30 de março – De pé, como uma tocha de esperança

De pé, como uma tocha de esperança

Na hora do Gólgota, no momento mais trágico que houve e haverá na existência da humanidade, Nossa Senhora permaneceu fiel. Não se entregou, não fraquejou, não traiu, não recuou.

E continuou de pé como uma tocha de oração e de esperança. Maria permanecia ereta, em toda a força de seu corpo e de seu espírito, com os olhos inundados de lágrimas, mas com o coração inundado de luz. Possuía a Fé inabalável, a certeza inamovível de que, após a grande tragédia, depois do abandono geral, viria a aurora da Ressurreição, viria o alvorecer da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, nimbada de glória a partir de Pentecostes. E de que, de cruzes em luzes, de luzes em cruzes, o mundo chegaria até o momento que em Fátima Ela prenunciou: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

30 de março – Cerimônia do Sábado Santo Ocasião de graças

Cerimônia do Sábado Santo Ocasião de graças

Dr. Plinio possuía um amor intenso às cerimônias, não só as litúrgicas — pelas quais tinha um enlevo especial —, mas também as realizadas no Movimento por ele fundado. Na medida em que possuam o espírito militante da Igreja, as cerimônias constituem um modo eficacíssimo de fazer a Contra-Revolução.

 

Analisei profundamente a cerimônia do Sábado Santo da qual participei. A cerimônia é um conjunto de ritos. Por rito se entende o conjunto de ideias, de gestos realizados pelo celebrante, pelos acólitos e pelas outras pessoas que ali estavam participando da cerimônia eclesiástica propriamente dita, feita pelo sacerdote.

Oração pública e oração privada

Entretanto, a cerimônia não consistia apenas em gestos, mas também em palavras pronunciadas pelo padre e diante das quais todos os presentes reagiam ora por gestos, ora por palavras, ora por cânticos, ora pelo silêncio e pelo recolhimento, que manifestavam a impressão que tudo aquilo lhes estava causando.

O que faziam ali o clero e os fiéis? O clero, personificado pelo sacerdote, rezava uma oração oficial da Igreja. Quer dizer, não era apenas a pessoa do padre que orava. Ele poderia, eventualmente, fazer uma oração privada, por exemplo, se estivesse recitando um Terço acompanhado pelos presentes; como pessoa particular, rezaria em nome dele e, sendo sacerdote, por sua dignidade puxaria a oração e todos nós participaríamos, mas não passaria de uma oração privada.

Na cerimônia de ontem, porém, o padre estava fazendo o que se chama uma oração pública, isto é, em nome de toda a Igreja. De maneira que como ele é, dentro da Igreja, uma pessoa pública, fazendo aquela oração era a Igreja universal que falava por sua boca.

Notem especialmente o seguinte: não só era a Igreja universal, mas o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo Quem falava por ele. A Cabeça mística da Igreja é Cristo, e quando a Igreja fala oficialmente, é Ele Quem fala. E tudo quanto o sacerdote pede, Nosso Senhor Jesus Cristo está oficialmente rogando ao Padre Eterno. Eis o valor impetratório de uma oração oficial da Igreja.

A cerimônia se compõe de várias partes; há o Círio Pascal, o fogo, a renovação das promessas do Batismo, etc., que preparam a Missa e antecedem as alegrias da Páscoa, e de um ou outro modo se relacionam com a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, comemorada na Santa Missa.

A Igreja militante, padecente e gloriosa

Tudo conflui, portanto, para a Missa, na qual se dá a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, mas na alegria pela Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, festejada pela Igreja. A Igreja militante celebra na Terra, a Igreja gloriosa festeja no Céu, e há, portanto, uma especial alegria no Paraíso porque na Terra é Páscoa.

Alguém perguntará: “E a zona dolorosa da Igreja penitente?” Nesse dia, Nossa Senhora, sorridente, vai ao Purgatório e leva para o Céu uma quantidade enorme de almas, cujo tormento Ela abrevia. Ademais, Ela alivia o sofrimento de muitas que permanecem ali e as enche de gáudio pela presença d’Ela. É a Páscoa da Ressurreição!

Vejam que firmamento de ideias — cada uma mais rica do que a outra — povoam essa cerimônia!

A parte não litúrgica da cerimônia teve um complemento muito bonito: o momento em que se descerrou o véu e apareceu a Sagrada Imagem(1). Nesse instante, olhei para os outros também, e tive a impressão de que havia um estado de espírito coletivo por onde, no fundo da alma, numa zona que se sente pouco, todos estavam bebendo, em pequenos goles, o licor mais delicioso e mais seleto do espírito católico. Havia um recolhimento sacral, uma paz, uma alegria, um bem-estar que nem sequer pode ser adequadamente descrito com as palavras “felicidade de situação”. Porque a felicidade de situação é um comprazimento do homem com uma determinada circunstância terrena, e o bem-estar de alma que se sentia ali era muito mais do que isso; e lembrava mais o Céu empíreo, com lampejos de visão beatífica, do que qualquer outra coisa.

Um mistério cheio de luz, uma luz cheia de mistério

Na cerimônia, as pessoas estavam como que vendo uma fisionomia, que era a fisionomia da Igreja, e aprendendo, a respeito da Esposa de Cristo, um modo de ser, uma impostação de alma feita de uma seriedade cheia de alegria, de um bem-estar que não é nem um pouco o que no mundo entendem por bem-estar — aquela delícia horrível que a cibernética e outras coisas pretendem trazer —, mas é um bem-estar feito de harmonia e de equilíbrio, o qual reúne junto de si as coisas mais heterogêneas numa harmonia suprema.

Por exemplo, o maior recolhimento, mas ao mesmo tempo com a maior naturalidade. É o recolhimento sem esforço em que a alma, sem tentar pensar em outras coisas, é atraída para aquela seriedade, dignidade, que a música e tudo quanto está ali exprime, que faz entender fiapos do que é dito em latim, mas que tem um sentido, uma significação extraordinária, em que a pessoa se percebe num mistério cheio de luz — não é um jogo de palavras, mas um outro sentido da coisa —, uma luz cheia de mistério. E assim fica posto um estado de alma diante do qual, de bom grado, se passaria ao Céu.

E o efeito disso sobre a alma é diretamente o seguinte: torna-a suave e amoravelmente propensa a todas as virtudes.

Esta impressão é conjunta. Não é a impressão somada deste, daquele ou daquele outro, mas todos sentem que estão com esta impressão. E o fato de no conjunto todos terem esta impressão, ganha mais do que se as pessoas estivessem sozinhas.

A ação da graça é intensificada pelas aparências sensíveis

Tratamos há pouco do que se passou entre Deus e o celebrante, em nome da Igreja, e da participação daqueles que concorriam para a cerimônia à maneira de leigos. Existe, contudo, algo mais profundo. Esse estado de alma ao qual me referi, de onde nasce e o que ele é perante Deus? Esta impressão individual e coletiva que se teve ali, como se relaciona com a graça?

Nós temos a graça recebida no Batismo. Ademais, recebemos também a graça da vocação. Mas outras graças se acrescentaram a essas, de maneira a incrementá-las. Nessa ordem interior, o que se passou em nós?

É uma coisa correlata com o que o padre estava fazendo, porque tudo isso constitui um todo, não são dois pedaços. A correlação entra pelos olhos, mas são aspectos distintos. Apresentada a distinção, vou tratar disso.

A graça teve como ocasião a cerimônia. O que quer dizer aqui ocasião? É uma palavra de sentido muito precioso. Deus é o Autor da graça, a qual é um dom criado por onde o homem participa da própria vida do Criador. Contudo, Deus muitas vezes liga a concessão da graça a fatos externos que são, assim, ocasiões para Ele concedê-la. Por isso, ao considerarmos tal fato, ela fala a nossas almas.

Quando contemplamos esse conjunto de ações correlatas, sentimos e conhecemos um “verum, bonum, pulchrum” — uma verdade, ou todo um horizonte de verdades da Fé que vem ao nosso espírito, a santidade e a beleza dessas verdades em si — e, por outro lado, como o que está se passando exprime bem aquelas verdades, e faz sentir a santidade e a beleza delas. Então, as aparências sensíveis são também elas uma ocasião para que a graça intensifique em nós a sua ação.

E vendo, por exemplo, as respostas varonis dadas às perguntas do padre sobre a renovação das promessas do Batismo, aquilo tudo é ocasião para a graça da virtude da fortaleza operar em nossas almas.

Aspecto simbólico da cerimônia

Isso age de várias maneiras, porque nós raciocinamos e vemos o nexo entre as coisas, mas também — e eu queria chamar a atenção para este pormenor — pelo seu lado simbólico. Esses gestos, esses objetos, esses sons, esses paramentos, essas cerimônias são símbolos que nos fazem ver, de um modo para nós meio misterioso, por uma série de analogias, aquilo que está sendo simbolizado. É o próprio do símbolo.

Por exemplo, a Sagrada Imagem está com uma coroa, que é o símbolo da realeza. Vendo-a sobre a cabeça da Sagrada Imagem, nós temos uma ideia de realeza ainda mais plena de Nossa Senhora como Rainha, ainda mais perfeita, de maneira que o símbolo nos fala prodigiosamente dentro da alma. E essa simbolização serve de ocasião para a graça produzir em nós esse estado de espírito que notamos ali.

Então, a cerimônia assim vista é uma ocasião para a graça. Se olharmos os paramentos do padre, a cor e a forma deles, o barrete, os gestos que ele faz, o modo pelo qual o texto é cantado, tudo isso tem cintilações de grandezas, todo o passado da Igreja aparece, por assim dizer, em pequenas chamas.

Sente-se, por exemplo, quando o texto fala do fogo, que há uma certa grandeza patriarcal dos tempos primitivos, do Antigo Testamento; e tem-se a impressão de ver a Igreja sair das névoas mais profundas da História, cantando o fogo, quando ela nem era nascida, mas havia a pré-Igreja, que eram os justos do Antigo Testamento e o culto verdadeiro de Yaveh. E um padre em 1982 — face aos problemas da cibernética e de todos os horrores promovidos pela Revolução — de repente faz emergir misteriosamente esse passado. Assim são os aspectos da vida da Igreja.

Quem coligou esses trechos? Quem determinou que, para o Sábado Santo, essas deveriam ser as impressões causadas nos fiéis? Quem definiu que tais paramentos e tais gestos eram indicados para tal ocasião? Quem reuniu tudo isso para formar essa cerimônia?

É assombrosa a naturalidade com que o sacerdote segue os ritos; por exemplo, tirar o fogo da pedra para acender a chama pascal. Isso é do tempo em que não havia fósforo, quase a época da pedra lascada, da pedra polida! É até lá que aquilo nos leva! Em seguida, o padre faz uma invocação de algo tirado do Evangelho, e posteriormente se refere à Cristandade atual. Ele desliza pelos séculos como um pássaro…

O barrete, a estola, a capa magna, o cantochão, o órgão

Aquele barrete que o padre usa em certos momentos, no fundo, corresponde à ideia de que o homem deve ter adornos que o completem, porque sem eles o homem não realiza inteiramente aquela beleza que perdeu quando saiu do Paraíso. Portanto, é uma espécie de vergonha do pecado, não relativa ao pudor, ao sexto Mandamento, mas da condição de pecador, e vontade de algum modo recompor a dignidade humana, que leva os homens a usarem chapéus. Aquele barrete corresponde a esta ideia; é preto, em sinal de luto pela Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, como a batina é preta. O barrete é dividido em três gomos, e tem uma parte inteiramente lisa do outro lado: Deus Uno e Trino. Mas o barrete, do qual gosto muito, dá ao padre uma dignidade perfeita e acabada, porém não suprema. Para indicar a plenitude do sacerdócio a Igreja tem para a fronte humana um símbolo mais augusto, que é a mitra; e, para mostrar a plenitude conjunta dos três poderes, a tiara que pousa sobre a cabeça de um só: o Papa.

Símbolos e símbolos, graças e graças, dizendo coisas misteriosas à nossa alma. Até o sapato. Por exemplo, o sacerdote pode celebrar de sandálias, mas não de tênis. A capa magna, a capa de asperges, a estola, tudo tem beleza! O cantochão! O órgão! O harmônio é um filho do órgão. Que maravilha!

Mas como é que se juntou isso ao longo dos séculos? Historicamente, para quase todas essas coisas, ou para muitíssimas delas, há uma explicação, a qual, entretanto, é insuficiente, porque a pergunta não é quem propôs isto, aquilo, mas quem incrustou isso definitivamente na vida da Igreja.

Ação do Espírito Santo e espírito militante

Quem fez isso foi o Divino Espírito Santo. Ele é o Espírito da Igreja, e foi juntando, dispondo as coisas ao longo da História da Igreja, arranjando tudo isso para chegar àquela maravilha que vimos na cerimônia.

De maneira que tivemos, naquela simbolização toda, uma comunicação do Espírito Santo aos homens, indicando como o ambiente no qual habitualmente o homem se move, as mentalidades, a sociedade espiritual e a temporal deveriam ser.

Ali vimos, movendo-se, a Igreja de todos os tempos, e a Igreja do Reino de Maria que vai nascendo. E que, ou eu me engano muito, ou timbrará em conservar, mais saliente do que nunca e manifestado com todos os esplendores, o seu caráter de militante. Tudo naquela cerimônia entrava como uma moção do Espírito Santo, já dando os primeiros lampejos do Reino de Maria.

Nas graças que recebemos durante aquela solenidade há um nota preponderante, dizendo às nossas almas: “Tudo quanto constitui nesta cerimônia um chamado para toda espécie de virtudes, concebei-o, vede-o à luz da batalha. Sede militantes até o fim, que o resto vos será dado abundantemente! Sede filhos da luta, deixai-vos inspirar por ela, sede batalhadores vossa vida inteira e cada vez mais, e Deus fará convosco uma aliança”.

Mas não se trata apenas de ter a alma aberta a uma impressão enquanto se está na cerimônia. É preciso levá-la como uma recordação saudosa e analítica do que houve e, de vez em quando, retomá-la.

Então, compreendemos qual é o papel que nossas cerimônias têm. Naturalmente, num grau eminente, as solenidades ligadas à sagrada Liturgia, em que a Igreja fala e implora. Nosso Senhor Jesus Cristo pede oficialmente em nome de toda a Igreja. Mas também, e de modo autêntico, se bem que menos eminente, em todas as nossas cerimônias.

A cerimônia, enquanto tal, é ocasião para graças deste gênero. Ela exterioriza, torna sensível aquilo que não basta estar só na inteligência e na vontade. Mais ainda, não entra inteiramente na inteligência nem na vontade enquanto não tiver penetrado de algum modo na sensibilidade.

Compreendemos, assim, que a cerimônia é um modo de combater; é um modo eficacíssimo de fazer a Contra-Revolução, na medida em que levemos o espírito militante para dentro dela.

Evidentemente não é uma luta sem sentido, sem razão de ser. A causa pela qual se combate é a Fé; é por Deus que lutamos. Se não amássemos Nosso Senhor e Maria Santíssima, não teríamos razão para combater. Mas, diante do pecado que ofende a Ele e a Ela, a atitude é a luta. Não se compreende a oração sem luta, como não se compreenderia, a “fortiori”, a luta sem oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/4/1982)

1) Imagem de Nossa Senhora de Fátima que verteu lágrimas milagrosamente em Nova Orleans, em 1972.

30 de março – O ápice da “história dos olhares”

O ápice da “história dos olhares”

Como terá sido a última troca de olhares entre Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima? Imaginemos o afeto, o mundo de amor e de respeito, a veneração, o entendimento de almas recíproco que nessa hora transpareceu.

Este foi o momento culminante da “história dos olhares”.

Caso alguém tenha podido contemplar esses dois olhares, seria uma vantagem ficar cego em seguida. Pois, o que ver depois disso?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1972)

30 de março – VIDA, DOÇURA E ESPERANÇA NOSSA

VIDA, DOÇURA E ESPERANÇA NOSSA

MARIA SANTÍSSIMA É, VERDADEIRAMENTE, NOSSA VIDA, DOÇURA E ESPERANÇA. SE ELA NÃO EXISTISSE, NÃO TERÍAMOS RAZÃO ALGUMA PARA ESPERAR NA MISERICÓRDIA DIVINA; NÃO TERÍAMOS NADA QUE JUSTIFICASSE QUALQUER ESPERANÇA NOSSA DO CÉU, OU QUALQUER ALEGRIA NA TERRA.

TUDO O QUE TORNA VIVÍVEL NOSSA EXISTÊNCIA É O CONJUNTO DE ESPERANÇAS QUE A INTERCESSÃO DE NOSSA SENHORA NOS AUTORIZA A TER. E POR ISSO MARIA É NOSSA VIDA. VIVEMOS POR ELA, E, SE NÃO FOSSE ELA, CAIRÍAMOS DESFALECIDOS. É NOSSA DOÇURA, PORQUE PERFEITAMENTE AFÁVEL,  DOCE, MISERICORDIOSA E CONDESCENDENTE PARA COM AQUELES QUE A INVOCAM.

A ESTA MÃE CLEMENTÍSSIMA DEVEMOS O FATO DE HAVER  SUAVIDADE EM NOSSA VIDA. ELA NOS OBTÉM A GRAÇA DIVINA E, PORTANTO, FORÇAS PARA A PRÁTICA DA VIRTUDE. ORA, A VIRTUDE É O QUE HÁ DE DOCE NO EXISTIR HUMANO. SEM ELA, NOSSA PASSAGEM POR ESTE MUNDO SERIA AMARGA E SINISTRA. E MARIA, AO NOS PROPORCIONAR A VIRTUDE,  CONFERE DOÇURA AO NOSSO COTIDIANO TERRENO.

ASSIM, A ELA DEVEMOS DIZER, CHEIOS DE FILIAL GRATIDÃO: “Ó MÃE BONÍSSIMA, POR CAUSA DE VÓS, NOSSA VIDA SE TORNA DOCE E SUPORTÁVEL. NOSSA VIDA SÓ É VIDA PORQUE SOIS NOSSA ESPERANÇA!”

28 de março – Fundador da Ordem de Cister

Fundador da Ordem de Cister

Santo Estêvão Harding, juntamente com dois outros bem-aventurados, fundou a Ordem de Cister como reação contra a decadência da Ordem dos beneditinos. Cister teve um enorme progresso com a entrada em suas fileiras de São Bernardo, o homem da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua contra todos os adversários da Igreja do seu tempo.

 

Pretendo fazer um comentário em torno de alguns dados biográficos(1) sobre Santo Estêvão Harding.

Origem da Ordem de Cister

Estêvão Harding, filho de um gentil-homem inglês, consagrou-se muito jovem à vida monástica, na Abadia de Sherborne, em Dorset. Enviado à França, na Universidade de Paris cursou brilhantemente Humanidades e Filosofia.

Terminando os estudos teológicos, foi para Roma em peregrinação. Voltando à França, decidiu conhecer Molesmes, atraído pela reputação dessa casa. Molesmes, embora dirigido por São Roberto e o Bem-aventurado Albéric, decaíra sensivelmente, talvez pelas riquezas que então possuía. Os dois santos acabaram abandonando a comunidade e, conjuntamente com Estêvão e com o apoio do Duque Eudes, de Borgonha, decidiram fundar outro mosteiro.

Essa foi a origem da célebre Ordem Beneditina de Cister, da qual Estêvão foi o prior em 1099 e o redator dos Estatutos, aprovados por Pascoal II.

Em 1109, Santo Estêvão tornou-se abade da nova casa; lutando com ingentes dificuldades para levar os religiosos à vida perfeita e recebendo pouquíssimos noviços, começou a duvidar se seu instituto era do agrado de Deus e rezou para ser esclarecido.

Recebeu então uma resposta que o encorajou e à pequena comunidade que ali vivia.

De Borgonha chegava um gentil-homem acompanhado de trinta companheiros, pedindo admissão naquela casa. Esse nobre é São Bernardo. No ano de 1115, Santo Estêvão construiu Claraval, cujo primeiro abade foi São Bernardo.

E de Claraval surgiram mais oitocentos mosteiros. Nosso Santo veio a falecer em 1134, dizendo não ir para Deus senão com o temor de servo inútil que nada tinha feito de bom. Se o Criador lhe concedera algum dom, temia não ter feito dele todo o uso para o qual o recebera.

Vicissitudes que ocorrem nas Ordens religiosas

Encontramos aqui um desses fatos frequentes na vida das Ordens religiosas, que é a fundação de novos ramos provenientes da Ordem antiga.

Com efeito, há uma dualidade de modos de proceder da graça em relação às Ordens religiosas: todas são dotadas, na sua origem, das graças necessárias para cumprirem a missão que Deus tem em relação a elas; e em geral, pelo menos na primeira fase de sua existência, elas cumprem essa missão.

Porém a partir de certo momento, como acontece em todas as coisas humanas frequentemente – eu não digo por uma fatalidade, nem por uma regra geral que não comporte exceções, mas por uma dessas regras gerais que admitem algumas brilhantes exceções –, as Ordens religiosas passam, depois da era heroica do fundador, dos grandes Santos, dos grandes feitos, por um período de arrefecimento. E esse arrefecimento ou é cortado por alguns novos Santos que aparecem e inspiram, comunicam à Ordem um impulso novo, ou então ela vai lentamente declinando para a decadência. Quando chega a determinado ponto da decadência, abre-se outra alternativa: ou a Ordem religiosa se fecha, ou floresce dando origem a um novo ramo.

Em geral, acontece que quando o ramo novo se forma, ele resplandece com um brilho igual ao da Ordem nos seus melhores dias, e o ramo velho acaba se deixando contagiar pelo ramo novo, e vai acompanhando-o um pouco de longe, como um irmão meio envelhecido acompanha, a duras penas, a marcha do irmão mais novo, mas termina se contagiando mais ou menos e se regenerando, acaba arrastando uma certa vida daí para a frente.

Por que Deus permite que algumas Ordens religiosas morram e por que Ele faz com que outras tenham a sua existência maravilhosamente prolongada, ou por uma continuidade gloriosa que, por vales e montes e sem fundação de novos ramos, marca sempre a sucessão de novas graças dentro do mesmo instituto religioso, ou, porventura, pela abertura de novos ramos? Por que então Deus a umas fecha, ou permite que se fechem, e a outras Ele guia de modo tão maravilhoso?

É que há certas Ordens religiosas, para considerar um aspecto da questão – a qual não se esgota nisso –, que têm um papel perene dentro da Igreja Católica. Elas devem irradiar um determinado perfume do qual Deus não quer que a Igreja seja privada nunca mais, para que tenha sua fisionomia, de maneira que então, de um modo ou de outro, Deus conserva aquilo.

Existem outras Ordens que Deus, na sua infinita sabedoria, julga que não são indispensáveis à economia geral da Igreja. E Ele, então, permite que elas decaiam e desapareçam.

A continuidade da Ordem do Carmo

Entre essas Ordens eu creio que nenhuma apresenta uma continuidade tão maravilhosa quanto a Ordem do Carmo.

Segundo uma tradição muito respeitável – que há todas as razões para se admitir como verdadeira –, a Ordem do Carmo, fundada por Santo Elias, passou por muitos revezes e episódios brilhantes antes da vinda de Nosso Senhor até o aparecimento de São João Batista, o qual, segundo essa tradição, foi essênio e, portanto, pertencia àquele eremitério nas encostas do Monte Carmelo, onde os sucessores de Santo Elias cultivavam a vida religiosa. São João Batista teria sido, então, o maior dos sucessores de Santo Elias.

Com o advento do Novo Testamento e a dispersão do povo hebraico, esse núcleo se transformou na Ordem do Carmo. Depois de muitas vicissitudes, ela foi transladada para o Ocidente devido às perseguições que os maometanos desferiram contra os Lugares Santos.

No Ocidente ela esteve para se fechar, quando Nossa Senhora apareceu a São Simão Stock e lhe revelou a devoção do escapulário – ele era o Geral da Ordem – e veio então uma torrente de graças. Ela decaiu de novo no período de Santa Teresa de Jesus, mas esta e São João da Cruz reformaram de novo a Ordem do Carmo que continuou a brilhar até, pelo menos, a produção de uma de suas mais altas e belas flores, que foi Santa Teresinha do Menino Jesus.

Houve depois o fenômeno da decadência que todos conhecemos. Entretanto, a Providência quis conservar essa Ordem até agora e, segundo profecias privadas dignas de crédito, ela nunca desaparecerá e continuará sempre, de glória em glória, como também de provação em provação, até que volte à Terra o seu fundador, Santo Elias, que deve estar presente nos últimos dias da História do mundo, e lutar contra o Anticristo, ser morto por ele, e ressuscitar.

Há um mistério de união, de sagrada escravidão com Nossa Senhora, e de assistência d’Ela a essa família espiritual, pelo qual ela tem uma longevidade maior do que todas as outras, não só se consideramos sua origem, mas seu futuro também.

Não obstante, foi necessária a reforma empreendida por Santa Teresa de Jesus, que não foi acompanhada por todos, dando origem a dois ramos: os Carmelitas Descalços e os Calçados, entre os quais não faltaram rivalidades ao longo da História. Entretanto, no tempo em que começamos a frequentar a Ordem Terceira do Carmo, edificava-me ver na Igreja do Carmo um altar a Santa Teresinha do Menino Jesus e outro a Santa Teresa de Jesus, que os antepassados espirituais deles de tal maneira tinham combatido.

Assim, dentro da grande paz e cordura interna da Igreja Católica, essa animadversão terminou e as duas Ordens se reconciliaram, e todo o perfume do ramo reformado passou, ao menos de algum modo, para o antigo. A Ordem do Carmo rebrilhou no todo com a glória de Santa Teresa e de São João da Cruz.

Ação que se irradiava à distância

Nós encontramos um fato semelhante na mais antiga das famílias espirituais, não do mundo, mas do Ocidente: os beneditinos.

São Bento foi o Patriarca dos monges do Ocidente, pois o monaquismo ocidental nasceu dele. Ele fundou uma Ordem religiosa gloriosa que se estendeu por toda a Europa, e produziu a conversão de bárbaros numa das situações mais duras da vida da Igreja Católica, que se encontrava internamente devorada por germes de corrupção do paganismo romano, ao qual ela mesma havia combatido. Ademais, esse próprio mundo pagão era hostilizado pelos bárbaros invasores do Império Romano do Ocidente, os quais eram arianos pervertidos por um bispo, Úlfilas, ou completamente pagãos; mas a um ou outro título ambos inimigos da Igreja.

Quando se deu o estrépito tremendo da invasão do Império do Ocidente pelas hordas bárbaras, foram os frades beneditinos que trabalharam para a conversão dos bárbaros, sobretudo na parte mais difícil, ou seja, onde não houvera Império Romano, o Cristianismo não tinha penetrado e se tratava de trabalhar em plena selva.

A conversão da Inglaterra, da Irlanda, depois da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Boêmia, da Áustria, em parte da Hungria também, deveu-se ao impulso dessa imensa família religiosa dos beneditinos que trabalhou de um modo altamente prestigioso.

Aliás, prestígio e beneditinismo são coisas quase que indissociáveis. Em toda a vida da Igreja, a Ordem beneditina conservou uma espécie de prestígio e de categoria que ainda tem um perfume do feudalismo medieval. Como eles trabalhavam? Um missionário ia para os povos infiéis, pregava e fundava um convento, em geral edificado em um lugar ermo, onde os monges começavam a cantar, a praticar a Liturgia, a distribuir esmolas aos pobres, a derrubar florestas, a secar pântanos e fazer plantações regulares. Por causa do prestígio que a virtude deles lhes conferia sobre as almas, as populações iam se constituindo em torno dos conventos. Mesmo quando permaneciam solitários, dos povoados iam pessoas visitá-los, e a ação deles se irradiava à distância sobre as cidades, e ajudava a ação do clero secular que nelas se fixava. Era, portanto, uma preciosidade para uma cidade estar a certa distância de um mosteiro beneditino.

Com efeito, não era próprio dos mosteiros beneditinos instalarem-se dentro das cidades. Eles estabeleciam-se sempre fora, até o momento em que as cidades se constituíram em seu entorno e eles não puderam fugir. Mas, propriamente, a ação deles era esse prestigioso apostolado à distância e de atração, que se põe longe a luzir com todo o seu brilho, atrair com todo o seu perfume, e os povos vêm, então, ao encalço do apostolado beneditino.

Enquanto os beneditinos por essa forma convertiam a Europa pagã, os monges de Cluny – que não era um ramo dos beneditinos, mas uma federação de abadias beneditinas autônomas na Europa – preparavam o florescimento espiritual, cultural, artístico, político, militar da Idade Média.

Cluny foi a alma da Idade Média. Não um ramo novo, mas como que um canteiro o qual, de repente, se pôs a deitar perfumes especiais dentro da família beneditina e se irradiou por toda a Europa.

Santo Estêvão funda Cister, Nossa Senhora lhe envia um sinal equivalente ao nascer de um sol

Mas depois de uma gloriosa dinastia de abades, de ter dado ao mundo papas como São Gregório VII, os cluniacenses começaram a decair também. Neste contexto se insere esse episódio acima narrado, de Santo Estevão Harding. Um Santo que procede da Inglaterra e entra num convento beneditino em decadência, onde encontra dois outros Santos; eles não conseguem reerguer os beneditinos decadentes.

Então saem e formam outro ramo, já com uma disciplina muito mais estrita e severa que a dos beneditinos. Começa um apostolado tão pequeno, tão incerto que até o Superior ficou na dúvida se era vontade da Providência que aquilo florescesse ou não, e pediu um sinal.

Nossa Senhora, Mãe de todas as boas iniciativas da Igreja, deu, risonha, o mais belo dos sinais. Chega um cavaleiro, São Bernardo, acompanhado de trinta outros, para enriquecer essa abadia. Mas acontece que chegar São Bernardo não é uma coisa qualquer, é como nascer um sol. Ele é um dos sóis da Igreja Católica, de toda a devoção mariana. O “Doctor mellifluus”(2) que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia da Santíssima Virgem. Por excelência o homem da penitência, da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua com todos os adversários da Igreja do seu tempo, principalmente com o homem que pode ser considerado, a meu ver, o vanguardeiro do progressismo; uma figura imunda, heterodoxa, asquerosamente sentimental: Pedro Abelardo.

São Bernardo, com os trinta cavaleiros, deu tal estímulo a esse ramo beneditino novo, que o antigo ficou mais ou menos para trás, e começou o florescimento da Ordem beneditina sob um novo aspecto.

Esse ramo o que fazia? O que realizam ainda hoje os cistercienses: silêncio completo, trabalho manual, estudo, clausura total, apenas saindo de vez em quando para missões, perfumadas com toda a beleza e unção da vida de clausura e que trazem uma densidade de riqueza espiritual especial por causa do caráter contemplativo daqueles missionários. Eles fazem uma missão e voltam de novo para o mosteiro.

Imaginem a sensação de um povo vendo entrar na igreja, subir à tribuna um frade o qual, conforme explicou o vigário que o antecedeu, é um homem que não fala nunca, mantendo um silêncio perpétuo, um prisioneiro voluntário e nunca sai das paredes de seu próprio mosteiro. Um homem, portanto, que ao falar incute susto a milhares de pessoas, uma vez que o silêncio perpétuo é uma coisa que assusta muito, e a reclusão voluntária é uma espécie de imagem da reclusão involuntária e traz consigo as mortificações desse estado.

O homem sobe ao púlpito trazendo uma túnica branca – o contrário dos beneditinos que estão sempre vestidos de preto –, e um escapulário negro, com a tonsura característica, trazendo na face aqueles traços típicos do contemplativo verdadeiro, e que se põe a falar coisas extraordinárias, verdades elevadas, a dizer ao povo, de frente, quais são os seus vícios, a invectivá-los, a estimular à virtude, a polemizar com os adversários. Terminado o sermão, o povo vê com assombro esse homem montar num cavalo ou num burrico e partir sozinho para seu convento, deixando atrás de si as multidões atônitas. Compreende-se qual é o valor e o prestígio desse apostolado.

O reerguimento das várias congregações beneditinas

A Ordem beneditina recebeu de Cluny a sua fisionomia verdadeira. É uma ordem muito pomposa. O Abade de Cluny é um verdadeiro príncipe, usando mitra e báculo como os bispos. Dentro do seu convento, não estava sujeito às ordens do bispo diocesano, mas diretamente ao papa, e ele gozava ali de honras parecidas com a do bispo: usava cruz peitoral, anel, tinha o direito do tratamento de excelência, as pessoas se ajoelhavam para beijar sua mão; era uma miniatura de bispo.

Abadias magníficas com um cerimonial faustoso, a liturgia beneditina é riquíssima, com os objetos mais preciosos, nas igrejas os vitrais mais magníficos. Para a vida privada dos seus monges, as abadias beneditinas eram muito austeras: longos corredores com bancos de pedra, celas pobres. Mas no que diz respeito ao culto divino e à pompa com que se cercava o abade havia o maior esplendor.

Entretanto isso degenerou em abusos. E sempre que um abuso se acentua num sentido, a graça realça a nota no sentido oposto. Então apareceu a Ordem de Cister praticando a pobreza muito mais carregadamente noutro sentido. O abade cisterciense gozando de honras análogas ao abade beneditino, mas cercado de muito menos pompa. Toda a vida cisterciense era muito mais pobre. A reação contra a riqueza tomou tal porte que os cistercienses não usaram mais os vitrais coloridos que os beneditinos utilizavam, achando que aqueles vitrais eram um fator de riqueza contra o qual era preciso reagir.

Então, passaram a usar apenas uns vitrais de tons esbranquiçados para proteger contra a luz. Mas a Igreja Católica, ainda involuntariamente, sempre produz a beleza. Usando esse tipo de vitrais, os monges cistercienses arranjaram jeito de fazer vitrais com cores opalinas lindíssimas. É uma forma de beleza discreta tal que esses vitrais brancos, com tons opalinos, disputam em formosura, junto aos colecionadores e especialistas, com os vitrais policrômicos dos beneditinos da antiga observância.

O que resultou daí? Aos poucos, um reerguimento das várias congregações beneditinas. Quase todas elas receberam uma respiração nova. Apenas não recebeu, é duro dizer, a congregação de Cluny. Ela foi decaindo continuamente até a Revolução Francesa, durante a qual do grande mosteiro de Cluny não restou pedra sobre pedra(3). A cólera de Deus caiu sobre aquilo e ficou completamente arrasado. Existem apenas as relíquias dos Santos fundadores dessa Ordem religiosa e, na cidade de Cluny, alguns edifícios auxiliares – parece-me que restos de estrebaria, outras coisas assim do antigo convento beneditino; o resto desapareceu completamente.

Mas a Ordem Beneditina permaneceu, e os beneditinos da antiga observância ficaram também. Cluny, que era uma federação de conventos, desapareceu. Mas uma porção de conventos continuaram e a Ordem Beneditina começou a apresentar essa diversificação magnífica que faz dela como que um leque com várias cores: os beneditinos antigos, com toda a sua pompa, sua dignidade, com todo o seu esplendor; os cistercienses que eu acabo de descrever; os trapistas, aos quais pertencia Dom Chautard(4), que não são missionários, nem saem jamais do convento, e mantêm um silêncio que nunca interrompem. São as várias modalidades da aplicação da Regra de São Bento.

Uma das glórias da Ordem de Cister

Uma palavra sobre São Bernardo e Pedro Abelardo. São Bernardo era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar de Nossa Senhora com tanta unção quanto ele. São Luís Grignion de Montfort o cita várias vezes e com os maiores elogios.

De outro lado, ele era um polemista tremendo. E como viveu numa época em que a Idade Média já decaía e as heresias se multiplicavam, ele travou tantas polêmicas com pessoas daquele tempo, que um dos papas sob cujo pontificado ele reinou – não me lembro qual – deu a ele uma ordem de voltar a seu convento e não se meter em mais nada, porque estava ateando fogo na Cristandade inteira. Ao que São Bernardo respondeu de modo muito pitoresco que não havia coisa melhor para ele do que isso, porque havia se metido nessas polêmicas apenas para servir a Igreja, mas que não queria outra coisa senão a cela dele, agradecia ao papa a reclusão que lhe impunha, e tinha a consciência tranquila porque estava obedecendo.

Era dele, se não me engano, aquela máxima: “o beata solitudo, o sola beatitudo” – ó bem-aventurada solidão, ó única bem-aventurança. Ele queria realmente apenas a solidão. Como polemista tremendo, alcançou sucessos extraordinários.

Uma vez ele esteve na Alemanha, numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. São Bernardo entrou na cidade e a fama de santidade e das virtudes dele era tal que o povo foi todo correndo ao seu encontro. E ele teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado pelos braços e feito montar nele. De maneira que foi um Santo que se apresentou à veneração do universo, montado num imperador. Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Esse Pedro Abelardo, que foi o maior inimigo de São Bernardo, era um tipo asqueroso. Tornara-se frade e ficara apaixonado por uma freira, uma tal Heloísa. E tinha por ela uns desses amores sentimentais, românticos, que já prenunciam toda a choradeira do século XIX.

Era um homem que queria encontrar o meio-termo entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. Por ser um antecessor da Revolução, os escritores revolucionários o admiram muito. E não ousando atacar São Bernardo de frente, fazem insinuações usando fórmulas como, por exemplo: “Pedro Abelardo teve de sofrer a oposição fogosa e implacável de São Bernardo; precisou aguentar os raios que São Bernardo deitava contra ele”. Mas ele apanhou de fato e foi derrotado pelo santo Abade de Claraval. Por causa disso a luta contra ele representa uma das glórias da Ordem de Cister.            v

 

Plinio COrrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

2) Do latim: Doutor melífluo.

3) Posteriormente reconstruída.

4) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.

25 de março – Na Anunciação, grandeza e humildade de Maria

Na Anunciação, grandeza e humildade de Maria

Como já o temos afirmado, engana-se quem pensa que os temas preferidos de Dr. Plinio eram de natureza social e política. Seriam, então, os históricos e os culturais? Ou os puramente filosóficos? Nenhum desses. Conquanto seja verdade que navegava por todos eles com desembaraço, discernimento e sabedoria — disto é prova o rico leque de  matérias publicadas nesta revista — os temas com os quais especialmente se regalava eram de índole teológica: a infinitude das perfeições de Deus, as relações entre as três  Pessoas divinas, o Sagrado Coração de Jesus, a santidade da Igreja Católica, etc.

Em conferências que mais pareciam meditações em voz alta, tinha ele predileção em discorrer sobre a Mãe de Deus. Agradava-lhe imaginar, por exemplo, como teriam sido as trocas de olhares entre Jesus e Maria, na gruta de Belém, na casa de Nazaré, no Calvário, no primeiro encontro após a Ressurreição. Ou conjecturar sobre as cogitações que povoavam a alma de Nossa Senhora nas várias circunstâncias de sua vida.

E quais terão sido os pensamentos d’Ela na Anunciação? Sobre este tema, oferecemos nestas páginas ao leitor algumas considerações feitas por Dr. Plinio:

A Anunciação é a festa em que celebramos este fato culminante da história do mundo: Deus, através do Arcanjo São Gabriel, comunica a Nossa Senhora que a Segunda  Pessoa da Santíssima Trindade haveria de assumir nossa natureza, a fim de resgatar o gênero humano.

As circunstâncias em que se realizaram esses eternos desígnios do Altíssimo não poderiam ser mais singelas nem mais maravilhosas.

Em sua modesta casa de Nazaré, uma Virgem, há pouco desposada com um varão igualmente virgem, encontrava-se imersa em subidas contemplações. De modo muito piedoso e razoável, supõe-se que Maria, com base no Antigo Testamento, procurava meditar e imaginar como seria o Messias, de cuja mãe desejava ser a mais dedicada das  servas.

Pode-se conjecturar que, ao completar Ela no seu espírito a composição da figura do Salvador, apareceu-Lhe o Anjo dirigindo-Lhe as célebres palavras: “Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és Tu entre as mulheres”.

E Maria se perturbou, perguntando-se o que significava aquela saudação. Um Anjo tão eminente, tão extraordinário, aparecer a Ela, tão pequena! (a seus próprios olhos), e   chamá-La “cheia de graça”? Ela estava, então, repleta dos dons divinos? “Bendita sois Vós entre as mulheres”, quer dizer que, em meio a todas as filhas de Deus que houve, há e haverá até o fim dos tempos, Ela seria a bendita por excelência? Existiam tantas mulheres santas no Antigo Testamento, e quantas outras ainda viriam pela história afora, e justamente Ela era a escolhida? Na sua humildade, Maria ficou perplexa: “Como é isto? É um Anjo que está falando, mas não compreendo como suas palavras se podem aplicar a mim”.

O celeste mensageiro, por sua vez, responde de forma curiosa, pois assim começa: “Não temas, Maria”. O que indica que Ela manifestara um certo temor. Mas, concebida sem  pecado original, sem ter sombra da menor imperfeição, como poderia Nossa Senhora ter medo de São Gabriel e do que este Lhe dizia?

Na verdade, na presença de um Anjo, e sobretudo na de um Arcanjo, a criatura humana está colocada diante de um ser de tal densidade que este lhe causa não pequeno susto. Anjos houve que, aparecendo a homens, foram por estes tomados como o próprio Deus. E Nossa Senhora, na sua sensibilidade imaculada e perfeita, sentiu essa presença angélica de forma impressionante.

Além disso, recebendo aquela saudação inusitada, prenúncio dos altíssimos planos do Senhor para com Ela, pode-se bem conceber que em sua humildade tenha temido não   dar cabo da extraordinária missão que Lhe seria confiada.

Perplexidade e receio que só aumentaram, quando São Gabriel, a princípio tranquilizando-A, prosseguiu no seu anúncio: “Não temas, Maria, porque achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás em teu seio, e darás à luz um Filho…”, etc.

Ela havia feito voto de virgindade perpétua e, segundo a tradição católica, entendera- se com São José para que ambos permanecessem fiéis aos seus propósitos de castidade  perfeita até o fim da vida. Entretanto, chega-Lhe agora da parte de Deus um aviso que contraria de frente seus mais entranhados anseios. Nova indagação: “Como se fará  isso?”

O Anjo Lhe explica ser a vontade de Deus que d’Ela nasça o Messias, concebido pela ação do próprio Espírito Santo no seu claustro imaculado. Tudo se esclarece. A serenidade e a paz reinam no coração da Santíssima Virgem, que pronuncia então esta frase admirável: “Ecce ancilla Domini; fiat mihi secundum verbum tuum” — “Eis a Escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra!”

Quer dizer, esse anúncio era uma palavra vinda de Deus, da qual Ela não podia duvidar. Assim sendo, estava inteiramente à disposição. E desse diálogo, cuja beleza e simplicidade nos deixam abismados, resultou a Encarnação do Verbo!

Mãe de Deus, Esposa do Espírito Santo

Com efeito, a maior parte dos intérpretes afirma que, às palavras “Eis aqui a Escrava do Senhor…”, nesse preciso momento, pela ação do Espírito Santo, Jesus foi concebido no seio puríssimo de Maria.

Quem pode imaginar a fisionomia esplendorosa d’Ela, nessa hora em que a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade se tornou seu Esposo, e Ela engendrou o Menino Jesus?!

A adoração que teve pelo Divino Filho, logo no primeiro instante em que, de seu sangue e carne virginais, Ele começou a ser formado? Maravilha tanto mais inimaginável  quanto Jesus, Homem-Deus perfeitíssimo, assim que passou a viver encarnado em Maria, conheceu-A e amou com uma insondável dileção. E os dois começaram a se querer num mútuo amor que durará por toda a eternidade.

Oh assombroso convívio de almas! Por outro lado, devemos considerar o relacionamento d’Ela com o Espírito Santo, seu Divino Esposo. Em geral, no ato dos desponsórios,  costuma o marido oferecer à sua consorte um presente tão rico e magnífico quanto esteja ao alcance de suas posses. Pensemos então no valor das prendas com que o Todo-Poderoso terá adornado a alma de sua fidelíssima Esposa! Que acúmulo de graças e de esplendores! Mais ainda. A partir do Mistério da Encarnação, Nossa Senhora passou a receber d’Ele orientações, diretrizes, atos de amor e consolações de uma sublimidade indizível, que tinham nexo com as relações entre Ela e Deus Pai, entre Ela e seu  adorável Filho. Assim se estabeleceu um convívio altíssimo, em que Maria era, a um título único e muito especial, a Filha do Pai Eterno, a Mãe do Verbo Encarnado e a    Esposa do Divino Espírito Santo.

Virgindade, humildade e grandeza

Analisado esse comércio de almas entre Nossa Senhora e a Santíssima Trindade, voltemos nossos olhos para as virtudes e predicados marianos que transparecem de modo  singular na Anunciação.

Em primeiro lugar, a pureza. Ela é a Virgem das virgens, e o foi antes, durante e depois do parto, não perdendo sua integridade um só instante. E todo o procedimento d’Ela  durante o fato da Encarnação revelou-se perfeitamente virginal.

De outro lado, consideremos a humildade de Nossa Senhora; como Ela se fez pequena em toda a medida, ao se ver abençoada pelo Altíssimo de uma forma tão extraordinária. Era Ela quem Deus havia destinado, desde todo o sempre, para ser sua Mãe, porque A julgou digna de semelhante missão. Ele preparou a alma e o corpo  d’Ela, para que em tudo fosse inteiramente proporcionada — tanto quanto o pode ser uma criatura humana — à honra da maternidade divina. Porém, Ela que era digna por  excelência, não fazia de si uma alta ideia, nem se deixava levar por conceitos enfatuados de sua própria pessoa. Não! Pelo contrário, ficou perturbada, pois julgava aqueles elogios feitos pelo Anjo inteiramente descabidos para Ela. Mas, bastou que São Gabriel Lhe convencesse de que tal anúncio vinha de Deus, para Nossa Senhora se submeter.

Assim, da humildade e da pureza conjugadas em Maria Santíssima, resultou sua aceitação dos desígnios do Pai Eterno a respeito de seu Divino Filho.

Terceiro predicado a se ressaltar: no momento em que concebeu o Verbo Encarnado, Ela inteira foi elevada a uma condição superior a todos os Anjos e a todos os Santos  reunidos. Ou seja, se somássemos toda a santidade que houve, há e haverá em todos os Anjos e Santos, desde o começo até o fim do mundo, e comparássemos esse resultado  com a perfeição de Nossa Senhora, Ela se mostraria incomparavelmente mais santa do que toda essa montanha de virtude que Deus foi suscitando na Igreja ao longo dos  séculos!

O que significa não podermos ter noção de qual foi e é a grandeza espiritual da Santíssima Virgem. Se Moisés, ao suplicar a Deus a graça de poder vê-Lo, ouviu esta resposta:  “Tu não me podes ver, porque, se me vires, morrerás”, somos levados a cogitar no que nos aconteceria, se nos fosse dada a suprema felicidade de contemplar nesta vida a face  de Nossa Senhora, com todo o seu esplendor e formosura. Quem sabe, não morrer íamos também…

Na Paixão de Jesus, outro “fiat mihi” Agora, a esse momento de submissão e grandeza de Maria, no início da existência terrena de Jesus, corresponde outro ato de suma  humildade d’Ela — não menos grandioso — quando seu Divino Filho estava prestes a expirar na Cruz. Ele viera ao mundo a fim de resgatar as criaturas humanas do pecado, obter- lhes o perdão do Pai, e abrir novamente as portas do Céu. Essa augusta missão do Filho de Deus estava presente no fundo de quadro das meditações de Nossa  Senhora, e Ela provavelmente compreendeu que a Anunciação do Anjo comportava tudo isto: as promessas, o futuro, a glória, mas também o preço da glória: a dor!

Assim, chegado o tempo da Paixão, Deus quis o consentimento da Santíssima Virgem para que o Filho d’Ela fosse imolado, e Ela mesma O oferecesse como vítima expiatória por nossas culpas. Se outros fossem os desejos de Nossa Senhora, Jesus não sofreria a morte, Deus o libertaria das mãos de seus inimigos, e sua vida teria um rumo diverso.

Contudo, a humanidade não seria resgatada. Por isso Nossa Senhora consentiu no holocausto do Divino Redentor. Ela O contemplava estertorando na Cruz, Ela o ouvia exalar esse brado lancinante: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”, e aceitava que tudo isso acontecesse, para o gênero humano ser redimido e as almas poderem entrar na bem-aventurança eterna.

Como era desígnio de Deus que Ela quisesse, Ela quis! E foi este o seu outro “ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum”, de extrema e verdadeira beleza.

Imitemos Nossa Senhora da Anunciação

Para encerrar, recolhamos um fruto concreto dessas reflexões. Encarnando-se no seio de Maria Santíssima, no momento da Anunciação, Jesus se deu a Ela com um tal amanhecer de alma, com um espírito tão cheio de louçania, que não se tem palavras para descrever a felicidade que nesse dia inundou a pessoa de Nossa Senhora.

As promessas eram superlativas! Nada menos que o resgate do gênero humano. Entretanto, o próprio fato da Redenção, com os sacrifícios indizíveis que comportaria para  Mãe e Filho, indica bem como caminham as promessas de Deus: passam pelas esperanças mais alegres e pelos desmentidos aparentes mais terríveis. E a alma tem de ir se  habituando às promessas, às alegrias e aos pretensos desmentidos, como o fez Nossa Senhora. Ela disse “sim” a tudo, e dessa inteira submissão Lhe adveio toda a sua gloriosa  dignidade.

Pois a verdadeira glória consiste, antes de qualquer coisa, em aceitar e fazer sempre a vontade de Deus.

Eis a conseqüência que para nós devemos tirar: nos momentos de alegria e, sobretudo, nos de dor e provação, saibamos imitar Nossa Senhora, dizendo “sim” aos desígnios de  Deus a nosso respeito.

À maneira de uma gota de orvalho em que se reflete o sol, saibamos espelhar em nós as virtudes de Nossa Senhora da Anunciação, isto é, sejamos humildes, pequenos, mas  fortes, puros e confiantes. Que do entusiasmo de nossa pureza, de nossa força e de nossa confiança partam contínuos atos de amor e glorificação a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Maria e à Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

25 de março – Maria Santíssima: divina escultora de seu próprio Filho

Maria Santíssima: divina escultora de seu próprio Filho

As faces revelam a alma, mas em certa medida a velam também. Ora, se é tão agradável um homem discernir a alma de outro e ambos se entenderem, não pode haver nada de mais deleitável do que conhecer um espírito angélico que se comunica com toda a sua pureza, majestade e força, como São Gabriel. Que dizer então do contato de alma a alma entre Nossa Senhora e seu Divino Filho, no claustro d’Ela? “Hic taceat omnis lingua”…

Há um fato natural de observação corrente, sobre o qual a atenção dos homens materialistas de nossos dias se torna cada vez menos aberta, que é o seguinte:

Jogo de fisionomia, timbre de voz, olhar

Uma pessoa pode ter uma presença, um timbre de voz, um jogo de fisionomia muito agradáveis, dizer coisas muito interessantes, expressivas. Esses são dons que a Providência pode dar a alguém, e dos quais ele pode servir-se tanto para fazer um grande bem quanto para realizar um grande mal.

Entretanto, há um outro dom mais interessante e que não se confunde propriamente com esses. Uma pessoa pode ter um timbre de voz muito agradável, mas conversando-se com ela não se sente sua alma. O timbre de voz não é necessariamente, mas pode ser uma espécie de ressonância do que seja a alma de alguém. Isso especialmente se nota nos cantores. Há cantores que têm o timbre de voz muito agradável. Cantam com muita correção de acordo com a partitura, mas não se sente a sua alma no que ele canta e o resultado é que o público, do ponto de vista meramente sonoro, tem uma impressão agradável, mas não vibra com o cantor. Ele não comunicou sua alma.

A mesma coisa pode ocorrer com um orador. Ele pode ter um timbre de voz esplêndido, mas se é desses homens cuja alma mora num fundo pantanoso e longínquo da sua personalidade, ouvindo-o tem-se a impressão de estar escutando um recado do qual ele mesmo está desinteressado, e não há contato, comércio humano verdadeiro.

Não há coisa que fale mais sobre a alma de um homem do que o olhar. Alguém pode ter lindos olhos, mas isto não significa que possua um lindo olhar. Uma pessoa pode ter olhos feios, mas um lindo olhar; trata-se de uma forma de olhar através da qual uma beleza de alma se comunica. E uma outra pessoa pode ter olhos muito bonitos, mas a alma está longe daquilo. Então, do ponto de vista da pura luminosidade do olhar, do desenho, da cor, aquilo pode ser bonito, mas não tem a verdadeira beleza de uma comunicação de alma.

Comunicação de alma, um dos mais preciosos dons que uma pessoa possa ter

Há, pelo contrário, pessoas que não possuem nenhum dos dons enumerados acima, mas as suas almas de algum modo se comunicam. E o que elas dizem tem verve, graça, interesse; o furor delas faz estremecer, sua simpatia cativa.

A comunicação de alma é um dos dons mais preciosos que uma pessoa possa ter. Uma das coisas de que se deve lamentar é ser desse tipo de gente inteiramente glacial e sem expressão. Assim, o maior atrativo no contato com uma pessoa é o de ver a sua alma, ter um contato de alma a alma onde sintamos que exprimimos o que temos no fundo e fomos entendidos.

Por essa razão o contato entre os puros espíritos deve ser muito mais interessante do que de homem a homem, porque as nossas faces revelam a alma, é verdade, mas em certa medida velam também. E há insipidezes e coisas desse gênero que não só nos impedem de exprimir o que queremos, mas às vezes exprimem o contrário do que desejaríamos.

Saint-Simon(1), por exemplo, fala de um personagem – não me lembro quem – dotado de uma fisionomia comum, até agradável de se olhar, mas que possuía um cacoete por onde, de vez em quando, formava uma cara horrorosa e depois voltava ao natural. Segundo conta Saint-Simon, esse homem não era inteiramente autêntico nem quando estava com o semblante normal, nem com a face horrorosa, mas ele era um terceiro em relação aos tiques nervosos de seu rosto que, em sua normalidade, era exageradamente plácido e, sob a ação do cacoete, excessivamente dramático e agressivo, sendo que o personagem se mantinha por detrás, provavelmente como um terceiro em relação ao que se passava.

Então, o rosto vela e revela a personalidade. Por causa disso só conhecemos a alma do outro de esguelha, não diretamente. O interessante seria a comunicação entre almas que se conhecessem sem a necessidade dos sentidos do corpo, e entrassem em harmonia, em mútua compreensão, em simpatia. Se um pouco que percebamos da alma de alguém por meio dos sentidos já nos parece tão interessante, imaginem entre puros espíritos como seria!

Ora, se é tão agradável um homem discernir assim a alma de outro e ambos se entenderem, não pode haver nada de mais deleitável do que conhecer um espírito angélico que se comunica com toda a sua pureza, limpidez, grandeza, majestade e força. Um Anjo é uma obra-prima de Deus, e se a pessoa está em condições de apreciar esse espírito celeste, ela tem um gáudio santificante e intenso ao contemplá-lo. Toda obra-prima apresenta-se objetivamente, mas a aprecia quem é capaz, ou seja, ela entrega mais de si mesma a quem tem maior capacidade de analisá-la.

Saudação cheia de charme, nobreza, elegância, distinção e majestade

Isto posto, podemos imaginar o mais perfeito dos quadros que seja concebível, analisado pela mais perfeita das criaturas que conhecesse a natureza humana como todos os homens somados não conheceram, e nem conhecerão até o fim do mundo. Com capacidade, portanto, de apreciar um espírito que se comunique de um modo como ninguém faz.

Imaginem que diante dessa criatura, Nossa Senhora, se ponha não o quadro de um Anjo, mas o Arcanjo São Gabriel. Que encontro! O Arcanjo São Gabriel, aquele que leva as mais altas, mais esplêndidas, as melhores mensagens de Deus, que tem, portanto, o dom de comunicar de modo esplêndido o que o Criador quer dizer, de maneira que cada palavra dita por ele é como uma ressonância da palavra divina. E ele mesmo vela e revela o próprio Deus de Quem é mensageiro.

Nossa Senhora está na sua casa, em Nazaré, e de repente Lhe aparece esse Arcanjo, um dos sete mais altos espíritos que estão sempre na presença de Deus, que é mandado a Ela e faz-Lhe uma profunda saudação. Que saudação cheia de charme, nobreza, elegância, distinção, ao mesmo tempo de uma majestade inimaginável porque ele é puro espírito e Ela não é senão uma criatura humana! De um respeito indizível, porque Ela não sabe, mas ele tem conhecimento de que Ela é sua Rainha. Então ele presta a Ela uma homenagem, a mais bela que até então se tinha prestado na Terra, e creio eu que nenhuma outra será dispensada igual, a não ser a que Nosso Senhor Jesus Cristo terá prestado à sua Mãe.

Ela recebe aquela homenagem, mas ao mesmo tempo Se entusiasma porque entende o Anjo até o fundo e percebe perfeitamente Deus através dele. E se entre nós um contato de alma a alma − com nossas pobres almas encardidas, envelhecidas, de nossa natureza concebida no pecado original − nos dá tanto gosto, o que foi o contato de alma a alma de Nossa Senhora com esse Arcanjo?! O gáudio do Anjo contemplando Aquela que por natureza lhe era inferior – porque uma simples criatura humana –, mas dotada de um espírito ligado à carne incomparavelmente mais elevado que o dele.

Exprimindo-se de modo humano, poder-se-ia dizer que ele transpôs todos os espaços que vão de Deus até uma cidadezinha da Galileia, curioso de conhecer de perto a Nossa Senhora.

É, pois, nessa atmosfera que devemos considerar a narração do Evangelho da Anunciação do Anjo a Maria Santíssima, e que por definição é a festa dos escravos de Maria.

Nossa Senhora resplandecia diante de São Gabriel

No sexto mês da gestação de São João Batista em Santa Isabel, foi enviado por Deus o Anjo São Gabriel a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré (cf. Lc 1, 26).

“A uma cidade da Galileia, chamada Nazaré” é um modo de se falar de uma cidade desconhecida. Não posso dizer, por exemplo, “a uma cidade do Estado de São Paulo, chamada Campinas”, pois qualquer um sabe que Campinas fica nesse Estado. Mas uma cidade chamada Nazaré é um lugarzinho…

… a uma Virgem desposada com um varão que se chamava José.

Um individuozinho dentro da cidadezinha. Entretanto, fulgura como um raio sem estrondo o que vem logo depois.

…da Casa de Davi.

A mais alta dinastia que houve.

E o nome da Virgem era Maria (Lc 1, 27).

É como um sol que aparece: uma Virgem também desconhecida, mas o nome d’Ela era Maria. Quantas Marias houve depois na História e haverá até o fim do mundo! Ela tem uma glória que não se compara com nada. “O nome da Virgem era Maria”. Não é verdade que esta simplicidade da narração tem qualquer coisa de grandioso, por onde julgamos entrever o Espírito Santo? Eu falava exatamente desse contato de alma. Nós como que sentimos o Espírito Santo quando ouvimos essa narração tão simples de coisas propriamente esplendorosas.

E entrando o Anjo onde Ela estava…

É uma coisa, portanto, fantástica! O Anjo que nesta cidade escolhe o pátio da casa de Nossa Senhora onde Ela estava, e entra ali. Achamos tão grande coisa a entrada de um rei. Até a Revolução Francesa, os reis faziam entradas nas cidades. Sobretudo a primeira depois da coroação, as entradas eram solenes com participação de milhares de pessoas em grande gala. Então, o Anjo disse-Lhe:

Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo (Lc 1, 28).

É preciso considerar cada palavra que ele disse, pois falava como faz um Anjo. Quando pronunciava a palavra “Senhor”, todo o amor ao Criador que ele tinha queimava, resplandecia nele. Ao dizer “ave”, percebe-se toda a reverência dele para com Ela! A alma enorme, grande, colossal, inimaginável, terníssima, intimíssima, majestosíssima de Nossa Senhora resplandecia diante dele. E Maria Santíssima se sentia como que assumida pelo Anjo quando ele se dirigia a Ela.

Todas as graças criadas para os homens estão n’Ela

…cheia de graça…

É o maior elogio que se pode fazer de alguém. Em Maria Santíssima só havia graça, não existia outra coisa. Em latim – ele não falou nessa língua –, “gratia plena”, de graça cheia, fica muito mais belo do que cheia de graça. Então, a palavra graça, nos como que lábios de um Anjo, tem uma grande beleza. Todo o esplendor da graça de Deus floresce quando ele diz “graça”; e plena dá uma tal ideia de plenitude que até o leito do mar é vazio em comparação com aquela plenitude. Esse “cheia de graça” propriamente não quer dizer, a meu ver, somente que Ela é cheia de graça, mas que n’Ela não há senão graça. Mais ainda, que todas as graças criadas para os homens estão n’Ela e daí transbordam. Isso é de uma riqueza, uma majestade incomparável.

E cada palavra do Anjo é à maneira de uma música única, como nunca ninguém tocou nem tocará. E a obra-prima dele, em todos os séculos, consistia em dizer isto. Era o mensageiro por excelência que comunicava a supermensagem. Eu acredito que, enquanto ele fazia isso, o local onde Nossa Senhora estava foi se enchendo de Anjos, todos cantavam e jubilavam sem fim, sem que ninguém ouvisse, mas Ela ouvia.

E tendo ouvido essas coisas, Ela turbou-se com as palavras do Anjo e discorria, pensativa, indagando que saudação seria essa (cf. Lc 1, 29).

A narração continua a ter uma simplicidade evangélica fantástica. Não sei se esse Anjo falou a Ela apenas comunicando-se como uma alma, ou se tomou um corpo – como fez o Arcanjo Rafael com Tobias – para falar-Lhe de um modo sensível.

A Santíssima Virgem concebeu o Homem-Deus e começou a adorá-Lo

Nossa Senhora não se espantou com o fato de ter um contato com um ser tão extraordinário. Ela é tão ordenada que, dentro dessa cena cheia de impressões, foi ao ponto. Cogitava o que queria dizer essa saudação. Ela prestava atenção no sentido das palavras para entender o que Deus mandava dizer-Lhe. Ou seja, Ela raciocinava, não perdeu a distância psíquica(2), não se tomou de frenesi; certamente sentiu até o fundo a cena, mas sobretudo cogitava: “O que quererá dizer isto?” E como Ela não entendia, ficou perplexa, o que se nota pelas palavras do Anjo que vêm logo depois:

Não temas, Maria, pois achaste graças diante de Deus. Eis que conceberás no teu ventre e darás à luz um Filho, e por-Lhe-ás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo (Lc 1, 30-32).

Podemos imaginar a majestade com que ele proclamou isto. Primeiro quando pronunciou o nome de Jesus, e depois quando disse: “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo”. Isso dito por um de nós não é nada, mas afirmado por um Anjo… como aparece a grandeza! O “Filho do Altíssimo”! Superior a qualquer cogitação.

E o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi (Lc 1, 32).

Quer dizer, era de dinastia deposta, decaída, São José um carpinteiro; entretanto, o Filho d’Ela vai ter o trono de Davi. Ela sabia bem que era uma coisa simbólica, que esse trono era um trono da realeza espiritual de Nosso Senhor.

E reinará eternamente na Casa de Jacó e seu reino não terá fim.

Maria perguntou ao Anjo, como se fará isto, pois eu não conheço varão? (Lc 1, 33-34).

Nota-se como o espírito d’Ela está no âmago do assunto, e todas as impressões colaterais não dizem nada diante da grande pergunta. Não é uma objeção, mas uma pergunta: “Como será isso, se Eu tenho o voto de virgindade?”

E respondendo o Anjo disse-Lhe:

O Espírito Santo descerá sobre Ti e a virtude do Altíssimo Te cobrirá com a sua sombra. E por isso mesmo o Santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus. Eis que também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice, e este é o sexto mês daquela que é tida como estéril (Lc 1, 35-36).

Então, Maria afirmou:

Eis aqui a escrava do Senhor faça-se em Mim segundo a tua palavra. E o Anjo afastou-se d’Ela (Lc 1, 38).

Foi precisamente no momento em que Maria Santíssima declarou “eis aqui a escrava do Senhor” que o Espírito Santo baixou sobre Ela. Ela concebeu e o Homem-Deus começou a viver n’Ela, lúcido inteiramente desde o primeiro instante do seu Ser, e Ela começou a adorá-Lo.

Convívio da alma de Maria Santíssima com a Alma de seu Filho

O sentido desses comentários é fazer-nos tomar o gosto pela cena para melhor a compreendermos e adorarmos a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, praticarmos o culto de hiperdulia a Nossa Senhora. Assim, para a sentirmos melhor, consideramos antes uma série de sensações tão diferentes e, ao mesmo tempo, um pouquinho parecidas com esta, do contato de alma a alma, para nos servir de termo de comparação do contato de Maria Santíssima com o Anjo.

Depois disso começa outro contato de alma a alma. É de Nossa Senhora com Nosso Senhor, no claustro d’Ela. “Hic taceat omnis lingua”(3). Fazemos como o Anjo São Gabriel porque fica no mistério. É preciso apenas dizer o seguinte: como Nossa Senhora era concebida sem pecado original, nenhuma operação no seu corpo se fazia sem que Ela soubesse e quisesse.

De muitas operações que nosso corpo faz não temos nenhuma ideia. Por exemplo, o coração de cada um de nós bem ou mal está bombeando sangue pelo corpo, senão morreríamos. O coração vai fazendo isso e, sobretudo, parará de fazer sem que queiramos.

A Santíssima Virgem conhecia, portanto, tudo que se passava n’Ela e no fenômeno misteriosíssimo, complexíssimo da geração; cada vez que o seu corpo fornecia ao Corpo Sacratíssimo de Nosso Senhor Jesus Cristo um certo elemento para se constituir, era porque Ela queria. Por assim dizer, Ela foi a arquiteta do seu Filho.

E a concessão de cada elemento para o Corpo d’Ele, além do lado propriamente fisiológico, tinha um aspecto simbólico. Podemos imaginar, por exemplo, Ela dando o contributo materno necessário para formar os divinos olhos d’Ele. Olhos perto dos quais nenhum olhar é olhar e nenhum olho é olho, porque olhos são aqueles! Olhar! O olhar que converteu São Pedro…, que no meio da sangueira no alto da Cruz olhou pela última vez para Nossa Senhora.

Isto é olhar! O resto… Pobres de nós, que subúrbios, que bairros miseráveis, que charneca, que tristeza!

Cada vez que Maria Santíssima contribuía, então, para a formação dos olhos d’Ele, Ela queria aqueles olhos, com aquele olhar, e previa tudo o que aquele olhar faria de bem até a consumação dos séculos, inclusive quando Ele vier gladífero no fim do mundo para punir.

Aí então começa um convívio de alma d’Ela com a Alma humana d’Ele hipostaticamente unida com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, um convívio de que ninguém tem ideia, e a respeito do qual se falará talvez noutro dia e de outro modo.

Fica-nos apenas a ideia do Anjo que vai embora, e da Encarnação que se opera. E Nossa Senhora, a divina escultora de seu próprio Filho. Temos, assim, uma noção da grandeza da festa que a Igreja celebra nesse dia.       v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/3/1979)
Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

1) Duque de Saint-Simon (*1675 – †1755). Escritor francês que, em suas Memórias, descreveu com penetração, finura e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís XIV.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Do latim: Aqui se cale toda língua.

25 de março – O ARCANJO DA ANUNCIAÇÃO

O ARCANJO DA ANUNCIAÇÃO

São Gabriel Arcanjo foi o embaixador escolhido para a Anunciação por causa de virtudes inerentes à sua essência. Eis o pensamento desenvolvido por Dr. Plinio nos presentes comentários.

No mês de março a Igreja celebra a Anunciação de Nossa Senhora e Encarnação do Verbo, um dos maiores mistérios da fé católica. Muito se tem falado de belos e profundos  aspectos desta festa, como, por exemplo, o maravilhoso significado da união da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade com a natureza humana, em ordem à Redenção do  mundo, ou a grandeza e a humildade de Maria, aceitando a sublime vocação de ser a Mãe do Criador. Menos ressaltada é a atitude do Arcanjo São Gabriel neste  acontecimento de primordial importância para a humanidade.

Creio, portanto, não ser sem interesse voltarmos um pouco nossa atenção para a figura e o papel do angélico portador da mensagem de Deus para a modesta Virgem de  Nazaré. Pelo teor da missão se percebe a magnitude do príncipe celeste Podemos ter uma certa ideia de quem é São Gabriel se considerarmos o valor da missão de que foi  incumbido pelo Altíssimo.

Com efeito, sendo os Anjos constituídos de uma natureza muito mais elevada que a nossa, as tarefas a que são prepostos têm relação direta com suas características e perfeições próprias, motivo pelo qual as funções angélicas não são assumidas por eles tão arbitrariamente como se faz entre os homens. Quer dizer, no nosso caso, ninguém    será, por exemplo, datilógrafo ou embaixador por natureza: na hora do aperto, um embaixador se avia como datilógrafo, e um datilógrafo, por relevantes interesses pessoais, acaba sendo bom embaixador.

No caso dos Anjos, pelo contrário, cada um está destinado a desempenhar uma função específica, de acordo com sua própria essência. Não se tratará, necessariamente, de  tarefas tão extraordinárias como a da Anunciação, mas das ordinárias dos Anjos no Céu em face de Deus.

Na aplicação desse princípio, houve uma decisiva razão de conveniência para se conferir a missão de anunciar a Encarnação do Verbo a São Gabriel: era ele o Arcanjo que, por sua essência, estava à altura dessa dignidade.

E, portanto, medindo o valor da incumbência dada a ele, podemos deduzir algo de sua glória, virtudes e esplendor. Que dizer dessa missão? Antes de tudo, é elevadíssima. É  a missão-chave na História da humanidade. Esse Anjo foi enviado a Nossa Senhora para revelar-Lhe a chegada da plenitude dos tempos, o fim do reino do demônio, o  esmagamento do domínio do mal, a remissão do gênero humano, a abertura das portas do Céu. O Anjo incumbido de pedir a Nossa Senhora seu consentimento para isso, e  de anunciar o mistério da Maternidade Virginal, esse Anjo portou a mais elevada mensagem que se possa ter transmitido em toda a História.

Segundo o ensinamento dos teólogos, os astros são movidos por Anjos. Procuremos imaginar a grandeza de um Anjo que mova, por exemplo, toda a Via Láctea. Que valor,  que força, brilho e categoria de espírito deve ter um Anjo desses! Agora, o que é mover uma poeira de estrelas como a Via Láctea, em comparação com o tocar a alma de  Nossa Senhora, com o agir sobre o coração imaculado d’Ela, transmitindo-Lhe essa mensagem única e obtendo sua adesão?

Não há comparação possível. Daí se compreende a excelsitude da missão e do missionário. Por outro lado, gradua-se a importância do mensageiro não só pela natureza da  mensagem, mas também pela importância respectiva de quem a mandou e de quem a recebe. Um rei que tem uma comunicação muito importante para alguém de categoria  superior, a envia por meio de um fidalgo da sua corte. Mas, se a mensagem for de menor alcance e o destinatário, uma pessoa comum, ele a mandará através de um  empregado qualquer.

Ora, a Santíssima Virgem era a Rainha do Céu e da Terra, a obra prima de Deus, destinada a ser Mãe do Verbo. Logo, somente um Anjo da mais alta dignidade poderia ser  escolhido para levar a Ela as palavras divinas. Mais uma vez, vemos por aí a estupenda grandeza do celeste mensageiro.

Senso hierárquico e exaltação da virgindade A partir desse sublime acontecimento, poderíamos deduzir também duas perfeições do espírito de São Gabriel, a meu ver muito salientes nos quadros de Fra Angélico que retrataram a cena da Anunciação.

Em primeiro lugar, um notável senso de hierarquia. Quando São Gabriel se dirigiu a Nossa Senhora, Ela ainda não era a Mãe de Deus. Passou a sê-lo no momento em que aceitou a comunicação e, em conseqüência, a milagrosa e fecunda intervenção do Espírito Santo. Como, por natureza, os Anjos são superiores aos homens, até o instante em que a Virgem pronunciou o “fiat”, São Gabriel estava se dirigindo a alguém que lhe era inferior, embora A estivesse convidando para ser sua Rainha.

De outro lado, a mensagem trazida por ele significava uma tal predileção de Deus por Nossa Senhora que A situava acima do paralelo com qualquer Anjo, por mais elevada  que fosse a categoria deste, incluindo São Gabriel. Donde o singular senso de hierarquia que o vemos manifestar, e que Fra Angélico expressa de modo inexcedível nos seus  afrescos: é o Anjo imbuído de um respeito profundo e de uma entranhada veneração por Nossa Senhora,  como quem toma a superioridade de sua própria natureza e a põe abaixo, por causa dessa grandeza da missão de Maria. Por sua vez, Nossa Senhora responde ao Anjo também inclinada e com toda a deferência, porque Ela recebia a  mensagem de Deus e porque, como criatura humana, era inferior ao Anjo.

O episódio tem o perfume de um mundo de respeito mútuo, de superioridades recíprocas, nas quais Nossa Senhora acaba sendo incomparavelmente maior do que o Anjo,  indicando bem o senso de hierarquia incluído nesse ato.

E, cumpre frisá-lo, senso de hierarquia e de disciplina oposto ao non serviam (não servirei) de Satanás. Muitos teólogos afirmam que o demônio se revoltou contra Deus  porque não quis reconhecer o Verbo encarnado como objeto de sua adoração, e menos ainda aceitar uma mera criatura humana como sua rainha. Parece ter sido este o  ponto que exacerbou ao extremo o seu orgulho e polarizou de forma irrefreável o movimento de insubordinação que grassava no seu espírito em relação à vontade divina.

São Gabriel fez o contrário. Cheio de adoração e amor a Deus, foi portador dessa mensagem que colocava, sob certo ponto de vista, o reino angélico abaixo do reino humano.  Colocado diante de sua nova Rainha, tão inferior a ele por natureza, dobrou- se como o mais respeitoso e venerador dos súditos e cortesões. A esse alto senso de hierarquia  podemos acrescentar outro aspecto: uma como que castidade celestial. Ao se dirigir à Virgem das Virgens para anunciar que Ela será Mãe sem deixar de ser virgem, São  Gabriel faz uma esplendorosa exaltação da virgindade, além de revelar uma espécie de obra-prima de pureza realizada por Deus: diante desse fato tão imenso da  Encarnação, Nosso Senhor resolveu violar todas as regras da natureza para salvar a virgindade perfeita de Nossa Senhora, e conferiu uma nova glória ao gênero humano,  fazendo d’Ela a Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe de um Filho gerado milagrosamente, sem concurso de homem.

São Gabriel estava, assim, incumbido de trazer à Terra a mensagem que é uma das maiores glorificações da castidade já conhecidas na História. Não será difícil  compreender, portanto,  a ligação toda especial com a virtude da pureza que esse Arcanjo deveria ter.

Senso de hierarquia, de disciplina, humildade, vinculação com a pureza e a virgindade, virtudes do embaixador divino, contrárias ao orgulho e à “sensualidade” do demônio, inimigo irreconciliável de Deus e de Nossa Senhora. A velha serpente foi pisada e esmagada de modo avassalador nesse sublime mistério da fé cristã. E se um Fra Angélico  acrescentasse na sua  pintura o detalhe da cabeça do demônio sob os pés de São Gabriel, retrataria um fato profundamente real.

Pedir a humildade, a pureza e o amor a Nossa Senhora Dessas breves considerações podemos inferir que motivos não nos faltam para pedirmos a São Gabriel que interceda por nós junto a Nossa Senhora e ao Sagrado Coração de Jesus, a fim de alcançarmos essas duas graças tão indispensáveis para nossa perfeição espiritual: primeiro, a de  termos genuíno senso de hierarquia, humildade sincera, intenso amor à superioridade (ainda que aqueles que sejam mais do que nós em certos aspectos, sejam menores por vários outros); em segundo lugar, a graça de possuirmos o gosto ilibado da pureza, da castidade, enquanto princípio, valor moral, e não apenas como predicado físico.

Humildade e pureza que, sem dúvida, são dois dos traços distintivos da santidade específica de São Gabriel. Sabe-se que os Santos e os Anjos são chamados a favorecer os católicos, obtendo-lhes o fortalecimento nas virtudes peculiares com que eles mais glorificam a Deus. São Francisco nos alcança o espírito de pobreza; Santo Inácio, a lógica soberana, inflexível e incomparável dos Exercícios Espirituais; São Bento, o gosto da liturgia e da contemplação.

E assim por diante, o que os Anjos e os Santos mais têm, mais eles dão.

Se São Gabriel espelha as mencionadas virtudes em tão alto grau, ele foi posto por Deus para obtê-las em favor dos mais necessitados. Não deixemos, portanto, de recorrer a  esse extraordinário intercessor que nos foi dado pela Providência, rogando-lhe conceder-nos a mesma veneração, o mesmo entranhado respeito e amor que ele manifestou por sua Rainha e Senhora, Maria Santíssima, Mãe do Verbo Encarnado.

25 de março – Caro Christi, caro Mariæ; sanguis Christi, sanguis Mariæ

Caro Christi, caro Mariæ; sanguis Christi, sanguis Mariæ

Desde o primeiro momento de sua concepção, Jesus começou a adorar o Pai Eterno, o Divino Espírito Santo e a alimentar-Se dos elementos que o santíssimo e  virginalíssimo corpo de sua Mãe Lhe proporcionava. Nossa Senhora tinha consciência inteira do que se passava em seu interior, e sentia a sublimação de seu sangue que  estava sendo transformado n’Ele.

 

Antes da Santíssima Virgem Maria saber que seria Mãe do Redentor e Esposa do Divino Espírito Santo, tudo n’Ela se orientava nesse sentido. Não que Ela aspirasse ser a  Mãe do Messias, mas a fim de que Ele viesse logo.

“Mandai o Messias, mandai o Messias…”

As orações de Nossa Senhora para a vinda do Messias devem ter acelerado muito essa chegada, pois Ela é onipotente em suas súplicas. A partir do momento em que Deus A criou, Maria Santíssima teve conhecimento da situação da humanidade e começou a rezar para vir logo o Salvador.

Com o nascimento d’Ela levantou-se, portanto, como que uma coluna de fumo odorífero de cor maravilhosa, de movimentação encantadora e ao mesmo tempo majestosa na  presença de Deus. Era a oração de Nossa Senhora que subia do Coração Imaculado d’Ela até o trono do Criador, pedindo: “Mandai o Messias, mandai o Messias…”

A Virgem Maria possuía tanta admiração e adoração pelo Messias o qual devia vir, que se acredita – a meu ver com muito fundamento – ter Ela pedido para ser escrava da  Mãe d’Ele e poder, assim, servi-La de todos os modos, como uma forma indireta de servir o próprio Salvador.

Essa oração também foi ouvida, como acontecerá com tantas  preces de Nossa Senhora, mais até do que Ela esperava. Segundo a narração do Evangelho, a Anunciação se deu sem preparação extraordinária.

A Santíssima Virgem estava muito normalmente rezando naquele claustrozinho da casa d’Ela, quando apareceu um Anjo e A saudou: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28). Com certeza, na medida em que isso se pode entender de puros espíritos, ele se inclinou profundamente diante d’Ela.

A Santíssima Virgem julgava-Se indigna

Isso dito por um Anjo! Os Anjos são seres de uma beleza, de um esplendor incomparável. Podemos calcular a impressão que isso deve causar, ainda mais para uma pessoa humílima como Nossa Senhora.

Foram surpresas sobre surpresas: Por que um Anjo vai aparecer para Ela? Por que A saúda reverentemente? Por que Lhe faz esse elogio? Depois, surpresa ainda maior: Maria Santíssima tinha pactuado com São José de ficar sempre virgem. E Ela vê que o Anjo lhe fala de um Filho ao qual deverá dar o nome de Jesus.

Ora, Nossa Senhora estava longe de imaginar que o Messias seria Filho d’Ela e, para se manter longe dessa suposição, tinha uma razão que em sua psicologia era invencível: a indignidade d’Ela. Sendo Ela  tão indigna – pensava –, estava claro que não era para Ela que viria isso. E chega a revelação de que Ela – com sua promessa de virgindade – dará à luz um Filho chamado Jesus e, com certeza, o Anjo quando pronunciou esse santíssimo nome reluziu num esplendor muito maior.

Talvez as miríades de Anjos que deveriam encher, nesse momento, o pequeno claustro da casa de Nossa Senhora também tivessem indicado, de algum modo, a festiva  presença deles, anunciando o nome de Jesus. Então Ela perguntou como isso seria possível, pois fizera o voto de permanecer sempre virgem.

O Anjo deu a  entender que isso não seria impedimento, porque para Deus não há obstáculos e, portanto, Ela não se preocupasse, pois seria assim, desde que Ela consentisse. O bonito está nisto: que Ela consentisse. E Maria Santíssima deu aquela resposta perfeita: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). Deu-se, então, a Encarnação do Verbo de Deus, e naquele momento Ela sentiu-Se Esposa do Divino Espírito Santo.

É uma situação tão colossal, tão fabulosa que ninguém imagina bem o que seja. Houve muitos santos que tiveram revelações do Espírito Santo, a quem Ele manifestou-Se de  algum modo. Isso não é nada em comparação com o fato de Se tornar Esposa do Espírito Santo!

Início do processo da Encarnação

Quer dizer, houve um determinado momento em que o Espírito Santo se manifestou a Nossa Senhora tão profundamente que gerou n’Ela um Filho. Se tudo quanto os  Santos sentiram na hora da manifestação do Divino Espírito Santo fosse somado, não daria nada em relação ao momento em que Ela, sendo uma criatura humana, passou a  ser a Esposa do Divino Espírito Santo, por toda a eternidade.

Essa situação gerou, necessariamente, tanta felicidade, tanta intimidade, tanto fogo dentro da alma d’Ela, que nós não podemos conceber, e teve como resultado o início do processo da Encarnação.  Ou seja, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Se encarnou no claustro d’Ela e, desde o primeiro momento da concepção, começou a adorar o Pai Eterno, o Divino Espírito Santo e a alimentar-Se dos elementos que o santíssimo e virginalíssimo corpo de sua Mãe Lhe proporcionava.

Nesses atos simultâneos, na medida em que Ele Se nutria, o seu Corpo ia tomando consistência e também a união da alma d’Ela com Ele ia aumentando. Nesse período da gestação, a intimidade entre Ele e Ela, seus colóquios, como se amaram, são coisas inefáveis. É algo superior a toda cogitação!

Pensarmos que tudo quanto rezamos no “Veni Creator Spiritus” deu-se com a Santíssima Virgem em grau superlativo!

“Veni, Creator Spiritus, mentes tuorum visita”. Considerem o que significa pedir que o Divino Espírito Santo visite as nossas mentes. A entrada d’Ele e sua ação em nossas  mentes, o que é uma coisa dessas?! “Imple superna gratia quæ Tu creasti pectora”: Os corações que Tu criaste, enche com a tua graça superior”.

“Qui diceris Paraclitus, donum Dei altissimi…”: Tu que és chamado o Paráclito, dom de Deus altíssimo… “Fons vivus, ignis, caritas, et spiritalis unctio”: Fonte viva da graça e  de todos os bens espirituais que a pessoa possa ter, e unção espiritual.

Essa presença do Espírito Santo nos enche de graça e de unção espiritual.

A gruta de Belém se torna mais augusta que qualquer outro palácio

Mas como essa presença é  tênue, leve, pequenina, em comparação com a de Nosso Senhor em Nossa Senhora!

Imaginem esse ato de comunhão perpétuo – no sentido de que será durante todo o período da gestação –, em que Ele está dentro d’Ela e vai Se nutrindo do sangue puríssimo d’Ela, e a carne do Homem-Deus vai cada vez mais se constituindo. Ela sabe disso, tem a consciência inteira do que se passa em seu interior e sente a sublimação de seu sangue que está sendo transformado n’Ele.

Diz-se “caro Christi, caro Mariæ; sanguis Christi, sanguis Mariæ: a carne de Cristo é a carne de Maria; o sangue de Cristo é o sangue de Maria”.

Assim, no corpo d’Ela vai se modelando o d’Ele. Aí se dão certos fenômenos, como o da hereditariedade, por onde Ele herda elementos de sua Mãe, tornando-Se parecido  com Ela, e a inter- relação entre os dois vai aumentando de intimidade, à medida que vai se definindo essa semelhança.

Imaginem, quando o processo está terminado e Nosso Senhor prestes a manifestar-Se aos homens na noite de Natal, até que ponto a intimidade, a relação mútua entre Eles  é grande!

Naturalmente, à medida que no Presépio de Belém a complementação da geração d’Ele vai se tornando perfeita, tudo anuncia em volta de Nosso Senhor que Ele está para   nascer, e a gruta vai ficar augusta com nunca nenhum palácio ficou. Os Anjos enchem aquele ambiente, há uma respeitabilidade,  mas, ao mesmo tempo, uma doçura, um amor, uma confiança inexprimíveis.

Só no Céu ter-se-á uma ideia exata do que foi a gruta de Belém naquela noite. Chega, por fim, a hora bendita entre todas as horas como Maria é bendita entre todas as  mulheres. Por um modo de fazer que só Deus sabe,  Aquela que era a Porta do Céu e sempre Virgem Se torna Mãe de Deus. Porque a maternidade se completa quando Maria  Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou. Afinal, aparece na manjedoura o Filho de Deus vivo.

Os olhares se entrecruzaram

Um artista comum representa o Menino Jesus como uma criança que ainda não tem consciência muito completa de si, batendo um pouco as perninhas, os bracinhos numa posição bonita, mas que não é diretamente racional; são mais ou menos movimentos reflexos. E Nossa Senhora, com o olhar profundamente sábio, santo, etc., observando-O   analisando-O. Mas não é essa a realidade das coisas. Como Ele, desde o seu primeiro instante de ser, refletiu e refletiu…

Ao seu lado, pouco favorecido e ignorante aquele que foi o mais inteligente dos homens: São Tomás de Aquino! Pobre, rústico e bárbaro quem foi o mais civilizado dos  homens – digamos que tenha sido São Luís! E daí  para fora, diante do Menino, o mais lúcido, mais fino, mais nobre, mais casto e mais piedoso de todos.

Ele olhou-A no momento em que Ela O viu, os olhares se entrecruzaram, mas Ele A olhou com mais lucidez do que Ela a Ele. Porque Ele era Ele. Nós devemos fazer a pergunta: Que fisionomia Jesus fez ao ver a Mãe que Deus Lhe tinha dado? Ele já A conhecia, mas com os olhos humanos observava-A com a análise amorosa,  completamente embevecida, etc….

Então podemos imaginá-La sentindo-Se assim analisada, querida, sem a mínima timidez porque Nossa Senhora era puríssima, perfeita, nunca tinha tido a menor falha, em nenhum ponto, jamais deixara de crescer e progredir em toda a medida do necessário. Enfim, Eles se  olham e Eles se reconhecem e cada um vê o outro pela primeira vez.

Que momento de afeto deve ter sido esse! Eu acho que não é possível imaginar. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1995)

25 de março – Escrava do Senhor

Escrava do Senhor

Na Anunciação, Nossa Senhora ouviu a mensagem do Anjo e procurou logo o seu significado profundo. Recebida a explicação, Ela imediatamente entendeu e deu a resposta: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.

Ela notou que era preciso um consentimento d’Ela, e disse: “Sou escrava d’Ele, faça-se o que Ele quiser. E, segundo a tua palavra, aceito!”

Isso se realizou na singeleza diáfana da narração evangélica, representada no luminoso quadro de Fra Angelico, naquelas duas arcadas de uma casinha simples, limpinha, onde Nossa Senhora está sentada e São Gabriel A saúda.

Entretanto, aquele ato de vontade teve mais firmeza, aquele ato de inteligência mais nitidez do que tudo quanto se possa encontrar no universo. Nesta força de alma nota-se a inocência de Quem, sendo Filha diletíssima do Pai Eterno, era destinada a ser a Mãe de Deus Filho e Esposa do Divino Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/5/1981)