resistiram. O Rei, então, prendeu este Santo porque ele era a cabeça da resistência. Ele diz ao Rei, como homem que não tem medo de ser condenado: “De fato, eu sou a cabeça da resistência”.

Percebe-se que os tais najranenses fizeram uma resistência excessiva. O trecho não é inteiramente claro, mas dá a impressão de que eles foram temerários na resistência e padeceram muito, e Santo Aretas, então, disse a eles que não deviam resistir tanto. Por causa disto, então, o Rei o acusava, neste ponto, de uma resistência excessiva da qual ele não era o culpado. Ele, de fato, era a favor da resistência, mas de uma resistência pacífica, de uma resistência de caráter ideológico, enquanto que os najranenses tinham feito uma resistência militar.

No entanto, ele não deixa de louvar a coragem dos najranenses com uma expressão muito bonita: que as armas dele, Rei, eram menos fortes do que os muros dos najranenses, e os corações deles ainda eram mais fortes do que esses muros. Portanto, não havia razão para eles terem perdido essa batalha, mas perderam por causa de um castigo que eles mereciam e que os fez ser derrotados pelo Rei ímpio, porque eles tinham confiado, durante algum tempo, nesse Rei. Ora, num herege não pode ser depositada confiança. Um homem que está rompido com Deus é ímpio e nele não se pode depositar nenhuma espécie de confiança. O fato de eles terem depositado confiança, durante algum tempo, no Rei — isto se refere a algum episódio anterior, que também não se conhece —, este fato explica que eles tenham, então, sido derrotados.

“Ó Rei — diz Santo Aretas —, não imagineis, absolutamente, que vencestes”. Foi Deus Quem venceu pela mão dele, para castigar o povo. Mas esse povo que tinha sido condenado por Deus por causa disso, ia ser, por sua vez, reedificado. Viria um imperador da Etiópia, Santo Elesbão, e haveria de reconstruir toda a Cristandade na Etiópia e derrubar o Rei Eretas de maneira que, de todo o seu poder, não ficaria nada.

A misteriosa economia de Deus

Vemos, então, a economia de Deus. Havia um Rei ímpio, Eretas; havia um povo mole e ordinário, mas ainda católico. Deus quis punir a moleza desse povo católico, que consentia, provavelmente, em ter um Rei ímpio, e então permitiu que esse Rei perseguisse o povo católico. Ele se serviu do ímpio como açoite para flagelar o povo mole. “Se fosses frio ou quente Eu te aceitaria” — diz a Escritura —, “mas como és morno, começo a vomitar-te de minha boca” (Ap 3, 15-16).

Esse povo morno foi açoitado por Deus, pela mão do Rei ímpio. Mas o Rei ímpio fez isto porque Deus permitiu e não porque Deus mandou. Por causa disso, ele pecou, e Deus tomou um varão de sua destra, Santo Elesbão, e conduziu-o vitoriosamente para a derrota do Rei ímpio. Com isso ficaram naturalmente derrotados os doutores da Sinagoga, os apóstatas franitas e outras abominações do gênero, e, durante algum tempo, se reconstruiu a Cristandade naquelas regiões.

Onde a Igreja entra, tudo floresce

Eu não posso deixar, ao dar este fato, de chamar a atenção para a maravilhosa beleza da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Por toda parte onde ela floresce, desde que os homens correspondam á  influência dela, nasce tudo quanto há de melhor, em toda forma, em todo grau, em todo jeito. É questão só de os homens corresponderem á  influência e á  ação dela.

A Etiópia, que depois passou séculos cortada da Cristandade por falta de comunicações, caiu na miserável heresia monofisita, mas houve tempo em que foi uma nação verdadeiramente católica. Apareceram esplendores de Fé católica na Etiópia como em qualquer outro país.

Esse episódio de Santo Aretas se-ria digno, por exemplo, da história religiosa da Espanha, nas suas melhores épocas. Ou seja, não é a Espanha que é magnífica, não é a Etiópia que é magnífica, como não é o Brasil, nem a Argentina, nem o Chile, nem o Uruguai, nem nada disso. O que é magnífica é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Onde a Igreja entra, todas as maravilhas de todo gênero, de todos os modos, de todas as espécies se multiplicam do modo mais magnífico, desde que os homens digam“amém”, digam “sim” á  influência da Igreja.

Entretanto, desde que a Igreja saia, tudo decai, tudo rola por terra, tudo dá em apóstatas franitas, em reis que não prestam, em tudo o mais. A verdadeira fonte de toda grandeza, de toda beleza, de todo bem, de toda bondade, de toda santidade, de toda ordem, de toda cultura, é a Igreja Católica. Fora da Igreja Católica as coisas podem nascer, formar-se um pouquinho, mas ou estagnam ou decaem.

Por exemplo, a cultura da China, do Egito, culturas, afinal de contas, extraordinárias. Levantaram-se, chegaram a um certo teto, não progrediram. É a imobilidade do Oriente parado e por dentro apodrecendo.

Tomemos a cultura católica. Ela se levanta como um chafariz no meio das águas estagnadas, só ela é água límpida; e mesmo depois da Fé católica ter sido praticamente extirpada do Ocidente pela Revolução, o Ocidente, naquilo em que ainda progride, floresce na velocidade adquirida pelo fato ter havido a Fé católica. Razão pela qual nós devemos compreender que amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor de Deus, isto importa em amar a Santa Igreja Católica Apostólica Romana sobre todas as coisas, e amar o nosso próximo na medida em que ele está unido à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Graça de admirar somente o que é segundo Deus

Em conversas particulares, eu inculco tantas vezes a necessidade da graça da admiração única que é, a meu ver, um elemento integrante da graça do amor de Deus. É a graça de só admirar aquilo que é segundo Deus. Esta graça da admiração única em relação a Deus, na ordem concreta dos fatos, dá na admiração única à Igreja Católica. Tudo quanto é tocado pela Igreja e recebe a influência dela é admirável; tudo quanto está fora disso, quando merece admiração, merece com tantas reservas, com tantas restrições, com tantas condições, que praticamente não dá em nada.

Então compreende-se esse enlevo, essa paixão que se deve ter pela Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, verdadeira pátria de nossas almas, verdadeira prefigura da Igreja gloriosa, à qual nós devemos pertencer no Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1967)

22 de outubro – Santo Abércio, o fulminante

Santo Abércio, o fulminante

Para imitar o Divino Redentor, deve o santo ser sempre um derrotado? Ao comentar alguns dos extraordinários feitos de Santo Abércio, Dr. Plinio responde a esta pergunta e delineia o perfil do autêntico católico, mesmo quando sobre este se abate a derrota.

Tenho em mãos uma ficha a respeito de Santo Abércio, bispo e confessor, extraída de uma obra do Padre Emmanuel D’Alzon(1), fundador dos agostinianos assumpcionistas.

Destruindo ídolos e exorcizando possessos

Numa zona da atual Turquia, elevava-se outrora a cidade de Hierápolis, dedicada a Apolo e evangelizada por São Paulo. Ao subir ao poder Marco Aurélio, em 161, era Bispo de Hierápolis, Abércio, já conhecido por suas virtudes. Um acontecimento, contudo, ia tornar esse Bispo um nome particularmente famoso. O novo Imperador incrementou o culto aos ídolos e, como Hierápolis era cidade consagrada, cresceu o número de procissões aos deuses pagãos.

Abércio sofria muito com isso. E certa noite, enquanto dormia, foi despertado por um Anjo que lhe entregou uma vara e lhe disse:

— Levanta-te, é hora! Com essa vara vai derrubar os falsos deuses que iludem o povo.

Sem delongas, ele correu ao templo, agora silencioso, e com seu instrumento lançou ao chão Apolo, Hércules, Diana, Vênus, e os estraçalhou.

Os sacerdotes e guardas acorreram, por causa do tremendo ruído, e viram, surpresos, o Bispo.

— Ide, afirmou ele, dizei aos magistrados e ao povo de Hierápolis que seus deuses, empanturrados de carne e embriagados de vinho, rolaram uns sobre os outros e se fizeram em mil pedaços. Juntai agora esses destroços, que eles talvez sirvam para algum entulho!

E retirou-se sem que ninguém ousasse tocá-lo. Foi dar aulas a alguns discípulos, como fazia todas as manhãs.

Entretanto, vozes começaram a se ouvir pedindo sua morte. Pagãos furiosos o procuraram e, ao encontrá-lo, avançaram para exterminá-lo. Mas foram detidos por três possessos, famosos na cidade, que se atiraram ante o Bispo, mordendo-se e uivando. A multidão deteve-se, fixando os olhos em Abércio, cuja nobreza e doçura a enchia de admiração, ao mesmo tempo em que as contorções daqueles infelizes a aterrorizava.

O Bispo ergueu as mãos e disse:
— Deus Todo-Poderoso, Pai de Jesus Cristo, cuja misericórdia ultrapassa infinitamente a malícia dos homens, eu Vos suplico: livrai esses infortunados das cadeias de Satanás para que todo esse povo Vos reconheça como Deus verdadeiro.

Com seu bastão, já vencedor dos ídolos, tocou os três possessos, que caíram inanimados aos seus pés. Ele os ergueu salvos e os enviou para suas casas.

Ante esse espetáculo, a multidão a uma só voz gritou:
— O Batismo! O Batismo! O Deus de Abércio é o verdadeiro Deus!

O exército salvo por um milagre

Santo Abércio teve sua fama difundida por toda a Ásia após esse fato. De regiões longínquas vinham procurá-lo. Possuindo o dom dos milagres, várias vezes favoreceu maravilhosamente a família de Marco Aurélio, inclusive libertando sua filha, a Princesa Lucila, de uma possessão diabólica. Era estimado pelo Imperador que, entretanto, nunca se converteu.

No fim da vida, Santo Abércio recebe uma missão muito especial, que foi a de consolar os cristãos na Síria, então muito perseguidos. Após exaustivas viagens, algumas igrejas quiseram fazer-lhe doações em dinheiro. Como ele recusasse, os cristãos não se conformaram em não lhe manifestar concretamente sua gratidão. Um católico de família ilustre propôs, então, prestar ao santo um outro tipo de homenagem. Dar a Abércio o título de “Igual aos Apóstolos”. Acrescentaram-lhe então, o nome grego de Isapóstolos.

É interessante acrescentar que tendo Santo Abércio recebido um aviso sobre sua morte, escolheu sua sepultura e fez gravar em mármore uma inscrição bem detalhada. Ao ser descoberto esse túmulo, no século XIX, tais dizeres comprovaram vários fatos históricos, que historiadores céticos haviam negado. Um dos mais interessantes é o que se refere a um acontecimento da vida de Marco Aurélio:

Seu exército, cercado num desfiladeiro, ia perecer de sede e fome. Seus soldados, torturados, chegavam a abrir as veias e beber o próprio sangue. Marco Aurélio, que então perseguia os cristãos, teve a ideia de recorrer ao verdadeiro Deus. Procurou por soldados cristãos e, indignado, verificou que eram muito numerosos, principalmente porque ali havia toda uma legião cristã, de Melitene. Os soldados invocaram o Todo-Poderoso e, nesse momento, relâmpagos caíram como chamas sobre os bárbaros, enquanto uma chuva benfazeja reanimou os romanos. Marco Aurélio deu a essa legião de Melitene o nome de “Legião Fulminante”. O senado romano, na coluna que mandou erguer em homenagem ao fato, atribui o milagre a Júpiter.

Erro muito grave: julgar que todo santo é sempre um derrotado

Nota-se nessa ficha a resposta a uma pergunta que a leitura da vida de tantos santos suscita.

Com efeito, os hagiógrafos se comprazem, e a muito justo título, em mostrar que o santo é um sofredor, compreende que essa Terra é um vale de lágrimas, a vida é o caminho da cruz e que é preciso levar a cruz até o alto do Calvário, seguindo Nosso Senhor Jesus Cristo. E por causa disso, na história dos santos, muitas vezes acentuam com especial ênfase o lado do sofrimento. E como a derrota é um dos grandes sofrimentos desta vida, naturalmente eles destacam também as derrotas.

E disso se depreende, de um modo geral — para um espírito que não esteja suficientemente advertido —, a ideia de que o santo é necessariamente um derrotado. E que não ser sempre um derrotado, esmagado, não estar sempre por baixo, não sofrer de uma espécie de inferioridade diante do adversário, é não ser verdadeiramente santo.

De onde nasce o tipo de católico amolecido e sentimental, que tem uma espécie de escrúpulo de se sentir triunfante, vitorioso, que julga uma impiedade alguém ser combativo, inclusive em relação ao demônio.

Na realidade, muitas vidas de santos são uma série de derrotas; outras, embora não o sejam, têm na derrota, entretanto, sua característica mais sublime. De fato, na vida do católico nesta Terra, muitas vezes a aceitação do insucesso se impõe como um modo de se unir a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas daí se tirar a conclusão de que é inerente à santidade estar sempre derrotado, em posição de inferioridade, há um erro muito grave. A começar pelo fato de que o verdadeiro santo, mesmo quando perseguido, derrotado, não sofre nenhuma forma de complexo, e muito menos ainda o de inferioridade em relação ao adversário. O modelo de todos os santos é Nosso Senhor Jesus Cristo, e Ele morreu sobranceiro e divinamente majestoso no alto da Cruz.Um homem que esmaga a impiedade.

Mas há certas vidas de santos em que esse sentido da vitória, do triunfo, se realça de uma maneira particular.

É o que podemos notar de um modo sensível na vida extraordinária desse santo. Vemos que ele tem todas as qualidades de um homem habitualmente triunfante, e que esmaga a impiedade com a sua virtude, sua coragem, levando a impiedade de roldão.

Notem o primeiro fato interessante: ele sofria muito pelo fato de que havia na cidade na qual morava, Hierápolis, um grande número de ídolos, e por isso ele rezou muito a Deus. Ele não sofreu porque lhe faltava algo na sua vida particular. Nem sequer a ficha trata da existência particular dele, mas da causa de Deus em Hierápolis, e mostra como ele não encontrava alegria nem satisfação porque a glória do Altíssimo estava calcada aos pés nessa cidade.

Remédio: sentindo a desproporção entre os ídolos que ele quer abater e as suas próprias forças, o santo recorre à oração. E através desta vem a solução.

Ele é acordado por um Anjo de quem recebe uma vara milagrosa. Vai ao templo, que está naturalmente vazio durante a noite, e toca com a vara os ídolos que estão eretos em alguns altares. Os ídolos rolam pelo chão e fazem um barulho tremendo. O que se concebe, porque esses ídolos eram muito maiores do que o tamanho natural de um homem, e sempre esculpidos em pedra.

Podemos imaginar o barulho que haveria de fazer, numa pequena cidade romana do tempo de Marco Aurélio, durante a noite, quatro ídolos grandes que caem no chão com tanta força que se espatifam. Entram os sacerdotes, e então há cenas que mereceriam figurar num teatro.

Filme sobre Santo Abércio

Vou dizer mais: se algum dia devêssemos fazer um filme ou espetáculo de televisão, a vida de Santo Abércio seria o tema.

Primeira cena: À noite, um templo de beleza clássica, no qual penetra um pouco de luar e uma coruja ou morcego esvoaça no recinto. Surge Abércio sozinho, com grande túnica branca, manto lançado sobre os ombros, segurando na mão a vara e rezando. Ele para no limiar do templo e olha com santo ódio. Depois diz: “Em nome de Deus Todo-Poderoso e para a glória de Maria Santíssima…” Caem os quatro ídolos e se espatifam no chão.

Imaginem a majestade e a dignidade do gesto! Os ídolos tinham tanta massa que uma forte pancada não os derrubaria, mas por uma força sobrenatural eles vacilam e caem. E o olhar de Abércio, vendo os ídolos se espatifarem…

Segunda cena: Na vaga claridade do amanhecer, vêm correndo ao templo os sacerdotes, com tochas, e encontram Abércio calmo, que os enfrenta cara a cara.
Pasmos, eles perguntam:

— Que fez este homem? Como ele se justificará deste sacrilégio?
Abércio, então, se justifica daquele “sacrilégio” por uma “blasfêmia”:
— Juntem este entulho e podem jogar no lixo! São deuses empanturrados de carne e vinho. Não valem nada! Vejam se ao menos para o lixo servem…

E o santo sai lentamente, enquanto os sacerdotes ficam olhando para aquele homem que se retira como uma aparição.

É um prenúncio do grande triunfo de Constantino, uma espécie de antegozo da época em que o paganismo vai ser esmagado definitivamente, e será instaurado o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Depois disso, o que ele faz? Nada que seja gabar-se por seus próprios feitos. Vai com toda a calma retomar sua função de professor; senta-se e começa a dar aula para os alunos.

Representou a vitória e a glória de Deus na Terra

Fato curioso, a calúnia começa a trabalhar. Alguns dos alunos, para os quais os sacerdotes haviam contado o ocorrido, difamam Abércio. O ódio cresce em torno dele e, talvez, através das janelas da sala em que lecionava, ele ouvisse murmúrios e sinais desse ódio.

Sereno, tranquilo, terminada a aula, ele sai e defronta-se com a multidão. Podemos imaginar o que é uma população trabalhada pela calúnia, efervescente, com alguns bruxos pelo meio:
— Pega, é aquele homem! Derrubou os ídolos! Onde já se viu?!

E Abércio, calmo, sobranceiro:
— O que é?

O povo olha para ele, e é tal a superioridade, a maravilha, a harmonia da natureza e da graça, sobretudo uma tal plenitude de superioridade da graça que se encontrava no santo, que todos ficam pasmos.

Alguns procuram ainda sublevar a multidão:
— Apedreja, apedreja!

Mas outros respondem:
— Fiquem quietos, não façam barulho! Vamos ouvir o que ele tem a dizer.

Cheios de raiva, os caluniadores veem a população dispersar-se lentamente, comentando:
— Realmente, Abércio é um grande homem! Ele nos deteve a todos pelo espetáculo de sua superioridade! Nele há qualquer coisa de celeste, a qual vale mais que todos os nossos deuses.

E o feito de Abércio fica famoso. Depois de Deus ter querido que tantos morressem como mártires, de um modo infamante, o Altíssimo quis que esse santo representasse a vitória e a glória d’Ele na Terra.

Com Santo Abércio, a Igreja alcança a sua primeira vitória sensível.

Depois disso, a fama dele se espalha por toda a Ásia e chega aos ouvidos do Imperador, cuja filha estava possessa. E o Imperador deve ter ouvido falar daqueles três possessos libertos por Santo Abércio. Cena também lindíssima: Durante aquela confrontação com o povo, ele expulsa os demônios como quem manda embora lacaios asquerosos, ou como quem condena ao cárcere demagogos infectos.

O Imperador manda pedir a Santo Abércio que cure a Princesa. E ele a curou.

Temos, então, a confrontação deste grande santo não mais com a população, mas com Marco Aurélio, considerado um pináculo da sabedoria romana e o receptáculo de todos os ensinamentos morais dos grandes mestres do paganismo.

Vitorioso, fulminante e humilde

Acontece que Marco Aurélio, dentro dessa manifestação da veracidade da Religião Católica, não se converte e mostra bem o que ele é: um pagão empedernido no paganismo e de má-fé. Entretanto, há uma coisa ainda mais digna de nota e que se dá com a “Legião Fulminante”, a qual se encontrava num estado verdadeiramente desesperador. Os legionários estavam na iminência de morrer de sede e fome, e chegaram a romper suas veias para beberem o próprio sangue. Pedem o auxílio de Santo Abércio, em nome de quem acontece um milagre: há, de um lado, uma intempérie que derrota o adversário e, de outro, uma chuva benfazeja que cai sobre a legião, a qual recebe assim a água necessária para continuar adiante.

Marco Aurélio e o Império Romano deveriam considerar que a legião era fulminante?

De fato haviam caído raios sobre o adversário. Mas quem os fulminara não fora a legião — nem tinham raios nas mãos para fulminar! —, e sim Santo Abércio.

Eles deveriam, portanto, ter chamado Abércio “o Santo Fulminante”, que passou a vida inteira fulminando.

Pelo contrário, a maldade do paganismo: para a legião que ia morrer miseravelmente como um bando de ratos, se não fosse o santo, eles levantam uma coluna no Fórum romano em louvor de Júpiter.

Com isso Santo Abércio passa para a História mostrando o paganismo desmascarado, e a pequenez de espírito do mundo pagão, mesmo no que ele tinha de mais grandioso, isto é, o Império e o exército romano. Ele passa fulminando todas essas grandezas pagãs, e vai diretamente para a honra dos altares.

Nós deveríamos chamá-lo de “Santo Abércio, o Fulminante”. Sempre que, em nossa vida, queiramos ser fulminantes, à maneira deste santo, mas ao mesmo tempo humildes, atribuindo toda a glória a Nossa Senhora, saibamos recorrer a Santo Abércio!

De tal maneira essa figura e essa biografia me entusiasmam, que se tivéssemos neste momento alguma sede, serviço ou sala para inaugurar, eu gostaria que se chamasse “Santo Abércio, o Fulminante”. Porque realmente é com esse nome — “Santo Abércio, o Vitorioso e o Fulminante” — que ele deve passar para a História da Igreja.

Fica, assim — tantos séculos depois —, oferecida à fronte majestosa dele esse cognome, deixando de lado a paródia ridícula da “Legião Fulminante”.

Para finalizar este comentário, eu diria: “Santo Abércio, fulminante e humilde, tornai-nos fulminantes e humildes como vós!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1972)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.

18 de outubro – Verdadeiro vaso do Espírito Santo

Verdadeiro vaso do Espírito Santo

Nosso Senhor cumulou a alma de São Lucas de graças muito especiais para ser o companheiro de São Paulo, redator de um dos Evangelhos e autor dos Atos dos Apóstolos.

Que qualidades morais precisa ter um homem para ser escolhido por São Paulo para seu companheiro de viagem! Alguém que, de um modo eminente, deve desdobrar as atividades apostólicas de São Paulo, figurar ao lado do Apóstolo das Gentes como o discípulo por excelência, aprovado pelo mestre e com quem este quer viajar.

Que dons deveria ter um homem para compreender tão bem a vida de Nosso Senhor, a ponto de coletar os dados necessários e escrevê-la como ele a redigiu no Evangelho!

E que dotes para merecer a glória e a honra de ser o único a escrever um livro inspirado e histórico a respeito do começo da vida da Igreja!

Podemos avaliar quão excelsos são esses dons, considerando que as qualidades do efeito estão na sua causa, e que o autor de um livro sempre vale mais do que sua obra.

Sendo o Divino Paráclito o autêntico Autor desses livros sagrados, isso supõe que São Lucas seja um verdadeiro vaso do Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/10/1971)

18 de outubro – São Pedro de Alcântara: personificação da penitência

São Pedro de Alcântara: personificação da penitência

Devido à explosão de orgulho e sensualidade promovida pela Renascença, havia no século XVI uma tendência geral das pessoas em procurar o gozo da vida e abominar a penitência. São Pedro de Alcântara enfrentou essa onda, e brilhou na Santa Igreja pelo seu espírito de mortificação levado até a sublimidade.

 

São Pedro de Alcântara era um santo sumamente penitente, a própria personificação da penitência na Igreja Católica, no século XVI. A respeito do caráter penitente deste religioso, podemos tecer algumas considerações.

Espírito de contemplação e de penitência, na sociedade civil

Na Santa Igreja Católica, nem todos são chamados a ser contemplativos, mas para que todos aqueles que vivam no século tenham a medida de contemplação necessária, cumpre haver algumas Ordens que levem o espírito de contemplação tão longe quanto possível. Essas Ordens dão uma espécie de sustentação à nota contemplativa que deve caber na vida comum de todos os homens, que querem realmente se santificar.

É muito expressivo que o próprio São Francisco de Assis tenha fundado a Ordem Terceira dos Frades Menores, para pôr cobro à generalização do desejo das pessoas, no século XIII, de entrarem para a Ordem franciscana. Tantos eram os que queriam ser franciscanos, que o século corria o risco de ficar abandonado. Então, para que o espírito franciscano pudesse florescer no mundo, ele fundou a Ordem Terceira que foi uma espécie de padrão para a fundação depois de Ordens Terceiras em outras famílias religiosas.

O que se diz da contemplação, pode-se afirmar da penitência também. Não há a possibilidade de todos os homens praticarem as penitências que os grandes santos penitentes fizeram, nem isso seria desejável. Se todos quisessem praticá-las, a Igreja poria um freio a isso.

Deve haver uma certa medida de penitência na vida quotidiana do homem comum, que quer seriamente se santificar; e os grandes santos penitentes, os grandes santos sofredores são exatamente aqueles que mantêm nos outros, pelo exemplo e pelo deslumbramento da penitência que praticaram, o espírito de penitência necessário.

A este título, são pilares da Igreja porque, como o sal que evita a podridão, eles conservam esse espírito na sociedade civil, nas Ordens religiosas não especialmente consagradas à penitência, no clero secular e nos mais altos degraus da Hierarquia eclesiástica.

E isto fez São Pedro de Alcântara numa época na qual o espírito de penitência era abominado, a Renascença estava tomando conta do mundo e, exatamente em virtude daquela explosão de orgulho e de sensualidade à qual me refiro em meu livro “Revolução e Contra-Revolução”(1), havia uma tendência universal para fazer da vida uma larga série de prazeres, até transformá-la num ininterrupto gozo.

 

Duas formas de penitência

Por penitência entendemos, antes de tudo, as doenças, os infortúnios, os desastres, as humilhações a que os outros nos sujeitam, as incompreensões, todas as coisas que nos fazem sofrer, permitidas por Deus ou que Ele manda e das quais não podemos fugir.

Além disso, existem as penitências voluntárias que impomos a nós mesmos por amor de Deus. A ladainha do Cardeal Merry del Val(2) sugere muitas penitências assim, implicitamente. “Que os outros possam ser louvados e eu desprezado, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo!” Quer dizer, se tendo a oportunidade de ser honrado e não há glória especial de Deus nisso, faço uma bonita penitência apagando-me e permitindo que outros sejam honrados para, por esta maneira, eu sofrer, desapegar-me de alguma coisa, dar glória a Deus, Nosso Senhor.

Paradoxalmente, essas duas formas de penitência contêm em si a realização da promessa do Divino Salvador, pela qual aquele que deixasse tudo por amor a Ele receberia o cêntuplo nesta Terra e, depois, a vida eterna.

Se prestarmos bem a atenção, notaremos o seguinte: há uma categoria de almas na Terra que são felizes, e outra de almas infelizes. É feliz, alegre, cheia de bom humor, a alma que compreende o papel do sofrimento na vida. Quando lhe acontece um infortúnio, não toma isso como um “bicho de sete cabeças”, não se revolta, não se apavora, mas compreende que o próprio de nossa condição humana é sofrermos. E que seria uma coisa sem precedentes, sem explicação, não sofrermos frequentemente muitas coisas.

Quando uma alma assim recebe um sofrimento, ela sofre mesmo, mas sem frigir, não começa a “fritar”. Sofre achando aquilo natural, entendendo que a razão de ser do homem nesta Terra é de dar glória a Deus, e isso não se consegue sem sofrimento. Por essa forma, é normal que soframos e podemos aguentar o infortúnio.

Almas esquecidas de si mesmas, voltadas para Deus e a Santa Igreja

Tendo firmeza e decisão, o sofrimento cai sobre nós e o aguentamos como Nosso Senhor Jesus Cristo aguentou a Cruz. Às vezes até caindo sob o peso dela, porém nunca se desesperando nem tentando abandoná-la — achando que está lhe acontecendo um absurdo, mas compreendendo que aquilo faz sentido, tem razão de ser —, levantando-se de novo e carregando a cruz.

As almas assim são, antes de tudo, dotadas de bom gênio, nativamente ou pela força que se impuseram a si mesmas. Quando se lhes faz algo de mau, elas estão prontas a perdoar. Quando se lhes manda alguma coisa, estão prontas a obedecer. Quando alguém se esquece delas, não tomam isso em linha de conta. São almas que estão longe de serem insensíveis. Mas têm isto de particular: são sensíveis para o bem, mas não para o mal que se lhes faz.

Essas são as almas que saltam na defesa da causa da Igreja, caso os princípios sejam atingidos. Porque quem se esquece de tal maneira de si mesmo pode ter amor aos princípios. São, portanto, as almas doutrinárias, que sabem o que é a procura do absoluto, convictas de que na vida a única coisa que vale é defender as coisas que são, afinal de contas, a semelhança de Deus na Terra e por causa disso, mais do que tudo, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a qual compendia em si todos esses valores.

O sofrimento é a lei da vida

Pelo contrário, uma alma que não se tenha compenetrado de que o sofrimento é a lei da vida, vive sofrendo. Porque cada coisa desagradável que lhe acontece é para ela uma aberração. Ela anda na rua, por exemplo, e tropeça, resmunga contra o calçamento; toma um táxi e o motorista não entende o caminho, ela acha um absurdo ter que explicar para o chauffeur como chegar ao destino; faz um passeio e, por mais que durante a viagem desfrutasse tudo do melhor — a hospedagem, um palácio; a comida, um banquete —, se teve algum enfado com companhias pouco interessantes, já é o suficiente para considerar frustrado o passeio. Por quê? Porque a pessoa imagina o seguinte:

“O normal, o banal é que me corra tudo perfeito. É a mínima das obrigações da vida para comigo. Alguma coisa que tenha saído de errado é um contrassenso. Como isso foi me acontecer?! Não entendo, não posso aceitar! Revolto-me!”

Às vezes, uma pessoa assim apresenta fisionomia muito alegre. Mas, vai-se ver por detrás e se nota uma tensão contínua, porque ela está, a todo o momento, com pânico de acontecer alguma coisa que seja um sofrimento. E, por outro lado, como os padecimentos vão surgindo, o indivíduo fica mais ou menos como um sujeito que tem a toda hora um pernilongo pousando em cima dele.

Quando não é pernilongo, é uma pedrada ou um tiro… Então a pessoa julga-se como uma espécie de tiro ao alvo, com os mil sofrimentos que lhe vêm sucedendo. Resultado: é a pior vida possível. Há um tipo de homem infenso à penitência porque julga estar nesta vida só para gozá-la, e não se preocupa com mais nada. Por isso, não quer aceitar a virtude e as dificuldades que ela traz consigo e, portanto, recusa toda e qualquer forma de sacrifício.

Uma segunda modalidade, que vem disfarçada com aspecto de virtude e, por isso, nos ilude mais facilmente, apoia-se na seguinte ideia: “Os sofrimentos necessários para não pecar eu aceito; porém, nenhum outro. Tenho o direito de gozar minha vida e quero fruí-la inteiramente, pois ela me foi dada para ser desfrutada. Eu me limito a não pecar; quanto ao mais, vivo completamente folgado”.

Quem pensa assim, na grande maioria dos casos, não se mantém fora do pecado e acaba por sucumbir nele, porque é um desvio completo da ideia da finalidade desta vida, que não consiste em que nós apenas gozemos dentro dos limites da virtude. A vida nos foi dada para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo. E, entre os serviços que podemos prestar ao Criador, um dos mais insignes, sobretudo em nossa época, é lutar por Ele. Servir, amar e lutar por Deus em toda medida do possível: é para isso que existimos.

Soldados da Igreja militante

Quer dizer, a vida não nos foi dada para o prazer, mas para o heroísmo, para a luta. E devemos considerar um ou outro prazer que nós nos proporcionemos apenas como uma coisa transitória, para descansar e recomeçar a batalha.

Para saber se o prazer é bom ou mau, devo julgá-lo de acordo com este critério: se terminado um determinado deleite, estou mais disposto à luta, à seriedade, à mortificação, esse prazer é bom; se, pelo contrário, fico mais mole ou menos desejoso de seriedade e de coisas elevadas, então esse deleite é ruim.

Todo prazer, todo descanso não é senão um interstício para servimos melhor a Nossa Senhora. Mas, como filhos da Igreja militante, nossa finalidade é de lutarmos a vida inteira, e de aguentarmos todas as aridezes e dificuldades da vida combatente.

Imaginem um soldado que esteja sentado na trincheira, num momento de intervalo de luta, olhando para o campo: “Que bonito esse campo, que lugar pitoresco onde foi aberta essa trincheira!”
Alguém diz para ele:

— Fulano, você tem que se preparar para a luta de amanhã!
— Ah, eu não! Esse negócio de avançar, passar o dia inteiro lutando, não! Cumpro o meu dever mínimo de soldado, sem desertar nem trair em favor do inimigo. Não entrego um palmo de território nacional.

Com um homem assim perdem-se todas as guerras!

Ora, somos soldados da Igreja militante e devemos ter em mente que a vida nos foi dada não para o prazer, mas para o dever.

As almas com espírito de mortificação, que compreendem quanto é natural sofrer, estão aclimatadas ao sofrimento como no seu ambiente próprio. Elas podem até gemer e pedir a Deus que afaste delas a dor, mas considerando normal passarem por padecimentos. Essas recebem o cêntuplo nesta vida, e até mais do que isso.

Intrepidez e iniciativa na luta contra o mal

Aqueles que procuram fugir da dor sofrem muito mais. Não há coisa pior do que a vida empregada exclusivamente para o prazer. O gozo meramente terreno, sobretudo quando é imoral, não passa de uma ilusão. Nos primeiros momentos dá uma satisfação pseudoinebriante, mas depois não resta mais nada a não ser a frustração.

Verdadeiramente, o papel do sofrimento bem aceito é o de dar esta alegria, esta serenidade que os antigos chamavam consolação, em meio a uma nobre tristeza.

Se analisarmos bem a realidade, veremos que nos povos onde mais se busca o prazer e mais se foge do sofrimento, há maior número de psicoses. Naqueles em que há menos procura de prazer e mais resignação com o sofrimento, existe mais força, mais consolação.

São Pedro de Alcântara e outros santos penitentes nos dão exemplos, para admirarmos até o último extremo da admiração — termos uma dessas venerações que nos varam a alma de lado a lado — aqueles que sofrem; mas que sofrem com grandeza, com resignação, com entusiasmo.

Uma das mais profundas e importantes formas de sofrimento é aguentar a luta contra o mal. E não apenas aguentar, mas ter espírito de intrepidez e de iniciativa nessa luta, o espírito militante de um São Miguel Arcanjo, de espada na mão, pronto a ser o primeiro em todas as batalhas, a dizer “não” a todos os adversários da Fé. Esse ânimo de heroísmo e de intrepidez, enfrentando todos os trabalhos e todas as lutas, é a fina ponta do espírito de sofrimento.

É, sobretudo, isso que devemos querer ao pedirmos o espírito de penitência, o senso da mortificação, sem os quais não se pode ter o desejo das coisas espirituais nesta Terra nem das coisas celestes. Peçamos, então, a São Pedro de Alcântara que no-los alcance.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/10/1964 e 19/10/1965)

1) Parte I, Cap. III, 2. B.
2) Publicada na Revista Dr. Plinio n. 107, p. 13.

18 de outubro – Modelo de penitente

Modelo de penitente

Sumamente penitente, São Pedro de Alcântara foi a própria personificação da penitência na Igreja Católica, durante o século XVI.

Os grandes santos sofredores, os grandes santos penitentes, são aqueles que pelo exemplo e pelo deslumbramento de sua entrega, mantêm nos homens o espírito de penitência necessário.

Isto fez São Pedro de Alcântara numa época em que a Renascença começava a tomar conta do mundo e o espírito de penitência era abominado. Época em que, devido à explosão do orgulho e da sensualidade, manifestou-se uma tendência universal para transformar a vida num ininterrupto prazer.

Peçamos a São Pedro de Alcântara a graça de admirarmos e imitarmos o seu exemplo em nosso tempo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/10/1964)