06 de outubro – São Bruno – O fundador dos cartuxos

São Bruno – O fundador dos cartuxos

Com profundo senso histórico, ao analisar a vida de São Bruno, Dr. Plinio extrai valiosos ensinamentos acerca do espírito medieval, contrastando a Fé e os costumes daqueles tempos com os dos dias atuais.

No dia 6 de outubro, a Igreja celebra a memória de São Bruno, fundador da Grande Chartreuse. Nasceu ele na cidade de Colônia, junto ao Reno, na Alemanha(1).

Assim narra uma ficha com sua história:

“Manassés, Arcebispo de Reims, o nomeou seu chanceler. Mas Manassés se deixava arrastar pela simonia. Bruno o acusou, o que lhe atraiu as perseguições do Arcebispo, que o privou de seus benefícios.”

Chama-se simonia a venda de bens ou cargos eclesiásticos, a qual é punida pela Igreja com as maiores penalidades. São Bruno, sendo já clérigo e chanceler do Arcebispo, verificando que este praticava tal pecado, imediatamente o denunciou. Por causa disso, foi perseguido e privado de todos os benefícios.

Idade Média, a era dos milagres

“Entre os doutores da Universidade de Paris, Bruno tinha um grande amigo, muito estimado e tido como virtuoso e sábio. O amigo morreu e todos os membros da Universidade assistiram seus funerais. Durante o serviço fúnebre, enquanto um dos pequenos coroinhas começava a lição de Jó: “Responde mihi, quantas iniquitates habes?’…”

Fazia parte da liturgia esta pergunta: “Responde-me, quantas iniquidades tu tens?”

“…o corpo do defunto, que estava deitado no esquife, no meio da igreja, levantou a cabeça e disse com um tom de voz assustador:
— Sou acusado por um justo julgamento de Deus.
“E se deitou novamente no esquife”.

É cena tipicamente medieval, pois a Idade Média foi a era dos milagres. Estes vão atrás dos que creem e não dos incréus, embora pareça um paradoxo, pois se diria que milagre é para quem não tem Fé. Nas épocas de muita Fé, o milagre é abundante; nas de ceticismo, ele se torna raro. O único desmentido a isso ocorreu nos séculos XIX e XX, com os milagres quase contínuos de Lourdes.

Precisamos tomar em consideração que o medieval era homem como nós; realidade sobre a qual, às vezes, não se tem inteira noção, dada a distância que as pessoas de hoje sentem em relação aos tempos antigos. Então, para compreendermos o realce desse fato na vida de São Bruno, devemos imaginar aqui perto, na Igreja do Coração de Maria(2), um homem deitado no esquife e nós assistindo a cena. Em certo momento, o coro canta:
— Responde mihi quantas iniquitates habes?
O homem senta-se e diz:
— Eu estou punido por um justo castigo de Deus.

E de olhos fechados, com cara de cadáver, deita-se novamente.

Já imaginaram o efeito disso numa igreja? E sobre cada um de nós concretamente? Creio que a respeito disso haveria comentários durante, pelo menos, quinze dias, ocasionando ruptura de silêncio, falta de distância psíquica(3), etc. Pois bem, São Bruno teve a felicidade de assistir a esse episódio.

“O terror causado por um acontecimento tão pouco comum fez com que se adiasse o enterro para o dia seguinte, para ver o que sucederia.”

Hoje se enterraria na hora, para encerrar a história. Naquele tempo, havia Fé e as pessoas queriam verificar se aconteceria mais alguma coisa. Durante toda a noite, a igreja ficou cheia de povo, desejoso de ver o cadáver que falou, e esperando o momento no qual fosse lido aquele mesmo texto litúrgico.

Em nossos dias, a cena seria perturbada pela presença de rádio, televisão, repórteres, etc. Ou talvez se fizesse N-A-N-E(4) e algum jornal noticiaria o fato com o título: “Estranhos episódios de auto-sugestão na Igreja do Coração de Maria”.

“Durante o ofício, no dia seguinte, quando foi cantada a mesma lição, o cadáver exclamou com uma voz ainda mais horrível:
— Eu estou julgado por um justo julgamento de Deus.”

Aparente virtude desmascarada por Deus

Isso significava uma bênção para aquele povo, pois equivale a um verdadeiro retiro espiritual. Deus vai obrigar o cadáver de um condenado a declarar que ele estava julgado por um justo juízo de Deus! Mais terrível, é que era um homem tido como bom. E mais ainda, tinha entre seus amigos São Bruno.

“O povo ficou mais assustado ainda e decidiu enterrá-lo no outro dia. No terceiro dia, o cadáver levantou-se mais uma vez, exclamando com uma voz de estrondo terrível:
— Eu estou condenado por um justo juízo de Deus.”

Por que Deus quis, por essa forma, desmascarar a falta de virtude de um homem tido por todos como bom? Porque na Idade Média a virtude era incomparavelmente mais frequente do que em nossos dias. E os maus, muitas vezes, não ousavam apresentar-se na sua maldade, para terem livre trânsito entre os bons. Então, era preciso desmascarar a maldade e mostrar quantos homens falsos poderia haver sob aspecto virtuoso. Hoje é quase o contrário: é preciso desmascarar os bons, que se escondem tanto quanto possível, e os maus se mostram. Na Idade Média era necessário fazer com que os bons fossem vigilantes e não seguissem os maus que se fingiam de bons. É uma admirável lição de vigilância.

“O corpo do morto foi…”
Muitos estarão pensando “enterrado”. Porém, o texto assim continua:
“…jogado no lixo.”

Conforme São Tomás de Aquino, quando vier o fim do mundo, toda matéria sórdida, lixo e outros detritos que não tenham sido queimados serão jogados dentro do inferno, porque é a lata de lixo do Universo, para onde vão todas as almas e matérias que não prestam.

Fundação da Chartreuse

A ficha apresenta outros fatos isolados da vida de nosso santo.

“São Bruno se associou a seis companheiros.”

Trata-se da fundação da Chartreuse.

“Eles venderam todos os seus bens, depois foram à cidade de Grenoble. Lá havia um santo Bispo chamado Hugo. A visita de Deus precedeu de um modo admirável os sete companheiros, junto do santo Bispo. Este teve um sonho, no qual viu um imenso deserto onde Deus Padre construía para Si próprio uma casa para morar. Sete estrelas brilhantes, em forma de uma coroa elevada sobre a Terra — diferentes das estrelas do céu em situação, movimento e claridade — andavam diante dele como para lhe mostrar o caminho.”

Através desse sonho poético e bonito, vemos como a Idade Média era cheia de contrastes. Acabamos de recordar uma cena terrível: um condenado ao inferno obrigado a manifestar a justiça de Deus. Agora é o contrário.

Imaginemos o paço episcopal, onde um Bispo respeitável, venerável, santo, dorme tranquilamente o sono do justo, do homem sagrado e ungido por Deus. Consideremos a beleza do quadro: um deserto e o Pai Eterno. É digno ambiente para se manifestar o Pai Eterno um deserto onde ninguém vai e somente a majestade de Deus paira, como antes de criar todas as outras coisas Seu Espírito pairava sobre as águas (cf. Gn 1, 2). É uma solidão digna de Deus.

Depois o Bispo, no seu sonho, se vê caminhando rumo ao deserto com um bordão de peregrino, orientado por sete estrelas do céu, que formam uma coroa. Faz lembrar os reis magos seguindo a direção indicada pela estrela e indo para o Presépio de Belém. É uma coisa linda! Podemos imaginar a elevada expressão de fisionomia do santo, enquanto dorme, vendo essas estrelas que lhe aparecem.

Tudo isso nos introduz no ambiente da Idade Média, tão cheio de contrastes e coloridos. Antes o terror e agora o admirável. Nessa época histórica encontramos pouco o banal, do qual estamos repletos atualmente.

Continua a ficha:
“Santo Hugo não sabia o que significava essa visão quando, no dia seguinte, sete peregrinos vieram se prosternar a seus pés, comunicando sua resolução e pedindo-lhe que os ajudasse. Santo Hugo julgou que os sete peregrinos seriam, na sua diocese, estrelas resplandecentes por suas virtudes e sua doutrina.”

Não há nada mais belo que o encontro de almas santas

Voltemos a imaginar, no palácio episcopal, o santo sentado numa espécie de trono de madeira lavrada — numa sala com um reposteiro, uns vitrais, chão de pedra, um tapete, constituindo um ambiente de recolhimento — e os sete jovens que chegam. São pessoas resplandecentes de saúde, de Fé, de vontade de servir a Deus. Ainda cobertos pela poeira do caminho, eles se ajoelham diante de Santo Hugo.

Não há coisa mais bonita do que o encontro de almas santas: uma luz refletindo-se em outra e ambas se multiplicando. Daí nasce uma harmonia entre diversos seres, mais bonita do que um só ser. Uma nota do mais perfeito órgão tem menos pulcritude do que duas notas, ou três, formando um acorde. Assim esses santos formavam um acorde, uma harmonia de almas.

O santo Bispo, embevecido, vendo aqueles jovens, os quais, levados por alguma comunicação celeste, sabiam que lhes mostraria para onde deveriam ir. Então, de joelhos, pediram que lhes indicasse o caminho.

Essa cena daria para um vitral, uma iluminura, uma tapeçaria. Poderíamos julgar que essas formas artísticas medievais marcam fatos excepcionais da vida. Na verdade, elas reproduzem aspectos correntes da existência na Idade Média. Porém, tais aspectos tinham uma alta dignidade e mereceriam, portanto, ser retratados em matérias tão excelentes como a tapeçaria, o vitral, a iluminura.

“O Bispo os recebeu com alegria, pois esses homens poderiam dar glória a Jesus Cristo. Ele os estimulou e confirmou nas suas santas resoluções. E deu-lhes como lugar para se fixarem uns montes horrendos, perto de Grenoble, montes esses chamados La Grande Chartreuse.”

Lutavam contra a hostilidade da natureza cantando e glorificando a Deus

Esses montes horríveis, posteriormente, pela presença de São Bruno e seus filhos, tornaram-se famosos. Realmente, depois de serem cultivadas e adaptadas pelos cartuxos, aquelas montanhas formaram um panorama lindo.

Pode parecer estranho que o Bispo encaminhasse para um deserto horroroso almas tão eleitas. Mas fazia parte da vida monástica na Idade Média fixar os monges em pântanos, florestas, etc., porque ali eles lutavam contra os aspectos hostis da natureza pelo seu trabalho, enquanto cantavam e davam glória a Deus pela sua virtude. E as populações iam residir junto a eles, que constituíam a fina ponta do progresso.

Época feliz, em que os povos devastavam os matos e entravam pelos desertos, não em busca do ouro mas da virtude. Como tudo mudou! Era uma espécie de bandeirismo de oração. Não se iam procurar esmeraldas e sim virtudes. Que beleza! Não censuro a busca de esmeraldas, mas admiro a das virtudes.

“Eles construíram, no flanco da montanha, em honra da Santíssima Virgem, um oratório existente ainda hoje e que tem o nome de Santa Maria de Casalibus. É lá que São Bruno e seus companheiros iniciaram a vida de São João Batista.”

“Vida de São João Batista”, quer dizer aqui, recolhidos completamente.

Respeito à tradição

Outra coisa linda da Europa é o respeito à tradição. Quer os mais antigos e imponentes monumentos, que iniciaram as grandes obras, quer os pequeninos, sem importância, são guardados com cuidado.

Trata-se aqui de uma capelinha em honra de Nossa Senhora, que foi o ponto de partida dessa instituição de fama mundial hoje em dia, uma ordem religiosa com uma longa tradição na Igreja: os cartuxos. Segundo o espírito moderno, essa capelinha poderia ser destruída porque está envelhecida e foram ali construídas igrejas muito mais bonitas. Não! Ela foi o início daquelas edificações, e toda origem é respeitada e venerada. Por causa disso a capelinha é cuidadosamente preservada, como manifestação do espírito de tradição.

Na Rússia dos czares, havia uma coisa muito bonita. Em geral, as czarinas tinham seus filhos no Kremlin que, como se sabe, é um conjunto de palácios e fortalezas, num recinto fortificado. Em seu núcleo existia uma igrejinha com um sininho.

Segundo a tradição, quando nascia o primogênito do czar, tocava-se primeiro esse sininho, depois os sinos do Kremlin, e por fim, os de todos os campanários da Rússia. De “proche en proche”, iam assim espalhando a notícia do nascimento do herdeiro do czar. Quando soava aquele sininho velhinho, rachadinho, mas carregado de história, era o sinal para os outros sinos tocarem.

Este respeito à coisa veneranda, originária, primeira, empobrecida, encarquilhada pelo tempo — a qual, por isso mesmo, adquiria uma forma de beleza toda especial — caracterizava o espírito tradicional da Idade Média. Assim são as grandes instituições, como a dos cartuxos, cujo exemplo nos proporciona tais ensinamentos.

Em São Paulo há também nesse sentido algo interessante, no Parque do Ipiranga onde se proclamou a Independência nacional. No quadro de Pedro Américo — pintura “princeps”, que representa essa cena — figura uma casinha de caipira, a qual existe até hoje no meio do Parque, porque parece que naquele local se deu o ato famoso. É feita de taipa, sem nenhum valor arquitetônico, velhíssima; está disfarçada na vegetação porque ela não tem beleza, e pode ser visitada. Isso indica o respeito à coisa primeira, inicial. E assim, há outras coisas que se poderiam mostrar no Brasil e no mundo inteiro.

“Santo Hugo não tinha consolação mais sensível do que ir muitas vezes à Chartreuse, para se edificar com a vida santa que levavam esses valentes solitários.

“Urbano II foi discípulo de São Bruno.”

É outra glória de São Bruno: ter sido o mestre do Papa bem-aventurado que deu o primeiro toque de sino das Cruzadas.

Aparente contradição

“Na ‘solitude’ da Calábria, São Bruno escrevia a seu amigo Raul, para encorajá-lo a renunciar ao mundo: ‘Não me é possível vos pintar a agradável perspectiva que formam as colinas que se elevam sensivelmente, e o profundo dos vales e das fontes, dos riachos e dos rios que regam essa região, e apresentam aos olhos os espetáculos mais encantadores.”

Refere-se aqui a uma outra Cartuxa, fundada na Calábria, no Sul da Itália, a qual, por exceção, tinha um panorama atraente. Pode-se perguntar por que São Bruno dava esse argumento a fim de chamar alguém para ser cartuxo. Não parece uma coisa inteiramente extravagante dizer: “Venha observar silêncio perpétuo, castidade, pobreza, obediência, porque aqui há uns riozinhos bonitos e umas fontes agradáveis para você ver”?

O argumento parece completamente desproporcionado com o sacrifício e refere-se ao mais estranho e disparatado dos turismos. Como explicar que São Bruno fizesse essa sugestão?

Evidentemente, deve-se entendê-la no contexto, como quem diz a uma alma piedosa, que quer isolar-se: “Vem, porque aqui há muitas criaturas belas que nos servem para dar glória a Deus. O lugar é propício para a oração.”
Ou seja, devemos nos elevar a Deus procurando nas coisas analogias com Ele, para glorificá-Lo.

Vivendo numa cidade de asfalto e cimento armado, não se tem essas coisas senão raramente. De qualquer forma, há sempre algo para se dar glória a Deus, por exemplo, um bonito slide ou filme, um belo panorama.

 

(Extraído de conferência de 17/8/1973)

1) São Bruno nasceu em Colônia, no ano de 1030, e faleceu na Calábria, em 1101.
2) Situada em São Paulo, na Rua Jaguaribe, bairro de Santa Cecília.
3) Cf. “Dr. Plinio”, n. 106, janeiro de 2007, p. 25.
4) “Nada aprenderam, nada esqueceram” – Frase de Talleyrand, empregada por Dr. Plinio para designar a mentalidade daqueles que julgam os fatos de hoje, exatamente com os critérios errôneos em voga há décadas atrás. Por exemplo, os N-A-N-E consideram todas as coisas sob o ângulo dos velhos princípios laicos, e não compreendem que o campo decisivo dos acontecimentos mundiais é a vida interna da Igreja (cf. “Folha de São Paulo”, 5/4/70 e 12/4/70).

04 de outubro – Cintilações da alma franciscana

Cintilações da alma franciscana

Em diversas regiões da velha Europa cristã, há lugares que ainda conservam uma certa unção, ligada à própria natureza deles, não só porque Deus assim o dispôs, mas também porque foram “sobrenaturalizados” pela santidade de homens que ali viveram. É exemplo paradigmático disto a cidade de Assis, marcada para todo o sempre pela extraordinária virtude do santo Fundador dos franciscanos.

Ao peregrinarmos por aquelas paragens que conheceram a prodigiosa alma do “Poverello”, logo o imaginamos passeando pelos lindos e pitorescos arredores de Assis, analisando tudo e fazendo altas considerações que o uniam ainda mais ao Criador. Então se encantava com uma pequena flor, com as ervinhas a crescerem nos sopés das colinas, ou com o “irmão sol” num lindo crepúsculo, etc., elevando-se na contemplação, no conhecimento e no amor de Deus com uma plenitude incomparável.

Essa comunicação especial que São Francisco tinha com Nosso Senhor produzia, por sua vez, uma forma de circulação de sobre- natural por aqueles lugares, envolvendo e conferindo a tu- do algo da própria perfeição espiritual do santo.

Em Assis, ainda se pode degustar algo que só a autêntica piedade católica é capaz de engendrar, isto é, a harmonia de sentimentos opostos. Ali se experimenta um pouco da bondade e da doçura franciscanas, ao lado da austeridade e da combatividade de um varão que era entusiasta das Cruzadas. Sente-se a felicidade extraordinária de um dos santos mais alegres da história cristã e, ao mesmo tempo, o signo de uma tristeza digna, composta, senhora de si, que é o reflexo da dor de São Francisco pela morte do Filho de Deus. Tem-se a imponência das construções da monumental basílica, ao lado do espírito de humildade e desapego das coisas terrenas levadas ao último ponto no “Êremo delle Carceri”. Assim como a pureza estava para São Luís Gonzaga, estava a pobreza para São Francisco. A “dama pobreza”, como dizia, a qual ele misticamente desposara.

Eis uma das grandes maravilhas a serem admiradas em Assis: extremos opostos que nascem dos troncos benditos da Igreja, que não entram em conflito, mas se equilibram de forma prodigiosa, manifestando, pelos fulgores da alma de um santo, algumas das infinitas perfeições do Criador.

Plinio Corrêa de Oliveira

04 de outubro – São Francisco de Assis

São Francisco de Assis

Nas veredas de um mundo que caminhava incontroladamente atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hino do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar: Foi o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja.

Numa palavra, o doce “poverello” de Assis foi talvez, a meu ver; a personalidade mais contagiante que tenha havido na Cristandade.

04 de outubro – São Francisco, cavaleiro de Cristo

São Francisco, cavaleiro de Cristo

Nas veredas de um mundo que caminhava incontroladamente atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hino do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar.

Foi ele o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja.

Numa palavra, o doce “poverello” de Assis foi talvez, a meu ver, a personalidade mais contagiante que tenha havido na Cristandade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

04 de outubro – São Francisco de Assis e o enlevo pelas coisas divinas

São Francisco de Assis e o enlevo pelas coisas divinas

Personalidade admirável que marcou não apenas o seu tempo mas os séculos sucessivos, São Francisco de Assis tanto se identificou com o Divino Mestre que se Lhe tornou semelhante até mesmo no seu semblante físico. Para Dr. Plinio, o “Poverello foi uma imagem viva do enlevo pelas coisas divinas exercitado ao último ponto.

Nas veredas de um mundo que caminhava de modo torrencial atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hinodo desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar. Ele foi o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja. Por tudo isso, terá sido ele, a meu ver, a personalidade mais contagiante que talvez tenha havido na Cristandade.

A característica de uma alma enlevada

Entre tantos predicados dignos de consideração, creio ser oportuno ressaltar esse aspecto da alma de São Francisco: o seu amor arrebatado pelas coisas divinas, seu enlevo que chegava ao êxtase, diante das maravilhas criadas por Deus e diante da própria perfeição do Criador.

Tenho para mim que ponderável parcela da felicidade que nos é dado ter nesta Terra — vale de lágrimas — consiste em nos enlevarmos com aquilo que merece nosso encanto, amor e admiração, e em fazermos a doação desses sentimentos ao objeto de nosso enlevo. Bem entendido, essa admiração desinteressada e fervorosa deve se dirigir, acima e antes de tudo, ao que representa para nós uma expressão de Deus Nosso Senhor. E, portanto, tal enlevo será, em última análise, a manifestação de nosso amor ao Altíssimo.

Nesse sentido, é ilustrativo o fato narrado por um literato: certa vez, levou um amigo para ver, de longe, uma aldeia por ele já conhecida. Chegaram ao topo de uma colina e, lá do alto, após divisarem o belo cenário de montanhas e campos que envolviam a aldeia, ele começou a indicar: “Aquela é a casa de fulano, aquela outra de beltrano, a outra de sicrano”. O amigo, surpreso, perguntou-lhe:
— Bem, e a sua, qual é?
— Ah, eu não tenho casa. Não tenho nada. Só o panorama…

Compreende-se: quem tem o panorama, tem mais que o casario, porque tem o enlevo e a capacidade de admirar aquela superior beleza como um reflexo de Deus. É o gesto desinteressado de contemplar o cenário pelo cenário, sem vantagem própria.

A necessidade de doar-se

Insisto nessa ideia do amor desinteressado a algo que se ama por se tratar de uma manifestação da grandeza de Deus. E, portanto, uma disposição de alma que devemos cultivar para irrigar e alimentar nossa vida espiritual, para aumentarmos nossa capacidade de enlevo pelas coisas divinas.

Como saber se estamos trilhando esse caminho?

A meu ver, o sintoma de que fomos tocados pelo raio divino do enlevo é precisamente o fato de sentirmos uma necessidade de doar o nosso amor, abnegadamente, ao objeto amado enquanto tal e nada mais. No Glória que se reza na Missa, essa atitude de alma está muito bem expressa, quando se diz: Nós vos damos graças, Senhor, por vossa imensa glória. Ou seja, amo tanto a Deus porque Ele é Deus, e eu O agradeço por ser Deus como se fosse um inestimável favor feito a mim, quando a glória e o benefício é exclusivamente para Ele. Eu, homem, não participo dessa magnitude, a não ser como um adorador pequenino no fundo do santuário, com os olhos fitos no Tabernáculo.

Há, portanto, uma certa forma de enlevo pela qual a pessoa quer dar-se inteiramente e não conservar nada para si. E faz disso o ideal de sua vida, de tal maneira que coloca sua felicidade no ter oferecido tudo a Deus: “Senhor, eu vos trago tudo, não conservo nada para mim, dou-me por completo”.

Alma de fervor contagiante, São Francisco de Assis entoou o hino do desapego, do amor a Deus e do desejo de se entregar a Ele por inteiro

A perfeita alegria de São Francisco, expressão de enlevo

E, oh! coisa inexplicável, oh! paradoxo: essa é a felicidade mais autêntica que se possa ter. Prova-o o exemplo dos santos, e o exemplo do próprio São Francisco de Assis. Ele o exprimiu de modo perfeito, quando, durante o trajeto entre uma casa e outra de sua ordem, em tempo de rigoroso inverno, seu acompanhante Frei Leão lhe perguntou no que consistia a perfeita alegria, e São Francisco respondeu:

— Imagine que, chegando ao convento no meio da noite, sob neve intensa, com frio e fome, ao batermos à porta, o irmão porteiro nos atenda irritado, nos admoeste com desaforos e não nos deixe entrar. Então permaneceremos ao relento, sofrendo os rigores do frio e o aguilhão da fome, aceitando tudo com serenidade e resignação por amor a Deus: nisto estaria a perfeita alegria.

Penso que não se poderia compreender essa afirmação de São Francisco, a não ser em função do enlevo. Ou seja, é um tal amor e uma tal veneração pela ordem franciscana e tudo quanto ela representa, que um membro dela, após receber toda espécie de maus tratos e injúrias à porta de um dos seus conventos, ainda se deixa tomar de enlevo, como se exclamasse: “Ó moradia do meu Beato Pai Francisco! Ó muros sagrados! Ó paredes! Ó conteúdo sacrossanto! Ó espírito que habita nisto! Com que alegria eu, não podendo entrar, fico contente em estar de fora, imaginando o que está dentro!”. Isso é o enlevo perfeito.

Imagem viva do enlevo exercitado ao último ponto

E por essa atitude de alma se compreende também, que, por exemplo, um franciscano possa dizer: “Não sou eu mais quem vive, mas é meu pai São Francisco que vive em mim”. Claro está, não significa que ele deixou de existir materialmente, mas que o enlevo dele pela pessoa de São Francisco chegou a um tal extremo que, por assim dizer, ele se transformou num outro São Francisco de Assis, assimilou e se identificou com a personalidade de seu fundador. Do mesmo modo como o próprio São Francisco podia dizer: “Não sou eu mais que vivo, mas é Cristo que vive em mim”. Assim aquele religioso exclamaria: “É Francisco que vive em mim e, por meio deste, é Cristo que vive em mim. Eu morri, dando-me por inteiro ao ideal franciscano, transformando-me num filho completo de São Francisco.”

São Francisco tanto se identificou com Redentor Divino, que se Lhe tornou parecido até no semblante físico

Aliás, creio que uma forma de holocausto das mais sensíveis que houve na História — de propósito não digo que tenha sido a maior, nem a comparo com o exemplo de Nossa Senhora, que está acima de todos os conceitos — foi a realizada por São Francisco de Assis. De fato, o doce “Poverello” conformou-se tanto à figura de Nosso Senhor Jesus Cristo que chegou a se tornar fisicamente parecido com o Divino Mestre, inclusive recebendo os estigmas da Paixão.

Qual o significado dessa semelhança?

Significa uma tal união que, por todo o jogo das razões naturais, e mais ainda sobrenaturais, ele se transformou num outro Cristo: era a imagem viva do enlevo praticado até o último ponto.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 10/6/1967 e 10/3/1970)

04 de outubro – São Francisco de Assis: Personalidade Rica e Marcante

São Francisco de Assis: Personalidade Rica e Marcante

Santo de uma personalidade tão rica e marcante, São Francisco de Assis parece vivo ainda hoje, resplendendo sua presença diante dos homens. Deixou-nos um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das perfeições divinas e do profundo amor a Deus. Ao considerar os peixes num simples regato, sabia colher desta cena uma aplicação concreta para a vida espiritual.

Dirigia-se ao “irmão sol” e à “irmã lua”, tecendo orações que elevam a alma à mais subida meditação das excelências de Deus, como quem afirma: “Ó Senhor, este universo criado, do qual faço parte, é grande e belo demais; porém, há algo infinitamente superior, que sois Vós!”

Daí a fabulosa densidade da religiosidade franciscana, que devemos imitar. Diria mais: sem esse espírito contemplativo, nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.

Plinio Corrêa de Oliveira

02 de outubro – Protetores e advogados do homem

Protetores e advogados do homem

Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

02 de outubro – Santos Anjos Custódios

Santos Anjos Custódios

O anjo custódio nos foi dado não apenas para as horas de perigo e provação, como também para rezar e interceder por nós a todo instante. Ele é nosso mediador e advogado junto ao trono do Altíssimo e roga continuamente em favor do seu protegido. Portanto, aconselha-nos Dr. Plinio, é de todo congruente implorarmos sempre esse patrocínio do nosso anjo da guarda.

No dia 2 de outubro celebra-se a festa dos santos anjos da guarda, a respeito dos quais poderíamos tecer alguns comentários.

Para nos socorrer nos perigos e lutas da vida.

Enquanto o otimismo moderno, devido à mentalidade obsessiva do “happy end” (“final feliz”), é muito propenso a achar que em nada existe luta, dificuldades e perigos, a Igreja, pelo contrário, nos  ensina que esta vida é um combate semeado de riscos materiais e espirituais. Por isso, a Providência Divina dispôs um anjo para velar sobre cada um de nós. E o fez com tanta munificência que há também um anjo para cada cidade e nação, além daquele que tutela a própria Santa Igreja Católica, o Arcanjo São Miguel. Não será descabido pensar que, provavelmente, para grupos, famílias de  almas, sociedades, etc., existem  igualmente anjos da guarda, de tal forma que todos os seres são amparados por um espírito angélico.

Destas considerações decorre uma primeira lição, de caráter sobrenatural, que nos leva a compreender como é errada a posição condenada por Dom Chautard, daqueles que dizem: “Sou muito capaz, inteligente, jeitoso,esperto; por causa disso, desde que não me sobrevenham obstáculos muito grandes, não preciso nem na minha vida espiritual, nem na material, do auxílio de Deus. Dou conta por mim mesmo daquilo que preciso fazer”.

Ora, se o Altíssimo delegou um ente celeste para acompanhar e proteger cada um de nós, é porque a todo momento e para tudo o que fazemos, necessitamos do auxílio d’Ele.

Distorções de uma falsa piedade

Por outro lado, em conseqüência das concepções de uma piedade errônea, em muitas pinturas que representam o anjo da guarda em ação, há sempre uma criancinha, insinuando vagamente que tal amparo se destina apenas às crianças. Portanto, apenas estas últimas acreditam em anjo, e um espírito “emancipado”, mais “evoluído”, nele não crê nem precisa de ajuda.

Lembro-me de ter visto uma estampa onde aparecia um bonito riacho, tendo à margem graciosas plantinhas, e uma criança rechonchuda, tez rosada, com ar de quem recente mente saíra da cama e fora lavada, frisada e enfeitada. Ela passa sobre uma ponte onde existe uma tábua quebrada na qual poria o pé, mas o anjo da guarda, atrás dela, a protege.

A todo momento necessitamos do auxílio do nosso anjo da guarda, destinado por Deus para nos amparar e favorecer.

Tem-se a impressão de que aquilo é o mundo das imaginações da criancinha, e indica o estado de espírito com que ela atravessa a ponte. Com muito favor, poder-se-ia pensar que o anjo da guarda faz o mesmo com adultos. Então, para evitar desastre de automóvel, doenças, pequenos acidentes, etc., é bom recorrer ao anjo da guarda. Em suma, este serve para as necessidades materiais; quanto às espirituais, não se fala da proteção angélica. Razão pela qual muitos pedem a cura de alguma enfermidade, outros, que favoreça uma reconciliação e coisas do gênero. Poucos têm noção de que os anjos da guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais.

Nunca estamos sós

E contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um anjo da guarda está junto de nós! Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fa-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de anjos da guarda que velam por nós, além do anjo destinado a amparar o conjunto do nosso movimento, ver a verdade o que acima cogitamos a respeito das famílias de almas, sociedades, etc.

Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito! Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu anjo da guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Devido a uma errônea noção do papel do anjo da guarda, poucos consideram que ele nos foi dado, sobretudo, para velar por nossa alma e nos socorrer em nossas dificuldades espirituais

Nosso intercessor particular

A compenetração dessa verdade proporciona alento à vida espiritual, pois sentimos a mão de Deus nos  acompanhando a cada passo. E ilustra as afirmações de Nosso Senhor no Evangelho: não cai um fio de cabelo de nossa cabeça nem uma folha de árvore, não morre um passarinho sem a permissão do Criador. Quer dizer, a conexão entre a missão do anjo da guarda e a doutrina católica sobre a Divina Providência é admirável, própria a estimular em nós a virtude da confiança, pois nesta crescemos ao termos sempre presente que o anjo custódio nos foi dado não apenas para as horas de perigo e provação, como também para rezar e interceder por nós a todo instante.

O anjo da guarda é nosso mediador e advogado junto ao trono do Altíssimo e roga continuamente por nós. Portanto, é de todo congruente pedirmos a ele que nos obtenha graças e afaste de nós os perigos.

Estímulo e conforto para nossas almas

Os antigos, aliás, possuíam profunda noção da presença e da intercessão dos anjos custódios, e por isso construíam igrejas em seu louvor, e alguns lugares onde eles apareciam se tornavam objeto de peregrinação. Por exemplo, a Abadia do Monte Saint-Michel, na Normandia. São Miguel Arcanjo é o padroeiro da nação francesa, e também o de Roma, depois que se fez presente no alto do outrora mausoléu do Imperador Adriano, e onde hoje se vê o castelo chamado Sant’Angelo. Em outras ocasiões, viam-se anjos secundando os católicos em seus confrontos contra hereges e  adversários da ortodoxia cristã.

Haveria mil coisas a se considerar a respeito do papel dos anjos, baseando-se na Bíblia e na história da Cristandade. Infelizmente, tudo isso é pouco ou nada recordado. Razão pela qual é extremamente belo rememorarmos essas verdades e tê-las sempre em vista para o estímulo e conforto de nossas almas.

Modelo de santidade para o protegido

Restar-me-ia apresentar uma última reflexão, a qual submeto ao juízo da Igreja por se tratar de uma opinião pessoal, que me parece conveniente e razoável.

Deus tudo faz com conta, peso e medida, de modo ordenado, e não é provável que a designação de um anjo da guarda para atender uma pessoa se produza de maneira automática. De fato, não é possível imaginar uma espécie de ponto de táxi de anjos no Céu, à espera de que nasça um homem e, a um aceno de Deus, o anjo A ou o X se dirige à Terra e começa a proteger aquele novo ser humano… Essa forma de agir em Deus não nos soa como própria de sua infinita sabedoria.

Mais inclinado sou a pensar que Deus delega a cada pessoa um anjo da guarda cuja santidade tem relação com a luz primordial daquela alma. De maneira que o anjo é um celeste modelo das virtudes que ela deve praticar o longo da vida terrena. Se pudéssemos ver nosso anjo da guarda, contemplaríamos provavelmente a personificação de nossa luz primordial, ou seja, algo que seria de certo modo parecido conosco, mas num grau de beleza ontológica e sobrenatural inconcebível.

O “alter ego” de cada homem

Compreendemos, então, a simpatia, a afinidade e o desejo de servir que teríamos para com ele e, reciprocamente, o vínculo especial do anjo da guarda conosco. Quer dizer, o anjo custódio é o celeste alter ego, o outro “eu mesmo” de cada protegido. Esta é uma razão particular para que, antropomorficamente falando, tenhamos ainda mais facilidade de compreender como o anjo da guarda nos ampara. Imaginemos que encontrássemos alguém necessitado de ajuda, sumamente parecido conosco: não é verdade que nos apressaríamos em socorrê-lo, impelidos por essa semelhança?

O outro “eu mesmo” de cada protegido, o anjo da guarda foi sempre objeto da veneração popular Ora, é o que sucede entre o anjo da guarda e cada um de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/10/1964).

02 de outubro – O convívio dos Anjos

O convívio dos Anjos

A iconografia de Anjos da Renascença e do barroco, bem como certas imagens muito difundidas no século passado não representam autenticamente os espíritos angélicos; os da Idade Média e os de Fra Angélico exprimem a realidade. Os Anjos estão dispostos numa hierarquia, em que os superiores transmitem aos inferiores “jornais falados” a respeito do que viram em Deus.

 

Ao tratar sobre os Anjos, devemos antes estabelecer alguns princípios que nos ajudarão a nos aprofundarmos no assunto.

Mosteiro de Saint-Michel

O primeiro princípio que convém lembrar é o seguinte: a Providência está permitindo ao demônio ter um arrojo e uma extensão de ação como jamais se viu ao longo da História. Nós podemos ter as mais variadas impressões a respeito do passado, a História narra as ações mais estranhas, mais censuráveis, mais condenáveis. Entretanto, quando comparamos essas ações a algumas que se dão no mundo contemporâneo, vemos que o passado era simplesmente diáfano e encantador, mesmo em seus aspectos mais censuráveis, em comparação com os lados reprováveis do presente.

Há dois mil anos a Igreja cultua os santos Anjos e, de quando em quando, eles aparecem e dão de si alguma manifestação. Recordemos o Mosteiro de Saint-Michel, na França, o qual, visto no seu total, é como que a fotografia, em pedra, de um espírito angélico.

Aquela ponta que se ergue e depois a abadia com suas várias construções, junto àquele mar variado, ora mais mar do que terra, ora mais terra do que mar, às vezes restos de poça de mar no meio de braços de terra que vão secando e emergindo no meio daquilo tudo; e depois se percebe um vento uivando e silvando na parte do mar que é sempre mar. No meio de tudo isto o Mosteiro de Saint-Michel de pé, solene, tranquilo e firme, agarrado e dominando a rocha, mostrando aos mares a inanidade de seus movimentos e com a flecha apontada para o céu.

Como o espírito humano conhece bem por meio do contraste, vamos tomar certas noções comuns, correntes, pouco precisas e infelizmente um tanto infantis a respeito dos Anjos presentes na mentalidade de todo mundo — oriundas de uma apresentação muito sumária do tema — e transpô-las para o que imaginamos de um Anjo.

Com isso trataremos de ter alguma ideia daqueles Anjos cuja vinda e intervenção nós esperamos. Fica assim indicada a nossa meta, e nossas almas, ao menos por uns instantes, apontarão para essa hora da vinda deles como a torre do sino do Monte Saint-Michel.

Anjo gorducho e despreocupado…

Quais são as ideias que há a respeito dos Anjos? A criança forma a noção de que as figuras de Anjo que ela recebe correspondem às ideias que os pais — e também o vigário — têm do Anjo. Tanto mais que a criança sabe de um modo instintivo e confuso que, em última análise, o pai e a mãe conferem com o vigário as ideias da Religião. De maneira que toda estampa, todo medalhão, toda figura que representa um Anjo, a criança julga mais ou menos subconscientemente que significa o ensinamento da Igreja Católica sobre o Anjo.

Então devemos nos reportar à estatuária, às estampas, às coisas habituais a respeito dos Anjos — e que não são muitas. Podemos cogitar um pouquinho também nos magníficos Anjos da Idade Média, passando muito rapidamente pelos Anjos do barroco. Consideremos, em primeiro lugar, como os Anjos eram apresentados na nossa infância.

Havia duas casas em São Paulo, ainda do centro velho, que vendiam relógios, algumas joias e objetos religiosos de luxo: a Joalheria Michel e a Casa Bento Loeb. Aquela imagem do Coração de Jesus que há em minha residência, por exemplo, foi comprada numa dessas lojas. Eu me lembro de que o fornecimento de artigos religiosos para crianças do meu tempo era encaminhado por essas duas casas. E eram, em geral, fábricas francesas que enviavam esses objetos para São Paulo.

Então, eu me recordo de um medalhão que representava um Anjo e me chamou muito a atenção. Era circular, bom para presentear a uma senhora que acabava de ter um filho, a fim de amarrar o medalhão na cúpula do berço; para conceder a uma criancinha de três, quatro, cinco anos que faz aniversário; próprio também para dar a uma criança um pouco mais velha que recebe a Primeira Comunhão. Nem me lembro mais se esse medalhão era meu ou de minha irmã ou de algum de meus primos. Sei que esse medalhão conviveu comigo. E no promíscuo da infância entre parentes, em que a propriedade individual existe confusamente e os objetos são trocados, passam da gaveta de um para a mão do outro, nesse turbilhão tenho a impressão de que isso acabou sendo meu, mas não estou certo.

Era um Anjo tipo, ainda, “Belle Époque”(1): gorducho, com a face cheia, cabelos ligeiramente ondeados, braços bem roliços, trançados, e uma cara de inteira tranquilidade, debruçado sobre algo que era como que a base do medalhão, tendendo um pouco para o tédio, incapaz e não desejoso de qualquer esforço. Como quem olha de um terraço para um ponto vago, mas que não está muito interessado na cena que se passa embaixo e diz: “A minha batalha eu já travei e agora estou aqui gozando; você se arranje como puder!”

Lembro-me de que eu olhava para o Anjo e me vinha uma ligeira perturbação ao espírito, no seguinte sentido: “Se um Anjo é assim e conhecesse bem o interior de sua alma, ele discordaria de você; porque você tem a respeito do Anjo umas ideias que esta imagem não simboliza. Logo, ou essas ideias são contra a realidade do que é um Anjo e você está errado, ou elas são a favor dessa realidade; mas então o Anjo está errado e, portanto, alguma coisa não acerta bem nisto.” A saída era, naturalmente: “Eu vou procurar”. E olhava, olhava, olhava para ver se encontrava no Anjo alguma coisa que tivesse relação com isso.

…ou sentado sobre uma nuvem e tocando harpa

Então, uma primeira ideia a respeito dos Anjos: vida realizada, sem futuro, numa eternidade sem grandes atrativos, um certo fundo de tédio. Esforço, não! Mas outros quadros, outras coisas de uma arte religiosa que já caminhava a passos largos para sua decadência, afirmavam isso.

Por exemplo, quadro clássico, tantas vezes comentado entre nós: Anjos sentados em cima de nuvens, sobre um céu azul, tocando harpa. Quando acaba de tocar a harpa? Como é que essa nuvem não afunda?

E, no total, tem-se a impressão de que eles eram pintados com uma cara animada, mas à maneira de pessoas muito bem educadas que estavam atravessando uma fase de tédio, com ar distraído, mas que no fundo eles estavam se aborrecendo…

Por outro lado, há a ideia reta, insinuada, de que eles são de uma natureza inteiramente superior à nossa, apresentados em carne e osso apenas porque a arte não pode pintar o puro espírito, mas gozam da presença de Deus e da familiaridade nos inefáveis do Altíssimo e são muito bem intencionados, muito bem dispostos em relação aos homens. Prontos a ajudar, a socorrer.

Tornei-me adulto e as imagens de Anjos foram se repetindo no mesmo gênero. Eu me lembro de uma estampa impressa, bastante popular colocada no parlatório de um convento que frequentei muito, representando uma criancinha atravessando uma ponte, e o Anjo da Guarda, por detrás, tomando atitudes para ela não cair da ponte, com uma solicitude, um desvelo extraordinário.

Eu olhava e pensava: “Essa imagem insinua, sem afirmar explicitamente, que o Anjo se preocupa muito com que a criança não quebre a perna, mas para que ela não peque e ame de fato a Deus, não estou vendo preocupação. É um pouco securitário. Onde está o zelo do Anjo pela causa de Deus?” Não formulava isto à maneira de censura, mas de perplexidade. Era algo que eu não encontrava. Então, suspendia o meu juízo e dizia: “Não, depois veremos”.

Os Anjos de Fra Angélico

Foi algo em minha vida meu encontro com os Anjos da Idade Média e, sobretudo, com os de Fra Angélico. E refleti: “Aqui há algo com outro pensamento, outra altura, outra classe, diferente daqueles Anjos que eu vira, de uma iconografia decadente. Ora, como Fra Angélico é beato, ele fez tudo direito”.

Mas aí vinha outra perplexidade: os Anjos de Fra Angélico, os de que eu me lembro, estão sempre na bem-aventurança eterna, expressa, é verdade, de um modo perfeitamente delicado, nobre, sobrenatural, de tocar a alma. E foi esse o aspecto dos Anjos que ele procurou e nos apresentou. Eu pus em uma de nossas salas mais nobres quatro cópias de Anjos pintados por ele, e me regozijo em estarem lá. Aquilo corresponde à imagem que eu teria a respeito de um Anjo.

Mas só naquela postura? Não há outras? Não reluzem nos Anjos também outras perfeições que a minha alma procura há tanto tempo? Como são essas perfeições?

Apenas uma ideia me ficou no espírito: Por que Fra Angélico os pinta assim? Ele mesmo viveu num período em que a Idade Média já ia caminhando para seu declínio, e o heroísmo dos guerreiros medievais tinha qualquer resto ainda da ferocidade selvagem. A Europa ia afundar, dentro em breve, no que se chama anarquia feudal, quer dizer, a explosão da revolta dos senhores contra seus reis, dos senhores menores contra os senhores maiores e um mata-mata fenomenal de uns contra os outros, em parte fermento de ferocidade revolucionária que começava a crepitar, e de outro lado uma disposição de alma para a luta que tinha sido levada além do meridiano comum.

Naturalmente se compreende que Fra Angélico não poderia, a uma humanidade assim, apontar Anjos em plena ação de batalha, pois acabaria por incitar aquilo que não era para estimular. Naquele tempo, os Anjos deveriam inspirar mansidão, ser distensivos, convidando à doçura. Assim como o violino de São Francisco Solano tocado para os índios do Peru os tranquilizava, e se compreende que o Santo não lhes ensinasse marchas guerreiras, pois eles já tinham aquele borbulhar em excesso. Entende-se, assim, que Fra Angélico tenha pintado os admirabilíssimos Anjos dele.

Anjos da Renascença

Às vezes olhamos pinturas, esculturas de Anjos da Renascença — e do Barroco, continuador em alguns sentidos da Renascença — e não sabemos se representam cupidos pagãos… Lembro-me do caso de um grande pintor da Renascença, a quem um romano famoso encomendou um São João Batista increpando os fariseus. O artista disse que possuía um quase concluído e poderia entregá-lo em breve, digamos em dez dias. De fato, passado esse prazo, o quadro estava terminado.

Como se explica que um quadro, que leva muito tempo para pintar ­— não devido às pinceladas, mas para ir excogitando cada traço, pois é uma verdadeira composição —, estava pronto em dez dias?

Ele tinha pintado um Baco, o deus indigno do vinho e da bebedeira. Como não encontrou comprador, ele pintou por cima uma pele de camelo para cobrir um pouquinho o Baco e, com a mesma expressão de fisionomia do deus da bebedeira, ele o apresentou como sendo São João Batista.

Compreende-se que Anjos concebidos nessa escola de arte muito facilmente não tenham nada de católico. E são uma deformação do conceito de Anjo.

Então, devemos pôr de lado essas noções, conservar na retina os Anjos de Fra Angélico e perguntar: Se um desses Anjos se zangasse, que expressão de fisionomia tomaria? Colocado em presença do mal, da Revolução, que aspecto teria?

Isso nos poderia dar alguma ideia de como seria um Anjo, caso nós o víssemos. Assim preparamos nosso espírito para a cogitação sobre como deve ser um Anjo.

O corpo impõe limitações ao homem

O que nos diz a Doutrina Católica sobre os Anjos?

O homem tem misérias de toda ordem e, quando vigia muito sobre si, ele as mantém acorrentadas e presas; mas só se livrará delas na ressurreição dos mortos quando, tendo ido para o Céu, estiver com a sua integridade perfeitamente em ordem e os efeitos do pecado original sobre ele tiverem desaparecido completamente, e o homem só se inclinar para o bem. Então não estará mais dividido. Realmente o homem é dividido e, por causa disso, hesita, duvida. Ora é propenso a querer uma coisa, ora a desejar outra; ele precisa, quase, de coisas contrárias para encontrar seu equilíbrio.

Eu estou numa cadeira com dois braços e um encosto. O que isto representa de limitação humana! Preciso ora me apoiar sobre a direita, ora sobre a esquerda, ora nas costas; necessito apoio variado o tempo inteiro. É uma necessidade do corpo que simboliza as hesitações, as limitações e as misérias da alma humana.

Pior. Se o homem apenas hesitasse… Às vezes ele hesita e erra, duvida e peca. E às vezes nem duvida, mas delibera e peca! Até lá chegam as coisas!

Diante dessa situação podemos fazer a comparação com o Anjo. Este, por não estar ligado à matéria, não tem as limitações que a matéria nos impõe. Quanto a carne limita e condiciona o homem: bons e maus humores, nervos, etc.!

Evidentemente, a carne não é má; ela é boa, sendo uma criatura de Deus. “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Está tudo dito! Qualquer crítica que se faça da carne expira na entrada, ao pé do monte desta afirmação. Portanto, estou longe de falar contra a carne, eu a respeito.

“Não desprezes a tua própria carne”

Vem-me à memória o seguinte fato. Havia antigamente na região central de São Paulo muitos salões de engraxate, e fui a um localizado na Rua da Quitanda. Enquanto o rapaz engraxava meus sapatos, eu estava distraído, pensando em outras coisas. Não sei se eu não punha o pé no lugar adequado, mas em certo momento notei as duas mãozonas do engraxate que pegavam o meu pé e o colocavam sobre sua perna, para ele engraxar o sapato ali, sob seu controle. Quando percebi que meu pé pousava sobre a perna do engraxate, tive um sobressalto e pensei: “Não se faz isso com a carne humana! Trata-se de um simples engraxate, mas é um homem! E o respeito à natureza humana deve levar-me a tirar o pé de cima da perna dele”.

Olhei para o engraxate e percebi que seria um duelo, porque ele queria terminar o serviço e não estava pensando em sua perna, mas nos sapatos que precisava engraxar. Era uma luta que eu não venceria, pois ele agarrava meu pé. Então refleti: “Bem, é por conta dele; se o engraxate me obriga, ele está me desrespeitando e não sou eu que estou pisando nele. Ele quer ser pisado”.

Mas fiquei com esta pergunta no espírito: Qual é o princípio em virtude do qual essa minha reação foi reta? Algum tempo depois me chegou às mãos, por circunstâncias fortuitas, uma citação da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne” (Is 58,7). Eu disse: “Olha lá! Está aí justificada minha reação no caso do engraxate!”

Eu não poderia desprezar a carne humana; não era minha, mas carne da qual também eu sou feito. Não posso desprezar a minha própria carne. Por isso não tenho o direito de pisar noutro homem, de tal maneira nós devemos respeito à carne.

A graça prepara a alma para ser o reflexo de Deus

Além da carne, há um outro fator que condiciona o espírito humano: é a graça. Quer dizer, é uma participação criada na vida divina que dá a cada um de nós lampejos, pensamentos, reflexões, volições que Deus sopra em nossa alma e por onde Ele, com muita delicadeza, prepara a alma humana para ser o reflexo d’Ele mesmo.

Assim, a graça respeita a nossa fragilidade, as nossas limitações, ama essa natureza humana composta de alma e corpo que seria a natureza humana de Nosso Senhor e a de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra. Deus, por meio da graça, de um lado, e do corpo, de outro lado, faz com que a alma, se ela se deixa conduzir, se eleve a considerações altas, pense coisas nobres, sua vontade tome força; o homem pode tornar-se um santo, ainda que muito pouco inteligente.

Houve um santo famoso por sua carência de inteligência, São José de Cupertino, que viveu na Itália. Ele era muito pouco inteligente, mas dava conselhos tão acertados que havia peregrinação para o local onde ele morava. E milagres ele praticava a jorro contínuo. É a graça superando ou compensando o que a carne não dava e fazendo dele esta maravilha de Deus: um homem de grandes horizontes, mas burro!

Era preciso que isto existisse na ordem do criado, e assim compreendêssemos bem o que é a limitação, a fragilidade e o esplendor do homem.

Alguém dirá: “Limitação, fragilidade, Dr. Plinio, eu vejo; esplendor não estou vendo…”

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação, e por isso Ele tomou a condição daquele tipo de seres que reúne as duas pontas da Criação. O homem, enquanto ser espiritual, toca no Anjo, e enquanto ser material tange no animal, na planta e na pedra. Ele é um resumo de tudo quanto Deus fez.

Quem é capaz de ver o mar sem se enlevar especialmente com aquela fímbria onde ele parece tocar no céu? Ora, este é o homem! É um horizonte composto.

Não deixa de ser verdade que todas as coisas brilham por causa do Sol, e se o homem é o conjunto, o que há neste de mais nobre, de mais luminoso, de mais belo é a alma humana, elemento espiritual que nos assemelha aos Anjos. Entretanto, estes são de tal maneira que cada Anjo é, por natureza, distinto de outro. Puros espíritos e tão desiguais entre si que são como espécies ou gêneros diferentes.

Jornal falado dos Anjos superiores aos inferiores

Os Anjos estão dispostos perpendicularmente em hierarquia. Cada superior vê mais, quer com mais força, ama com mais ardor, combate com mais eficácia, seu louvor tem mais ressonância, sua presença mais calor, sua missão mais glória do que o inferior.

O gráfico verdadeiro dos Anjos não seria uma pirâmide que encosta sua base noutra pirâmide e assim por diante. A perspectiva seria um fio de linha luminoso de puros espíritos que chegariam até o lugar aonde ninguém chega, nem eles mesmos: o trono de Deus.

E no ápice — mas tão mais no ápice que nem sei o que dizer! — está Nossa Senhora. Nosso Senhor Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Sua natureza humana está ligada à divina pela união hipostática. Nossa Senhora é mera criatura. Ela está num píncaro em relação aos Anjos, os quais cantam enlevados sem poder entender inteiramente.

Mas eles, ao longo deste fio esplendoroso, têm secções. Uma é a dos Serafins, outra dos Querubins, depois dos Tronos, das Dominações, das Potestades, das Virtudes, dos Principados, dos Arcanjos e dos Anjos. Estes são denominadores comuns entre os quais há hierarquia. Cada Anjo vê Deus face a face, entretanto os mais elevados contam aos inferiores o jornal falado sobre o Onipotente que não foi possível eles verem. Então o mais alto diz ao inferior, com amor e solicitude: “Príncipe, meu irmão, vi tal coisa e tal outra”. E o que recebe a notícia conta ao colocado abaixo: “A ti, Príncipe, meu irmão…”, e lá vai a mensagem, a informação celeste. Cada um que fala com o mais baixo conta o que os Anjos mais elevados lhe disseram e o que ele próprio viu de Deus.

De maneira que quando chega à base — quanto acima de nós! —, esta recebe uma caudal de comunicações, de incitamentos, de estímulos, de nobilitações, e canta a glória das hierarquias superiores como modo de cantar a Deus. E todo afeto, todo respeito que desce, sobe à maneira de ação de graças e louvor.

É o eterno convívio entre os Anjos em que, apesar de ver Deus face a face, cada Anjo é razão de uma alegria enorme para outro, e a corte angélica nada nas suas alegrias eternas.

Viver é sentir saudades dos píncaros

Devemos lembrar de passagem que existem vagas nessa corte, e serão almas de criaturas humanas que preencherão esses lugares. E há, por exemplo, a tese indizivelmente simpática de que São José faz parte do coro dos Serafins. Ele está no mais alto, mais alto, mais alto que possa existir, pois é o esposo da Santíssima Virgem!

Assim, esses vagos são preenchidos por gente da plebe da Criação enobrecida pelos planos de Deus, pela Igreja Católica e pela graça. E na Terra, ao longo do tempo, aqueles para isso designados, talvez todos os homens, não se sabe bem como é essa distribuição, estão sendo promovidos para obterem o trono que os espera no Céu, segundo os planos de Deus.

Nunca percebi em concreto nada que me desse a impressão mais especial de um Anjo me ajudando, mas sei que eles auxiliam e lhes agradeço com todas as profundidades que em minha alma haver possa. Tenho a certeza de que os nossos Anjos da Guarda têm por especial preocupação elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes. Não é o mero anseio de levar boa vida no Céu, mas um desejo de conhecer as coisas celestes até mesmo independentes da felicidade que o Paraíso concede. De maneira que Santa Teresa — bem espanhola na sua santidade — dizia a Deus: “Ainda que não houvesse o Céu eu Te amaria, e ainda que não houvesse o Inferno eu Te temeria!” É assim que devemos conceber o Paraíso.

Para considerarmos bem as coisas do Céu, precisamos observar as coisas da Terra, criadas por Deus à maneira do Céu. Antes de tudo a Igreja Católica e depois os vários seres materiais.

É mister termos um feitio de alma pelo qual, por um seletivo bem realizado, conhecemos o que devemos conhecer olhando sempre para o que de mais alto aquilo conduz. Este é o movimento de nossa alma para o Céu.

Tenho certeza de que o Anjo da Guarda de cada um nos ajuda especialmente nisso.

Uma alma “angeliforme”, consoante com seu Anjo da Guarda, é aquela que em cada circunstância procura o que há de mais elevado, e vive à procura do mais elevado.

Assim, devemos entender que nossos Anjos da Guarda querem isso de nós, e que só formamos um com eles se toda nossa vida for orientada ao mais alto. Para a alma ser assim é evidentemente necessária a ajuda dos Anjos. E eu agradeço do fundo da alma ao meu Anjo da Guarda, a Nossa Senhora e a Deus Nosso Senhor, de Quem parte todo o bem que a Santíssima Virgem distribui. Viver não é comer, beber e dormir, passear, vegetar. Viver é sentir essas saudades dos píncaros.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1980)

 

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.

02 de outubro – Magníficos Príncipes celestes

Magníficos Príncipes celestes

Desde toda a eternidade, foi designado para cada homem um Anjo Custódio a velar incansavelmente, dia e noite, por seu protegido, inspirando os bons pensamentos, defendendo dos assaltos inimigos. Aos Anjos devemos rogar em todos momentos difíceis da vida.

 

 

Deus dispensa a água às criaturas em condições muito diferentes. Se considerarmos o globo terrestre, notaremos como a água nos é concedida aos borbotões. Em primeiro lugar o oceano, depois

todos os rios que saem de dentro da terra e correm para o mar e o enchem continuamente, além de tudo aquilo que na natureza está colocado em estado gasoso nas nuvens. Com esta criatura água quantas coisas maravilhosas Deus fez!

Uma gota de orvalho

Entretanto, Ele realizou também com a água uma pequena joia e a multiplicou indefinidamente por todos lugares onde há plantas. Quem não viu e não se encantou com uma gota de orvalho, contemplando-a tão pura, tão límpida e com um tal modo de guardar a luz que bate sobre ela, que a luz parece passear dentro da gotinha e se regalar de imergir naquela pureza?!

De tal maneira a gota de orvalho me encanta que me lembro, em pequeno – quando estava sozinho porque não queria passar por extravagante –, de que, vendo o orvalho numa folha, eu a aproximava dos lábios e sorvia uma gota. Porque, sendo menininho, não podia me convencer de que uma coisa tão linda não tivesse um sabor muito gostoso.
Quando punha aquilo nos lábios percebia que não era saboroso, mas arranjava um pretexto para mim mesmo a fim de conservar minha ilusão. E pensava: “Quando for adulto – sem essa gente que está por aí e não entende nem vê nada –, algum dia irei com um copo numa mata e o encherei de orvalho. Só essa gota não me faz sentir o inteiro sabor, mas se eu tivesse um copo cheio, que beleza e delícia seria! Mais gostosa do que o champanhe”.
Algo semelhante ocorre com relação aos discursos, às conferências, à oratória…
No momento, só tenho a oferecer uma gota de orvalho. É uma pequena reflexão sobre matéria piedosa. Embora tenha tratado desse assunto em diversas ocasiões, é um tema tão bonito, tão admirável, que merece ser aprofundado um pouco: os Anjos da Guarda.

Anjos que regem os corpos celestes

Como ensina a Teologia, os Anjos são divididos em nove categorias sobrepostas umas às outras. A mais alta é a dos Serafins, que veem Deus mais direta e plenamente, conhecem maravilhas que as categorias inferiores não chegam a ver, e lhes contam aquilo que eles contemplaram.
Muita coisa que em Deus é mistério, Ele quer, na sua bondade, que os Anjos superiores entendam e contem para os que lhes estão abaixo. E assim as noções a respeito do Criador vão descendo e chegam à categoria menos excelsa, básica, que são exatamente os Anjos da Guarda.
Entretanto, esses também são tão esplendorosos, tão magníficos, que, às vezes, os Santos aos quais aparecem pensam que eles são Deus. E os Anjos precisam dizer-lhes: “Não, Deus é excelsamente mais alto, não tem comparação!” Eles veem Deus face a face e contam um pouco a respeito do Criador.

 

Deus outorgou para cada criatura humana um Anjo da Guarda. Como também se admite, cada estrela tem um Anjo especial para regê-la, de maneira que se tudo anda tão certo é porque os espíritos celestes estão conduzindo aquilo a funcionar direito. Os Anjos têm meios para isto porque são puros espíritos e recebem de Deus diretamente as ordens de como fazer. Então tudo sai perfeito.
Recentemente, Júpiter foi perfurado por um outro corpo celeste. Isso sucedeu por ordem de Deus, pois tudo se dá porque o Criador quer e na medida em que Ele quer. É possível que de futuro aquilo tenha uma explicação, foi um aviso misericordioso para os homens: “Prestem atenção, aí vem o castigo, qualquer hora pode acontecer isto com a Terra!”
Nossos Anjos da Guarda, que não nos perdem de vista de dia nem de noite, pois quando dormimos eles velam por nós, veem que estamos lendo a notícia sobre Júpiter e obtêm a graça de Deus de poderem sussurrar à alma de cada um de nós – sem que percebamos que estão sussurrando, temos a impressão que é pensamento nosso – o seguinte: “Pense nisto porque, de repente, se houver um castigo, a ponta de um outro planeta poderá tocar na Terra e atingirá você; tenha medo, arrependa-se!” É o Anjo da Guarda que fala para a alma com carinho, bondade e, se diz com força, faz como o bom pai quando, às vezes, chicoteia o seu filho.
Afirma a Sagrada Escritura: “O pai que poupa a vara ao seu filho odeia seu filho” (cf. Pr 13, 24). Poupar aqui quer dizer não chicotear quando é necessário. É a palavra de Deus, ditada pelo Espírito Santo.

Sob a tutela de fiéis custódios

O Anjo da Guarda está continuamente debruçado sobre a pessoa. E quando um de nós, por exemplo, precisar andar sozinho pelas ruas das cidades contemporâneas, tão cheias de poluição e imorais, peça ao Anjo da Guarda na hora de sair de casa:
“Meu Santo Anjo, acompanhai-me, protegei-me, falai à minha alma, livrai-me dos maus olhares, evitai os inimigos que possivelmente querem me liquidar, os desastres que podem me massacrar, trazei-me todo o bem, fazei acontecer isto, aquilo e aquilo outro”.


E quando estiver caminhando, lembre-se de uma coisa reconfortante: o Anjo da Guarda nunca abandona o seu protegido. De maneira que, à medida que avança ouvindo os próprios passos ressoarem sobre o cimento da rua, pode pensar: “Meu Anjo da Guarda está me vendo”. E se alguém está tentado, diga: “Meu Santo Anjo, protegei-me, afastai esse demônio de mim!”
Sem dúvida, todos nós quereríamos muito conhecer nossos Anjos da Guarda. Sabemos que existem, a Teologia nos dá informações sobre eles, mas não os vemos. Entretanto, eles nos veem. Ao mesmo tempo em que estão velando por nós, contemplam a Deus face a face e conversam uns com os outros sobre o que eles veem na Terra, o andamento da Revolução e da Contra-Revolução e os desígnios divinos. E como Deus não lhes conta muita coisa que vai fazer, eles examinam o que o Criador realiza para ver se deduzem pela inteligência o que Ele fará, e conversam uns com os outros sobre isso mas, à maneira de um cântico, porque são superiores a nós em toda linha.
O que vou dizer agora apresento como uma impressão exclusivamente pessoal, de maneira que se a Igreja disser que não é assim, rejeito imediatamente, porque Ela é infalível, eu sou falível.
Tenho a impressão de que, desde toda a eternidade, cada um de nós foi escolhido para ser beneficiado com a tutela, a proteção de um Anjo. E cada Anjo Custódio tem uma certa parecença com seu custodiado. Se nós o conhecêssemos ficaríamos pasmos de ver como ele “sente” como nós, quer aquilo que os nossos lados bons desejam, gosta do que gostamos, a ponto de nos sentirmos um parente próximo de um Príncipe celeste tão magnífico como aquele.

 

Anjos da Excelsa Rainha

Nossa Senhora, segundo muitos místicos, foi acompanhada na Terra por milhares de Anjos que A protegiam e A defendiam. Entre as meras criaturas, não há nenhuma que tenha, debaixo de nenhum ponto de vista, nenhuma medida, proporção com Nossa Senhora.
A Virgem Maria é de uma perfeição, santidade, até de uma formosura incomparável, que ninguém é capaz de conceber. E se tal é a excelcitude de Nossa Senhora, como imaginar a estatura dos Anjos que A custodiaram e que A circundam agora no Céu? É algo a perder de vista!
Pois bem, Ela é a Rainha dos Anjos; Ela tem pena de nós, olha-nos como para filhos doentes, de uma doença chamada pecado original, e reza por nós e nos obtém o que não poderíamos conseguir por nós mesmos. Daí o fato de dizermos na Salve Rainha: “Vida, doçura, esperança nossa, salve!”
Assim, sugiro que, quando tiverem dificuldades, tentações, façam uma jaculatória rápida: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina”. E voltem o olhar para Aquela que é nossa e dos Anjos Rainha.
Eis a gota de orvalho que eu tinha a oferecer.

(Extraído de conferência de 30/7/1994)