A ação de presença de Dona Lucilia não era invasora e conquistadora, mas muito suave. Dr. Plinio sentia muito a sua presença no apartamento em que ela residiu por longo tempo, na Rua Alagoas. Quando ele ia ao seu escritório e se sentava numa cadeira de balanço que ela costumava usar, tinha a sensação de estar em seus braços, tal como em sua infância.
Uma das coisas mais difíceis de explicitar é a ação de presença. Há na ordem posta por Deus mil ações de presença. Por exemplo, o prédio velho do Êremo de São Bento(1). Dadas as ideias que eu tinha a respeito de São Bento de Núrsia, Patriarca dos monges do Ocidente, quando transpus os umbrais deste prédio pela primeira vez tive uma impressão singular, toda ela pessoal, e pensei o seguinte: “Mas, essa é a casa de São Bento! Só me falta encontrá-lo em qualquer canto”.
Essa é a mesma impressão que tenho até agora. Não há uma vez em que eu entre ali e não sinta uma verdadeira delícia, um verdadeiro regalo de minha alma. A minha velha admiração pelo espírito beneditino começou quando, meninote ainda, ouvi tocar os sinos do Mosteiro de São Bento, o famoso Cantabona, sério, grave, resoluto, indomável e harmonioso. Essa impressão perdura em mim.
Quando ouvi o Cantabona pela primeira vez, me veio a ideia seguinte, não com a precisão que estou dizendo agora, mas implicitamente era bem isto: certas almas têm internamente um timbre como os sinos. Eu até me lembro de ter lido um livro de poesia muito de segunda classe, pois estava doente e não tinha coisa melhor para folhear; não eram poesias imorais, mas uma coisa assim pseudo-literária. De repente, encontrei uma frase que dizia só isto:
“Sino, coração da Igreja; coração, sino da gente. Um sente quando bate, outro bate quando sente.”
Esse poeta débil pegou bem essa analogia. Todo homem tem interiormente um sino. E eu me perguntava como seria a alma daquele do qual se poderia dizer que o sino do Mosteiro de São Bento era como o coração dele. Naturalmente a resposta é: São Bento!
Depois, tudo quanto li sobre São Bento – não foi muita coisa –, quanto peguei a respeito da Ordem Beneditina, frequentando o antigo Mosteiro de São Bento, dava-me esta impressão: algo que era semelhante ao toque do Cantabona.
Alguma coisa que se levantou em Núrsia, andou, passou também através de Cluny por glórias incríveis e por humilhações inenarráveis. Depois, o que foi a decadência da Ordem beneditina no “Ancien Régime” não tem palavras. No século XIX, Dom Guéranger realça a Ordem Beneditina, mas já os beneditinos que conheci na França, posteriormente, quão inferiores a Dom Guéranger… De repente, encontro em São Paulo essa afirmação. Isso é ação de presença. Como ela se exerce? É uma graça. Porém, como essa graça se torna presente, se faz sentir, não sabemos.
Ora, se um prédio pode ter uma ação de presença, a “fortiori” os seres humanos. Porque, quer na ordem da natureza e, sobretudo, na ordem da graça, a presença de um ser humano é incomparavelmente maior do que a de um prédio. A graça pode estar presente num prédio como um jarro com flores. É uma coisa extrínseca ao prédio que alguém põe ali e ameniza, adorna o ambiente. Outra coisa inteiramente diferente é o modo pelo qual a graça habita na alma. Para usar uma comparação, claudicante como todas as comparações, tem algo de um enxerto que passa a viver uma vida nova na alma e que lhe dá um “élan” novo que a alma não tinha. Mas acabam convivendo no sentido mais íntimo da palavra, a pessoa passa a ter as duas vidas, natural e sobrenatural da graça, formando um só existir e um só ser.
Nessas condições, é claro que um Fundador possa tornar sensível a presença dos ideais de sua fundação, e a Providência tem desígnios especiais com esse ou aquele homem. Esta é a ação de presença. Entretanto, como explicitá-la? Como descrever o indescritível? Até vou dizer mais, é desse gênero de coisas muito imponderáveis que, se houvesse alguém capaz de dizer completamente o que era, empobreceria o tema, porque são coisas feitas para serem vistas no imponderável. A linguagem explícita tem um valor muito grande, mas há coisas que foram feitas para ficarem implícitas. E explicitar certas implicitudes seria o mesmo que acender dentro de uma catedral um farol enorme que tornasse tudo claríssimo. Uma catedral pede penumbras.
Há pouco vi um vitral e achei-o muito bonito. Mas não teria essa impressão se não houvesse penumbra no ambiente. Em nossas almas há assim não sombras, mas penumbras, e estas fazem parte do convívio. É até onde eu sei ir neste tema. A orla do grande mar da ação de presença é esta. Para além disso são vagalhões indecisos.
Eu pensava em mamãe enquanto fazia estes comentários. Ela, chamada para aquele ambiente da vida privada na qual viveu sua longa existência, não tinha essas ações de presença invasoras e conquistadoras. Possuía, pelo contrário, uma ação de presença muito suave de quem ligeiramente diz isto: “Se queres entrar nessa presença, há algo para ti. Se não queres, passa que eu nem te detenho, nem te peço, nem te reclamo nada, te olho com benevolência e rezo por ti. Podes passar…” Mais nada.
Era preciso que uma pessoa saísse de um certo estado de alma por onde se podia olhá-la como uma senhora qualquer, porque quem quisesse fazer isso era perfeitamente fácil, não havendo da parte dela um gesto, nem ideia de se impor.
Para mim, como eu a senti, era uma presença ao mesmo tempo riquíssima de expressão no primeiro contato, mas proporcionava outras impressões mais profundas, mais elevadas, mais ricas à medida que se ia caminhando para a frente de um modo insondável, em que a mesma impressão originária se acentuava. Mas se acentuando, revelava belezas novas; e, revelando belezas novas, ia atraindo e ensinando mais.
Era naturalmente uma presença muito variada e sempre muito expressiva para quem quisesse prestar atenção. Havia uma coisa que ela não tinha: superficialidade de alma. Aquele estado de espírito por onde se pega tudo assim pela rama, isso ela não possuía; nunca a peguei numa situação dessas. Se tivesse acontecido, o meu amor a ela decrescia um tanto. E se fosse crescente, empalidecia.
Quando ela era mais moça, fazia bolos e doces, um deles chamado pavê, com biscoitos e chocolates. É um doce gostoso, mas corrente. Porém o bolo super-ornado, recoberto de glacê, umas balazinhas cor prata, umas guirlandas formando um desenho, desconfio que para cada aniversário ela compunha um traçado novo.
Tendo ficado mais idosa, de repente o bolo desapareceu. Eu fingi que não notei. Vi que as forças não davam mais e que ela mesma queria fazer, não deixava para a empregada.
Eu me lembro do jeito dela na copa de nossa casa, na qual há uma espécie de armarinhos, onde preparava o bolo. Acho que não colocava no forno, mas a massa ela mesma fazia. Ela ficava ali em pé, preparando, industriosa, mais para cá, mais para lá, ajeita ali…
Ela estava adiantada em catarata, e notava-se que tinha uma certa dificuldade de ver, mas mexia para cá, mexia para lá, empenhada. Era o pavê ideal dela.
Eu olhava só de relance para deixá-la inteiramente à vontade. Depois ficava trabalhando, rezando, ou fazendo qualquer coisa, mas vendo o viver dela. Em geral isso saía quase à última hora, e ela sempre um pouco apressada. Por sofrer do fígado, precisava descansar em certa posição. Então ia nuns passozinhos miúdos, rápidos, para o quarto dela a fim de ter um grande repouso. Depois se vestia, arranjava-se, iam chegando as primeiras pessoas da família, algum amigo, e começava a festa de aniversário. Quando chegava a hora de passar para a sala de visitas, ela estava conversando. Aí eu prestava atenção na preocupação dela – ultra-disfarçada – na hora em que entrassem os doces, para ver se eu comia bastante daquele que ela fizera. Se eu tivesse comido muito era porque o doce estava bem feito. Se comesse pouco, ela tinha fracassado… O doce era sempre bem feito.
Mas ela me conhecia tão, tão bem, que eu nunca fiz essa jogada – alguém julgaria acertada – de comer mais do que tinha vontade para agradá-la, porque ela sentia perfeitamente se eu estava gostando ou não do doce. Comia tanto quanto queria, mas eu via que ela olhava um pouco de relance o doce para ver se, cortado, estava com o aspecto que ela queria; depois um relance nos meus olhos para ver o que eu estava achando.
E se eu não dissesse nada, ela também nada dizia. Era, portanto, uma espécie de discrição e respeito pelo outro, ainda que fosse filho, consideração e humildade. Quando ela prestava seu serviço, se retraía, não pedia e não impunha mais nada, ela tinha atendido.
Ora, o que estou dizendo aqui não é nada. A profundidade, o modo de doçura que havia em mamãe, e algo por onde ela, no fundo, reportava isso a Deus é uma coisa que precisava ter sido vista. Quem vê o Quadrinho(2) tem uma ideia. Era assim o dia inteiro, sob as mais variadas formas, constituindo um tipo de ação de presença inenarrável, que ainda está na casa dela.
Pelas escrituras públicas, sou o dono do imóvel, mas para mim aquela é a casa de Dona Lucilia, eu me regalo que seja casa dela. Para mim o charme da casa é ser a casa de Dona Lucilia, e tenho a impressão de que ela está presente lá. De que jeito, de que modo, também não sei. Mas quando se atende no telefone: “Casa de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira!”, eu teria vontade de retificar e dizer: “Não! Casa de Dona Lucilia Corrêa de Oliveira, porque é a casa dela”.
Mamãe viajou raras vezes e saía pouco à rua. Quando era mais moça naturalmente saía um pouco mais, como todo mundo. Nas raras vezes em que ela viajava, eu ainda morava em casa de minha avó. Era dessas casas patriarcais com muita gente morando. Quando ela viajava, eu tinha a impressão de que a casa inteira estava vazia e que nada era nada. Podia ter gente, podia não ter gente: mamãe não estava, a casa estava vazia.
Pelo contrário, quando passamos a morar no apartamento da Rua Alagoas – só ela, eu e meu pai, mas ele viajava muito para negócios e, portanto, durante a maior parte do tempo estávamos apenas nós dois –, e eu viajava deixando-a só, tinha a impressão de que o melhor de mim mesmo ficara em casa rezando, e era a parte mais banal de mim que tinha saído. De maneira que, quando voltava para casa, eu tinha a impressão de que me encontrava com o melhor de mim mesmo e mais algo, que era a casa habitada por ela.
É o que ainda sinto quando volto para casa. Vou jantar, rezo as orações que mamãe rezava e sempre me lembro do lugar onde ela ficava durante o jantar, a cabeceira da mesa. No almoço ela sentava-se em frente a uma janela que dá para a Praça Buenos Aires, para ver a vegetação. Então não era a cabeceira, mas um lado da mesa. Entretanto, para fazer o gosto dela, eu concordava inteiramente.
Sempre que me sento junto à mesa, lembro-me dela, de como ela poria o braço… Mas com esta circunstância: tenho ainda a impressão de que ela está presente e que eu me encontro, de algum modo, com o melhor de mim mesmo quando estou na casa dela. A tal ponto que eu sinto mais a presença dela em casa do que junto à sua sepultura. E sinto a presença dela intensamente no quarto em que mamãe dormia, e também no resto da residência, porque ela habitava tão densa e tão ricamente a casa.
Inclusive no meu escritório. Quando me sento numa cadeira de balanço na qual mamãe costumava sentar-se, tenho a sensação de que seria como quando eu era criança: ela me punha nos braços dela. E assim são minhas saudades, a minha admiração e a minha esperança de reencontrá-la.
Outro dia passei pela Rua Vieira de Carvalho(3) onde nós moramos por alguns anos, no quarto andar de um prédio. Nossa sede ocupava o sexto e o sétimo andares, e todas as noites eu ia com membros de nosso Movimento para um restaurante chamado Fasano. Não sei de que maneira ela, que não ouvia bem, intuía mais ou menos quando descíamos para ir ao restaurante.
Após a refeição, ficávamos ainda conversando durante algum tempo na calçada. Ao sair do restaurante, eu batia naturalmente os olhos no prédio em frente. Evidentemente olhava para o quarto andar, que possuía uma janela quadriculada, e a via sempre no mesmo quadrículo, exatamente como está no Quadrinho, olhando. E todo o tempo em que ficávamos ali fora, às vezes era muito, eu via aquela cabecinha olhando. Pela discrição dela, não fazia nenhum sinal, mas estava profundamente entretida. Quando nos despedíamos, ela percebia que eu ia atravessar a rua e subir.
Então, ela não ia abrir a porta, mas ficava por ali rezando – a imagem do Coração de Jesus estava perto da janela. Eu abria a porta, entrava e ia falar com ela. Mamãe, às vezes, fazia algum comentário: “Como esse ou aquele te prendeu longamente…”, mas sem rabugice. “Em certa altura, tomei um susto porque passou um automóvel e quase pegou um de vocês…” Eram coisas assim.
O Quadrinho me dá a impressão exata daquela que eu via na janela. Era aquele raio de luz lilás e prata que atravessava a Rua Vieira de Carvalho bem larga, com umas árvores magníficas, mas que não atrapalhavam o caminho, e chegava até mim, que sorvia aquilo.
Se me fosse dado voltar ao quarto andar eu voltaria? Não sei. Não é melhor ficar com a imagem que tenho na memória? Nós mudamos de residência, o Fasano fechou, o trânsito se tornou torrencial e inundou aquilo. Eu tenho o Quadrinho e a Consolação. Mais do que isso, eu tenho a esperança do Céu.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 25/8/1980 e 20/11/1980)
Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)
1) Localizado em São Paulo, bairro Jardim São Bento.
2) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
3) Situada no Centro velho de São Paulo.
Sede: Rua Virgílio Rodrigues, 44, Tremembé, São Paulo/SP
Telefone: (11) 2206-4540
Email: [email protected]