Com o intuito de avivar a confiança de que a atmosfera sacral dos Natais de outrora deverá reflorescer sobre a Terra, Dr. Plinio narra alguns fatos de sua infância.
Após um ano de lutas, sofrimentos e dificuldades, aproxima-se o Natal. As festas do Santo Natal, bem como as da Páscoa, a meu ver, têm a característica de interromperem o tempo. E ainda que se esteja na situação mais aflitiva, o Natal ergue uma muralha, deixando de um lado as desgraças e as lágrimas, e, do outro, os sinos que anunciam as alegrias natalinas.
Não se trata de uma alegria vulgar, mas uma alegria muito mais profunda e leve, que parece ser feita de luz. Feita da luz que é o “lumen Christi”, a qual passou a brilhar sobre a Terra na noite de Natal, e que a cada ano de alguma forma volta a brilhar, trazendo com ela a verdadeira alegria e a verdadeira paz de alma até para os mais atormentados.
Imaginemos, por exemplo, o que se dava nas catacumbas. O que deveria ser uma noite nas catacumbas? Lembro-me da Catacumba de São Calixto, em Roma, que me causou profunda impressão. Seus corredores são estreitos e altos — talvez a altura sirva para assegurar certa ventilação, pois se sente que nela circula certo vento. Mas as paredes se afunilam para cima, causando a impressão de que no alto vão se encontrar; isto ao menos para mim dava sensação de asfixia. E por todos os lados terra e sepulturas. Em certo ponto vê-se uma clareira, da qual filtra um pouco de luz, permitindo ver uma sala quadrangular com pinturas, muito antigas, feitas, por alguma técnica, diretamente sobre a terra; estas representam de modo ingênuo cenas do Evangelho. Ali se encontra um altarzinho, pois se trata de uma capela onde se celebrava a Missa, junto aos restos de novos mártires, mortos de modo cruel. O corpo do mártir ficava, muitas vezes, jogado na arena, todo estraçalhado. Terminado o martírio, o povo se retirava. Ao anoitecer, católicos heroicos, eles mesmos candidatos ao martírio, pois caso fossem pegos seriam também martirizados, em meio às trevas se arrastavam até o Circo Máximo ou até o Coliseu para pegar aqueles restos, os quais traziam em panos, embebidos em perfume, até as catacumbas onde entravam por um orifício oculto feito no chão.
Quando os que lá esperavam rezando recebem a notícia de que ali estão os restos de um de seus irmãos na Fé, imediatamente do fundo da terra ouve-se um cântico de triunfo. Pois aquele companheiro que na véspera tinham visto e com quem tinham conversado — até que devido a uma vistoria policial na catacumba fosse capturado e, cheio de aflição, levado para ser martirizado — após tantos sofrimentos ele está no Céu. Por isso todos cantavam de alegria.
Quando alguém recebe graças especiais, até nessa situação ela pode sentir alegria, a tal ponto que havia mártires que apesar de triturados pelas feras morriam alegres.
Agrada-me ouvir cantar o Anima Christi, no qual há uma jaculatória que diz: Sanguis Christi, inebria me! Sangue de Cristo, inebrie-me! O que isso quer dizer? O que é esta embriaguez do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo? Um exemplo é o do mártir que tendo comungado do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, embriagado da alegria, fruto da graça do Espírito Santo, procede como um ébrio, não tendo medo diante do perigo e da dor. Pelo contrário, de tal modo o inunda a alegria sobrenatural que se lhe dissessem que a fera não vem, ele era capaz de ficar desapontado, pois para ele a boca do tigre era a porta do Céu, e as presas que ele vê enquanto a fera uiva são para ele os instrumentos benfazejos que vão romper os laços que o prendem à Terra, permitindo que sua alma possa voar junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.
A graça pode produzir esse efeito, e não é tão raro que o faça.
Em algo sentimos este efeito da graça quando, em meio a aflições, tormentos e lutas, vemos nossas almas encherem-se das santas alegrias do Natal, que vencem até as maiores angústias. Ao menos para os que não rejeitam essa graça.
Para que se sinta um pouco o que é esta graça, creio não ser descabido narrar algumas recordações, na tentativa de fazer reviver aqui aquilo que na pobre São Paulo de hoje, embora tão rica, quase não se nota mais: as alegrias e vivas impressões que outrora se sentiam nas noites de Natal.
Como era um Natal no ano de 1920? Portanto, Natal dos últimos anos de minha infância?
Havia qualquer coisa que alguém poderia dizer tratar-se de imaginação, mas digo que tenho a convicção interna de não se tratar de imaginação, mas da graça, que era dada a mim, como a todas as crianças de meu tempo, ao menos as que eu via e conhecia.
Era uma graça geral. As crianças, já alguns dias antes do Natal, viam-se invadidas por uma expectativa e por uma alegria na esperança das festas que iam se realizar. A perspectiva da festa, no que ela tem de terrena, desempenhava um papel na alegria das crianças. Elas sabiam que São Nicolau, o santo Bispo afável, viria de noite enquanto todos dormiam e colocaria presentes junto a elas: nos lares abastados, grandes caixas; nos lares mais pobres, com menos condições financeiras, caixinhas de presentes pequenas, mas cheias de afeto. Mas em todo lugar onde houvesse uma mãe, digna realmente de assim ser chamada, um pai solícito e merecedor deste título, alguma coisa punham junto à cama do filho. O que para o filho consistia uma maravilha, que ele esperava com alguns dias de antecedência.
Esta alegria se fazia sentir dois ou três dias antes do Natal. Ao andar um pouco, correr pelo jardim, brincar, tudo se fazia cheio de um bem-estar próprio à inocência da infância, à espera do Natal. Esta alegria em boa medida era motivada por alguma coisa mais alta e que já era um prenúncio da alegria estrita e definidamente religiosa do Natal que estava por vir. Algo de especial começava a nos encher as almas.
Nesses dias, todas as crianças ficavam melhores: as que mentiam, passavam a mentir menos; as que não mentiam censuravam alguma que mentisse; as que eram pouco observantes dos horários de casa tornavam-se mais pontuais. Sentia-se em todos mais limpeza de alma. E esta alegria de ter a alma limpa não se compara a nenhuma outra ao longo da vida. O que pode se comparar ao bem-estar, por exemplo, de alguém que se confessa e sai do confessionário com a certeza de ter sido perdoado?
Quem não se lembra com saudades de alguma vez ter se aproximado do confessionário com um problema de consciência e de lá ter saído transbordante de alegria pela certeza de haver sido perdoado? Essa alegria faz em algo lembrar aquela que se sentia nos dias que antecipavam o Natal, ainda sem ter se confessado.
Um princípio de pureza, de limpidez, de honestidade, de bondade e de candura parecia se fazer sentir sobre a Terra, atuando nas almas de todos os homens. As pessoas começavam a ser mais benévolas entre si, oferecendo-se favores. As crianças egoístas de bom grado emprestavam seus brinquedos, as birrentas faziam pequenos favores. E os mais velhos, por mais que não sentissem a mesma alegria que as crianças, por lembrarem-se dos Natais em suas infâncias, esforçavam-se por causar a impressão de estarem participando do mesmo contentamento, tornando-se especialmente solícitos e afáveis.
Os pais, ao menos os meus, levavam as crianças para ver os brinquedos de Natal. Em geral as melhores lojas de brinquedos eram alemãs e inglesas. Lembro-me de várias: Casa Fux, Casa Grümbach, Casa Lebre e outras. Entre elas havia uma onde minha mãe e a Fräulein costumavam levar minha irmã, uma prima que morava em nossa casa e eu. Esta ficava na Rua XV de Novembro; chamava-se Casa Mappin. Como o Natal vinha se aproximando, as crianças ao saírem de casa iam com roupa de gala, todas enfeitadas. Assim íamos também nós ver os presentes, os quais muito nos encantavam. Mamãe ficava prestando atenção para ver qual deles mais nos agradava. Por coincidência e para nossa maravilha e surpresa, São Nicolau trazia justamente aquele…
Uma das partes culminantes da preparação do Natal, para mim, sensível à gastronomia desde muito cedo, era quando íamos tomar um lanche na Casa de Chá do Mappin. O fundo desta Casa dava para um barranco profundo, embaixo do qual começava o Brás; era um descampado por onde entrava muito vento; nós ficávamos sentados lá, pois a Fräulein e eu éramos grandes apreciadores de vento. Este, mais o chá, os sanduíches, as torradas e o chocolate, me regalavam. Eu tinha a impressão de que o bem-estar de meu corpo em contato com aquele vento era análogo à alegria de minha alma em contato com as graças de Natal que se aproximavam, o que me cumulava ainda mais de desejo de que o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo chegasse o quanto antes.
Notava-se esta alegria natalina até nas mães que levavam as crianças pelas ruas do Centro, o qual se enchia especialmente; as crianças, todas alegres e satisfeitas, algumas já levando presentes, dando risadas e conversando. Quando passava uma criança assim mais vistosa, mais engraçada, as mães piscavam para a mãe daquela como que a dizer: “Mas que engraçadinha…” E a mãe ficava toda satisfeita. E assim era uma alegria geral.
Voltando para casa começavam os mistérios… Numa determinada sala não se podia entrar, pois a árvore de Natal estava sendo preparada, como em todo ano, com alguma novidade, uma estrela enorme, um anjo novo ou outros enfeites.
Quando uma criança conseguia ver algo da surpresa, corria para contar às outras, que tomavam a notícia com ar de grande importância. Em meio a essas alegrias passava-se o tempo até a noite de Natal, hora em que se ia à Missa do Galo. Aí o ambiente era completamente diferente.
Nós, morando perto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, para lá íamos a pé. Todas as casas estavam abertas e as luzes acesas. Andando pelas ruas percebia-se, em casas modestas como nas ótimas, que eram quase palácios, uma árvore de Natal acesa e ouvia-se lá de dentro um gramofone, dos mais antigos, tocando músicas de Natal. Percebia-se em cada família a alegria de Natal, todos estavam acabando de se aprontar para sair, deixando apenas um criado a tomar conta da casa. Logo os sinos começavam a tocar, avisando que a Missa ia começar.
Chegando-se à igreja, esta se encontrava feericamente iluminada, o altar se encontrava todo cheio de flores. Numa manjedoura via-se o Menino Jesus deitado. Quando soava meia-noite, o padre entrava e começava a Missa, durante a qual se sentia algo aparentemente contraditório, um misto de recolhimento e de explosão de contentamento.
Quando já se tinha idade, comungava-se. A Comunhão era o ápice! Encantava-me a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, que tinha nascido em Belém, numa daquelas noites, estava realmente presente em mim; era a hora dos pedidos, mas, sobretudo, tinha-se uma indescritível sensação de intimidade. Eu tinha uma estampa do Sagrado Coração de Jesus que representava Nosso Senhor segurando um menino, de cabelos cacheados pretos, e Ele com a mão em volta de seus ombros, apertando o menino para junto do peito. Em baixo desta havia uma jaculatória que dizia mais ou menos assim: “Ó Bom Jesus, tende piedade de mim!” Eu a rezava pensando: Nosso Senhor nesta hora está fazendo isso comigo…
Depois da Missa, tinha-se a impressão de que as graças de Natal se difundiam por todas as casas. Quando chegávamos à nossa, parecia que esta já não era a mesma que tínhamos deixado. Havia nela algo de religioso, de sacral, de recolhido, que causava verdadeira maravilha. A par desta atmosfera recolhida, sentia-se habitar na casa uma alegria, como igual não se sentia o ano inteiro. Começavam os cumprimentos e as felicitações, ao que eu era muito sensível, sobretudo aos carinhos e felicitações vindos de mamãe, com os quais eu já vinha contando como um complemento da noite de Natal. É impossível descrever o que é o ósculo de uma mãe católica a um filho que ela deseja que seja católico também! Depois das saudações, começava a festa de Natal, a qual já tive oportunidade de descrever outras vezes.
Terminada a festa de Natal, chegava a hora das delícias do sono, o qual era melhor na noite de 25 para 26. Porque como se sabia na noite anterior que São Nicolau viria entregar o presente, queríamos surpreendê-lo, mas sendo ele muito hábil, isto nunca acontecia. Porém, mantinha-se esta esperança. Até que, mais ou menos às quatro horas da manhã, sentia-se sobre os pés o peso da enorme caixa de presentes, e logo vinha a curiosidade de saber se São Nicolau tinha acertado, mas eu pensava: “Não posso acender o abajur porque meus pais, notando, me censurarão. De outro lado, como é gostoso sentir o peso desse presente, pelo qual posso avaliar o valor e o prazer que o presente me dará!” Pouco depois o sono infantil tomava domínio da situação e a criança dormia. Acordando de novo pouco depois, na sofreguidão de que o momento de se levantar tivesse chegado, para poder ver o presente, não sendo ainda hora, voltava a dormir.
Até que antes da hora de acordar, a criança já estava de pé, rompendo as fitas, os laços e os barbantes, para ver o presente, o qual era sempre um muito bonito, um dos quais se tinha gostado em alguma casa de presentes.
Por isso, o sono da noite de 25 para 26 era um sono pesado e gostoso, pela sensação da consciência tranquila, pelas influências do Natal Sagrado, sob cujo perfume se dormia, sabendo que no dia seguinte ainda se teria a recordação do Natal. Ainda tinha um feriado, para comer os últimos doces, beber os últimos ponches, brincar mais uma vez com os brinquedos, até se familiarizar com eles. Não se olhava com pesar para o implacável dia 26 que vinha. A noite de Natal era, portanto, um hiato luminoso, cheio de algo que não se consegue descrever, mas que todos sentiram, cada um em sua época.
Até que ponto os que são mais jovens sentiram isso? Receio que, quando muito, tenham visto apenas ligeiros fins disso.
Televisões ligadas o dia inteiro, rádios vociferando canções de Natal comercializadas, lâmpadas fluorescentes e laicas penduradas em torno de árvores, em jardins de prédios e em apartamentos, igrejas vazias. Eis o Natal moderno!
Põe-se a pergunta: O que resta de tudo o que descrevi? Será que de tudo isto só ficou a recordação? Muito mais do que isto, resta uma esperança! E no intuito de avivar essa esperança é que narrei estes fatos. Mas, de tudo isso só resta uma esperança? Não! Temos uma certeza! graças à promessa divina: “…as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16-18).
Esta certeza nos diz que um dia, após lutas, provações e batalhas, os verdadeiros Natais reflorescerão na Terra. E quando se assistirem a esses Natais, talvez alguém se lembre desta descrição que acabo de fazer, e tenha a convicção viva de que não é algo que está nascendo, mas é uma longa concatenação histórica que sai do fundo das águas da provação e volta à luz. Trata-se da verdadeira alegria do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Apesar de toda a decadência que se nota nas festas de Natal atualmente, se comparadas com as de meu tempo, não hesito em afirmar que o Natal dos que, hoje em dia, lutam para permanecer fiéis ao verdadeiro espírito católico é ainda mais bonito do que os de outrora. E se eu, quando menino, pudesse ver como seriam os Natais que eu deveria passar nestes dias, sem dúvida exclamaria: “É para isso que eu nasci!”
Devemos, pois, lembrar que essas alegrias de Natal, sob o sorriso de Nossa Senhora, descerão sobre nós, ainda que estejamos na mais terrível aflição. Também nos deve animar a confiança de ver realizada a promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” Quando isto se der, que suavidade, harmonia e doçura terão as festas do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)
Sede: Rua Virgilio Rodrigues, 44, Tremembé, São Paulo/SP
Telefone: (11) 2206-4540
Email: [email protected]