22 de Janeiro – Deus deseja a pompa dentro da Igreja

Deus deseja a pompa dentro da Igreja

Lendo as narrações da Légende Dorée sobre São Basílio Magno, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas deste século, fixam-se naqueles fatos meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós.

 

 

A propósito da festa de São Basílio Magno, bispo e doutor da Igreja, temos a comentar os dados tirados da famosa Légende Dorée, de Jacques de Voragine1.

Coluna de fogo que tocava o céu

Através de uma visão, o eremita chamado Efrém conheceu o grau de santidade que Basílio havia atingido. Em êxtase, Efrém viu uma coluna de fogo que partia da cabeça do Santo e tocava o céu, e ouviu uma voz vinda do alto dizer: “O grande Basílio é como essa imensa coluna que você vê.” Ele foi então à cidade no dia da Epifania para conhecer tão notável personagem. Ao vê-lo vestindo uma estola branca e caminhando majestosamente com seus clérigos, disse consigo mesmo: “Tive trabalho à toa em vir, pois esse homem rodeado de honrarias não pode ser aquele que apareceu na visão. Se nós, ermitãos, que carregamos o peso do dia e do calor, nunca alcançamos nada semelhante, como ele, cheio de tais honrarias, pode ser uma coluna de fogo?” Basílio, que por revelação soube dos pensamentos de Efrém, fez com que ele fosse vê-lo.
Levado diante do bispo, o eremita viu uma língua de fogo que saía de sua boca, e pensou: “Basílio é grande mesmo, é, sim, uma coluna de fogo. O Espírito Santo realmente fala pela boca de Basílio.” Dirigindo-se a ele, Efrém disse:
— Senhor, peço-lhe a graça de me fazer falar grego.
Basílio:
— Você pede uma coisa difícil.
Mas orou por ele, que imediatamente passou a falar grego.
Certa vez, outro eremita viu Basílio andando com trajes pontificais e desprezou-o, pensando consigo mesmo que aquele homem gostava demais de pompas daquele tipo. Uma voz então se fez ouvir, dizendo: “Você gosta mais de acariciar a cauda da sua gata do que Basílio aprecia seus ornamentos.”

As portas de uma igreja se abrem, confundindo os hereges

O Imperador Valente, defensor do arianismo, tirou uma igreja dos católicos para dá-la aos arianos. Basílio foi ter com ele e disse:
— Imperador, está escrito: “A majestade real brilha no amor à justiça. O julgamento do rei é a justiça.” Por que, então, ordenastes de livre e espontânea vontade que os católicos fossem expulsos dessa igreja e que ela fosse entregue aos arianos?
O Imperador respondeu:
— Basílio, não é conveniente que me faleis assim.

 

 

Ele replicou:
— Não me importo de morrer pela justiça.
Então o cozinheiro-chefe do Imperador, chamado Demóstenes, partidário dos arianos, tentou intervir, mas Basílio disse-lhe:
— Sua tarefa é cuidar dos guisados do Imperador, e não resolver questões de Fé.
O que o deixou confuso e o fez calar-se.
Disse então o Imperador:
— Basílio, ide e arbitre o problema entre os dois partidos, mas sem se deixar influenciar pelas opiniões do povo.
Ele propôs a católicos e arianos que se mandasse fechar as portas da igreja, nelas colocar os selos de cada um dos partidos, e aquele que conseguisse abrir as portas através de preces teria a posse da igreja. A proposta foi aceita por todos. Os arianos rezaram durante três dias e três noites, e quando chegaram diante das portas da igreja elas não estavam abertas. Então Basílio, à frente de uma procissão, foi até a igreja e, depois de ter feito uma prece, tocou levemente as portas com seu cajado pastoral dizendo: “Deixem o caminho livre, poderes celestes, abram-se, portas eternas, a fim de deixar entrar o Rei da glória.” E imediatamente as portas se abriram, todos entraram dando graças a Deus, e a igreja ficou novamente na posse dos católicos.

Uma legenda que correspondia às aspirações de santidade

 

Não são fatos rigorosamente históricos porque a Légende Dorée é constituída de narrações semilegendárias. Alguns dos fatos ali narrados aconteceram, outros não; e dentre os que aconteceram, nem todos são narrados como se passaram, mas foram embelezados pela imaginação popular.
Sem embargo, são fatos lindos que têm um grande valor espiritual, pois indicam como a piedade daqueles povos cheios de devoção ornou a figura dos Santos, imaginou como Deus deveria agir, e modelou uma legenda que correspondia a suas próprias aspirações de santidade. E isso não pode ser tido em conta de mentira, porque não é propriamente mentira, mas um devaneio, uma história contada de um para outro já sabendo que é estilizada, uma espécie de ficção maravilhosa narrada em louvor do Santo.
As narrações referentes a São Basílio são impregnadas daquela poesia e daqueles problemas do Oriente dos primeiros tempos. Esse Santo viveu numa época de heresias. A heresia dos arianos devastava, naquela época, a Igreja Católica, e São Basílio estava numa luta tremenda contra eles e contra o Imperador, porque em geral os imperadores de Bizâncio davam apoio aos arianos.
A razão disto estava em que esses potentados queriam mandar na Igreja, e os bispos arianos se prestavam a isso, enquanto na Igreja Católica não podiam mandar, porque segundo a Doutrina Católica a Igreja é uma sociedade perfeita e soberana, ou seja, na sua esfera própria – que é a espiritual; e a temporal, em matéria de Fé e Moral – ninguém manda nela. Os imperadores, encontrando na Igreja um dique para o seu absolutismo, evidentemente procuravam persegui-la. Era um transbordamento do orgulho humano.
Nesta época florescia na Igreja uma grande graça, a do eremitismo, entendido no seu rigor. O eremita verdadeiro é aquele que vive inteiramente só, numa gruta, num deserto, em geral não em lugares maravilhosos, mas naqueles que não atraem muito a imaginação, não seduzem muito a fantasia nem agradam os sentidos. O eremita vive ali, sozinho, cuidando apenas do louvor de Deus.
Esse estado eremítico é muito conforme à índole do oriental, porque este, com a alma felizmente cheia de fantasia, de imaginação, no sentido reto da palavra, sabe ver o que tantas vezes o ocidental, sobretudo o “hollywoodizado”, não sabe ver: as mil maravilhas do silêncio, os mil deslumbramentos da solidão.
Quando a pessoa vive isolada, seu espírito adquire grandeza, toma voo. Ela não se preocupa a não ser com coisas de ordem superior e então se aproxima de Deus.
O eremita que rola uma pedra à entrada da gruta onde mora para não entrar uma fera durante a noite, mas que também pode ser surpreendido por uma cobra, e corre os riscos do homem sozinho, exposto à luta contra a natureza; o eremita que jejua, se penitencia, se macera, este é o eremita perfeito cuja figura nos aparece aqui.

Então, nesse Oriente cheio da desolação do arianismo, ao que se somava a pretensão dos gregos de Constantinopla de estar em oposição a Roma, inventando doutrinas rebuscadas para opô-las à simplicidade sacrossanta da Doutrina Católica; nesse Oriente também repleto do deslumbramento do eremitismo, com uma explosão de santidade contrastando com o horror da heresia; é nesse Oriente com aspectos variados que nós vemos aparecer a grande figura de São Basílio.

O apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui

o mal a figura de São Basílio, alguns eremitas. Com frequência aconteceu na Igreja que, quando se preconiza muito o ideal de pobreza, alguns exageram isso e se voltam, à maneira de protestantes, contra a pompa da Igreja. Assim, por exemplo, pouco depois da morte de São Francisco de Assis alguns franciscanos deram origem à heresia chamada dos fraticelli, que era comunista, contrária à propriedade privada, a toda honra e pompa, e a todo o brilho da civilização.
Assim também encontramos nesta narração eremitas que, vivendo completamente na solidão e, portanto, não sendo servidos por ninguém, não dispondo de nenhuma pompa, fizeram este raciocínio errado: “Se eu, eremita, vivesse nessa pompa, perderia a minha alma; logo, aqueles que vivem nessa pompa perdem a alma deles.” A primeira parte do raciocínio é verdadeira, a segunda é falsa. Porque cada um salva a sua alma no caminho que Deus quer. E assim o eremita salva a sua alma no isolamento, mas outro que é levado a servir a Deus na pompa salvará a sua alma na pompa. Nem um nem outro pode escolher outro caminho por mera arbitrariedade.
Esses dois eremitas viram São Basílio servindo a Deus na sua grandeza como bispo, e duvidaram então da santidade dele.
O primeiro foi Efrém que viu, num êxtase, uma coluna de fogo a qual subia até o Céu e ouviu uma voz dizer: “Este é Basílio.” Ele foi procurar então o Santo. Chegou lá e encontrou um homem rodeado da pompa episcopal numa cerimônia eclesiástica e pensou: “Não pode ser.” Quer dizer, ele contrariou o que a visão disse a ele. “Por que esse homem vive nessa pompa?”
Ele vai falar com São Basílio e a Providência afetuosamente lhe concede uma graça pela qual compreendeu o quanto estava errado, e acaba por sair sabendo falar grego. Para que ele quereria falar grego não se sabe. É de se esperar que fosse para estudos, pois uma vez que o eremita não deve falar, supõe-se que seria para ler. Ademais, o Santo não lhe teria obtido uma graça para ele violar seu bom propósito de ser eremita. De maneira que se deve entender que ele recebeu essa graça para, compreendendo o grego, conhecer os Padres e Doutores gregos, a versão grega do Evangelho, dos Atos dos Apóstolos.
Depois veio outro eremita e também teve um engano a esse respeito, julgando que São Basílio não era Santo. E a esse a Providência castigou de um modo que, entretanto, provoca um sorriso, mostrando que o apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui.
São Basílio, embora rodeado de pompa, era desapegado. O eremita tinha uma gata pela qual tinha muito apreço. Então, enquanto fazia um juízo desfavorável a respeito do Santo prelado, ouviu uma voz que lhe dizia que ele gostava mais de acariciar a cauda da gata do que São Basílio apreciava seus ornamentos.

Duas psicologias muito bem expressas

 

Ainda que sejam casos inventados, são de um muito bom gosto, literariamente muito leves, que distraem a alma, fazem sorrir, e cheios de suco doutrinário. Porque os dois episódios resolvem o famoso problema da pompa dentro da Igreja e mostram que ela está de acordo com os desejos de Deus, e que uma pessoa pode santificar-se nessa pompa, quando é vontade do Criador que assim se santifique.
De outro lado, as finuras da alma humana estão muito bem expressas. O primeiro eremita possui um tipo de psicologia especial. Trata-se de um homem impressionável. Ele vê aquela coluna de fogo, fica muito impressionado, vai falar com São Basílio, tem uma impressão diversa e muda imediatamente de opinião. Pede logo uma graça inverossímil e Deus o atende. É um tipo de psicologia representado com muita finura.
Outro tipo de psicologia apresentado com finura é o do segundo eremita: sentimental, cansadão, sentado à porta de sua gruta, levando uma vida bem sossegada, sem amolação. Entra dia, sai dia, aquela tranquilidade, aquele sossego… Para divertir, uma gata que sabe dizer “miau”, mas não aborrece, não faz objeções, não traz problemas. Um animal que não temos que arrancar das garras do pecado e empurrar para os píncaros da vida espiritual, que se limita a comer alguma coisa que encontra no mato, pode ser uma companhia muito repousante.
Há gatos cujo temperamento é parecido com o de certos homens que se deixam agradar de todo jeito até a hora do arranhão. Isso existe. Mas creio que das menores ingratidões que um homem possa receber na vida é o arranhão de um gato. De maneira que se vê esse eremita adaptado à sua situação.
Então vem um aviso que toca no ponto psicológico diretamente, mas sem uma injúria, sem uma descompostura. É um caso que faz sorrir. Ele se lembra da sua gata e volta corrigido. Vejam como isso é bonito.

Cena grandiosa e profética

São Basílio é chamado diante do Imperador e discute com ele. Entra em cena o diretor da cozinha, que é muito mais do que ser um cozinheiro. Devemos pensar no luxo fabuloso dos imperadores bizantinos, nas grandes comilanças que eles faziam. Havia frequentemente banquetes. Portanto, um diretor de cozinha devia ser um homem bem entendido de gastronomia, de festas.
Ele quer fazer-se de zeloso diante do Imperador e se mete numa discussão onde não tinha nada que ver. São Basílio espirituosamente lhe dá uma resposta: “Você cozinhe comidas, não dogmas!”
É uma coisa prazenteira que se lê sorrindo, mas a lição está bem dada. Há um suco doutrinário, uma substância atrás disso.
Vem depois uma cena grandiosa, profética. Os fiéis da Religião Católica discutem com os ímpios, que constituem a seita ariana, pela propriedade de uma igreja católica que o Imperador tinha dado aos arianos.

 

O soberano confiou ao Santo a solução do caso. Então, segundo essa narração, São Basílio disse-lhes que selassem com seus respectivos lacres as portas da igreja e rezassem.
Pode-se imaginar a cena magnífica, a tranquilidade de São Basílio e a torcida dos arianos. Estes rezam, rezam, rezam e… nada! São Basílio com mitra, uma grande casula, um báculo, barba branca, olhos serenos, caminhando à frente de um clero piedoso. E todos cantando as ladainhas. Tem-se a impressão de que quando eles chegaram perto, as portas da igreja já estavam para se abrir. Ele se antecipa e, num gesto majestoso, com a ponta do báculo apenas toca na porta e esta se abre. Os hereges foram confundidos e o coro entra cantando, seguido de uma grande multidão de fiéis.

Se essas coisas não se passaram assim, inúmeras outras transcorreram, e as circunstâncias eram tais que podiam ter se passado dessa forma. De maneira que há um resíduo de verdade nisso, até mais verdadeiro do que a narração histórica. Porque aponta para certa maravilha das almas, que é a realidade histórica mais profunda. Pode não ter havido o fato externo, mas houve o fato profundo que é aquele tipo de piedade, de espírito sobrenatural presente por detrás disso.
Quando lemos essas narrações da Légende Dorée, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas, em toda espécie de sujeira e de borra deste século, fixam-se nisso meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós. Não é verdade que, sendo obrigados a interromper a leitura, sentimos uma espécie de desolação, como uma alma que visse um pouquinho do Céu e fosse obrigada a voltar para o Purgatório?

 

Admiração humilde e desinteressada

sso? É a seguinte: se nós fôssemos tais que conseguíssemos fixar o nosso espírito duravelmente nesse estado de admiração; se gostássemos, acima de tudo, de praticar a virtude da admiração, que desinteressadamente se detém, fica pensando e se maravilha com esses episódios; se tivéssemos dentro da alma um paraíso permanente, uma alegria fixa, estável e contínua que nos acompanhasse, apesar de todas as tristezas, teríamos a certeza de que o fundo da realidade não são as coisas efêmeras que vemos, nem os aborrecimentos que essas coisas nos dão, mas é esse fundo de maravilha, essa ordem de coisas virtuosa, admirável, indescritível que existe na alma das pessoas verdadeiramente santas. Eis o encanto de nossa vida: fazer dessa contemplação nossa alegria humilde e desinteressada.
Humilde porque isto nos alegra, em grande parte, na medida em que vemos não ter nenhuma proporção conosco, pois é muito superior a nós, a ponto de nos sentirmos pequenos diante disso e termos a alegria de nos sentir assim, de nos entusiasmar com algo que é mais do que nós.
Desinteressada porque não temos um papel para representar dentro disso. Não vamos representar nenhum papel ao lado de São Basílio contra o Imperador. Estamos fora. Aqueles fatos não nos engrandecem, não trazem vantagem nenhuma para nós. Nós os contemplamos apenas porque eles são eles. Nós olhamos desinteressadamente para isso.
Este é o modelo da alma medieval. Aqui está um traço do modo de ser medieval que é muito mais do que uma descrição do temperamento – embora entre profundamente no temperamento –: a capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente. É isso que está nessa disposição de alma.

A alma assim é verdadeiramente fiel, realmente agrada a Deus. É sobre uma alma assim que baixa o Espírito Santo. Porque esses são os humildes que serão exaltados. Os poderosos que serão depostos são aqueles que se agarram a uma porção de coisas – ainda que seja apenas o rabo de um gato – e que fazem disso o seu apego. Esses serão depostos, ou seja, destituídos das coisas a que se apegam. Os humildes, os desinteressados, pelo contrário, serão elevados.
Como se dá essa elevação? Da seguinte maneira: a alma com essa capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente é como que um mata-borrão. Toda perfeição que toca nela, ela inala, absorve. Aquilo que nós admiramos desinteressadamente nos modela e nós tomamos algo dessa maravilha.
A maravilha contemplada torna o indivíduo maravilhoso. Nada é mais bonito, não há maravilha mais autêntica do que a alma verdadeiramente maravilhável. Essa tem o amor de Deus, porque o amor de Deus é isto: maravilhar-se humilde e desinteressadamente com as coisas de Deus. Não só com as invisíveis conhecidas pela Fé, mas com as visíveis que o Criador colocou por todos os lados.
Eis, portanto, o que devemos procurar e pedir a Nossa Senhora, que foi a mais maravilhável das almas. Basta considerar que foi Ela quem teve mais de perto a maior maravilha que pousou nesta Terra: Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Megalomania: um defeito que está na linha oposta ao maravilhamento

Nosso Senhor disse que não se deve atirar pérolas aos porcos (cf. Mt 7, 6). Não se pode dar coisas maravilhosas para almas incapazes de se maravilhar. Deus deu o Menino Jesus a Nossa Senhora para viver no seio d’Ela, passar sua infância ao lado d’Ela, e Ele passou trinta anos maravilhando-A, porque Ela era dotada de uma potência de maravilhar-Se que estava na proporção dessa Maravilha.
Por aí compreendemos a capacidade de maravilhar-Se de Nossa Senhora. Resultado: todas as gerações A chamarão maravilhosa, porque quem A chama Bem-aventurada, chama-A maravilhosa. Por quê? Pelo desinteresse com que Ela amou, pela humildade com que admirou. Por isso Se tornou admirável.
Aqui está o mecanismo dessa virtude tão fundamental para a alma contrarrevolucionária, para o espírito católico.
Um dos muitos defeitos que estão na linha oposta ao maravilhamento é a megalomania. O megalômano não se maravilha com nada a não ser consigo. Quando vê algo de maravilhoso fora dele, irrita-se, olha um pouquinho e depois se aborrece, porque ele quer estar no centro de todas as coisas. Este é o contrário do homem verdadeiramente maravilhável.
Que essa citação da Légende Dorée nos sirva de ocasião para pedir a Nossa Senhora que nos dê essa faculdade de alma pela qual nos maravilhemos com o que está acima de nós, humildemente, amando aquilo precisamente por ser superior a nós, e admirando desinteressadamente.


(Extraído de conferência de 19/6/1971)

21 de Janeiro – Santa Inês

Santa Inês

No momento de seu martírio, oprimida pelas dores, Santa Inês recompôs suas vestes por amor à pureza.

Ter essa preocupação naquela hora significa tão grande elevação de espírito, tão intenso amor à virtude, que não se pode simplesmente incluir o fato nos fioretti, como se fosse mais um tocante episódio de vida de santo.

Essa atitude da mártir é como que o brilho de uma gota do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; é um ato admirável de sabedoria, uma manifestação arrebatadora de apreço pela castidade, sua e do próximo.

Plinio Corrêa de Oliveira

20 de Janeiro – Madonna del Miracolo: altíssima obra de Contra-Revolução

Madonna del Miracolo: altíssima obra de Contra-Revolução

Num mundo em que o demônio, através da impureza e do orgulho, vai arrastando as almas para a Revolução, Nossa Senhora nos comunica o gosto pela despretensão e pela castidade. Estas são considerações de Dr. Plinio ao analisar o quadro de Nossa Senhora do Miracolo.

 

Ocorreu-me a ideia de fazer um “Ambientes, Costumes e Civilizações”, procurando exprimir os imponderáveis existentes no quadro de Madonna del Miracolo, ou Nossa Senhora do Milagre.

A figura é muito semelhante à de Nossa Senhora das Graças, um pouco alterada.

Maria Santíssima está vestida como se trajavam as senhoras no tempo de sua existência terrena: uma túnica grande e uma capa. Esta é azul-celeste, a cor de Nossa Senhora; a túnica é de um discreto rosado, enquanto que nas imagens de Nossa Senhora das Graças costuma ser branca. Ela está com a fronte encimada por uma coroa, o que as imagens de Nossa Senhora das Graças geralmente não têm. Um círculo de doze estrelas serve a Ela de resplendor. É uma alusão à aparição de Nossa Senhora no Apocalipse. Como se pode notar, Ela não está esmagando a cabeça da serpente. Das suas mãos partem raios em abundância, que significam as graças por Ela concedidas.

Misto de grandeza e misericórdia

Sua fisionomia é discretamente sorridente. Maria Santíssima não está propriamente sorrindo, mas olhando para a pessoa que está ajoelhada diante d’Ela, de um modo muito afável, acolhedor, com uma enorme vontade de atender o pedido, de ajudar. Mas, ao mesmo tempo — e as coisas se completam bem —, Ela é muito régia, não só por causa da coroa, mas ainda que se Lhe tirassem a coroa. Notem o porte d’Ela. Tem-se a impressão de que é uma pessoa alta, esguia, muito bem proporcionada, e qualquer coisa de imponderável da consciência de sua própria dignidade aí transparece. Quer dizer, percebe-se que é uma Rainha, muito menos pela coroa do que pelo seu todo; enfim, pelo misto de grandeza e de misericórdia que d’Ela emanam.

Efeito apaziguador

Parece-me que o elemento mais tocante dessa imagem é algo de inexprimível, que, à primeira vista, não encontra sua explicação em nenhum elemento concreto do quadro. Não só por causa do sorriso, mas é um todo que vou tentar depois explicar; essa imagem trás consigo qualquer coisa de apaziguador. Quem olha para essa estampa tende a ficar apaziguado, serenado, tranquilizado, como quem tem as suas más paixões em agitação acalmadas, suas angústias favorecidas por uma distensão, por certa calma, como se ouvisse: “Meu filho, Eu dou jeito em tudo, Eu arranjo tudo, não se impressione, haverá um modo. Eu estou aqui ouvindo-o; você precisa de tudo, mas Eu posso tudo, e o meu desejo é de lhe dar tudo. Portanto, não tenha dúvida, espere mais um pouco. Mas super abundantemente você terá o que Eu quero”.

Acima de tudo, a imagem — a meu ver, este é seu elemento mais apaziguador e encantador — tem qualquer coisa indicando que Nossa Senhora Se oferece à pessoa que está diante d’Ela, dizendo-lhe: “Meu filho, Eu sou toda sua, você pode pedir o que quiser. Eu para você não tenho reservas, recuos, recusas e nem recriminações pelos seus pecados. Eu o estou olhando num estado de alma, numa disposição de ânimo, por onde você de Mim consegue tudo o que você pedir e muito mais ainda”.

A estampa deixa isso tudo em certo mistério; mas um mistério suave, diáfano, mais ou menos como o de um dia com céu muito azul em que se pergunta o que haverá para além do azul; não é um mistério carregado, de um dia nublado, onde se indaga o que existirá por detrás das nuvens. Maria Santíssima como que diz o seguinte: “Se você conhecesse o dom de Deus, se soubesse quanta coisa Eu tenho para lhe dar, e que maravilhas há em Mim… Eu transbordo do desejo de lhas conceder. Como você compreenderia bem o que Eu sou se quisesse abrir os olhos para essas maravilhas!”

Esse apaziguamento que Ela comunica é uma espécie de primeiro passo para a pessoa que queira se deixar maravilhar. Recebendo esta misteriosa ação da graça, ela começa a admirar e perguntar o que a imagem está exprimindo.

Felicidade da pureza e da despretensão

Ela exprime uma excelsa impressão de pureza que quase ofusca, mas não de um ofuscamento que machuca. É tanta pureza que, no início, nem nos lembramos bem de pensar nesta virtude; de tal maneira é pura que, por assim dizer, transcende a pureza.

Contemplando essa estampa, a pessoa não só admira essa pureza, mas ela lhe comunica algo do prazer de ser pura. Muitos têm a ilusão de que a felicidade está na impureza; essa imagem faz com que se compreenda a inefável felicidade que a pureza dá, perto da qual toda felicidade da impureza é lixo, tormento, aflição. Nossa Senhora está inundada de felicidade, a qual é inseparável de sua pureza.

Outra coisa é a humildade. Maria Santíssima está aqui como Rainha, mas em sua atitude Ela faz abstração de toda a sua superioridade sobre a pessoa que reza diante d’Ela. E trata-a como se fosse, não digo de igual a igual, mas uma pessoa que tem proporção com Ela; quando nenhum de nós, e nenhum santo, tem proporção com Ela. Nossa Senhora é completamente fora de proporção em relação a todo mundo; entretanto Ela se coloca assim tão acessível!

Além disso, percebe-se que se Lhe aparecesse Nosso Senhor Jesus Cristo, Ela está toda feita para se ajoelhar e adorar. Nada existe n’Ela que contenha uma repulsa a reconhecer o que é mais alto. Pelo contrário, uma alegria: “Que maravilha! Apareceu quem é mais do que eu”. Compreende-se, então, o modo enlevadíssimo de Maria Santíssima olhar para Aquele que é Filho d’Ela e, ao mesmo tempo, infinitamente mais do que Ela.

Debaixo desse ponto de vista, n’Ela há,  entre outros traços, uma comunicação do prazer da humildade, da despretensão.

Vemos, então, de um lado, a felicidade inefável da despretensão. E de outro, a felicidade inefável da pureza.

Maria Santíssima e a Contra-Revolução

Diante de um mundo que o demônio vai arrastando para o mal, pelo prazer da impureza e do orgulho, Nossa Senhora nos comunica o gosto pela despretensão e pureza, como que dizendo suavissimamente, sem pito nem recriminação: “Meu filho você não se lembra dos tempos primitivos de sua inocência? Não se lembra de como você era antes de ter pecado? De como havia coisas boas em você? Olhe para Mim, abra sua alma, Eu restauro tudo isso. Venha! No caminho que conduz a Mim só existe perdão, bondade e atração. Venha logo!”

Não é difícil estabelecer uma relação entre esses dois traços e a Contra-Revolução. Maria Santíssima está aqui apresentada, não no seu aspecto belicoso, esmagando a cabeça da serpente, mas no seu lado materno, enquanto Ela procura tirar, pelo sorriso, das garras da Revolução aqueles que esta vai vitimando. E dessa maneira fazendo uma altíssima obra de Contra-Revolução.

Um espírito que se deixa influenciar por essa imagem fica sumamente propício à admiração, a admitir a hierarquia das coisas mais altas sobre ele; e a querer, pela sua própria dignidade, que todas as coisas abaixo dele também estejam em hierarquia. É uma coisa inteiramente evidente; entra pelos olhos.

Debaixo desse ponto de vista, sem querer dizer que esta imagem seja a de Nossa Senhora da Contra-Revolução, porque seria forçar a nota, poderíamos afirmar, entretanto, que, para quem luta pela Contra-Revolução, o quadro é de uma altíssima expressão quanto a um dos aspectos da Mãe de Deus, na sua permanente Contra-Revolução, até chegar o fim do mundo. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/1/1976)

 

20 de Janeiro – Bondade régia da Virgem do Miracolo

Bondade régia da Virgem do Miracolo

Segundo afirma Dr. Plinio, um estupendo milagre ocorrido no século XIX prefigura os prodígios de conversão que a Santíssima Virgem deverá operar em nossos dias, tornando-se Ela a Rainha de todos os corações.

Entre as centenas de igrejas que a piedade católica edificou na Cidade Eterna está a de Santo Andrea delle Fratte (Santo André dos Frades), onde se venera uma linda imagem de Nossa Senhora, sob a invocação de Madonna del Miracolo, ou Nossa Senhora do Milagre.

Como facilmente se intui, esse título se refere a um grande milagre realizado pela Mãe de Deus, no mesmo lugar onde hoje é cultuada por seus inúmeros devotos: A conversão do judeu Ratisbonne.

Era 20 de janeiro de 1842. Que se passou naquela ocasião?

Para a maioria dos que então se encontravam em Roma, era apenas mais um dia frio e corriqueiro de inverno. Não o seria, porém, para um turista de passagem pela capital da Cristandade.

Afonso Tobias Ratisbonne, francês aparentado com a influente família dos Rotschild, era judeu de raça e religião. Mais dado ao ceticismo, alimentava uma não pequena animosidade contra a fé católica. Naquele dia, porém, cedendo aos rogos do Barão de Bussières (que desejava a conversão dele), e um tanto por bravata, concordou em colocar ao pescoço a Medalha Milagrosa, muito difundida no período imediato às aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, em 1830, na capela das Filhas da Caridade, na rue du Bac, em Paris.

Além disso, a convite do mesmo amigo, dirigiram-se à igreja de Santo Andrea delle Fratte, onde o Barão devia encomendar uma missa de sétimo dia pela alma de um conhecido. Chegados ali, o amigo foi até a sacristia, enquanto Ratisbonne, por um interesse artístico, mas com ar meio de mofa, começou a percorrer o recinto sagrado, detendo-se aqui e ali, diante dos altares laterais.

Quando o Barão retorna, depara com esta cena surpreendente: o judeu ajoelhado, completamente em êxtase, transfigurado, rezando com inusitado fervor em frente de uma das capelas  secundárias.

O Barão de Bussières apressou-se em lhe perguntar o que acontecera, e Ratisbonne comovidíssimo abraçou-o dizendo:
— Eu vi a Mãe de Jesus Cristo! Ela me apareceu…. aqui!

E descreveu a aparição de Nossa Senhora, cuja celestial figura correspondia em tudo à que vira Santa Catarina Labouré, alguns anos antes, em Paris. Segundo ele, a Santíssima Virgem cingia uma coroa de Rainha e vestia uma bela túnica comprida, presa à cintura por uma faixa preciosa; pousava os pés virginais sobre a toalha de linho do altar, e lhe sorria maternalmente, com os braços estendidos e as mãos abertas. Como se vê, a mesma silhueta da imagem esculpida na medalha que ele então trazia.

Ante essa extraordinária visão, Ratisbonne compreendeu que se encontrava na presença da Mãe de Deus: caiu de joelhos e se converteu no mesmo instante. Poucos anos depois tornar-se-ia o Padre Afonso Maria Ratisbonne, secundando seu irmão na fundação da Congregação do Sion, voltada de modo particular para o apostolado católico com os israelitas.

Estratégia da Providência contra a impiedade

A notícia dessa conversão logo se difundiu, revestindo-se de profundo significado no contexto psicológico e doutrinário da época. No século XIX, a impiedade insistia no sofisma de que o homem racional, procurando julgar as coisas de acordo com a razão, não encontra fundamentos suficientes para afirmar a veracidade da Igreja Católica. Não tem meios de provar que Deus existe, que  Jesus Cristo é Deus, que a Igreja tenha sido fundada por Ele. Portanto, todo o edifício das doutrinas e da Fé no catolicismo não passa de um arcabouço inaceitável e ilegitimável pela razão humana.

É um mito, como qualquer outro da antiguidade romana ou grega, como os da religião hindu ou das crenças africanas. Não poucas almas estavam perdendo a Fé, cedendo culposamente ao dilúvio de objeções — a maior parte das quais constituída por chicanas e sofismas, além de alguns argumentos capciosos contra a Igreja Católica. A fim de combater essa investida diabólica, a Providência  fez milagres em diversos lugares, e o ocorrido na Igreja de Santo Andrea delle Fratte foi um dos mais insignes a comover a Cristandade.

Qual fato poderia causar maior estupor do que um filho do judaísmo, aparentado com uma das famílias mais ricas do mundo, sem a menor necessidade de agradar a Igreja Católica, declarar-se de repente convertido por ter visto Nossa Senhora? E que, como prova de sua sinceridade, abandona a vida mundana e abraça para sempre uma existência de renúncia e sacrifício. Ainda por cima, ajuda a fundar uma Congregação religiosa destinada a trabalhar pela conversão de seu povo. Maior manifestação de autenticidade, ele não poderia dar.

Para a humanidade daquele tempo, sacudida pela multidão de argumentos dos inimigos da Religião Católica, esse evidente milagre caía como uma refrescante gota d’água num deserto.

Nossa Senhora desferia um golpe sumamente estratégico e bem calculado, pisando na cabeça da serpente infernal. Pelo testemunho de um ex-adversário, Ela demonstrava de modo maravilhoso quanto a Igreja Católica é verdadeira.

Pouco depois, como num requinte desse “plano de ataque ”, Ela daria início aos milagres de Lourdes, que viriam a constituir a mais acentuada série de celestiais prodígios na história da Igreja.

Diante da imagem, uma contínua “aparição”

Logo depois da aparição a Ratisbonne, foi pintada a imagem da Madonna del Miracolo, de acordo com as indicações do vidente. Como sói acontecer, o símbolo ficou devendo à Simbolizada, pois, por mais bela que seja a figura retratada por mãos humanas, a formosura de Nossa Senhora excede a qualquer esplendor. Ela não é pintável, assim como não é descritível.

Trata-se de uma imagem romântica, bem no estilo do século XIX, bastante comunicativa, e que deve ser vista com certo recuo. Ou seja, contemplada com olhos que sejam capazes de ver muito mais e além do que os próprios olhos possam apreender. Há nela um sorriso, uma express ão de fisionomia, uma afabilidade no gesto, que transcendem a cor do vestido e outros pormenores dos adornos.

Considerando-a, certas almas chegam mesmo a sentir algo do autêntico sorriso de Nossa Senhora. Ela cria em torno de si uma atmosfera sumamente benfazeja. As pessoas que rezam diante do quadro, na Igreja de Santo Andrea delle Fratte, mantêm-se em geral recolhidas, deixando perceber em suas faces o quanto se sentem penetradas pelas graças efundidas pela Santíssima Virgem.

Envolve-as uma impressão de paz e calma, de céus abertos, e de que Nossa Senhora, exorável, dispõe-Se a atender a todos os pedidos. Uma sensação de que o tempo não se encontra apartado da eterna bem-aventurança, e de que a benignidade de Nossa Senhora transpõe distâncias incomensuráveis para se nos tornar acessível e acolhedora. Experimenta-se uma verdadeira consolação, uma verdadeira confiança, uma verdadeira resignação, uma certeza de que, em última análise, tudo dará certo.

Lembro-me, emocionado, de que venerei essa imagem em dias de muitas e penosas preocupações. Nesse período, o sorriso dela era a grande esperança que me iluminava e guiava, beneficiando-me da unção característica que ela comunica em torno de si.

Em diversos momentos, era tomado pela impressão singular de que a pintura continuava a aparição, adquirindo uma luminosidade cambiante, uma luz que me sorria mais ou menos conforme o dia e conforme o modo de Nossa Senhora olhar-me. Isso trazia uma espécie de garantia de graça concedida, de bondade dada, de favor outorgado, a sensação de que o sorriso de Nossa Senhora cicatrizava todas as dores e sofrimentos do dia, e me armava de alento para a jornada seguinte.

Nesse tempo que passei em Roma, cheio de momentos aprazíveis, mas também de graves apreensões, essa imagem me animou numerosas vezes com uma contínua efusão de graças. Consolou-me, fazendo-me sentir que Ela estava mais próxima de mim, a espargir seu incansável amor materno. Pedir e esperar grandes milagres que renovem o mundo Uma consideração final.

A Virgem do Miracolo é, portanto, a Virgem que praticou um grande milagre. Ela converteu, de um momento para outro, um homem mundano, com toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Passando por cima dessas tremendas barreiras, Nossa Senhora fez o milagre de o converter, maior até que o de lhe aparecer. Por assim dizer, Ela entrou na alma dele e o transformou completamente.

É o milagre moral, mais estupendo que qualquer milagre material.

Cumpre observar que, em virtude de uma lei superior da Providência, milagres assim tornam-se mais freqüentes nas épocas em que são mais necessários. Desse modo, sempre que a situação no mundo vai se apresentando mais precária, que a impiedade vai crescendo — como vemos em nossos dias —, o número de milagres deverá aumentar. Poderão demorar mais ou menos tempo para começar, mas virão na hora certa e farão sua obra.

E nós, católicos, devemos contar com eles para abrirmos caminho no meio de tantas provações, confusões e decadências. Deus tem desígnios e mistérios que não nos cabe alcançar. Apenas  devemos confiar e esperar que Ele, a rogos de Maria Santíssima, intervenha de modo miraculoso para tocar o coração da humanidade contemporânea.

Por ocasião da festa de Nossa Senhora do Miracolo, nada mais oportuno do que pedirmos com fervor e empenho que Ela, como fez com Ratisbonne, entre triunfalmente em nossas almas e nas de todos os homens, vencendo nossos vícios, nossos pecados, nossas misérias e quaisquer outros obstáculos que pudéssemos Lhe opor. De maneira que Ela se torne verdadeiramente Rainha de  nossos corações, e opere um maravilhoso milagre moral que transmude e renove a face do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira

20 de Janeiro – Miliciano de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo

Miliciano de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo

Podemos imaginar São Sebastião na força da idade, na glória do uniforme romano, no esplendor do capitaneio da coorte imperial, que se esgueira e, sem encontrar resistência da parte das sentinelas das prisões, por ser ele quem era, vai entrando pelos cárceres, pelas enxovias e alimentando, com a sua coragem, os anciãos, os jovens de ambos sexos, as pessoas de todas as condições que ali estavam para serem martirizadas.

São Sebastião sabe que sua atitude vai acarretar para ele também o martírio, mas caminha rumo ao suplício com aquela serenidade, deliberação e superior entrega de si mesmo à Cruz de Cristo, Nosso Senhor, que faz com que ele não estremeça, mas permaneça, durante todos esses riscos, sempre heroico e senhor de si, até entregar a sua alma a Deus, com uma tranquilidade diante da morte própria a um militar miliciano de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/1/1967)

20 de Janeiro – Papa São Fabiano “O homem da rua sobre quem a Pomba pousou”

Papa São Fabiano “O homem da rua sobre quem a Pomba pousou”

Em artigo estampado na Folha de São Paulo de 3/12/1976, Dr. Plinio procura conceder a si mesmo algo de refrigério diante da crescente agitação que tomava o mundo moderno. Como? Tecendo um hino de amor à santidade do Papado, a propósito da eleição providencial de São Fabiano ao Trono de Pedro.

A poluição em todas as suas formas, continua problema atual. Mais especialmente tenho em vista aqui a poluição moral inerente à vertiginosa decadência dos costumes, e a poluição mental provocada pela trepidação da vida hodierna. (…)

Uma excursão ao passado

O meio de fugir disso? Uma excursão, por exemplo, ou a audição de alguns belos discursos, a leitura de um romance, contentam a vários. Há os que se satisfazem com menos, isto é, com a ingestão de qualquer comprimido que favoreça a evasão para as profundidades de sonos insondáveis. Entre tantos recursos despoluentes, há também a excursão às extensas regiões do passado, ou seja, a leitura de narrações históricas. No píncaro destas, existe a legenda, com o encanto de sua leveza, de seu simbolismo, de seu esplendor.

Para a decepção da maioria e o possível contentamento de uns poucos, é uma viagem ao passado que proponho neste fim de semana. Não ao passado histórico, mas ao passado legendário, tão lato, tão belo, que por alguns lados parece tocar na própria eternidade. Acabo de ler um conto tomado mais ou menos a esmo na Légende Dorée, de Jacques de Voragine. Queres viajar comigo nas regiões etéreas deste conto, leitor?

De um simples passeio para a maior das dignidades

Fabiano era um simples romano como outro qualquer. Um “homem da rua”, como hoje se diria. E sequioso de notícias como são em todos os tempos os seus congêneres.

Ora, havia em Roma, ainda recente uma grossa novidade: morrera o Papa. E estava em gestão uma novidade ainda maior: ia ser escolhido pelo povo o novo Pontífice. Nosso “homem da rua”, segundo o costume, saiu de casa e se misturou na multidão, reunida para a augusta escolha(1). Fabiano julgava chegar atrasado, isto é, a tempo somente de conhecer o resultado.

E este veio, bem diverso do que Fabiano podia imaginar. Do alto do Céu baixou uma pomba de esplendorosa alvura, e pousou sobre a sua cabeça. Por esse fato simbólico, o Espírito Santo deixava claro que designava Fabiano. A multidão, piedosamente entusiasmada, escolheu-o Papa. E Fabiano, que saíra à rua para passear, se viu alçado assim à dignidade inigualável de sucessor daquele de quem o Salvador disse: Tu és Pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16, 18). E a partir daquele momento a “solicitude de todas as igrejas” (2 Cor 11, 28) passou a ser a única preocupação e a única atividade de sua vida.

Suma veneração pelos mártires

Aqueles remotos tempos se assemelhavam de algum modo aos nossos. A Igreja tinha adversários poderosos e implacáveis. O sangue dos mártires corria às torrentes em toda a vastidão do Império Romano. Também hoje a Igreja tem inimigos poderosos. E, por toda parte, também os católicos são perseguidos. É certo que os adversários de hoje (…) não são brutais como os de outrora.

Perseguem com o sorriso hipócrita nos lábios, e a mão estendida para a colaboração dolosa. (…) Hipocrisia ou brutalidade são acidentes. Em substância, o ódio é o mesmo.

Fabiano, cheio de veneração pelos mártires, começou seu Pontificado enviando por todo o Império sete diáconos e sete subdiáconos, para que recolhessem por toda a parte as atas dos martírios. Homem previdente, queria ele legar assim para toda a posteridade, estas narrações de uma heroicidade sem igual, escritas pelo sangue dos homens por amor ao Sangue de Cristo. De sorte que até a consumação dos séculos servissem de adorno à Igreja.

Vencedor de feras

Mas Fabiano não recebera em vão a visita da Pomba. O “homem da rua”, presumivelmente pacato e mediano, transformou-se em herói, e não apenas em colecionador e compilador de feitos heróicos de outros.

O imperador Filipe levava uma vida cheia de pecados. Sem embargo, quis assistir às vigílias da Páscoa e participar dos Santos Mistérios.

Fabiano, (…) em lugar de aceitar a presença escandalosa do pecador, (…) impediu que Filipe transpusesse os umbrais sagrados enquanto não confessasse seus pecados e não aceitasse de se colocar no lugar reservado então aos pecadores penitentes dentro da Igreja. Filipe cedeu.

E Fabiano, pela graça da Pomba [isto é, do Espírito Santo], venceu assim a fera. Feliz da Igreja quando é governada por varões que, fortalecidos pela Pomba, não teme as feras!

Bem entendido, as feras não gostam deste trato. No 13º ano de seu Pontificado, o Imperador Décio mandou decapitar Fabiano. Este é o fim sinistro do “homem da rua” visitado pela Pomba, e transformado por Ela em um vencedor de feras.

Na glória celeste, aos pés de Maria

Fim sinistro?

Consideremos o desfecho da história, tão e tão elevado, que a legenda áurea apenas o deixa discretamente subentendido. No momento em que a cabeça venerável de Fabiano foi cortada, uma corte rutilante de Anjos, provindo das alturas excelsas onde reinam o Padre, o Filho e o Espírito Santo, baixou para receber a alma santíssima do novo mártir. Fabiano subiu, subiu, levado pelos Príncipes celestes. Mas, por mais que ele subisse, a Santíssima Trindade parecia irremediavelmente inacessível. Depois de um glorioso itinerário através das Hierarquias infindáveis dos Anjos que o aclamavam e o elevavam com o cântico de seu afeto, Fabiano, extasiado de felicidade e de glória, foi deposto pelos Anjos aos pés de Nossa Senhora. E assim como através de um telescópio os astros mais distantes parecem aproximar-se de nós, assim também junto ao Coração de Maria, Fabiano se sentia inteiramente saciado pela presença de Deus. Como é doce e glorioso contemplar Deus face a face, aos pés do trono de Maria!

Rogai por nós e pela Igreja!

Nessas alturas celestes terminou o passeio do “homem da rua”, que fora pacatamente à procura de notícias sobre quem tinha sido eleito Papa. E até o fim do mundo haverá homens que digam: “São Fabiano, rogai por nós”. Eu, por exemplo. E tu também leitor.

“Rogai por nós”. Só isto? Rogai, São Fabiano, pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. (…)

Ó, rogai pela Igreja, São Fabiano!

1) Nos primórdios do Cristianismo os papas eram eleitos pela aclamação do clero e do povo congregados nas ruas de Roma para esta finalidade. A partir de 769 ficou estabelecido que o Sumo Pontífice seria escolhido apenas pelo clero romano, mantendo-se a aclamação popular como mera formalidade. Em 1059, o Sínodo de Latrão reservou aos cardeais o direito de eleger o novo sucessor de Pedro (cf. Legenda Áurea, Cia. das Letras, São Paulo).

Plinio Corrêa de Oliveira

20 de Janeiro – Madonna del Miracolo – O triunfo da Mãe de Deus em nossas almas

Ao contrário do moço rico do Evangelho, Santo Antão disse sim a Nosso Senhor

Num período particularmente significativo de sua gesta apostólica, Dr. Plinio se viu objeto de grandes consolações e favores celestiais, ao venerar a imagem de Maria Santissima del Miracolo, em Roma, na igreja de Sant’Andrea delle Fratte. Ao evocar o célebre milagre que resultou na conversão do judeu Ratisbonne — em 20 de janeiro de 1842 —, recorda-se ele uma vez mais daquela efusão de graças recebidas junto ao tocante quadro da excelsa Mãe de Deus.

Há em Roma uma igreja chamada Sant’Andrea delle Fratte(1), pertencente aos frades menores de São Francisco de Paula. Devido à nossa estada na Cidade Eterna durante a primeira fase do Concílio Vaticano II, de outubro a dezembro de 1962, íamos quase todos os dias nessa igreja. Além de se situar próximo ao local onde nos hospedávamos, esse templo nos atraía por uma de suas imagens, a da Madonna del Miracolo, à qual tributávamos particular devoção.

Miracolo é uma palavra italiana que significa milagre. De fato, naquele lugar se realizou um milagre insigne cujo teor já tivemos ocasião de comentar(2), pelo que o relembro apenas de modo sucinto.

Rothschild e Ratisbonne

No século XIX, a família dos Rothschild iniciou sua ascensão na França, no período em que o regime napoleônico se encontrava no auge de seu poder. Os membros dessa família possuíam imensa riqueza, e a celebridade da estirpe baseava-se preponderantemente no fator financeiro.

Como sói acontecer, as famílias abastadas constituíam seu círculo próprio, onde se frequentavam umas às outras, casavam seus filhos, etc. E sucedeu que uma Rothschild uniu-se em matrimônio a um membro da família Ratisbonne, também de origem hebreia. Como se sabe, não raro os israelitas adotam sobrenomes de cidades, e o desse personagem é a tradução do latim para o francês do nome da pitoresca cidade bávara de Regensburg.

O casal recém-formado, herdando o prestígio granjeado pelo importante patrimônio dos Rothschild, introduziu-se na alta nobreza da Europa, a qual ainda gozava de muita fartura e ocupava a primeira categoria social do Velho Continente. Assim, viviam no luxo, ostentavam roupas de célebres estilistas, equipagens magníficas e tudo quanto havia de melhor.

Conversão espetacular

No grêmio dessa nova linhagem surgiria Afonso Tobias Ratisbonne, francês, bastante inclinado ao ceticismo. Tornou-se influente banqueiro, afeito à vida mundana e apreciador de viagens pela Europa. Quando realizava uma dessas excursões, em 1842, passou por Roma e, por obrigações familiares, teve de visitar o Barão Teodoro de Bussières, secretário e amigo íntimo do embaixador da França em Roma. Esta não era ainda a capital da Itália, uma vez que a Península não se encontrava unificada, mas dividida em diversos reinos. Um deles, os Estados Pontifícios, dos quais o Papa era o soberano e a Cidade Eterna, a sua metrópole.

O barão se interessou pela pessoa de Afonso e pediu que este lhe contasse sobre seus passeios no centro da Cristandade. Durante a conversa, esforçou-se por incutir na alma do Ratisbonne sentimentos que o levassem a se converter e a aceitar a Fé católica. Não obtendo sucesso, insistiu que o visitante ao menos concordasse em portar uma Medalha Milagrosa, oferecida como presente. Um tanto relutante, Afonso condescendeu, e os dois se despediram, quites a se verem de novo nos próximos dias.

Ora, tendo falecido de modo inesperado o embaixador francês, o Barão de Bussières combinou com Ratisbonne um encontro na Igreja de Sant’Andrea delle Fratte, onde providenciaria as exéquias para o defunto.

Na hora aprazada, Afonso compareceu, e enquanto o barão se achava na sacristia para tratar dos detalhes da Missa, começou a percorrer o interior do templo, detendo-se aqui e ali na consideração das imagens, dos ornamentos, dos belos mármores, etc. Terminadas as tratativas, o Barão de Bussières retornou à igreja e, surpreso, avistou o seu amigo judeu ajoelhado diante de um altar próximo à entrada. Ratisbonne, transfigurado, rezava.

Com intensa emoção, Afonso revelou-lhe:
— Você não sabe o que aconteceu! A Mãe de Jesus Cristo me apareceu aqui!

E passou a descrever Nossa Senhora, tal qual o fizera Santa Catarina Labouré, a quem a Rainha do Céu aparecera 12 anos antes na Capela da Rue du Bac, em Paris. Claro, alheio às coisas da religião Católica, Ratisbonne não sabia daquele acontecimento nem conhecia as narrações feitas por Santa Catarina. Circunstância que conferia ainda maior autenticidade à revelação de que fora objeto.

Segundo suas indicações, pintou-se um quadro com a imagem de Nossa Senhora, a qual passou a ser venerada como Maria Santissima del Miracolo.

Após este prodigioso episódio, tocado no fundo da alma pela graça divina, Afonso Tobias Ratisbonne se converteu, tornou-se padre e, ao lado de seu irmão (fundador da Congregação de Nossa Senhora de Sion), também convertido e ordenado sacerdote, dedicou-se ao apostolado junto aos judeus.

Sorriso que cura todas as dores

Embora sem renomado valor artístico, essa pintura é muito bonita e expressiva, e grande é o afluxo de fiéis a venerá-la, posto que o movimento de piedade na igreja é também intenso, com diversas missas celebradas ao longo do dia.

Como já disse, lá estive várias vezes para assistir a Missa, comungar e rezar diante do quadro. Eu ficava verdadeiramente maravilhado diante da pintura. No meu espírito vincava-se a impressão de que o sorriso de Nossa Senhora aliviava todas as dificuldades daquele dia e me concedia alento para o seguinte.

Pedir a entrada triunfal de Maria em nossas almas

Ao considerar esse lindo episódio da conversão do Ratisbonne, alguém poderia pensar não haver nada de extraordinário nessa mudança de vida: pois se a própria Mãe de Deus apareceu ao homem, tornou-se patente para ele a veracidade da Religião Católica. Outra coisa não lhe restava senão se consagrar inteiramente a esse credo.

Ora, as coisas não se verificam assim tão simplesmente com a miséria humana. Elas se passam de um modo bem diverso. O homem poderia ter sido beneficiado pelo milagre e, apesar disso, manifestar um fervor muito fraco e pequeno.

No caso de Ratisbonne, vê-se que Nossa Senhora venceu imensas e difíceis barreiras: tratava-se de uma pessoa mundana, imbuída de toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Porém, a Santíssima Virgem conseguiu tocar sua alma, e o maior milagre não foi o de ter aparecido a ele, e sim o de tê-lo convertido.

Por assim dizer, Nossa Senhora penetrou na alma dele e a mudou, transformou-a completamente. E Afonso correspondeu a essa graça, fez-se católico ardoroso e padre exemplar.

Percebe-se por esse fato o quanto vale a entrada triunfal de Nossa Senhora nas almas. E, portanto, na festa da Madonna del Miracolo, devemos pedir a Ela que penetre em nossas almas e faça ali o seu reino, vencendo os obstáculos que possamos Lhe opor. De maneira tal que Ela seja verdadeiramente a Senhora nossa, e nós, seus verdadeiros escravos.

 

1) Santo André delle Fratte: Fratte, plural no italiano de fratta, porção de campo geralmente utilizada como pasto para rebanhos de ovelhas.
2) Cf. “Dr. Plinio” número 46, janeiro de 2000.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

17 de Janeiro – Ao contrário do moço rico do Evangelho, Santo Antão disse sim a Nosso Senhor

Ao contrário do moço rico do Evangelho, Santo Antão disse sim a Nosso Senhor

Em sua mocidade, Santo Antão era muito rico. Quando tinha 18 anos, seus pais morreram, tendo ele herdado enorme fortuna.

Certo dia, ele caminhava para uma igreja, meditando sobre a vantagem de se despojar dos bens terrenos a fim de seguir mais de perto a Nosso Senhor. Ao entrar no templo, encontrou o sacerdote fazendo um sermão sobre o moço rico do Evangelho, o qual recusou o chamado de Nosso Senhor por não querer abandonar tudo quanto possuía.
Diante disso, Santo Antão tomou a seguinte resolução:

“Eu serei o moço rico que vai dizer sim para Cristo; o convite d’Ele não ficará sem uma resposta afirmativa; darei o que o outro não deu”. E entregou tudo, foi para o deserto e tornou-se um gigante do eremitismo antigo.

 

(Extraído de conferência de 7/3/1970)

12 de Janeiro – Contemplativo e guerreiro

Contemplativo e guerreiro

São Bento Biscop fundou as manifestações artísticas do ambiente religioso na Inglaterra, mandando vir artistas com verdadeira inspiração católica e estabelecendo uma ordem nas festas litúrgicas.


Com isso, introduziu elementos de beleza dentro da vida religiosa que depois se difundiriam para a vida civil. Por esse meio ele foi o decorador da Inglaterra de seu tempo.

Seus adornos não eram emolientes, tolos ou fúteis, mas tinham dois grandes elementos de inspiração: a profundidade de um contemplativo e as reminiscências do antigo guerreiro.


Os santos que meditam, contemplam profundamente e sabem ser guerreiros, esses estão na origem de todo surto artístico verdadeiro, presidem a aurora e a ascensão da arte.


Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1966)

08 de Janeiro – São Lourenço Justiniano: força e astúcia

São Lourenço Justiniano: força e astúcia

Devido a uma deformação da piedade católica, o demônio é sempre representado como sendo forte e astuto, e o Anjo da Guarda sorridente, amável, bonachão. Daí decorre a ideia errônea de que a pessoa boa é como o Anjo bom, sem força nem sagacidade, e a má, como o anjo mau, forte e astuto. Com base num trecho de São Lourenço, Dr. Plinio desfaz esse falseamento da realidade.

Dom Guéranger, em sua obra “L’Année Liturgique”, apresenta os seguintes traços biográficos de São Lourenço Justiniano(1):

Considerado o segundo Fundador de sua Ordem religiosa

Lourenço nasceu em Veneza, em 1380, da família dos Giustiniani. Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que surpreendia e impunha aos seus próximos respeito e admiração. Aos dezenove anos ele teve uma visão da Sabedoria Eterna, que o convidava a entregar-se inteiramente a Ela.

Persuadido de que a vida religiosa lhe permitiria responder plenamente ao chamado divino, ele entrou na Ordem dos Cônegos Regulares de São Jorge, na ilha de Alga, perto de Veneza. Lá ele se distinguiu por seu amor das austeridades e das humilhações; gostava de ir pedir esmolas na cidade e de encontrar, à guisa de esmola, os sarcasmos e o desprezo dos outros.

Pouco depois de sua ordenação sacerdotal, foi eleito Geral de sua Ordem. Aplicou-se tão bem a reformar a Ordem que ele é considerado, a justo título, como seu segundo Fundador.

Em 1433, nomeado Bispo de Veneza, tentou afastar de si esta dignidade. Mas o Papa Eugênio IV foi inflexível. Lourenço nada quis modificar no seu modo de viver, nas suas austeridades e na extensão de suas orações. Aplicou-se em pacificar as dissensões intestinas que agitavam o Estado, fundou quinze mosteiros, erigiu dez novas paróquias em sua cidade episcopal e velou pelo esplendor do culto divino.

Em 1450, teve que aceitar a dignidade de Patriarca, mas não viu nisto senão uma indicação para seguir mais de perto os traços de Jesus, em sua pobreza e em seu zelo pela salvação das almas. Por isso mesmo ele é considerado justamente como o precursor da reforma eclesiástica que mais tarde São Carlos Borromeu empreenderá em Milão, depois do Concílio de Trento.

Seus sermões, como seus livros de perfeição, respiram uma terna devoção para com os mistérios do Senhor, especialmente sua sagrada Paixão.

Morreu no dia 9 de Janeiro de 1455; foi beatificado em 1524, por Clemente VII, e canonizado em 1690, por Alexandre VIII.

Sua piedade impunha respeito e admiração

Notem esta formulação apresentada a respeito da piedade do santo:

Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que causava surpresa e impunha aos seus próximos respeito e admiração.

Em nossos dias se diria que o efeito psicológico produzido por um jovem muito piedoso é: “Eu fiquei tão comovido vendo esse moço tão piedoso…” Ou então: “Esse rapaz é tão piedoso! Ah, como ele deve ser misericordioso e amável!” E outras reações desse gênero. Por quê? Porque só se concebe a piedade enquanto causando ternura. Não nego que a piedade também possa causar ternura, mas colocar este sentimento como nota preponderante, parece-me um absurdo.

Segundo Dom Guéranger, a piedade de São Lourenço incutia admiração e respeito. Este é um fruto essencial da verdadeira piedade. Ela pode inspirar aos outros a ternura, o embevecimento, o enlevo, mas nada vale e não será verdadeira piedade se não causar estes dois sentimentos, estas duas impressões de alma, que tudo quanto vem de Deus deve produzir: admiração e respeito.

Quer dizer, incutir veneração, comunicar admiração são elementos indispensáveis à verdadeira vida espiritual. Porque Deus, sendo infinitamente santo, poderoso, grande, incute respeito e admiração.

A unilateralidade com que são escritas algumas vidas dos santos deforma as almas. Imaginem uma pintura representando um santo jovem da nobreza de Veneza, rezando. Apresenta-se este jovem numa atitude capaz de incutir admiração e respeito. Para ele temos vontade de rezar.

Entretanto, pinta-se um jovem com fisionomia de bobo, que não incute admiração nem respeito. Como se pode ter entusiasmo por ele? Não é possível, porque representa a imagem da falsa piedade. A verdadeira piedade incute muitos sentimentos, mas entre eles estão, necessariamente, a admiração e o respeito. Eis um ponto do qual não podemos abrir mão, nas nossas considerações hagiográficas.

Reforma sua Ordem e se torna Arcebispo e Patriarca de Veneza

Sem dúvida, São Lourenço Justiniano é um homem completamente entregue à vida religiosa, e ao serviço da Igreja nas instituições eclesiásticas. Sua vida é bastante rica porque, muito moço, entra para uma Ordem decadente, da qual é eleito Geral, e a reforma, a ponto de ser considerado seu segundo Fundador.

Essa Ordem estava tão decadente que precisou de uma reforma geral, e reconhece, de si mesma, ter renascido das mãos de um santo. Mas a decadência dessa Ordem não era tal que impedisse eleger um santo para seu Geral, e deixar-se reformar por ele.

Aqui vemos a diferença dos tempos: Qual é o santo que hoje conseguiria fazer-se admitir em certas Ordens religiosas decadentes? E que, admitido, conseguiria ficar? E, permanecendo, far-se-ia eleger como Geral? E, eleito Geral, lograria reformar os outros?

Chegamos a 1433. Faltam menos de cem anos para a grande explosão do protestantismo. Portanto, a Revolução, de modo tendencioso, já está lavrando na Cristandade o orgulho e a sensualidade. Isto faz com que, como uma vaga imensa, o Humanismo esteja começando a invadir até os ambientes eclesiásticos. Contudo, esse homem reforma sua Ordem e, em vez de tornar-se execrado, é nomeado Arcebispo de Veneza. Ele vai, intervém em tudo, reconcilia facções, combate a imoralidade. Quando se poderia esperar que fosse expulso, é elevado a Patriarca. Eram outros tempos…
O repouso enfraquece as virtudes e a luta as fortifica.

Passemos agora à leitura de uma ficha tirada dos escritos de São Lourenço Justiniano(2).

É próprio às grandes almas e aos generosos combatentes de Jesus Cristo desejar o tempo da guerra mais que o da paz, e os trabalhos mais penosos a uma perigosa ociosidade.

Eles aprenderam, com efeito, que o repouso enfraquece muito as virtudes, e que a guerra as fortifica. Eles consideram também vergonhoso retirar-se quando o combate se apresenta; fugir ao choque dos atacantes, enquanto os outros enfrentam o inimigo; deixar-se vencer por uma vergonhosa pusilanimidade.

Eis porque, cheios de magnanimidade, cobertos com suas armas poderosas, eles se lançam, os primeiros, ante o inimigo, e o obrigam a combater, estimando mais morrer com glória e honra do que fugir covardemente.

E entre esses que combatem no estádio temporal, uns procuram vencer o inimigo pela força, outros pela astúcia. Seria enganar-se muito na arte da guerra, usar somente um desses meios. E eu penso que essa regra do combate temporal deve ser aplicada ao combate espiritual. Aquele que quer combater e destruir os inimigos de sua salvação deve ter força e fineza de espírito. Se lhe faltar uma ou outra, será facilmente vencido, porque os inimigos contra os quais lutamos possuem as duas.

O Leão de Judá venceu o leão do Inferno

Sobre a força do demônio diz o livro de Jó que “nada há sobre a Terra que se lhe possa comparar, porque ele foi feito para nada temer”. Por isso São Pedro o compara a um leão. Sobre sua esperteza, diz o Gênesis que a serpente era o mais astuto dos animais, e que seduziu Eva por sua fineza e artifício.

Vejam, então, como a coragem é necessária e como a força é indispensável. Se quiserdes combater somente com a força, sem a prudência, vosso adversário vos enganará por seus artifícios. Se empregardes só a astúcia, a força do leão vos esmagará. Buscai, pois, uma e outra. Sede fortes contra os rugidos do leão, sede sutis e prudentes contra a malícia oculta da serpente. Quem não temerá sua força, se foi capaz de arrancar do Céu a terceira parte das estrelas? Quem não terá cuidado com sua esperteza, que expulsou nossos pais do Paraíso? Confiai, então, em pedir o socorro desse Leão saído da tribo de Judá, segundo a carne, e que venceu o leão do Inferno com sua morte e d’Ele triunfou com sua ressurreição. É Ele somente que dará a graça da força e a sagacidade da serpente, dando aos combatentes a ciência para que obtenham a vitória.

O combate físico e o espiritual

Esta ficha evoca vários pensamentos que se cruzam e se multiplicam. São Lourenço fala, exatamente, do perigo de que a pessoa se deixe relaxar, distender pelo repouso, e pelas glórias dentro da tranquilidade sucessiva ao combate. E dá algumas regras para o combatente nesta vida.

Ele se refere a duas espécies de combate: em primeiro lugar, ao combate físico — aludindo aos antigos gladiadores que desciam à arena para lutar ––, e às regras que o presidem; depois, por analogia, o santo deduz normas que dirigem o combate espiritual, aquele que o homem deve travar contra os seus inimigos internos, ou seja, suas paixões desordenadas e a ação do demônio dentro de sua própria alma.

Assim como na pugna física é necessário que o guerreiro, ora pela astúcia, ora pela força, saiba vencer as batalhas, também no terreno espiritual devemos ser astutos e fortes contra nossos adversários. E se nos faltar qualquer uma dessas duas qualidades — fortaleza ou astúcia—, perdemos nossa batalha na vida espiritual.

Por outro lado, São Lourenço explica como o demônio foi altamente forte quando, com sua cauda, levou uma terça parte das estrelas do céu para o abismo, isto é, promoveu uma revolta possante na qual arrastou muitos atrás de si.

Entretanto, com Adão e Eva o demônio não manifestou força, mas astúcia, arquitetando uma tentação toda cheia de lábia, de artimanhas para induzir os nossos primeiros pais ao pecado.

Falseamento da espiritualidade católica

Eu gostaria de fazer uma reflexão para compreendermos o rumo que certas coisas tomaram dentro do falseamento da espiritualidade católica. O demônio é forte e astuto, não por ser ruim, mas por aquilo que ele tinha de bom, por sua natureza. Portanto, antes de cair ele já possuía essa força e essa astúcia.

É claro que essa astúcia adquiriu um caráter pecaminoso, mau. O demônio passou a recorrer à falsidade, tornou-se o pai da mentira. Mas sua capacidade de agir astuciosamente não aumentou com o pecado; ela lhe vem de sua natureza angélica e foi conservada, mesmo após sua queda. Contudo, ele começou a lançar mão de meios ilegítimos, os quais não teria usado se tivesse continuado um Anjo na graça de Deus.

Mas daí também se tira a conclusão de que os Anjos bons, que estão na graça de Deus no Céu, também são fortes e astuciosos.

Ora, as coisas tomaram um tal rumo que todas as pinturas do demônio apresentam-no como astucioso e forte. Habitualmente as representações dos Anjos não dão a ideia nem de astuciosos nem de fortes, mas apenas sorridentes, amáveis, bonachões. Dão, portanto, uma ideia deformada, porque unilateral, da natureza do Anjo.

A bondade e a afabilidade são sumamente convenientes à representação de um Anjo. Naturalmente, o Anjo é assim, por exemplo, o Anjo da Guarda, que protege. O Anjo é o veículo do amor de Deus para com os homens; ele os assiste, dirige-os. Mas não é só isso. Ele é forte também. Há um coro de Anjos, chamado Potestades, que, segundo São Tomás de Aquino, têm a missão especial de derrubar todos os obstáculos que se erguem contra a vontade de Deus no universo. E não são os Anjos mais fortes nem os mais altamente colocados.

O Anjo, por outro lado, é sumamente sagaz. E o nosso próprio Anjo da Guarda é sumamente diplomático. Quantas e quantas vezes ele nos dá bons conselhos, bons impulsos de alma ajustados exatamente ao nosso estado de espírito, com toda a inteligência e a diplomacia que se pode imaginar num espírito de uma capacidade imensamente superior à nossa!

Ora, essas representações poucas vezes aparecem. De onde decorre a ideia de que a pessoa boa é como o Anjo bom, e a má, como o anjo mau. Então, se se fala num homem forte ou sagaz já se pensa num homem ruim. Quando se fala num homem bom, se pensa num homem sem força nem sagacidade.

Houve tempo em que era uma ideia comum que o homem deve ser sagaz e forte. Para evitar o abuso dessa ideia, insistiu-se no outro lado: ele deve ser também bom, afável, cândido, muito leal, etc. E para fazer um contrapeso, começaram a apresentar os Anjos assim. Depois os homens começaram a amolecer e a representação dos Anjos não tomou o contrapeso dos homens.

Saltar em cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário

Outra ordem de ideias para a qual esse texto convida, e eu gostaria que tivéssemos a atenção voltada, é a seguinte:
Quem verdadeiramente é lutador não espera que o inimigo venha a si. Ele se lança contra o adversário, empreende a ofensiva para derrubá-lo. É por essa forma que a força se manifesta; isso é a luta propriamente dita. Há um ditado comum, em linguagem corriqueira, mas que diz uma grande verdade: “A melhor forma de defesa é o ataque”. Quando pegamos o inimigo desprevenido, no momento em que ele não desenvolveu ainda todas as suas forças, nós podemos vencê-lo, achatá-lo. Isso é verdade não só para a luta física, mas para os esforços que o homem tem que realizar sobre si mesmo.

Por exemplo, um trabalho. O melhor jeito de o realizarmos bem é não o adiar. Quando vemos que um trabalho é inevitável, devemos pular em cima dele e fazê-lo logo. Por quê? Porque não há coisa pior do que passar um dia inteiro arrastando a perspectiva de um trabalho que deve ser realizado. Não é muito melhor fazê-lo de manhã, e passar o restante do dia livre daquela assombração do trabalho?

Arrastar o trabalho com preguiça, deixá-lo para amanhã, para depois de amanhã, não significa uma fraqueza de alma que vai, após cada adiamento, tornando aquele trabalho mais difícil?

Quer dizer, diante das coisas difíceis dessa vida, nós quase que deveríamos fazer um calendário assim: fazer primeiro as mais desagradáveis e mais difíceis e depois as mais leves e menos desagradáveis. E deixar o prazer para o fim. Porque nada é mais agradável do que o deleite depois do dever cumprido. Nada é mais desagradável, nada inutiliza mais o prazer, do que a ideia de que, terminado aquele prazer, temos um dever árduo para cumprir.

De maneira que, por assim dizer, devemos saltar em cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário. Ninguém é bobo de fazer trabalho desagradável e inútil. Antes de fazer algo desagradável, devemos perguntar se é mesmo necessário. Mas se for, então devemos saltar em cima e executá-lo o mais cedo e o mais depressa possível, contanto que saia bem feito.

O nível da conversa está na razão inversa da vagabundagem

Entre nós, às vezes, surgem queixas a respeito de conversas vulgares. Prestem atenção: gente que tem conversação vulgar é gente preguiçosa; e o que abaixa o nível da conversa é a preguiça, a perspectiva do não cumprimento do dever, que dá o horror a qualquer conversação séria. Pelo contrário, considerem um homem varonil, sobrenatural, que acaba de fazer um trabalho cumprindo o seu dever; apresenta-se uma conversa de nível alto, ele tem vontade de participar. Porque, como ele fez uma coisa mais difícil, está pronto para a menos difícil.

Mas se um indivíduo está na babugem, na hora de conversar só quererá tratar de besteiras. O nível da conversa está na razão inversa da vagabundagem. Quem é aplicado e trabalha nas obras de apostolado, conversa bem, tem apetência de coisas sérias. Por isso também é bom ouvinte de reunião quem, durante o dia, trabalhou e rezou pela salvação das almas.

Eis a norma que São Lourenço Justiniano nos apresenta. Assim se edifica a cidade de Nossa Senhora, onde tudo se move por amor a Ela, e todo mundo é sequioso de sacrifício, da cruz, da luta. Então, aqui está o meu conselho: façam o melhor e o mais rapidamente possível as tarefas desagradáveis e inevitáveis, saltem em cima delas, deem graças a Nossa Senhora na hora que lhes pede sacrifícios, roguem o auxílio a Ela para realizarem esses sacrifícios, e toquem a vida para diante. É por essa forma que serão, ao mesmo tempo, fortes e astutos.

(Extraído de conferências de 5/9/1966 e 13/9/1969)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.
2) Cf. L’Arbre de vie ou les douze fruits de la foi. Paris: Ambroise Bray, Libraire-éditeur, 1858. p. 310 ss.