10 de novembro – INTRANSIGÊNCIA E DUCTILIDADE: SÃO GREGÓRIO MAGNO

INTRANSIGÊNCIA E DUCTILIDADE: SÃO GREGÓRIO MAGNO

Comentando a diretriz de São Gregório Magno a São Justo, relativa ao apostolado na Inglaterra, Dr. Plinio ressalta a perenidade da Igreja até nas coisas inteiramente secundárias. A carta indica, ao mesmo tempo, muita ductilidade, maleabilidade, naquilo que é secundário e uma enorme intransigência no que é realmente importante.

A 10 de novembro comemora-se a festa de São Justo, bispo, a respeito do qual diz Rohrbacher1, na sua obra Vida dos Santos, o seguinte:

Diretriz de São Gregório Magno sobre o apostolado na Inglaterra

São Justo foi companheiro de Santo Agostinho, em seu trabalho de conversão da Inglaterra.
É, portanto, Santo Agostinho que foi Arcebispo de Cantuária, no século VI, e não Santo Agostinho de Hipona.
Escreveu-lhe São Gregório o seguinte, a respeito de uma consulta.
São Justo fez a São Gregório Magno uma consulta e este lhe deu a resposta que segue.
Quando chegardes ao pé de nosso irmão Agostinho dizei-lhe que, depois de ter pensado longamente, examinado bem a questão dos ingleses, julguei que não devia destruir os templos, mas somente os ídolos que neles estão. Purifique-os com água benta, desça do altar os ídolos e lá coloque relíquias. Se esses templos são bons, bem edificados, que passem do culto dos demônios ao serviço do verdadeiro Deus, a fim de que aquela nação, vendo conservados os lugares aos quais estão acostumados, neles passem a ir mais à vontade. E como estão acostumados a sacrificar bois aos demônios estabeleça qualquer cerimônia solene como a da consagração, ou dos mártires de quem ali estão as relíquias.
Que façam barracas em volta dos templos transformados em igrejas e celebrem a festa com refeições discretas. Ao invés de imolar animais ao demônio, que os matem para comer e render graças a Deus que lhes deu o alimento, a fim de que, deixando quaisquer manifestações sensíveis de júbilo, possam insinuar-se mais facilmente nas alegrias interiores. Porque é impossível destituir os duros espíritos de todos os costumes de uma só vez. É devagar que se vai ao longe.

Todos os deuses dos pagãos são demônios

Essa carta é muito interessante, antes de tudo por causa dessa afirmação que nós encontramos numerosas vezes em Padres e Doutores da Igreja, bem como na Escritura que diz: omnes dii gentium dæmonia (Sl 95, 5) – todos os deuses dos povos, das nações que não Israel, são demônios.
E isso provém deste fato que São Luís Grignion de Montfort põe muito em relevo: o homem, depois do pecado original, nasceu escravo. Ou é escravo de Deus, de Nossa Senhora, ou é escravo do demônio. Não tem outro remédio. E como esses povos pagãos não são escravos de Nossa Senhora, nem de Deus, são necessariamente escravos do demônio. E aquelas coisas que eles adoram são realmente demônios. Sem falar nos numerosos casos que se conhecem de manifestações preternaturais diabólicas, a propósito do culto dos demônios.
De maneira que a expressão é muito característica, violenta, profundamente antiecumênica. Exatamente nesse sentido é interessante essa carta porque ela indica, ao mesmo tempo, muita ductilidade, maleabilidade naquilo que não tem importância, e uma enorme severidade no que é realmente importante.

Templos pagãos purificados pela celebração do verdadeiro culto

Os templos dessas nações pagãs não tinham nada em comum com a arte moderna. Esta é uma negação violenta, blasfematória, de toda forma de verdade e de bem. É a arbitrariedade artística erigida em afirmação normal da desordem e da feiura. Evidentemente, a arte moderna não pode servir para uma igreja católica. Mas os templos constituídos em outras escolas artísticas que não terão a elevação, a sacralidade do gótico, mas são escolas dignas e que realmente contêm verdadeiros elementos de beleza, podem adequadamente servir para o culto católico.

 

 

Lembro-me que nós publicamos um “Ambientes-Costumes”, em “Catolicismo”, no qual havia uma fotografia de um pagode chinês, e mostrávamos como ele era próprio para servir ao culto católico dentro de uma nação chinesa. Não que se fosse construir um pagode para ali pôr um culto católico, porque quando se faz procura-se fazer o melhor possível. Mas quando se recebe o fato consumado, procura-se aceitar o aceitável. E o pagode, bonito, com muita nobreza, muitos valores, mereceria perfeitamente ser aceito pelo culto católico.
Por exemplo, os heróis da Reconquista, quando tomavam aquelas cidades antigamente mouras que possuíam mesquitas muito bonitas, como a famosa de Córdoba, purificavam as mesquitas, tiravam todos os emblemas do islamismo e instalavam o culto católico, o qual até hoje continua a ser celebrado nesses locais. E isso é uma coisa digna, feita pelos próprios heróis da Reconquista.
Isabel, a Católica, quando penetrou em Granada, uma das primeiras preocupações dela foi precisamente de mandar purificar a mais importante mesquita da cidade e rezar ali uma Missa. Era o principal símbolo da vitória alcançada contra o Islã.

Intransigência no necessário e ductilidade no secundário

lho que São Gregório dá a Santo Agostinho. Se os templos têm características que não destoam do culto, devem-se aproveitar.
E ele indica então uma razão de caráter psicológico: as pessoas estão habituadas a ir ao templo. Uma vez que se elimine o elemento ruim, que é o culto idolátrico, esse hábito desinibe o indivíduo de frequentá-lo. Então, convém aproveitar essa circunstância de nosso lado.
Notem quanta intransigência no necessário e quanta ductilidade naquilo que é secundário e realmente não tem nenhuma atinência com os princípios. Não quer dizer o seguinte: ser intransigente com os princípios fundamentais e tolerante com os princípios secundários. Isso seria uma abominação. Com os princípios se é intolerante em toda linha, até onde eles vão. Mas uma parte da realidade que escapa, sob vários aspectos, ao ângulo dos princípios pode ser vista com essa largueza.
Observem as quermesses realizadas junto a igrejas. Muitas delas são de moralidade duvidosa, culturalmente repelentes e sem expressão de valor piedoso em nenhum sentido da palavra.
No caso acima, vemos o contrário. São Gregório Magno manda fazer barraquinhas em torno das igrejas, o que, naquela noite dos tempos, era propriamente a quermesse. Para quê? A fim de distribuir comilanças porque aquele pessoal estava habituado a comer. E ele indica um sentido religioso à refeição: celebrem a Deus que lhes concedeu essa comida, e fiquem alegres com isso; era um pouco de regozijo depois do trabalho. E com isso se atraía o povo
Vemos como essas coisas se ligam e dão bem uma expressão da perenidade da Igreja até nas coisas inteiramente secundárias. 

(Extraído de conferência de 9/11/1966)

1) ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas. 1959, v. XIX, p. 287-288.

08 de novembro – Moldura para a figura de São Willehade

Moldura para a figura de São Willehade

Os saxões eram pagãos muito agressivos e frequentemente invadiam as terras dos francos, cometendo crimes e pilhagens. Carlos Magno, numa cruzada em defesa da Religião Católica, atacou-os e derrotou-os. Eles se revoltaram, mas novamente o Imperador venceu-os e lhes impôs um tributo em benefício da Santa Igreja.

 

São Willehade, bispo e confessor. Foi o primeiro Bispo de Bremen, diocese criada pelo Imperador Carlos Magno, após suas conquistas. No ano de 788, 21º do seu reinado, Carlos Magno deu àquela igreja um diploma lavrado nos seguintes termos:

“Em nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Carlos, por vontade da Providência Divina, Rei. Sob o auxílio do Deus dos exércitos, conseguimos uma vitória nas guerras. É só n’Ele que nos gloriamos. E é d’Ele que nós esperamos neste mundo a paz e a prosperidade, e no outro a recompensa eterna.

Salvem-se, pois, todos os fiéis de Cristo, e os saxões rebeldes aos nossos ancestrais, pela obstinação da perfídia e por um tão longo tempo rebeldes a Deus e a nós, até que os tivéssemos vencido pela Cruz do Senhor, não pela nossa. Por sua misericórdia, nós recebemos a graça do batismo, e os levamos à antiga liberdade, desobrigando-os de todos os antigos tributos que nos devem. Pelo amor d’Aquele que nos deu a vitória, de tributários os declaramos devotamente súditos.

Como se recusaram a tal presente e o jugo de nosso poder, agora que foram vencidos pelas armas e pela Fé, ficam obrigados a pagar a Nosso Senhor Jesus Cristo e seus sacerdotes o dízimo de todos os seus animais, frutos e culturas.”

Zelo do poder civil para com o poder eclesiástico

A ficha não se presta propriamente a um comentário a respeito de São Willehade, bispo e confessor, porque a propósito dele diz que foi Bispo de Bremen, e a respeito dessa cidade transcreve o decreto de criação da Diocese de Bremen, no ano de 788, por Carlos Magno.

De maneira que, inevitavelmente, o comentário tem que ser sobre o decreto. Parece uma coisa extravagante fazer a respeito de um documento legal uma conferência que deveria versar sobre a vida de um Santo. Quem lesse os decretos promulgados hoje não encontraria tema para tal conferência. Por exemplo, um decreto sobre o trânsito ou, como no presente caso, a respeito de questões fiscais — porque Carlos Magno está lançando um imposto —: que matérias de vida espiritual podem caber?

É interessante analisarmos este decreto para compreendermos a modificação completa do ambiente que vai da civilização cristã para a de nossos dias: o Imperador especifica o modo pelo qual esse tributo precisa ser pago, e torna obrigatório o cumprimento desse dever para com a Igreja.

Vejam que relações íntimas entre poder eclesiástico e o poder civil havia naquele tempo, o cuidado do poder civil pelo poder eclesiástico. E com que abundância estava provida a manutenção do clero e do culto na Catedral de Bremen, para a glória de Deus antes de tudo e, secundariamente, para a cristianização desses povos ainda semipagãos.

Um ato ilícito que produziu bons frutos

Observem uma outra coisa interessante: como o Imperador descreve o seu papel enquanto cobrando esse imposto. Carlos Magno mostra que se trata de um povo que era pagão, o qual ele reduziu pelas armas, quer dizer, tem sobre esse povo o direito de conquista. E um direito de conquista legítimo porque os saxões, muito agressivos, continuamente invadiam as terras dos francos, de quem Carlos Magno era o rei, fazendo provocações, crimes e pilhagens nas fronteiras, e queriam impor a religião pagã.

Então, Carlos Magno, numa cruzada em defesa da Religião Católica, invadiu as terras deles e derrotou-os. Passando um pouco dos limites, ele estabeleceu o princípio: ou crê ou morre; quem não é batizado deve ser morto. E, naturalmente, o número de batismos foi enorme.

Também a quantidade de execuções capitais foi muito grande. Correu água batismal e correu sangue às torrentes nessa ocasião. E ele até foi censurado pelo Papa, porque não se pode colocar ninguém diante da alternativa: ou crê ou morre.

Eu estou de acordo com o Papa e não com Carlos Magno. E não é numa atitude contestatária — longe de mim isto — que vou, entretanto, fazer a seguinte observação: é que muitos batizados forçados deram resultado certo; e depois eles e os seus filhos ficaram na Fé Católica e nela perseveraram até hoje, ou até pouco tempo atrás.

Quer dizer, talvez não tenha sido inteiramente lícito, ou não foi lícito e por isso não foi bom. Afirmar que não tenha sido útil já é uma outra questão.

Produziu lá seus frutos…

Da barbárie para o píncaro da cultura e da civilização

Depois o Imperador mostra como os saxões se revoltaram de novo. E Carlos Magno teve que exercer, outra vez, uma ação de conquista sobre esse povo. E, então, os saxões viviam pela misericórdia do Imperador. Conforme as leis da guerra, ele poderia ter exterminado os saxões, porque junto a eles não era possível viver, ou ter reduzido muitos ao cativeiro.

Carlos Magno não fez nada disso. Ele instituiu, fixou suas fortalezas, intensificou a cristianização, mas cobrou um imposto particularmente grande, porque os saxões eram rebeldes vencidos. E o rebelde vencido é obrigado a um imposto maior.

Vemos, assim, como ele sabia, nas suas apreciações, temperar a justiça com a misericórdia. Ele mostrou ser misericordioso com esse povo em várias circunstâncias, mas chegando a ocasião da justiça ele tinha o direito de exigir o imposto.

Eu falei em extermínio. É claro que Carlos Magno não podia exterminar o povo inteiro, mas sim ordenar a matança de um certo número deles que fossem presos com armas nas mãos, para intimidar e nunca mais haver a possibilidade de atacarem. Vê-se que ele foi benigno, não levou as coisas tão longe; pelo contrário, soube amenizá-las de maneira que, dotando a catedral e o clero tão bem, obrigava o povo a pagar um imposto, do qual a principal vantagem era para Deus.

Deus não precisa de nada, mas, enfim, era para o culto divino. E o povo tinha o maior dos benefícios, porque, bem implantada a Religião numa situação de prestígio, apoiada pelo poder temporal, pelo Imperador, dotada de meios para influenciar, podia deitar fundo as suas raízes no meio daquela gente. E isto para eles era o melhor, pois saíam do estado de barbárie e podiam chegar, como de fato chegaram, ao píncaro da cultura e da civilização. É a Alemanha.

Compreendemos, portanto, como Carlos Magno era sábio e benfazejo no que estava dispondo e estabelecendo. E isto está mais ou menos dito no decreto, embora este não desça tanto a fundo nas coisas.

Carlos Magno, servidor da Santa Igreja

É bonito notarmos como o Imperador atribui todas essas vitórias a Deus. Ele diz: nós vencemos pelo auxílio divino. Como quem afirma: Eu sei que venci essas batalhas, mas não passei de instrumento de Deus; se não fosse a interferência d’Ele eu teria perdido essa guerra.

Todas essas ideias a respeito da missão de Carlos Magno na História, do seu papel junto aos povos pagãos, como distribuidor da justiça e da misericórdia em nome de Deus, como braço direito da Igreja na ordem temporal, tudo isso cabe no título inicial, que é este: “Em nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Carlos, por vontade da Providência Divina, Rei.” Tem uma beleza extraordinária!

Observem a incisão das palavras. Quer dizer, aqui estou eu, mas isso desce do alto. Tem-se a impressão que a indicação desse título é acompanhada de revoadas de Anjos, de sinos de catedrais que tocam, de esplendor e de luz no céu: Carlos, por vontade do Onipotente, Rei, porque a Providência Divina queria que ele fosse rei. O representante de Deus na Terra para as coisas temporais, e o servidor da Santa Igreja Católica em tudo quanto ela possa querer dentro da ordem temporal.

Tudo quanto a palavra tem de sacral, toda a plenitude de seu poder brilha por causa do que vem antes: é a vontade de Deus, o desígnio da Providência dando o fundamento, o sentido e a tônica a esse poder. Então compreendemos a beleza desse decreto.

A verdadeira vida é a santidade

A esses comentários será inteiramente estranho São Willehade?

Eu creio que de nenhum modo. Tudo isso está para São Willehade mais ou menos como o vaso para a flor. Tomem um vaso magnífico feito para conter uma flor. Enquanto nele não entra a flor, ele está numa certa orfandade. O vaso só se explica, mostra a sua beleza inteira quando nele se põe uma flor ainda mais bela do que o vaso; a beleza da natureza, da obra direta de Deus, supera, de algum modo, a pulcritude que o homem fez para conter aquela obra-prima da natureza.

E São Willehade é a flor desse vaso. Quer dizer, do que adiantaria a grande catedral, o sólio episcopal, o grande Imperador, se para um lugar como esse nunca fosse designado um verdadeiro Santo, se perfume e a fermentação da santidade não se espalhassem por lá? Todas essas coisas são belas, são nobres, estão no desígnio da Providência na medida em que servem à influência da santidade e como instrumentos d’Ela. Mas a verdadeira vida de tudo isto é a santidade.

De tal maneira que podemos imaginar, então, Bremen com sua catedral nova, as fileiras de saxões convertidos que vão, em dias determinados, entregar os seus dízimos para que o templo e o culto divino sejam mantidos convenientemente, os cânticos, o povo. Mas nada é tão belo quanto conjecturar o sólio episcopal no qual está o Santo, representando Deus, com uma plenitude e uma densidade de representação muito maior ainda que a de Carlos Magno. O poder espiritual vale mais que o poder temporal, porque é mais densamente sacral. Willehade está representando Deus enquanto bispo e enquanto Santo.

Compreendemos, então, quem ele era na sua catedral e na Cristandade nascente; naquele ambiente todo preparado pelo zelo de Carlos Magno, ele era a flor. Dele é que vinha o perfume, o encanto da vida, da vida sobrenatural, da graça. Assim, nós temos a moldura na qual podemos imaginar a figura de São Willehade.

Imaginar como? Para nós, a figura do tipo ideal do bispo, de um Santo que é tipo ideal do católico. Nós lhe podemos atribuir um físico segundo a nossa fantasia. Mas a alma sabemos em linhas gerais como é, porque os Santos são todos tão diferentes uns dos outros, mas tão parecidos uns com os outros. Ali se encontrava um Santo, está tudo dito. De maneira que o “Santo do Dia” começa assim: Carlos, por vontade de Deus e por desígnio da Providência, Rei.

E termina: São Willehade, Bispo por vontade de Deus e desígnio da Providência, Santo. Inicia com um Rei e termina num Santo.

Aí está a Idade Média no seu esplendor.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/11/1971)

07 de novembro – Só ama o bem quem odeia o mal

Só ama o bem quem odeia o mal

Só ama o bem quem odeia o mal

 

São Lázaro, monge do século IX, teve as mãos queimadas por ordem de um imperador iconoclasta porque fazia imagens sagradas. Os humanitários que hoje declamam contra as Cruzadas e a Inquisição não têm uma palavra de censura para com os imperadores romanos que martirizavam os católicos.

Temos para comentar alguns dados biográficos de um Santo extraordinário: São Lázaro, Confessor. Não é o amigo de Nosso Senhor, irmão de Marta e Maria. Monge e pintor de sagradas imagens, viveu no século IX. Queimaram lhe as mãos com ferro em brasa, mas foi curado pelo poder de Deus e pintou novamente imagens que haviam sido raspadas pelos iconoclastas. O Criador restaurou suas mãos e ele restaurou as pinturas.
Mãos queimadas até os ossos
Lázaro, nascido no Monte Cáucaso, deixou seu país na primeira juventude e veio para Constantinopla, onde abraçou a vida religiosa. Além dos exercícios ordinários do estado monástico, aprendeu pintura, arte que se cultivava nos claustros, sobretudo em Constantinopla, desde que a guerra contra as sagradas imagens tinha sido declarada pelos iconoclastas1.
Como os iconoclastas eram contra o uso das imagens, nos bons mosteiros os monges aprendiam a pintá-las como um meio de combatê-los. Naturalmente, depois eles difundiam essas pinturas.
Os imperadores, não contentes de quebrar as imagens e perseguir seus defensores, tinham ainda de tal modo intimidado os pintores com o rigor de seus editos, que o medo da morte, da prisão e do exílio os impedia de fazer qualquer quadro de Jesus Cristo ou dos Santos. Foi o que levou muitos superiores de mosteiros a querer reparar esse dano, apesar das ameaças e da indignação do soberano, introduzindo a arte da pintura em suas casas, para impedir que as santas imagens fossem abolidas pelos ímpios.
Lázaro tinha se tornado muito hábil nessa profissão, e a perpetuação, a reputação que adquiriu foi causa da perseguição particular que teve de sofrer.
O Imperador Teófilo, em 829, tendo ordenado a pena de morte para todos os pintores que recusassem a rasgar os quadros nos quais tivessem pintado os Santos, mandou buscar Lázaro em seu mosteiro, para executar o edito em sua presença. Não conseguiu levá-lo a isso pela doçura e recorreu à tortura. Fê-lo tão cruelmente que pensou que São Lázaro morreria no suplício. Mas, tendo recuperado suas forças algum tempo depois, continuou a pintar. O imperador mandou prendê-lo de novo e torturá-lo com brasas de ferro rubro nas mãos, queimando-as até os ossos.
A imperatriz Santa Teodora obteve do marido a sua libertação e o manteve oculto na Igreja de São João Batista, onde o fez curar. Quando Lázaro se restabeleceu, pintou, por reconhecimento, um quadro do Precursor, que se tornou um dos mais célebres de seu tempo.
Após a morte de Teófilo, a imperatriz Santa Teodora e seu filho Miguel III restabeleceram a honra das imagens. Lázaro elaborou um Salvador que colocou sobre uma coluna para ser exposto à veneração pública.
Vendo, então, o culto antigo bem fortalecido, entregou-se aos santos exercícios da vida monástica, não pensando senão em santificar-se nas obscuridades do claustro, onde morreu em 867.
Ódio contra os que defendem a Fé
Percebemos nesta narração, de modo muito notável, a fidelidade desse Santo à sua vocação, levando-o a enfrentar toda espécie de torturas. Mas me parece ser tal o número de mártires com essa fidelidade – isso é algo refulgente de tal maneira na Igreja que as nossas almas estão cheias dessa luz –, não sendo o caso de insistir sobre isso.
Talvez seria conveniente apontar, nesse conjunto de fatos, um aspecto não tão batido quanto o da glória insondável do martírio: a impiedade é fina e perspicaz no seu ódio, e devemos lamentar que nós, filhos da luz, não sejamos tão perspicazes e finos como ela.
Os humanitários declamam muito contra as Cruzadas, a Inquisição e toda forma de guerra de religião – porque, dizem eles, são torturas horrorosas, não se deve absolutamente permitir uma coisa dessas, é contra a caridade etc. – porém, não têm uma palavra de censura para com os imperadores romanos que martirizavam os católicos. Quando se diz a um deles:
— Você não fala contra Diocleciano, Nero? Só contra Torquemada2?
E num movimento temperamental de um ódio todo platônico, ele diz:
— Ah, também contra esses eu sou contra. Mas Torquemada… é preciso acabar com ele.
— E Nero não foi horroroso?
— Sim, sim. São coisas que se deve censurar, e – bocejando, acrescenta – eu censuro…
Mas o ódio dinâmico dos ímpios é contra aqueles que derramaram o sangue na defesa da Fé. Contra os que o fizeram verter para combater a Fé eles não têm ódio dinâmico nenhum. Isso prova que, no fundo, o ódio deles não é contra o derramamento de sangue, mas é contra a defesa da Fé.
Quanto se tem falado contra os Autos de Fé espanhóis! No que isso tem de diferente de um Auto contra a Fé, do ponto de vista sangue? Não tem nada de diferente. Tanto um quanto outro envolvem sangue, são opressões da liberdade. Entendamo-nos a esse respeito. O ódio dos humanitários, dos liberais vai exclusivamente contra aqueles que derramaram o sangue para defender a Fé.
Sanha de perseguição contra os bons
Isso vai mais longe. Se eles não têm ódio aos que promoveram o derramamento de sangue perseguindo os católicos, muitos dentre eles, podendo, também não verteriam o sangue dos católicos? Uma coisa traz a outra, como consequência. Se eu, diante de crimes atrozes como esse, me manifesto frio, no fundo acho que quem fez isso tem uma certa razão e eu, no caso, talvez o fizesse. Compreende-se, então, até onde chega a ferocidade dos ímpios: não só até a contradição, mas até uma sanha de perseguição que não revelam, mas que, no fundo, eles têm.
Reflexão muito útil quando estivermos em presença de pessoas como essas, pois quase todo mundo tem esse estado de espírito.
Façam um teste nos ambientes frequentados. Digam algo sobre a Inquisição e todo mundo se levanta para atacá-la. Falem contra as perseguições, por exemplo, dos iconoclastas no Império Romano do Oriente, e sai o tal ódio frio, platônico, que não é verdadeiro ódio.
Portanto, toda essa gente tem, no fundo – ao menos em algumas fibras da alma, quando não em todas –, uma complacência com a ideia de matar os autênticos católicos.
Então, em contato com pessoas desse naipe, devo pensar: “Esse indivíduo que está falando comigo quereria matar-me, se pudesse”. É preciso chegar até o caso pessoal, atingir a pele e o instinto de conservação. Não considerar apenas em tese a morte dos cristãos, dos católicos.
Não conhece nem ama o bem quem não conhece e não odeia o mal
Se esse indivíduo fosse meu familiar, eu poderia cogitar: “É verdade. Mas sendo ele meu parente, não me mataria”. Isso é falso. O ódio deles contra a Fé é tão grande que gostariam de matar os católicos e não poupariam ninguém.
Quem julgasse que o indivíduo não faria isso com ele porque é seu parente, pensaria como um ingênuo. Seria bom passar por um curso de “desingenuização” porque levou a ingenuidade até extremos muito grandes.
Peçamos, então, a São Lázaro esta graça penetrante: perceber e discernir nos ímpios com os quais tratamos o ódio que eles têm a nós.
Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, qual é a vantagem disso? Eu vivo tão bem com os meus parentes. São agradáveis, influentes, conversam bem. Agora está o senhor me fazendo ver um Nero ou um Calígula… O senhor desarranja tudo! E parece estar contente com o desarranjo produzido.”
A minha resposta é a seguinte: Não conhece nem ama o bem quem não conhece e não odeia o mal. O conhecimento do mal é indispensável para o conhecimento do bem, como contraste. Depois do pecado original, não se pode dispensar o conhecimento do mal. E é preciso medir o mal em toda a sua extensão, para conhecermos o bem em toda a sua nobreza.
Portanto, é necessário fazer esse exercício com as pessoas próximas de nós. Porque, ademais, seria uma atitude simplória achar que os parentes dos outros não prestam e são muito ingênuos quando acreditam neles, mas os nossos são diferentes.
Vale muito a pena nos compenetrarmos do ódio pessoal que eles têm a nós, porque enquanto não tivermos essa compenetração, um restinho de complacência com o mundo pode ficar. E se trata, exatamente, de dissipar toda e qualquer complacência com o mal. Então, fica isso indicado à nossa consideração a propósito da vida de São Lázaro.

 

(Extraído de conferência de 22/2/1967)

1) Não dispomos dos dados da ficha utilizada por Dr. Plinio.
2) Tomás de Torquemada (*1420 – †1498), sacerdote dominicano espanhol, confessor da Rainha Isabel, a Católica, e do Rei Fernando de Aragão. Foi também grande Inquisidor de Espanha.

06 de novembro – Oração: São Nuno de Santa Maria

Oração: São Nuno de Santa Maria

Sobre São Nuno de Santa Maria, nome que o Condestável Nuno Álvares Pereira tomou em religião como religioso carmelitano, o Gal. Silveira de Mello, no livro “Os Santos Militares”, diz o seguinte:

“As primeiras atividades militares de Nuno Álvares Pereira foram, no seu dizer, simples escaramuças nas fronteiras de Portugal. Jovem impetuoso, revelou-se logo exímio condutor de seus homens. Certa ocasião, os castelhanos fizeram um desembarque com cerca de 250 homens para estabelecer uma cabeça de praia que facilitasse o desembarque. Nuno, de guarda nessa hora, não possuía senão dois pelotões de 60 homens que o acompanhavam. O chefe português podia opor-se ao desembarque do escalão inimigo, mas exporia a inferioridade numérica de seus homens. Preferiu atacar os castelhanos fora da praia, mas grande parte de sua gente intimidou-se. O inimigo desembarcou sem encontrar resistência e avançou em posição de ataque.

“Nuno, ajudado de poucos cavaleiros audaciosos, fez frente à primeira leva dos inimigos. Atacou-os com fúria, acometendo-os à lança e à pata de cavalo. Quebrando a lança, puxa da espada; o cavalo que montava cai ferido e prende, na queda, a perna do cavaleiro. Os castelhanos aproveitam do incidente e atacam. Vendo o chefe em perigo, os companheiros avançam em seu socorro. Entusiasmam-se os lusos, a princípio indecisos. Nuno não se ferira, protegido que fora pela armadura e pelo escudo. Entra na luta com novo ânimo, luta essa de quatro contra um. Mas aos portugueses vale o denodo do capitão. Os inimigos perdem terreno, debandam, são perseguidos e poucos se põem a salvo.

“A 15 de agosto de 1243, Nuno foi admitido na Ordem Carmelitana com o nome de Nuno de Santa Maria. Foi grande religioso, como fora grande soldado. Encontrou no convento um sacerdote que antes da ordenação fora também soldado e o servira. À sua passagem, o monge terciário … ia beijar-lhe o hábito em respeito à sua dignidade. Por seu lado, o sacerdote carmelita declarava que uma das grandes honras de sua vida fora ter sido pajem do Condestável.

“No último ano de sua vida, em 1431, alquebrou-se o velho guerreiro. O rei D. João foi vê-lo e ao abraçá-lo pela derradeira vez, chorou como quem se despede do melhor amigo. Quando percebeu que sua hora era chegada, Nuno pediu que lhe fosse lida a Paixão do Senhor, segundo São João. Expirou suavemente às palavras …

“Epitáfio de Nuno de Santa Maria: Aqui repousa aquele Nuno, Condestável, fundador da Casa de Bragança, general exímio, depois monge bem-aventurado, o qual, sendo vivo, desejou tanto o Reino do Céu que mereceu, após a morte, viver eternamente na companhia dos santos. Pois, após numerosos troféus, desprezou as pompas e fazendo-se humilde de príncipe que era, fundou, ornou e dotou esse templo.”

Num Canto dos Lusíadas Camões exalta a figura do grande herói português, quando este incita os fidalgos lusos à resistência:

“Atai as mãos a vosso vão receio, que eu só resistirei ao jugo alheio. Eu só com meus vassalos e com esta – Dizendo isso arranca meia espada – Deterei da força dura e infesta – A terra nunca de outrem subjugada. Em virtude do rei, da pátria… – Da lealdade já por vós negada – Deterei não só esses adversários – Mas quanto a meu rei for necessário.”

A grandeza camoniana!…

Os episódios aqui narrados são todos eles de grande significação, tanto a batalha árdua de Nuno Álvares Pereira, quanto depois a sua atuação no convento, e aquela linda reciprocidade de respeito entre ele e o sacerdote.

Ele que como simples donato, quando via passar o sacerdote se levantava e o sacerdote que fora pajem dele, que se honrava em ter sido pajem dele e que sentia uma profunda emoção de respeito quando via D. Nuno Álvares Pereira passar…

O espírito católico se compraz em reconhecer a superioridade  e naquele tempo, ele se exprimia numas manifestações de mútua reverência, de mútuo respeito, de mútua admiração, que faziam crescer ainda mais os valores da Civilização Cristã.

Nós tivemos oportunidade de comentar, há algum tempo atrás, o encontro de Santo Ângelo, carmelita, com São Francisco de Assis e São Domingos, em Roma. E a tradição segundo a qual os três santos teriam caído de joelhos uns diante dos outros. É essa efusão de mútua veneração que não se resolve em igualdade, mas se resolve em profunda humildade.

É aqui que se vê bem o esplendor da Civilização Cristã.

Os senhores vêem no ardor da luta de Nuno Álvares como deve lutar o verdadeiro católico. O verdadeiro católico não é o sentimental que não tem o senso da guerra, mas, pelo contrário, Nuno Álvares lutava como os senhores acabam de ver, empenhando-se inteiramente e comunicando a coragem aos outros.

Vejam o verdadeiro católico como é: como era o venerável Nuno Álvares.

Pela revelação que contém da santidade da coisa, muito bonita também é a despedida do rei. Naquele tempo as pessoas não tinham medo de morrer e embora não houvesse o diagnóstico inexorável de certas radiografias de hoje, as pessoas muitas vezes pressentiam a morte. Quando pressentiam a sua morte, iam se despedir. E as pessoas que recebiam a visita de despedida achavam aquilo natural: entrava, conversava, tomava chá, depois, na hora de sair, despedia mesmo. Também depois não se viam mais antes de morrer.

Era a época da cortesia, em que as pessoas até para morrer, morriam com polidez, com elegância. Pois, quando se trata de sair da terra — a gente fazendo uma visita para despedir porque vai viajar —, por que não vai fazer uma visita para despedir quando vai morrer, quando essa é a grande viagem? E depois é preciso dar um bom conselho para um, para outro; por justiça, se deve um agradecimento. Então, a gente vai fazer o agradecimento. Para outro é porque a gente estima e quer rever mais uma vez antes de morrer.

E então o rei e ele se reviram. O rei chorou, abraçaram-se, depois cada um seguiu o seu destino. E naturalmente São Nuno de Santa Maria morreu e no céu rezou pelo rei. É a época da elegância. Os senhores vejam a elegância das maneiras, a polidez das maneiras como se interpenetrava com a piedade e dava à piedade uma excelência própria, porque foi um costume de alta elegância que foi embebido de piedade, e dava à piedade uma beleza especial essa forma de separação antes de morrer, com essa nobreza, com essa tranqüilidade e com esses olhos postos no céu.

E aí os senhores têm uma visão dos esplendores da Civilização Cristã, a propósito da vida de São Nuno de Santa Maria.

De maneira que aqui fica uma oração: Que Nossa Senhora e o Bem-aventurado Nuno Álvares nos obtenha precisamente essa coragem de que ele deu o exemplo e que Camões tão bem soube cantar.

Plinio Corrêa de Oliveira –  Extratos da conferência de 5/11/1966

06 de novembro – Exemplo de despretensão

Exemplo de despretensão

Nuno Álvares, santo português, foi um dos maiores guerreiros da História de Portugal, adornado pelo mais belo título que um militar podia usar: Condestável! É o Condestável Bem-aventurado.

Além de ajudar singularmente o Rei de Portugal a rechaçar as invasões mouras, Dom Nuno Álvares Pereira teve importante papel nas brigas, infelizmente numerosas, entre Castela e Portugal, dois povos quentes. Narra a História Portuguesa que ele conseguiu vitórias brilhantes.

Ao contrário de certos generais de ministério, que ficam a léguas do campo de batalha, enviando telegramas e mantendo comunicações telefônicas, ele era um batalhador que ia à frente de seus guerreiros!

Terminadas as guerras, e visto que se iniciava um longo período de paz com Castela, Nuno Álvares pediu licença ao Rei e fez-se religioso: entrou para a Ordem do Carmo.
Ele, o grande Condestável, venerado por todo o povo português, fez-se irmão leigo e tornou-se o porteiro do mosteiro.

(Extraído de conferência de 17/1/1986)

04 de novembro – Cantou com Nossa Senhora e os Anjos

Cantou com Nossa Senhora e os Anjos

No convento do qual São Félix de Valois era Superior, certa madrugada um irmão esqueceu de soar Matinas. O varão de Deus foi, então, ao coro para fazer os arranjos necessários e viu Nossa Senhora sentada num trono magnífico, e os Anjos nas estalas. Todos trajavam o hábito de sua Ordem e começaram a cantar. Com serenidade, ele mesclou o seu canto com aquelas vozes celestes.

São Félix de Valois, da família real francesa, fundou com São João da Matha a Ordem dos Trinitários para resgate dos cativos. O modo em que viviam e eram tratados os cativos nos explica bem porque uma Ordem religiosa foi fundada especialmente para essa finalidade.

Libertar os cativos visava resgatar principalmente os irmãos na Fé

Um reino maometano não era, propriamente, um Estado organizado como nós o concebemos. Quem vê aqueles palácios, como Alhambra por exemplo, pensa que moravam ali reis com um mínimo de decência da praxe inerente a todo Estado organizado, com uma sucessão dinástica regular.

Ora, na realidade, tratava-se de uma espécie de Estado-bandido vivendo, como os bárbaros, numa luta habitual de saques e pilhagens contra quem não fosse eles, e muitas vezes contra eles mesmos também.
De maneira que cada um daqueles reinos, como o de Granada, não possuía uma verdadeira elite e constituía, até certo ponto, uma espécie de antro de bandidos que viviam de pirataria no mar e em terra, roubando como uma fonte habitual de renda e apoderando-se de cativos como um modo costumeiro de conquistar mão de obra e de incutir terror no adversário.
Notem o paralelismo: do lado católico o prisioneiro de guerra era muito melhor tratado do que do lado muçulmano. Assim, quando estavam em guerra, os católicos lutavam em inferioridade de condições, porque os mouros tinham menos medo de ser presos do que os cristãos, os quais, se fossem capturados, seriam pessimamente tratados ao chegarem à zona maometana. Por vezes, prisioneiros importantes eram desfigurados, horrorosamente maltratados, mortos e, com muita frequência, corrompidos moralmente. Era, portanto, uma situação miserável também do ponto de vista moral.
Então, a ideia de libertar os cativos visava resgatar os irmãos na raça, mas principalmente os irmãos na Fé. Era muito mais para salvar dos perigos da alma do que dos tremendos riscos do corpo. Pairava em toda a população uma preocupação: a perdição eterna daqueles que tinham sido aprisionados pelos maometanos.

 

 

Miséria do mundo atual: pactuar com os regimes perseguidores dos católicos

Muitas vezes, libertar os cativos era uma das razões das expedições católicas contra os muçulmanos. Os cristãos que delas participavam punham em risco suas vidas, sua liberdade e, de algum modo, sua própria salvação eterna, porque também eles podiam ser presos ao tentarem resgatar seus irmãos na Fé.
Havia alguns que não partiam em expedição, mas pediam esmolas para pagar o resgate dos cativos. Enfim, trabalhava-se constantemente com essa intenção de libertar os cristãos capturados pelos mouros.
A ideia de que uma parte da Cristandade estava sujeita ao regime pagão, a todos os sofrimentos e perigos do cativeiro entre os pagãos, gerava nos católicos uma imensa compaixão, um enorme zelo pela salvação daquelas almas, um grande senso de honra cristã.
Como sempre aconteceu na História da Igreja, quando há uma grande necessidade da Esposa Mística de Cristo a Providência suscita uma Ordem religiosa para socorrê-la, a qual é, ao mesmo tempo, uma família de almas e um instrumento de ação novo.
São Félix de Valois surgiu, portanto, como um dos Santos que encarnaram esse ideal, que sentia o problema com toda a energia das graças sobrenaturais que ele recebeu para isso e, por assim dizer, polarizou essa preocupação disseminada por todo o corpo social, chamando a si o encargo da fundação dessa Ordem.
A Ordem da Santíssima Trindade tornou-se famosa e realizou um trabalho prodigioso, atuando até o fim do século XVIII. As nações árabes do Norte da África perderam qualquer possibilidade de fazer novos cativos, e essa Ordem religiosa encheu-se de glória.
Chamo a atenção para o contraste entre a atitude dos católicos do tempo de São Félix de Valois em face dos cativos, e a indiferença reinante em nossos dias diante dos milhares de católicos que sofrem perseguição – muitas vezes tão brutal como outrora – por quererem permanecer fiéis à sua Fé.
Quase ninguém se incomoda com isso. Não se tem zelo nem vontade de combater. Pior ainda, há uma espécie de apetência de ceder, de pactuar com os regimes que promovem essa perseguição. Compreendemos, então, a miséria que se apoderou da Cristandade.

Ressuscitou um jovem príncipe

A respeito de São Félix de Valois, temos os seguintes dados biográficos extraídos do livro Vida dos Santos, do Abbé Daras:
São Félix de Valois foi grande por seu nascimento e maior ainda por suas virtudes. Seu pai era Conde de Vermandois e de Valois, filho do Duque de França e neto de Henrique I, Rei de França. Sua mãe era filha de Thibaud III, chamado o Grande, Conde de Blois e de Champagne.
Quando de sua gestação, sua mãe fez uma novena a São Hugo, Bispo de Rouen. No último dia da novena, estando de joelhos diante do altar do santo prelado, ela adormeceu e viu em sonho a Bem-aventurada Virgem Maria segurando seu Divino Filho em seus braços. Ao seu lado estava uma outra criança, bela e graciosa. Nosso Senhor levava uma cruz nos ombros, e a outra criança segurava uma coroa de flores nas mãos. Então fizeram uma troca: Nosso Senhor deu sua cruz à criança, que Lhe entregou a coroa.
A princesa procurava entender o sentido da visão quando São Hugo apareceu e lhe disse: “Esta criança que tu não conhecias é teu filho, que trocará as flores-de-lis de França pela cruz de Jesus Cristo, e ele a dividirá contigo para que ambos se assemelhem a Jesus Crucificado.”
Com efeito, o menino dividiu a cruz em duas partes, dando uma a sua mãe e guardando outra consigo.
Após a morte de sua mãe, São Félix foi chamado à corte onde tomou a cruz para acompanhar o rei numa Cruzada. Um dia em que se exercitava num torneio com o príncipe, este caiu do cavalo vindo a falecer. O Santo correu ao local, tomou a mão do cadáver e lhe disse: “Em nome da Trindade Santa, levanta-te!” No mesmo instante, o jovem levantou-se curado.

União da coragem militar à modéstia do religioso

ostras do seu valor e virtude. Mantinha, no meio do campo de luta, a vida austera de Claraval, unindo ao ardor e coragem militar a modéstia e discrição do religioso. Distinguiu-se em todas as batalhas das quais tomou parte e, quando voltou a Paris, quis se dar a Deus.
Embora fosse um dos mais próximos herdeiros do rei, trocou realmente a flor-de-lis pela cruz e fez-se religioso.
Após a fundação da Ordem dos Trinitários para a redenção dos cativos, São Félix foi encarregado da direção de um convento. Instruídos por sua palavra e seus exemplos, os religiosos levavam vida exemplar, de tal forma que a Santíssima Virgem e os Anjos dignaram-se honrar com sua presença esse mosteiro.
Em certa véspera da natividade de Nossa Senhora, tendo o sacristão esquecido de soar as Matinas, São Félix desceu ao coro para preparar o que era necessário. Mas ele já o encontrou ocupado pelos Anjos, vestidos com o hábito de sua Ordem. A Santíssima Virgem, também de hábito, sentada sobre um trono, presidia essa assembleia. Parecia que esperavam o Santo para começar as Matinas, porque logo que este entrou a Santíssima Virgem entoou a antífona, a qual foi continuada pelos Anjos com uma harmonia incomparável. E São Félix cantou com os Anjos. Quando a visão desapareceu, ficou em sua face extraordinário esplendor.

 

A Santíssima Virgem entoou a antífona

Que cena maravilhosa! Um convento com tanto fervor, onde se dá tal glória a Deus que, num dia, por um desígnio divino, um irmão esquece de soar Matinas e a Providência faz isso para operar uma maravilha maior!
Os Anjos vestidos de religiosos enchem as estalas do coro, Nossa Senhora, sentada num trono magnífico, entoa a antífona e todos os espíritos celestes cantam! São Félix de Valois chega ali e, em vez de se espantar e perder a cabeça, mistura o seu canto com o dos Anjos e da Santíssima Virgem!
Esse foi um ponto-ápice da vida desse príncipe, toda ela constante de uma série de fatos tão bonitos que davam para se fazer com eles um verdadeiro colar constituído de placas de esmalte, em que cada uma reproduzisse um desses episódios. Teríamos, assim, um dos mais belos colares da História, de tal maneira essa vida é maravilhosa.
Deparamo-nos, nesta narração, com o mistério da predestinação. Antes de o príncipe nascer, a Providência tinha resolvido fazer dele uma verdadeira maravilha. Donde aquele sonho admirável que sua mãe teve, no qual aparece o príncipe, o Menino Jesus e Nossa Senhora, e as relações que haveria entre o Divino Infante e São Félix são explicadas para a mãe.
Mais tarde vemo-lo como lutador, como grande guerreiro, e depois como religioso que renuncia a todas as coisas da Terra para se ocupar só com a Ordem religiosa. Afinal de contas, essa espécie de glorificação na Terra, que é a entrada de Maria Santíssima e dos Anjos no seu convento para junto com ele glorificarem a Deus.

 

 

O Reino de Maria será mil vezes mais esplendoroso

 

ria fazer uma iluminura ou um esmalte maravilhoso, constituindo-se uma biografia das mais bonitas que se possa conceber.
Em última análise, essa biografia significa o seguinte: a Idade Média dando muita glória a Nossa Senhora que, contente com essa era histórica, multiplica os prodígios para manifestar o quanto Ela estava satisfeita. Este é um desses gêneros de prodígios em série, feitos para exprimir a alegria de Maria Santíssima.
Devemos nos deter embevecidos na contemplação desses fatos, porque assim compreendemos o que é a misericórdia de Deus e de quantos esplendores a Civilização Cristã é capaz. Se esses episódios se passaram na Idade Média, que maravilhas veremos no Reino de Maria, o qual vai ser ainda superior àquela era histórica?
Assim, compreendemos que todo suor, sangue e lágrimas que vertemos atualmente para instaurar o Reino de Maria na Terra, estão muito bem recompensados. Quando contemplarmos essa época histórica vindoura e descobrirmos coisas ainda mais bonitas que as de outrora, e pensarmos que a Providência quis servir-Se de nós a fim de fazer cessar estes horrores contemporâneos para vir a era dessas maravilhas, então poderemos dizer, parafraseando Jó: “Bendito o dia que me viu nascer, benditas as estrelas que me viram pequenino, bendito o momento em que minha mãe disse: nasceu um homem!”
Realmente, cada um de nós poderá dizer isso, pois teremos, pela força de Nossa Senhora, derrubado toda a cidade da iniquidade e feito nascer o Reino de Maria, mil vezes mais esplendoroso do que esses esplendores que acabamos de considerar.

(Extraído de conferências de 20/11/1964 e 19/11/1965)

04 de novembro – Modelo perfeito de bispo

Modelo perfeito de bispo

São Carlos Borromeu não foi apenas um grande bispo contrarreformista, mas, em algum sentido, o Bispo da Contra-Reforma. Não só por ser um homem de grande preparo e cultura, que irradiou sua sabedoria em seu tempo, mas por ter realizado o modelo  perfeito de bispo.

Não basta redigir obras refutando isso ou aquilo. A pessoa precisa ser a personificação, o próprio símbolo, o tipo humano das obras que escreveu. O trabalho que ele realizou, sendo o Bispo da Contra-Reforma e o modelo de bispo, foi de uma eficácia para a Igreja certamente maior do que a dos próprios escritos dele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1963)

04 de novembro – São Carlos Borromeu, o Bispo da Contra-Reforma

São Carlos Borromeu, o Bispo da Contra-Reforma

A Pseudo-Reforma Protestante foi um dos grandes lances da Revolução. Porém, em contrapartida, Deus suscitou almas que muito contribuíram para explicitar e definir as verdades negadas pelo Protestantismo. Uma delas foi São Carlos Borromeu, grande figura da Contra-Reforma.

Sobre São Carlos Borromeu há os seguintes dados. Apesar de curtos, creio serem muito elucidativos:
Feito cardeal aos 23 anos, São Carlos Borromeu foi suscitado por Deus para a verdadeira reforma da Igreja.

Presidiu sínodos e concílios, estabeleceu colégios e comunidades, renovou o espírito de seu clero e das ordens religiosas.

À sua prudência deve-se, em grande parte, a feliz conclusão do Concílio Tridentino.

Modelo de Bispo da Contra-Reforma

São Carlos Borromeu tornou-se uma grande figura da Contra-Reforma, a qual nos interessa especialmente. Se a Pseudo-Reforma foi um dos grandes lances da Revolução, a Contra-Reforma foi, evidentemente, um dos grandes lances da Contra-Revolução.

As grandes figuras da Contra-Reforma auxiliaram muito a definir, na Igreja, todas as verdades que o protestantismo negava. Representam um grande exemplo para nós, tendo sido o contrário de certos teólogos vazios, que não têm os olhos postos nos problemas do tempo, mas escarafuncham, por curiosidade, questões dentro dos jardins da Teologia. Os personagens da Contra-Reforma tinham sua atenção posta no mal como se apresentava naquele tempo, e tomaram posição contra esse mal; por essa forma fizeram progredir muito a doutrina católica.

Uma categoria de pensamento do contrarrevolucionário é exatamente não estar fazendo estudos no ar, os quais não têm relação com o aspecto que a Revolução apresenta no momento; mas realizar estudos a serviço da Igreja, para salvar as almas, refutar ideias falsas e, mais ainda, em que o suco do pensamento é acrescido pela análise acurada do erro.

É próprio do sentido cultural de nosso Movimento conhecer a verdade por duas formas.

Primeira: deduzindo as verdades ainda não sabidas daquelas que já são conhecidas. Segunda: analisar o erro e, ao refutá-lo, conhecer melhor e mais profundamente a verdade estudando a negação dela. Não aproveitando os fragmentos de verdade existentes no erro, mas, por exclusão, entendendo a verdade que se deve sustentar. Por essa razão, os doutores da Contra-Reforma nos são muito caros.

São Carlos Borromeu foi, não apenas um grande bispo contrarreformista, mas, em algum sentido, o Bispo da Contra-Reforma. Não só porque ele era um homem muito preparado, de grande cultura e que era irradiada por ele a toda a Igreja em seu tempo, mas por ter realizado o modelo perfeito do bispo. Muitos dos bispos bons, que viveram desde a Contra-Reforma até nossos dias, tinham o ideal de serem bispos como o foi São Carlos Borromeu.

Eficácia do tipo humano

Não basta redigir obras refutando isso ou aquilo. A pessoa precisa ser a personificação, o próprio símbolo, o tipo humano, das obras que escreveu. O trabalho que ele realizou, sendo o Bispo da Contra-Reforma e o modelo de bispo, foi de uma eficácia para a Igreja certamente maior do que a dos próprios escritos dele. Não quero dizer que sempre o exemplo vale mais do que o escrito –– seria exagerado. Mas, nesse caso concreto, ele valeu mais pelo exemplo do que pelos seus escritos.

Para não me alongar demasiado, conto um fato da vida desse santo:
Naquele tempo, julgava-se — como também nós julgamos — que um cardeal deve revestir-se de pompa, de grandeza, de solenidade, para fazer brilhar a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo diante dos homens. São Carlos Borromeu pertencia a uma grande família italiana; além de Príncipe da Igreja ele era, até certo ponto, senhor temporal de Milão e, durante certo tempo, foi Cardeal Secretário de Estado. Por todas essas razões devia cercar-se de grandeza, e de fato ele assim o fez.

Certa vez, ele andava numa esplêndida carruagem, com acolchoados, e toda a pompa, pelas ruas de Milão — ou numa estrada, não me lembro exatamente — quando passa perto dele um frade simples, pobre, montado a cavalo. Cumprimentos de parte a parte, e o frade lhe diz: “Eminência, como é agradável ser cardeal! Viaja-se de modo mais cômodo do que um simples frade!” O Cardeal Borromeu voltou-se muito gentilmente para o frade e convidou-o então a viajar com ele. O frade entrou na carruagem, sentou-se e começou a dar gritos devido aos cilícios existentes por debaixo do banco. O cardeal viajava sobre cilícios, sofrendo com as sacudidelas próprias de uma estrada ou rua daquele tempo, embora metido nas sedas, nos cristais e púrpuras de uma carruagem provavelmente toda dourada e ainda com plumas e lacaios.

A santa prudência

Quanto à “prudência” de São Carlos, não significa que ele tenha sido um homem cauteloso, que evitou qualquer risco. Esse é o sentido comum da palavra prudência. A prudência é a virtude cardeal que nos faz conhecer e aplicar bem os métodos necessários para os fins que temos em vista.

Por exemplo, um membro prudentíssimo de uma empresa de contabilidade é aquele que emprega as boas regras para tocar para a frente a escrituração. Nós agimos com prudência em relação à legislação trabalhista, não só pagando o necessário para evitar problemas, mas também tomando as necessárias providências para receber aquilo a que temos direito. Quer dizer, a prudência é o acerto no agir. Então, o texto da ficha elogia São Carlos Borromeu porque teve esse acerto. Para a conclusão do Concílio de Trento ele empregou, com grande sabedoria e prudência, os métodos adequados.

Na Ladainha Lauretana se invoca Nossa Senhora como “Virgo Prudentíssima”, a Virgem que com muito acerto fez as coisas para chegar ao fim que a super excelsa vocação d’Ela pedia ou indicava.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/10/1963 e 4/11/1968)

03 de novembro – São Martinho de Porres

São Martinho de Porres

Na Lima dos santos, brilhou a figura de São Martinho de Porres, misto de fidalgo e homem do povo, cujas virtudes esplendentes contribuíram para conferir à civilização peruana do seu tempo uma beleza e uma ordenação católicas até hoje insuperáveis. Ordenação e beleza que anseiam por reviver e traçar um futuro ainda mais glorioso que o passado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 9/5/1994)
Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

02 de novembro – O comércio das almas na sociedade humana

O comércio das almas na sociedade humana

Prosseguimos com a publicação de um artigo inédito, redigido em 1960 por Dr. Plinio. No fim do capítulo anterior, ele explicava como cada homem é influenciável por seus semelhantes, e procura  imitar alguns deles. Se admira e imita pessoas virtuosas, cresce em perfeição e aumenta sua semelhança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas. Por isso, imitar e servir de exemplo são obrigações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento das almas, inerentes à sua vida social. Dr. Plinio estende suas observações a esse respeito perguntando-se: como se dá esse comércio entre as almas? Em outros termos, qual sua parte na existência social dos homens? Vejamos a resposta.

 

Quando duas pessoas estão em contato entre si, por mais que sejam desiguais em inteligência, instrução, ou força de persuasão, estão em condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra. Maravilhoso instrumento para a expressão da alma Todas as nossas idéias, mesmo as mais abstratas, todas as nossas emoções, mesmo as mais subtis, são suscetíveis de uma expressão adequada, pela ação primordial da palavra em si mesma, completada e enriquecida pela inflexão da voz, pela expressão do olhar, pelos gestos, pela atitude do corpo, pelo porte, e até pela maneira de caminhar.

Virgílio nos diz que, pelo simples modo de andar, Dido se mostrava uma deusa: “et incessu patuit dea…”. O homem ainda acentua o poder de expressão de seu corpo por meio do traje e do ornato. Esse poder chega a ser tão grande que é considerado, às vezes, aliás erroneamente, como irresistível.

Quando essa transparência da alma em todo o modo de agir e de ser do corpo se torna nítida, e sobretudo quando tal transparência revela uma alma firme, clara, lógica, reconhecemos estarmos  em presença do que se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para dirigir, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É realizar, dentro do mero campo natural, como que uma transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma, prefigura meramente natural, mas esplêndida em si mesma, da transfiguração sobrenatural, incomparavelmente mais radiosa e mais nobre que os corpos gloriosos terão no Céu, e de que Nosso Senhor, no Tabor, assim como alguns santos, nos deram uma visão sensível nesta terra de exílio.

O homem pode comunicar expressão aos seres inferiores

As formas, as cores, os sons, os odores, os sabores têm uma analogia – que não é meramente convencional —- com as disposições do espírito humano. E, por isso, as palavras que servem para designar estados da alma humana são correntemente empregadas para designar por analogia as propriedades de seres animais, vegetais ou minerais. Pode-se falar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um buquê de flores ou de um panorama, do mesmo modo pelo qual se fala do riso alegre de uma moça ou de uma criança. Pode-se falar da majestade de um rei, como da águia, ou do trovão. Os exemplos disso poderiam ser multiplicados quase ao infinito.

Pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores, comunicando-lhes uma determinada expressão. Assim, é indiscutível que as espécies animais domesticadas recebem como que certa  amenidade de comportamento, certa compostura, que as distingue das congêneres selvagens por diferenças muito semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do bárbaro. Certos animais, como os gatos de Angorá ou os lulus da Pomerânia, tomam uma espécie de distinção evidentemente afim com os ambientes humanos em que vivem.

Uma ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida pelos homens sobre certas plantas, nas quais se distinguem as espécies selvagens e as cultivadas, antes diríamos, as “culturadas”. Certa  expressão de alma, o homem pode comunicá-la até a seres perfeitamente inanimados: quando faz, por exemplo, um quadro que terá uma expressão que de nenhum modo preexistiu na tela, no pincel e nas tintas.

E tal é a alma humana que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qual expressão a todos os objetos de que se cerca. Porque somos feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem ao corpo falem também à alma. Um móvel apenas cômodo é o que serve só ao corpo; um móvel elegante é o que serve também à alma. Um tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao clima, satisfaz o corpo.

Mas a alma tem exigências próprias e pede que ele seja belo. Essas observações nos conduzem a uma noção essencial, que é a de “ambiente”. Os ambientes exprimem estados de alma Quando às vezes entramos numa sala, parece-nos sentir a personalidade de quem a decorou. Dizemos que tem ambiente. O que quer dizer aí “ambiente”? É a expressão de alma que, pelo jogo das formas e das cores, pela disposição e qualidade dos móveis, uma pessoa conseguiu comunicar a objetos materiais.

Nisto, como em tudo, o homem imita a Deus. Quando contemplamos certos panoramas marítimos; quando à noite olhamos para o céu, sentimos uma expressão de alma que se desprende deste mundo: é o ambiente criado por Deus, e pelo qual Ele se exprime a nossos sentidos.

Muito mais fácil ainda nos seria exemplificar com os sons, os perfumes, os sabores. Diz o Eclesiástico (31, 36) que o vinho, bebido moderadamente, alegra a alma e o coração. A Igreja se serve da música para formar nossa piedade. O aroma austero do incenso lhe parece adequado a ser respirado por nós na oração. Os seus moralistas, pelo contrário, sempre nos premuniram contra os perfumes voluptuosos e capazes de excitar a moleza e a luxúria. Consideremos agora o ambiente em relação com o fim essencial da contemplação, que é conduzir-nos a Deus.

Se os estados de alma são suscetíveis de se exprimirem assim, está implícito que as virtudes e os vícios também. Eles se manifestam com freqüência na face humana, na inflexão de voz, no gesto, no andar. Eles são suscetíveis de marcar com sua nota própria tudo quanto o homem faz e produz. A intemperança ou a temperança de um artista não se nota só no fato de explorar ou não o nudismo. O ritmo de uma música pode em si mesmo ser lascivo; como a combinação de certos perfumes; ou a complicação de certos sabores. A falta de siso não se exprime só pelo sentido das palavras, mas pelo desalinho do gesto, pela extravagância das linhas ou das cores de um traje, de um móvel, de um edifício.

Neste ponto, como em outros, o homem é sujeito a erro, e pode taxar de voluptuosas ou desatinadas coisas que só lhe parecem tais porque não está habituado a elas. Não obstante, uma certa volúpia ou extravagância pode estar realmente na coisa produzida por um homem voluptuoso ou extravagante. Qualquer que seja o ambiente, precisamente porque ele exprime um estado de alma, não pode ser moralmente indiferente: ou será bom, e favorecer á as almas na consideração e assimilação de Deus; ou será mau, e agirá em sentido oposto.

É isto o que se poderá dizer da honestidade ou desonestidade natural dos ambientes. Será lícito caminhar mais um passo, e falar em ambientes especificamente cristãos? Parece-nos que sim. A alma tocada pela graça adquire uma perfeição sobrenatural que por vezes se espelha na face. A hagiografia pulula de testemunhos a tal respeito. O que foi a Transfiguração senão isto? Ora, a pintura e a escultura podem exprimir algo de semelhante. E certos edifícios em que essas esculturas e vitrais se encontram têm com eles uma tal harmonia que parecem, à sua maneira, exprimir a mesma “irradiação” de uma alma misticamente unida a Nosso Senhor Jesus Cristo. O heroísmo dos cruzados foi tipicamente cristão, e, pois, diverso do heroísmo meramente natural de um legionário romano. É possível considerar o ambiente formado numa paisagem por um possante castelo medieval, sem ter a impressão de que algo de tipicamente cristão nos toca a alma?

Não queremos estender por demais este artigo. Por isso não fazemos senão assinalar que, pelos mesmos motivos pelos quais se poderia falar de um ambiente especificamente sobrenatural e cristão, poder-se-ia falar de um ambiente especificamente preternatural e diabólico.

A formação da “alma coletiva”

Quando a vida social das almas é regular e intensa num determinado grupo humano — uma família, digamos, ou uma sociedade —, constitui-se aí uma como que alma coletiva; ou seja, um conjunto  de convicções, algumas das quais prezadas como particularmente importantes; conseqüentemente, uma mentalidade coletiva, um estado de espírito comum, e exercendo uma influência especialmente forte sobre todos os membros. O vocabulário se define pelo uso mais insistente de certas palavras, ou expressões, que até tomam por vezes, dentro do grupo, uma tonalidade específica. Não é raro aparecerem também neologismos. De outro lado, o modo de trajar, de falar, de comportar-se, todas as preferências pessoais tendem a receber a marca dos princípios comumente aceitos, e especialmente dos que são dominantes. Por fim, o ambiente material se satura desta influência, e aos poucos o quadro físico — casa de família, sede social, etc. — vai sendo  transformado de maneira a exprimir ele próprio o espírito dominante.

Várias sociedades menores, formando entre si algo como uma sociedade de sociedades — um conjunto de famílias numa cidade, digamos — podem manter um comércio espiritual comum, que forma  o ambiente mais genérico, porém não menos afirmativo, da vida da cidade. O florescimento de um conjunto de vocábulos, de trajes, de hábitos locais, a produção de obras de artesanato marcadas pelo estado de espírito local, e até de influências artísticas nitidamente locais, tudo isto é o resultante de uma sociedade espiritual harmônica, definida e ativa.

Evidentemente, poderíamos subir assim da cidade à região, desta ao país, e deste por sua vez às grandes zonas de cultura e de civilização. Sem entrar no debate inesgotável sobre o sentido de “civilização”, de “cultura ”, de “estilo” artístico, chamemos aqui “cultura” social o estado de espírito coletivo, a “alma coletiva”, pelo menos enquanto fecundada e ordenada pelo trabalho intelectual, e enquanto existente como nota característica que marca também o trabalho intelectual; chamemos “civilização” o conjunto das instituições, leis, costumes, enfim todo o modo de ser coletivo, enquanto marcado pela “cultura”; e “estilo” as manifestações da arte enquanto marcadas pela “cultura”, e, pois, necessariamente afins com a “civilização”. Chamemos “ambiente” social a impressão de conjunto exercida sobre o observador pela ação harmônica da civilização, da cultura e do estilo, a transparência definida, forte, inequívoca, do estado de alma e dos princípios doutrinários que são o que aquela sociedade de almas tem de mais intrínseco.

Benefícios da sociedade de almas

Neste sentido, podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da sociedade humana, são o produto da vida social enquanto sociedade de almas. Esses bens são indispensáveis ao modo de ser habitual das almas, e justificam por si mesmos, independentemente de outros argumentos — todos legítimos, aliás — a existência da sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir esses bens. Nem condições normais de vida para a alma fora de tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e civilização.

Ainda no mesmo sentido, devemos dizer que a função contemplativa do homem nesta terra — aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no Céu — normalmente se exerce com apoio no  ambiente, na cultura, no estilo e na civilização. Pois é com o auxílio de tudo isso que o homem melhor vê e mais adequadamente assimila ou rejeita os diversos aspectos do meio que o cerca.

Ainda nesta ordem de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da cultura, do estilo, da civilização, embora produtos tipicamente espirituais, constituem objeto próprio da sociedade temporal. Pois é esta última noção que nos permitirá prosseguir em nossas reflexões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações entre a Igreja e a sociedade civil.

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua no próximo número)