Inscrita na História

Costuma-se exaltar o esplendor dos ocasos. E com razão. Quem só conhecesse o meio‑dia não poderia se gabar de conhecer bem o sol, pois este possui belezas de crepúsculo como as possui de aurora, e é o conjunto desses encantos que compõe a beleza global do nosso astro soberano.

Isso que se aplica ao sol, pode-se dizer também dos povos e das nações. Passam eles por períodos que parecem de decadência e não o são: as coisas param, mas vão se revestindo da prestigiosa pátina do tempo, situam-se meio fora do movimento terreno e meio se confundem com a eternidade.

Esse pensamento me veio especialmente ao espírito quando me caíram sob os olhos algumas fotografias de Veneza. Por exemplo, a Catedral de São Marcos, que, a meu ver, é o ponto auge e central da cidade. Mais do que isso Veneza não realizará.

Entretanto, imaginemos a Rainha do Adriático parada na História como ela foi no seu apogeu, antes de ser invadida pelas ondas de turismo inimagináveis que, de um jeito ou de outro, modificaram o seu ritmo de vida.

Imaginemo-la, pois, no seu quotidiano normal, comum e tranqüilo, com aquelas seculares famílias nobres habitando seus palácios, o povinho esparso aqui e ali, as gôndolas deslizando através dos canais. Seis horas da tarde, o campanário de São Marcos toca o Ângelus, as pessoas se persignam, rezam as ave-marias. Uma hora depois, novo toque de sino, a noite já se abraça ao dia, o canal imerge pouco e pouco na neblina, o Palácio dos Doges parece dormir. No interior da igreja acende-se uma vela, outra, depois outra. Em certo momento, todos os sinos e carrilhões repicam festivos: é mês de Maria e haverá uma festa daquele povinho em louvor de Nossa Senhora.

Os fiéis começam a chegar, vêem-se senhoras idosas com suas cabeças cobertas por véus de renda, personagens influentes acompanhados de seu séquito, matronas em liteiras, e todos, calmamente, vão ocupando o recinto sagrado. Mais alguns instantes, e um coro — que já tem 300 anos de existência — entoa com suas vozes quintessenciadas os mais belos hinos em honra da Mãe de Deus.

Mas, ao cabo de algumas horas a cerimônia termina, as luzes se apagam, a praça se cobre de penumbra e cada um se dirige para a respectiva casa.

Como não perceber nisso a pátina do tempo que acrescenta outros aspectos aos esplendores de Veneza e confere a esta uma espécie de nota de eternidade que seria um erro confundir com decadência?

Pelo contrário, é a inscrição de Veneza na História, a saída dela de dentro dos acontecimentos humanos para se tornar um elemento de admiração dos povos, sempre bela e fixada na glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/2/1989)

Distinção e suavidade

Em todas as coisas que passavam pelos seus sentidos, Dr. Plinio sempre procurava arquetipizá-las, ou seja, imaginá-las no seu máximo grau de perfeição. Comentando o minueto de Boccherini, afirma que o concebe não tanto como uma dança, mas como ondas vaporosas e perfumadas de pessoas, que avançam numa bela galeria. E chega até a supor como seria um arqui minueto medieval.

 

O minueto de Boccherini(1) — que para mim é o minueto por excelência — tem qualquer coisa no sentido de uma revista à tropa, sem o ser propriamente.

Charme, esplendor, graça e beleza

Devemos imaginar uma sala de corte, o rei e a rainha nos seus tronos, os príncipes e as princesas da Casa Real em poltronas, os duques em “tabourets”; ou, como se fazia em Versailles, de um lado e de outro da Galeria dos Espelhos, arquibancadas onde pessoas da nobreza ou da alta burguesia de Paris se postavam para verem dançar o minueto.

Vindos do fundo da sala ou de um compartimento ao lado, entram os pares dançando o minueto, reverenciando-se mutuamente, fazendo a reverência ao rei, quando passavam diante dele, e circulando de novo. Era a corte celebrando um ato lúdico, no qual as pessoas eram passadas em revista no seu charme, no seu esplendor, na sua maior graça, na sua maior beleza, para a corte ter a fisionomia de si mesma, e deleitar-se em ser aquilo. Isso era propriamente o minueto.

É preciso notar que esses minuetos, muitas vezes, eram altamente hierarquizados, e a reciprocidade dos cumprimentos se multiplicava pela sala indicando uma harmonia hierárquica de relações sociais, juntamente com a harmonia dos gestos, das atitudes, a beleza dos trajes, o esplendor das joias, a nobreza das expressões fisionômicas, dos sorrisos, etc.

Seria um pouco como um exército que precisa organizar uma grande revista, para ver-se a si próprio. E o “ver-se a si próprio”, nesse sentido, não é como o de uma pessoa faceira que se olha no espelho para ficar vaidosa, mas é o conhecer a sua própria face para ver que perfeição o Criador pôs nela, e amar a Deus em si mesma. Isso constitui um alto grau de tomar consciência de si e tem, no fundo, um sentido religioso.

Seriedade e sorriso profundamente sério

Na situação cultural do tempo do minueto havia uma necessidade de fazer as coisas com muita solenidade, mas compensar essa solenidade com muita graça, com muito charme. E o minueto perfeito seria o que reunisse o esplendor de uma verdadeira cerimônia de corte com a graça de uma afabilidade, de um sorriso, de uma concepção amena da vida que fosse o contrapeso do grande esplendor, porque a vida tinha chegado a um tal brilho que massacrava o homem se ele não tivesse esse complemento.

Vê-se, então, a coexistência de uma grande seriedade com um sorriso profundamente sério de quem sabe quem é, e que do alto daquilo que é, por gentileza e bondade, sorri como quem diz: “Eu sou tudo isso, e é tudo isso que sorri para você.” Não é, portanto, o sorriso do peralvilho que anda pela rua e, de repente, vê um cachorrinho engraçadinho, mas é o sorriso de quem possui grandeza e oscula aquilo para o que sorri, como uma espécie de comunicação de todos os esplendores que tem dentro de si.

Saint-Simon”(2) quando queria elogiar alguém dotado de muito senso de sua própria dignidade, dizia: “Ele se sentia muito”, quer dizer, sentia muito em si o que ele era, e a sua respeitabilidade. De onde o minueto, assim entendido, ser a música do respeito.

O respeito acompanha a grandeza, o afeto, o carinho, o sorriso. Percorre de ponta a ponta a gama dos possíveis sentimentos humanos. E isto faz do minueto uma obra-prima.

O minueto não é tanto uma dança quanto falanges ou ondas vaporosas e perfumadas de gente que vai avançando ao longo de uma galeria vazia.

Para ouvir bem o minueto de Boccherini, devemos imaginar a Galeria dos Espelhos vazia, e no fundo os primeiros grupos se formando e avançando, eu quase diria em “cordão” de oito, dez ou quinze pessoas, fazendo piruetas umas para as outras e caminhando até o rei. Chegando diante do monarca, fazem uma profunda reverência e depois viram, deixando lugar para outros. Quer dizer, a marcha progressiva está presente no minueto, e um pouco da atitude do respeito feudal diante do rei, de quem diz “senhor, vede quem eu sou, sinto-me e sou uma alta emanação de vós mesmo”, bem como algo de súdito que faz diante do rei uma profunda reverência. As duas coisas existem juntas e são um outro traço da graça do minueto, mais visível em Boccherini do que em todos os outros minuetos que conheço.

Imaginando um super minueto medieval

Eu não chegaria a dizer que esta teoria é válida para qualquer minueto. Talvez seja, mas não ouvi com este senso crítico um número suficiente de minuetos, e nem tive tempo para pensar bastante sobre a questão, a fim de fazer uma afirmação genérica quanto aos minuetos.

A meu ver, para interpretar perfeitamente o espírito do minueto de Boccherini seria preciso sempre conferir à música uma nota grave e altiva que se desfaz no sorriso, e não tanto a continuidade realmente muito harmoniosa e bonita posta em muitas interpretações que, para quem quer fazer música, representam, no gênero, uma obra-prima, mas para quem deseja fazer sociologia a coisa é diferente.

Um minueto precisaria ser tocado num ritmo não tão corrido, e com um intervalozinho entre cada trecho. E, ao chegar ao último do harmonioso, retomar o tema inicial. Tal minueto daria uma interpretação da harmonia, da cultura daquele tempo, feita exatamente de alta distinção e grande suavidade. Considero que um minueto tocado assim interpretaria o tempo e o lugar para os quais Boccherini o compôs.

Para compreendermos ainda melhor quais são as raízes psicológicas, morais e culturais de um minueto, deveríamos imaginar um super minueto medieval.

O rei católico, no seu trono, olhando firme, e sorrindo enquanto a coisa se desfaz numa gentileza. Que tanta gentileza contenha tanta majestade, e tanta majestade contenha tanta gentileza, aqui está o equilíbrio.

Imaginar, portanto, na Idade Média, uma dança desse tipo bailada por senhoras que usavam aqueles chapéus cônicos, altivos, dos quais pendiam véus trazidos do Oriente, levíssimos, que qualquer brisa punha em movimento; chapéus que eram mais ou menos como um reflexo, um símbolo da sabedoria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1974)

 

1) Luigi Boccherini (* 1743 – † 1805): compositor clássico italiano, famoso por seus minuetos.

2) Duque de Saint-Simon (* 1675 – † 1755), escritor francês que, em  suas “Memórias”, descreveu com penetração, finura e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís XIV.

A beleza da hierarquia angélica

Dr. Plinio tinha um apreço especial pelo estudo sobre os Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até mesmo a épocas históricas.

 

Dionísio Areopagita, em seu “Tratado da hierarquia celeste”, descreve uma concatenação dos Anjos, apresentada por ele como a ordenação perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais da ordenação são aqueles.

A multiplicidade das criaturas

O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de criar vários seres.

São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia criar um só ser, porque nenhum ser único tem suficientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir a Deus globalmente e não apenas em um de seus traços.

Então, esquematizando, seria o seguinte:

  1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente, e não apenas em uma de suas perfeições.
  2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande, que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias, portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo global do Criador.
  3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse a Ele.

Não me parece necessário que o número de seres fosse esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são. Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição e o inter-relacionamento entre elas adequadamente refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso equivale a julgar que haveria outros universos possíveis. Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.

A ordem na sociedade humana deve ser análoga à existente entre os Anjos

Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos com essa natureza, não podia deixar de ser que eles estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação, o inter-relacionamento entre eles, uma vez que são assim, seria necessariamente esse.

E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas não podiam existir enclausuradas sem terem contato umas com as outras. Tinham que se relacionar para que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem e representassem um só todo.

Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar um papel que, esquematicamente, é o papel que Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins, outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele poder dos Tronos, e assim por diante.

Como nós, homens, estamos no mesmo universo que os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser análoga e consonante com a deles. E, como tal, o modo de nos relacionarmos e os traços fundamentais de governo da sociedade humana, feitos os descontos da diferença de naturezas, têm que ser análogos aos do mundo angélico.

A força motora do governo legítimo

Entretanto, não pode ser que alguns de nós sejamos apenas cognoscitivos e volitivos, como os Anjos. Vê-se que nossa natureza não comporta isso, mas está menos longe de nossa natureza do que se pode imaginar à primeira vista.

Em muitos trechos dos seus discursos à nobreza romana, Pio XII encaixava o regime democrático, afirmando que as mais autênticas democracias devem ter instituições aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto, a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo, quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver, que em face da missão de uma sociedade, do que ela é, do que deve fazer, há um maior descortino das classes mais altas do que das mais baixas. E esse descortino deve fazer com que as classes mais altas conheçam melhor o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para as classes mais baixas. E que essa filtração produza, por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes mais baixas que é verdadeiramente a força motora do autêntico governo legítimo.

As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas, têm uma capacidade de execução muito maior do que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre, propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.

Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.

Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente dotados; mas não correspondem à figura clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um “ploc-ploc”(1). São pessoas muito dotadas de dons naturais vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se da aristocracia merecidamente, afinarem-se.

As raízes de uma árvore e a nobreza

As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades, assimilam-na e a transpõem para o estado de matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre nas raízes de todas as plantas a todo momento.

Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza suga continuamente da plebe — uma sucção generosa, bondosa, honorífica para a plebe — os elementos aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas vezes, se jogam eles mesmos para baixo.

Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições que, sob o pretexto de manter longevas as famílias, amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm sentadas ali.

A inalienabilidade de certo bem em determinada família, enquanto o mundo durar, revela o propósito de evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não forem mais capazes de agarrar e sustentar.

O Anjo não pode ser promovido para uma categoria superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode. Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.

Portanto, é preciso saber entender como se inspirar nisso.

A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:

Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução Francesa, feitos os descontos da decadência que houve naquele período. Depois procurar ver no que aquilo, sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para assim compreender como esta semelhança pode jogar, e como devemos fazer no Reino de Maria.

A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade. Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o jardineiro com a planta.

Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico dentro dela.

A pulcritude da abstração

Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque, desde que se compreenda em que sentido aquele surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda mais forte e toma mais autenticidade.

Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de determinado modo, compreendo como aquilo que surge em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então, sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.

O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo do Sol sobre a planta. Não se trata tanto de raciocínio, mas é um “heliotropismo” rumo aos Anjos, estando Deus acima. O Anjo aqui é um hífen para Deus.

Seria preciso termos teólogos e artistas da sociedade que vai nascendo, capazes, antes de tudo, de senti-la no seu fluxo providencial, natural e sobrenatural. E saber apenas iluminar esse fluxo com o exemplo dos Anjos, e outras coisas tiradas da Teologia.

Imaginemos uma sociedade que tivesse toda a atenção posta sobre aqueles que são de algum modo os maiorais dela, os Anjos, e sobre o fato de que tudo o que existe na Terra, provavelmente, é reflexo de algo de angélico para depois tocar algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do pensamento humano por vários lados — e depois contemplar as coisas simbólicas que é também esse píncaro sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de perceber na abstração um “pulchrum”, que é parecido com o “pulchrum” das abstrações do Dionísio.

Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação com beleza” das coisas espirituais que acabamos de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos dele a abstração toca violino.

O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?

Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar no que estava essa beleza.

Na pura abstração há certo modo de concatenar as ideias e de ver o “pulchrum” delas, bem como um certo senso do “pulchrum” que se desperta de vez em quando; isso é, penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda mais se visse Deus, porque Deus é absoluto e o absoluto é a personificação de muita coisa que conhecemos como abstrato, visto por certo lado.

Sentindo o belo da vida interna de Deus

Outro dia, estávamos numa das nossas sedes em que se entoou o Credo. Em determinado momento cantou-se “Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantiálem Patri”(2). Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no momento em que foi cantado me pareceu sentir o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele toca e não é tocado, e tudo se passa sem que Ele decaia ao tocar nas coisas.

Não podemos dizer que Deus seja uma abstração, mas nossa noção sobre Deus tem algo do abstrato, porque não corresponde a nenhuma imagem do sensível. Mas foi um momento em que de repente apareceu a beleza disso.

Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado, seríamos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical delas, que daria ao homem uma fome e uma sede de abstração, que tenho a impressão de que os povos do Oriente possuíam.

De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver, porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave muito superior à nossa.

E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação. Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na mente do aristocrata, não teremos aristocracia.

Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito, compreenderíamos muito melhor algo da luz primordial(3) e até do senso do ser de cada um de nós, que fica preso no porão de nossa própria personalidade, como uma mercadoria no porão do navio, e que levamos do berço até a sepultura sem nunca desembalar esse tesouro, para fazê-lo tomar ar e procurar, enfim, adornar-se com ele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1984)

 

1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição e bom senso, querem explicar tudo por meio de raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

3) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a aspiração existente na alma de cada pessoa, ou num povo, para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo d’Ele determinada perfeição. Ver Dr. Plinio, n. 54, p. 4.

Uma joia dotada de asas

Quem não se encanta ao contemplar o voo de um beija-flor?  Tão pequenino e tão belo, ele nos dá a ideia de uma pedraria voando, uma joia dotada de asas.

 

Há animais que podem ser muito frágeis, mas na sua fragilidade são também muito ágeis. E a agilidade lhes dá uma capacidade de avançar, de fugir e de voltar, que constitui a sua força. Uma ave que me dá muito essa impressão é o beija-flor.

Analisando um beija-flor

Lembro-me de uma vez em que eu estava trabalhando num terraço e, de repente, um beija-flor parou e começou a sugar o néctar que ele encontrava nas flores de uma trepadeira. Era um beija-flor de muito bom gênio e que se contentava com pouco, porque não parecia haver muito néctar naquelas esquálidas flores. Mas, enfim, o beija-flor sugou flor por flor. Interrompi o que eu estava fazendo e fiquei, em silêncio, olhando o beija-flor, com o cuidado de não o atrapalhar.

Ele, tão inflexível em voar, na hora de sugar tremia e avançava, com mil movimentos, em torno da flor, tirando todo o néctar que podia e batendo com as asas de tal maneira que nenhum dos movimentos imitava exatamente o outro, e nenhuma das vibrações repetia a outra; parecia um instrumento tocando uma música sempre nova.

Eu pensava: “Ele tem lá suas regras, que não conheço, mas afinal quando ele vai acabar?” Então sugava, sugava, e, de repente, da maneira mais inopinada, tomando conhecimento de que não havia nada, ou quase nada, a aproveitar da flor, deixava-a de um modo tão completo que era como se nunca aquela flor tivesse existido para ele; e, sem vacilação, ia direto para outra flor.

Então eu refletia: “É a própria imagem da decisão. Quando é hora de sugar, faz força e suga; quando é hora de partir, abandona, rejeita e deixa a coisa reduzida a bagaço”.

Aquele beija-flor não conhecia o sentimento brasileiro de saudade: ele abandonava cada flor sem rancor, mas também sem saudade. Eu tinha a impressão de que depois de tirar o último néctar ele ficava meio liberado, e então voava e recomeçava em outro lugar.

Uma joia preciosa criada por Deus

O voo do beija-flor tem certa beleza, mas é tão rápido que não dá tempo de se contemplar. Porém, quando ele para junto a uma flor, movimenta as asas e começa a sugar o néctar, a beleza de suas penugens, a riqueza das penas furta-cor são ainda mais ressaltadas.

Ele fica parecido a uma joia preciosa que Deus criou para o homem poder olhar e nunca segurar, e ter o encanto da coisa fugidia que passa, a qual, neste vale de lágrimas, é para nós uma esperança do Céu.

Uma outra característica do beija-flor é que ele foi feito para ser fugaz. A Providência criou nesta Terra de exílio uma porção de coisas fugazes ótimas — que deixariam de ser ótimas se não fossem fugazes —, para nos dar uma tinta do Céu. Sendo aqui Terra de exílio, elas não podem dar essa impressão estavelmente. Mas Deus teve pena de nós e mandou um vaga-lume do Céu para a Terra, para acender e apagar, fazendo-nos entender algo do Céu.

O momento auge da vida do beija-flor

Quando o beija-flor começa a sugar o néctar de uma flor, em primeiro lugar se percebe o tamanho do bico, o qual é propriamente bonito quando imerso na flor. O ponto máximo, o auge da vida do beija-flor é o momento em que ele suga o néctar de dentro da flor.

De maneira que aquela agilidade de estar o tempo todo voando e absorvendo o néctar, aquele poder de conquista com que ele mete o bico na flor, e, de outro lado, a beleza do movimento de suas asas, fazem dele uma espécie de joia volátil.

É o relacionamento dele com a flor que o põe nessa postura. Quer dizer, no momento em que ele faz aquilo para o que foi criado, todo o seu esforço faz ver o que há de excelente dentro dele e o apresenta no seu melhor aspecto; o mais louvável que há no plano de Deus a respeito do beija-flor se vê ali.

Voo radical

Seu voo é parecido com uma seta: depressa e reto. Dir-se-ia que o bico dele fende os ares, as distâncias, e chega direto ao ponto onde, de longe, o beija-flor já viu o que deve atingir.

Ele se aproxima da flor, enfia o bico na corola e dali tira o que quer. Sai cheio de coisas doces que estão na natureza da flor; e sai vitorioso porque foi radical. Ele voa leve, rápido, forte e depressa: é um voo radical.

Mais ainda: ele escolhe o que deve querer e acerta o material necessário para fazer aquilo que está na sua natureza fazer. Uma vez que se lança sobre uma flor, tira de dentro dela todo o seu suco delicioso, fica com um aroma de flor e uma beleza de pedra preciosa. Uma verdadeira maravilha!

Mais do que tudo, o beija-flor é radical no seguinte: ele dá vários voos a diversas plantas da mesma natureza, em todas elas mete o bico e sai levando as mesmas doçuras para se alimentar, ficar com um colorido mais bonito, um movimento mais ágil. Ele ganha em todos os sentidos da palavra; e ganha à força de radicalidade.

Todo o trabalho do beija-flor — quer o voo, quer a sucção — é feito com tanta leveza, delicadeza e distinção que até parece uma dança. Entretanto, é muito mais do que dança: é um voo. Porque o homem, quando dança, mostra seu encanto com o voo. Mas quem dança mesmo são os pássaros no céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 31/1/1980, 20/1/1990, 5/4/1990 e 28/1/1994 )

 

A oração tudo vence

Se alguém entre vós está triste, reze!”, dizia o Apóstolo São Tiago em sua epístola (Tg 5, 13). Tudo podemos obter através da oração. Dr. Plinio, acerca de um belo fato descrito por Louis Veuillot, nos mostrará quão importante é termos uma vida cheia de piedade e de confiança na bondade de Nossa Senhora e de seu Divino Filho.

 

Com seu atraente e luminoso estilo, Louis Veuillot(1) escreveu o livro “Parfum de Rome”, onde reúne notas sobre uma de suas viagens à Cidade Eterna,  que até 1870 esteve sob o poder temporal do Papado.

Diário de uma alma em busca da virtude

Nessa obra lemos este trecho, muito bonito, por diversas vezes objeto de meus comentários:

“Num quarteirão deserto, nos muros de uma igreja, Enrico (é o próprio Veuillot), copiou e traduziu para mim as inscrições seguintes, traçadas a lápis por uma mão firme e exercitada [portanto, é um anônimo que escrevia isto]: ‘No dia 14 de setembro eu me encontro com má saúde por minha culpa, pela inquietação e pela desobediência. A partir deste momento, onze horas da manhã, decidi, com a ajuda de Deus e de Maria Santíssima, não mais me atormentar, e recuperar a verdadeira paz. São José, rogai por nós. Um mês depois: 14 de outubro. Até este momento ainda não consegui, ou melhor, não obtive o que escrevi no dia 14 de setembro, mas agora decidi fazer tudo.”

Sabemos que, nos primórdios de nossa vida espiritual, geralmente sucede isto: tomamos uma decisão e nos convertemos. Após um mês, fazemos exame de consciência e verificamos que quase nada progredimos. Então resolvemos cumprir todos os propósitos estabelecidos anteriormente, como manifestou a pessoa à qual o texto se refere.

“Dia 15 de novembro: renovo tudo aquilo que prometi, a fim de chegar a executá-lo. Dia 23 de novembro: falhei, mas prometi a mim mesmo, com toda a alma, de executar. Dia 28 de novembro: decidi ser bom. Dia 31 de dezembro: quero obedecer sempre, para agradar Maria Santíssima até a morte. 28 de janeiro: não há mais inquietação, por amor a Maria Santíssima, e renovo hoje aquilo que tinha deliberado no dia 1º de janeiro. Dia 1º de março: Não. As inquietações cessaram. Dia 29 de março: Não mais me atormentar, não mais pecar.

Nas duas últimas datas, a inscrição está rodeada de um desenho que representa duas palmas formando uma cruz. Devo confessar que estas declarações, feitas ingenuamente por uma alma provada e enfim vitoriosa, não me tocaram menos do que se eu as tivesse lido nas catacumbas, das quais elas parecem ter o perfume…”

O mesmo admirável aroma dos primeiros martírios

É deveras bonito o comentário de Veuillot, cujo trecho nos leva a admirar o triunfo da graça. Pois trata-se de uma alma que em diversas oportunidades firmou boas resoluções, sem lograr mantê-las. Em seguida, renovava os bons propósitos e tinha novas quedas. Afinal, à força de rezar — era uma pessoa piedosa, ciente de que sem o auxílio divino, implorado com perseverança,  nada alcançaria — obtém o que tanto almejava. Depois de muito tempo e de vários insucessos, conquistou a vitória na sua vida espiritual.

Era uma alma perseguida por inquietações (talvez escrúpulos, ou alguma má inclinação à qual ela dava consentimento) e até revoltada, porque não obedecia a uma certa autoridade cujas determinações deveria acatar. Após as recaídas, e à custa de orações, acabou chegando um determinado momento em que ela pôde dizer-se obediente, pacífica e tranquila. Então, com o senso artístico peculiar ao italiano, adornou com duas palmas as datas que representavam a sua vitória.

Considerando que essas notas traduzem uma situação comum em qualquer trajetória espiritual, somos levados a perguntar porque a pessoa em questão resolveu gravá-las nos muros de uma igreja. Certamente porque foi o lugar onde recebeu uma graça particular, e onde, a horas furtivas, vinha inscrever na pedra do templo a sua confissão a Deus. Essa alma traçou ali seu diário, por desígnios da Providência, a fim de que fosse copiado e analisado por Louis Veuillot. E é este comentário do grande literato que nos interessa.

Diz ele que o fato era digno de estar escrito na parede de uma catacumba romana, pois tem o perfume dela. Ora, isso nos mostra o caráter perene da Igreja; revela-nos como, nas condições da vida hodierna, é possível repetir toda a glória do seu remoto passado. Com efeito, uma alma fiel que luta contra suas próprias misérias e que, apesar das infidelidades, roga constantemente o socorro de Nossa Senhora, para se ver resgatada de suas faltas e livre do império delas — essa alma realiza algo tão belo quanto o cristão que enfrentava no Coliseu, ou em outra arena, os leões e os tormentos do martírio.

Realmente, para quem conhece o valor das coisas espirituais, a seriedade e o desejo de cumprir o dever, o saber se humilhar quando se cai, decidir levantar-se de novo e confiar na misericórdia de Maria, possui um perfume admirável.  É o bom odor do sofrimento humano suportado com fé. No episódio descrito por Veuillot se percebe a alma sofredora que se dilacerou para conseguir a fidelidade aos seus propósitos. Ela teve uma fé que move as montanhas, e finalmente alcançou seu objetivo.

Ora, esse torcer e sangrar da alma para cumprir seu dever é uma forma de imolação que tem o aroma de todos os martírios. Quiçá não ateste o heroísmo num grau análogo ao daqueles cristãos sacrificados nos circos romanos. Porém, basta manifestar um certo sentido de heroísmo para exalar algo do perfume das catacumbas, todo feito do espírito de epopeia dos primitivos católicos que as frequentavam.

Orar sempre, orar muito, sem desânimo

Cumpre colhermos dessas considerações uma aplicação para a nossa vida espiritual. E será compreendermos que jamais devemos desanimar quando não conseguimos observar os bons propósitos que fazemos. Ainda que tenhamos insucessos, é necessário rezar, confiar e orar mais, porque à força de pedir, o Céu se abrirá para nós. Os que imploram com insistência a graça de praticar a virtude, por débeis que sejam, pertencem por excelência à categoria daqueles aos quais Nosso Senhor recomendou: “Batei e abrir-se-vos-á; pedi e dar-se-vos-á”.  Quer dizer, é uma glorificação da prece como meio eficaz para o homem obter aquilo que, pelo seu próprio recurso, não alcançaria.

Alguém poderá dizer: “As minhas orações valem pouco”.

Eu respondo: então reze muito. Pois se possuo apenas algumas moedas para adquirir uma joia bastante valiosa, é-me necessário reunir uma grande quantia para comprá-la. Assim também, se julgo que minhas orações valem pouco, à força de acumulá-las, seu peso há de crescer. Se considero meu Rosário insuficiente, recitarei dois. E se não tenho tempo para os dois, direi um Rosário e uma Ave-maria. Como quer que seja, rezarei o mais possível, e essa persistência acabará por me alcançar do Céu a graça desejada.

A esse respeito, não posso deixar de mencionar, uma vez mais, a célebre parábola de Nosso Senhor no Evangelho. É noite, e um homem já se encontra deitado com seus filhos, para dormir. Em certo momento, o vizinho lhe bate à porta, rogando-lhe um pedaço de pão.

— Chegaram hóspedes inesperados, e não tenho o que lhes servir — disse-lhe.

E o primeiro respondeu:

— Não posso atendê-lo, pois estou deitado com todos os meus filhos.

O vizinho continuou a bater e a insistir, até que o dono da casa lhe gritou:

— Não é por amizade, mas para me ver livre da sua amolação é que vou me levantar e lhe dar o pão.

Com essa parábola Nosso Senhor nos oferece o seguinte ensinamento: “Sede assim em vossas orações”. É como se Deus acabasse dizendo a cada um de nós: “Este é muito cacete. Vou atendê-lo”.

Tenhamos, pois, a excelsa virtude da caceteação. Saibamos ser importunos e pedir, pedir e pedir outra vez. No pedido mil e um obteremos mais do que suplicamos. Ganharemos uma paga imensamente grande.

Essa circunstância se dá de um modo ou de outro na vida de todos os homens, mesmo na daqueles que se acham adiantados na prática da virtude. Para galgarem um patamar ainda mais elevado nas vias do bem, é necessário rogar muito. Então peçamos, lembrando-nos desse diário visto por Louis Veuillot em Roma. A oração acaba vencendo tudo.

Uma palavra final. Se alguém estiver desanimado, desacoroçoado, julgando infrutíferas suas preces porque nada conseguem, dou-lhe este conselho: tome o Rosário, reze-o e nunca o abandone. Quando não puder recitá-lo, segure-o na mão e este gesto valerá por uma prece. Se possível, tenha em casa uma lamparina acesa constantemente junto a uma imagem de Nossa Senhora, e diga à Santíssima Virgem:

“Minha mãe, sou tão dissipado que não consigo rezar. Mas, quando olhardes para esta lamparina, lembrai-Vos de que eu quereria estar rezando. Ao menos este desejo subconsciente me acompanha a vida inteira”.

Portanto, dirijamo-nos a Maria Santíssima em todas as ocasiões. Certo estou de que, se Ela demorar em nos atender, é porque nos reserva um dom imensamente valioso, muito maior do que podemos imaginar.

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Louis Veuillot (1813-1883), jornalista católico francês, que defendeu com brilho a infalibilidade do Papa.

 

A entrega do Brasil ao Imaculado Coração de Maria

Tomando conhecimento de uma iniciativa que visava colocar nas mãos da Santíssima Virgem o Brasil, Dr. Plinio a apóia calorosamente.

 

Atendendo com a maior satisfação ao amável convite dos beneméritos Padres cordimarianos, venho prestar minha pequena contribuição para a vitória da gloriosa campanha, agora movida em  tantos lugares, em prol da consagração do Brasil ao Coração Imaculado de Maria.

Jamais será suficiente encarecer a importância desta providencial consagração. É possível que alguns católicos não percebam desde logo o que ela significa. Com efeito, dirão, a devoção a Nossa  Senhora é de tal maneira fundamental no católico, e se encontra tão fundamente enraigada no coração brasileiro, que qualquer trabalho que se faça no sentido de uma consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria não logrará causar nos espíritos impressão muito profunda. Entre nós, a devoção a Nossa Senhora atingiu seu zênite. Insistir neste assunto é, de certo modo,  consumir tempo e forças na afirmação de um ponto pacífico, enquanto tantos e tantos outros pontos estão a reclamar nosso zelo e combatividade.

Esta argumentação [resulta] de uma série de pressupostos improcedentes. Em primeiro lugar, não se pode dizer propriamente que em qualquer país do mundo a devoção a Nossa Senhora tenha atingido seu zênite. É tal o amor, tão profundo respeito que se deve tributar a Nossa Senhora no culto de hiperdulia que lhe devemos, que Maria Santíssima jamais será suficientemente amada nem louvada pelos fiéis: “de Maria nunquam satis”. Assim, jamais será tempo perdido acentuar a devoção dos fiéis à sua Mãe celestial.

Aliás, se é certo que, graças a Deus, existe no Brasil uma ardente devoção a Nossa Senhora, ninguém poderá negar que essa devoção, como tudo quanto é bom, é passível de prejuízo e decréscimo  neste triste vale de lágrimas. Incrementar por todos os modos a devoção a Nossa Senhora significa, pois, evitar que essa devoção fique exposta aos riscos naturais que decorrem das incertezas do coração humano. E, finalmente, se é certo que nossa devoção é muitas vezes intensa, nem sempre é tão esclarecida quanto seria de se desejar.

Sendo Maria Santíssima a nossa Mãe, é óbvio que nossa devoção para com Ela se deve revestir de caráter de acentuada ternura. Enganam-se, entretanto, os que [pensam que] essa ternura sobrenatural pode confundir-se com certas expansões românticas e sentimentais em que se cifram por vezes algumas manifestações de piedade. São indispensáveis bons e sólidos conhecimentos sobre a posição de Maria Santíssima na economia da graça divina, para que a devoção mariana se torne sólida e perfeita. Ora, a consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria constituiria excelente oportunidade para se divulgarem com método e perseverança os admiráveis ensinamentos da Santa Igreja sobre tão fundamental matéria.

Mas, é preciso acentuá-lo, os que propugnamos pela consagração do Brasil ao Coração Imaculado de Maria, se bem que apreciemos no seu alto e devido valor estes frutos  de tão solene ato, temos em vista um resultado muito mais alto e mais profundo.

Queremos que nossa Pátria seja consagrada ao Coração Imaculado de Maria antes de tudo e acima de tudo porque Maria Santíssima tem direito a esta homenagem. A realeza de Nossa Senhora, como função da realeza de seu Divino Filho, não pode ser posta em dúvida pelos católicos.

Rainha de todo o universo, Maria Santíssima já foi coroada Rainha do Brasil pela mão do ínclito Arcebispo do Rio de Janeiro, com coroa enviada especialmente pelo Santo Padre. Consagrado o  Brasil ao Imaculado Coração de Maria, consagramos o reino ao coração da Rainha, e, com isto, fazemos um ato excelente de confiança filial em sua misericórdia, e, ao mesmo tempo, atraímos  graças maiores e mais abundantes para nossa Pátria.

Não se trata aí de meras figuras de literatura. Trata-se de realidades sobrenaturais. O reinado de Maria Santíssima sobre o Brasil não é alegórico ou simbólico: é real. Nossa consagração também  não deverá ser um ato feito só para estimular as multidões e dar expansão, por meio de gracioso símbolo, a nosso afeto. Será um ato de caráter sobrenatural, que, se Deus quiser, se realizará em  todas as suas conseqüências. Consagrado o Brasil a Nossa Senhora, pertenceremos mais a Ela, e com nossa doação repararemos de modo mais conveniente todos os ultrajes que a Ela ou a seu  Divino Filho temos feito. E, ao mesmo tempo, Ela será mais nossa. Aceito nosso dom, sua assistência e sua proteção sobre nós serão ainda mais contínuas, mais vigilantes, mais misericordiosas.

Como se vê, não pode haver causa mais digna de ser apoiada com entusiasmo pelos fiéis do Brasil inteiro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito da revista “Ave Maria”, de 31/7/1943)

Sacrifício e Heroísmo: frutos da Civilização Cristã

Na província de Albacete (Espanha) está situada a fortaleza de Almanza, uma das mais características dessa terra de castelos. Ao comentar fotografias de tal baluarte, Dr. Plinio correlaciona o espírito dos homens que o construíram com as mentalidades contemporâneas.

 

Vou descrever como imagino a grandeza contida nesta fotografia. Em primeiro lugar é necessário fazer uma distinção entre dois campos visuais, admiravelmente harmônicos, entretanto perfeitamente distintos: o castelo propriamente dito, com a montanha que lhe serve de fundamento, e o conjunto de nuvens que emolduram extraordinariamente o castelo e completam sua beleza.

O castelo, conjugado às nuvens, faz centrar toda a atenção de quem o observa em sua torre. A torre, por sua vez, causa uma impressão de altaneria, dignidade e majestade extraordinária. Tem-se a impressão de que ela enfrenta, do alto do monte, o inimigo que vem ao longe. Enfrenta com galhardia, olhando como quem ameaça e diz: “Chega que eu te abato! Não te temo!”

Não é jactância da torre, pois a fotografia é tirada com tanta arte que se percebe atrás outras muralhas do castelo, que mostram como ele é profundo e quanta fortificação contém, quanta tropa possui e quantos outros elementos a torre apresenta para vencer. O atrevimento da torre, fidalgo atrevimento, tem a sua razão de ser: o castelo é poderoso e a torre nada teme!

Colocando-se na posição de um comandante do castelo, postado no alto da torre, vendo de longe o inimigo que avança, tem-se a impressão de que a torre personifica tudo quanto há de heroico na defesa da fortificação. Entretanto, esse comandante desafia dois adversários: um que vem de longe, caminhando na terra, em tropel de cavalaria —cavaleiros armados, espadas, lanças, olifantes —, ameaçando chegar, escalar a muralha que muito se assemelha com a torre. Mas há também outro adversário: são as nuvens do céu.

Estas nuvens se acumulam densas, majestosas, grossas, um tanto luminosas, de um lado e de outro, escuras, carregadas, expressando possibilidades de glória na parte luminosa, mas de certo ar de ameaça e de luta, expressa na parte sombria. Poder-se-ia dizer que essas nuvens simbolizam a tremenda batalha que deve dar-se.

Seria como que a voz da História dizendo ao comandante do castelo: “As ameaças da vida pairam sobre ti; chegou a tua hora de lutar! Sê herói ou serás esmagado!”

Voltando os olhos novamente para o castelo, é possível notar algo curioso: a impressão de o castelo estar dominando a rocha que está debaixo dele. É uma “garra” que domina a rocha. Tal domínio dá-se de tal forma que é possível notar, na muralha frontal, a rocha que “escalou” a muralha e subiu quase até em cima. O castelo está em luta com a rocha e diz com desdém: “Tu não me alcançaste.”

No tempo das guerras de arma branca, tempo este em que tais construções tiveram seu significado, havia um inconveniente em que essas rochas estivessem tão próximas da fortaleza, porque davam ao adversário a esperança de escalá-las e saltar a muralha. Entretanto, era tão trabalhoso e difícil que certamente os inimigos preferiam contemporizar por sentirem a impossibilidade de abater tão imponentes muralhas. Certamente, por detrás das pulcras e nobres ameias, havia um elemento de defesa com o qual o adversário deveria tomar consideração, dando-lhe muito receio de subir. É o fato de que provavelmente na parte alta do muro houvesse instalações para fazer fogo e com ele ferver água e derreter chumbo. De maneira que bastava o adversário iniciar a escalada das rochas, para sobre ele virem torrentes de água fervente que lhe entravam armadura adentro queimando todo o corpo.

Pior do que a água fervente era o chumbo derretido, pois produziam espantosas queimaduras. Secavam na armadura e nas junções desta, imobilizando o combatente, deixando-o com os braços e as pernas hirtos. Sem armadura, o guerreiro era um boneco à mercê de qualquer espada. Desta maneira, a pedra era até certo ponto uma cilada para o adversário. Se fosse ignorada a existência de recursos como este, estava liquidado. Era ao mesmo tempo a rocha da cilada e a rocha da vitória.

Nota-se uma luminosa abertura, que certamente foi feita quando cessaram as guerras contra os mouros, em Espanha, e os castelos perderam sua significação militar. Os castelos deixaram de ser fortalezas, passando a residências de senhores feudais, proprietários de extensos territórios, que lá levavam uma cômoda e despreocupada vida no interior de suas muralhas.

Iniciou-se então o período em que os castelos tornaram-se ornamentados de móveis preciosos, tecidos importados, quadros valiosos. O castelo destinava-se ao esplendor da vida, após ter sido dedicado ao heroísmo.

Algo que provavelmente não existia no tempo em que os castelos tinham o seu significado militar, é a vegetação que o circunda. Certamente, no tempo das batalhas, estes prados estavam arrasados. Eles não permitiam que crescesse vegetação, por ser um lugar onde o inimigo poderia se dissimular, nas cercanias do castelo. Era necessário haver uma planície para o inimigo não se ocultar das flechas que, do alto do castelo, lançassem contra ele.

Seus muros e suas paredes receberam os raios calcinantes do sol de Espanha, como também as gélidas chuvas dessa terra. Quando maltratada pelo tempo, a pedra adquire uma beleza fora do comum. Considerando a cor dessa pedra, dir-se-ia que é de âmbar ou de porcelana, e não pedra corrente.

Qual seria a adequada missão de um castelo desses?

Recordar à alma egoísta do homem contemporâneo algo que deve envergonhá-lo: a perda do senso de sacrifício. O homem hodierno perdeu o anseio da luta, não sabendo mais o que é ser herói. Para as civilizações acorcovadas dos dias atuais, o castelo é uma lição de moral proclamando a grandeza de alma dos espanhóis da Reconquista, que por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica foram “povoando” a península ibérica de fortalezas, à medida que iam reconquistando a Espanha, a fim de que os mouros não pensassem em voltar jamais. Caso quisessem retornar, encontrariam essa rede de castelos opondo-se a eles. A realidade é que uma vez expulsos, nunca mais voltaram!

Heroísmo cristão! Heroísmo nascido no momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo expirou na Cruz e redimiu o gênero humano. De seu costado transpassado por uma lança nasceu a Santa Igreja Católica que produziria depois frutos como este.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/51984)
Revista Dr Plinio 138 (Setembro de 2009)

 

São José de Cupertino, modelo de despretensão

Até mesmo os homens pouco dotados naturalmente, tornam-se capazes dos maiores sucessos quando fazem a vontade de Deus. Eis São José de Cupertino, um eloquente exemplo da omnipotência divina:

Há uma ficha biográfica(1) sobre São José de Cupertino digna de comentário:

Se houve um homem pobremente dotado de qualidades naturais, este foi José de Cupertino.

No momento do seu nascimento, devido às dívidas de seu pai, apreendiam o mobiliário de sua família, e sua mãe viu-se na contingência de dar à luz num estábulo.

Filho de artesãos, atrofiado, doentio, desprezado por todos, escarnecido pelos amigos que o chamavam de “Boca Aberta”, foi também repudiado pela própria mãe. Com uma úlcera gangrenosa, passou a infância entre a vida e a morte, até ser curado por um religioso.

Ele era incapaz de passar num exame; impossibilitado de manter uma conversa; não conseguia cuidar de uma casa nem tocar num prato sem quebrá-lo; tinha aspecto inútil e de quem presta poucos serviços.

Quando, mais tarde, quis abraçar a vida religiosa, enfrentou as maiores dificuldades. Entrou para os capuchinhos como converso, mas sua incapacidade natural e sua preocupação sobrenatural como que se uniam para torná-lo inepto para com tudo. Chamava-se a si próprio Frei Burro.

Enquanto seu desajeitamento patenteava-se, sua santidade não era percebida por ninguém.

Acabaram os religiosos por considerá-lo absolutamente insuportável. Arrebatado em êxtase em meio aos cuidados do refeitório, deixava cair os pratos e as travessas, cujos fragmentos lhe eram colados no hábito em sinal de penitência.

Servia pão preto em lugar de pão branco. Para transportar um pouco de água de um lugar para outro, foi-lhe preciso um mês inteiro. Finalmente, considerando que ele não servia nem para os serviços materiais nem para a vida espiritual, despediram-no do convento.

Expulso ainda de outras casas religiosas, José acaba sendo admitido no convento de Grotela. Neste novo convento foi incumbido do tratamento de uma jumenta.

Ele mal sabia ler e escrever e queria ser sacerdote. Nunca pôde explicar nenhum dos textos evangélicos, exceto o que continha as palavras “bem-aventurado o ventre que te trouxe”.

Ao fazer o exame de diaconato, o Bispo abre o livro dos Evangelhos ao acaso, e manda o candidato comentar a frase “bem-aventurado o ventre que te trouxe”.

José explicou superiormente. Restava o exame para o sacerdócio. Ora, todos os postulantes, exceto José, sabiam a matéria com perfeição. Os primeiros que fizeram o exame, fizeram-no de maneira tão brilhante que o Bispo parou antes de ter examinado a todos. E, julgando a prova inútil, admitiu em conjunto os que restavam, entre eles, José.

No dia 4 de março de 1628, José tornou-se sacerdote, a despeito dos homens e das coisas, apesar de todas as suas incapacidades reconhecidas, mas esquecidas.

Em que sentido São José de Cupertino é modelo dos católicos?

O santo canonizado pela Igreja é indicado como modelo para todos os católicos. Ora, não é vocação de todos os homens serem tão desprovidos de capacidades quanto São José de Cupertino… Devemos, então, nos perguntar em que sentido ele pode ser considerado modelo, e assim ser admirado e imitado por todos os fiéis.

O admirável equilíbrio da Igreja, mestra da Sabedoria

Há na Santa Igreja um aspecto admirável: ela é a mestra da Sabedoria, a mestra do equilíbrio. Ou seja, a Igreja Católica aponta com exatidão para o equilíbrio entre coisas aparentemente inconciliáveis.

Assim, a Igreja tem suscitado inúmeros santos de uma inteligência extraordinária, santos reis ou imperadores; mas também tem elevado aos altares homens pouco capacitados, desprovidos de valor pessoal, como São José de Cupertino.

Como harmonizar ambas as coisas?

Operar segundo a vocação específica

Quando alguém ama a Deus com todo o empenho de sua alma, procura cumprir tudo quanto está em sua vocação fazer. O homem eficiente não é o que faz algo fora de sua vocação. O cúmulo da ineficiência é operar fora de seu chamado pessoal.

Imaginemos uma orquestra cujo violinista tocasse não com um violino, mas com um violão. Desse modo ele atrapalharia a orquestra inteira, pois tendo uma função dentro do conjunto e executando-a de modo indevido, sua eficiência chama-se atrapalhação…

Ora, isto se passa com cada homem. A ordem das coisas consiste em operar de acordo com os planos da Providência. Quem “toca” fora dos planos de Deus, quanto mais eficiente seja, tanto mais errado está!

De maneira que um homem deve perguntar-se se está sendo capaz de executar a vontade de Deus a respeito de si, ou não.

Para fazer a vontade de Deus não é preciso ter inteligência, mas, sim, amor

Para realizar os planos da Providência é necessário observar a vontade de Deus, amando-O sobre todas as coisas, até o completo esquecimento de si próprio.

Com quem procede deste modo, Deus dispõe de tudo para realizar seus desígnios para com aquela alma. Por essa razão, antes mesmo de procurar conhecer os talentos de um homem, deve-se perguntar se ele ama a Deus e conhece os planos de Deus a seu próprio respeito.

Então, conhecer significa ser capaz de distinguir a vontade de Deus, e para tanto não é necessário ter inteligência, basta ter amor.

Para admirar os planos de Deus, urge amá-Lo inteiramente. E para quem O ama, Deus realiza grandes maravilhas a fim de que seus planos tornem-se realidade. Basta apenas notar como Deus Se fez servir por santos de todos os níveis e de todas as espécies de capacidade.

Pois a Providência ora suscita homens como São Tomás de Aquino ou Beato Angélico, com uma evidente capacidade natural; ora suscita um pobre incapaz como São José de Cupertino, o qual, por ser um verdadeiro santo e atender aos desígnios da Providência, fez a obra de Deus.

Assim, Deus faz brilhar todos os seus santos, permitindo que eles realizem maravilhas superiores às suas próprias energias, possibilidades, talentos ou capacidades, porque estão nas vias da Providência e realizam a sua obra.

Nos dois extremos da capacidade humana, de São José de Cupertino a São Tomás de Aquino, os santos sempre realizaram muito mais do que sua capacidade natural permitiria.

Apontando para o verdadeiro valor da vida

Numa sociedade fortemente hierarquizada, cujas riquezas aumentavam cada vez mais, onde o prestígio era um bem distribuído largamente por todas as camadas sociais, era necessário haver um contrapeso que equilibrasse os homens na virtude. Esse equilíbrio era feito por pessoas que abandonavam tudo, e que por seu exemplo ajudavam os que não eram chamados a uma completa renúncia a desapegarem-se interiormente dos bens que possuíam.

Caso São José de Cupertino — famoso por suas limitações e incapacidades — percorresse alguma cidade com as multidões afluindo à sua volta, e numa outra alameda passasse, por exemplo, um mestre universitário cortejado pelos estudantes — que naquele tempo estendiam suas capas ao chão para o professor, em honra da magnífica exposição que os deixara entusiasmados —, qual não seria a grande lição para o professor inteligente, notar a glória de São José de Cupertino e compreender que toda a glória de sua própria inteligência não era nada, caso não fosse orientada para Deus?

Compreende-se então como tal atitude auxiliava os grandes da Terra a compreenderem o que significa a verdadeira grandeza e a mantê-la dentro de seus limites, fazendo com que ela fosse bondosa, dadivosa, generosa, e existisse para o bem de todos, e não somente para mandar.

O maravilhoso equilíbrio dos extremos harmônicos

Evidenciam-se então os equilíbrios maravilhosos da Igreja.

Assim, o casamento mantinha-se indissolúvel, porque havia homens e mulheres que, praticando uma castidade perfeita, renunciavam constituir família; havia gente capaz de fazer bom uso da conversa, pois existiam almas que se votavam ao silêncio perpétuo por amor a Deus. Deste modo, os indivíduos eram capazes de fazer bom uso da riqueza, porque certas Ordens religiosas eram entregues à mais completa observância da pobreza, como, por exemplo, os franciscanos.

É levando, de um lado, a pobreza até seu último extremo que, de outro lado, se torna possível levar ao último extremo a riqueza. O rico será equilibrado na posse de sua riqueza e fará dela um uso benfazejo, desde que veja o exemplo daquele que renunciou a coisas que estão em suas mãos. Com o exemplo do religioso que fez o voto de pobreza, o rico poderá utilizar-se de suas riquezas; assim como o homem sociável e brilhante, que reúne uma grande roda em torno de si, e torna-se um dos centros da vida social de sua cidade, poderá fazer bom uso desse prestígio se tiver próximo de seu ambiente um convento de freiras que nunca falam.

Essa perspectiva leva todas as coisas aos seus extremos harmônicos. E a Santa Igreja obtém aquele equilíbrio maravilhoso de que é verdadeira mestra.

Essa é a verdadeira forma de compreender a vida de São José de Cupertino. Pois ele é um dos extremos da Civilização Católica. Extremos, entretanto, conciliáveis.

No Céu, será possível ver, lado a lado, São José de Cupertino e São Tomás de Aquino venerando a Nossa Senhora, e adorando a Nosso Senhor Jesus Cristo, cantando juntos, por toda a eternidade, hinos.

Os metafísicos ensinam que a harmonia perfeita não é aquela que reúne coisas análogas ou iguais, mas sim aquela que cobre uma imensa gama de diferenças, encontrando pontos de analogia e mostrando onde essa harmonia se produz.

Abandonado até por Deus…

Há ainda outro interessante aspecto da vida de São José. Continua a ficha:

A miséria material a que se condenara complicou-se com uma miséria interior bem diversa: as consolações com que fora amparado desde a infância deram lugar a uma secura triste e sombria, que aumentava a cada dia.

Escrevia ele a um amigo: “Eu me queixava muito de Deus, com Deus”.

Que linda frase! Queixar-se de Deus com Deus. Também Nossa Senhora procedeu assim ao dizer a seu divino Filho: “Meu filho, por que fizeste isso?”

É uma linda atitude: fugir de Deus para dentro dos braços de Deus. Como isso é superior!

Eu havia deixado tudo por Ele, e Ele, em vez de me consolar, me entregara a uma angústia mortal.

Percebe-se neste trecho o valor dos bens espirituais sobre todos os outros. Ele era privado de todos os bens da Terra, porém, não se incomodava. A partir do momento em que lhe faltaram as consolações espirituais, ele soube recorrer a Deus.

Um dia, como eu chorasse, como eu gemesse — só de pensar me sinto morrer —, um religioso bate-me à porta. Não respondo.

Ele entra, e diz: “Frei José, que tens? Aqui estou para servir-te. Olha, aqui está uma túnica. Pensei que não tinhas túnica”.

Efetivamente, minha túnica caía aos pedaços. Vesti a que trazia o desconhecido e todo o meu desespero desapareceu no mesmo instante. Ninguém reconheceu jamais o religioso que tinha trazido a túnica.

Diz a Sagrada Escritura: “Olhai os lírios do campo: não tecem nem fiam; entretanto, Salomão, em toda a sua pompa, não se vestiu como eles”.

Ora, o que é o suntuoso manto de Salomão comparado a essa túnica, trazida nessas circunstâncias, talvez por um Anjo do Céu?

A partir do momento em que lhe foi restituída a consolação, a vida de São José foi uma verdadeira maravilha.

Amar a Deus e andar em suas vias, só isso basta!

Que lição pode-se tirar da vida de São José de Cupertino?

Ele provou para os séculos futuros que um homem pode ser sumamente venerável, por mais que seja um rebotalho. Por mais desprezado que fosse, São José possuía a única coisa necessária: andar nas vias de Deus.

Essa realidade é uma lição de humildade para compreendermos quão grande se torna o homem que realiza os planos de Deus a seu próprio respeito, ainda quando a natureza em nada auxilia ou concorre para isto.

Se alguém se encontrasse com São José de Cupertino, como se sentiria pequeno e nulo, tendo a inclinação de se ajoelhar e pedir com respeito um conselho dele! Diante dele, cada palavra saída de seus lábios tomaríamos como uma gota do próprio manancial da sabedoria: Fra Asino falou, é uma lei, é um decreto. Tal é a glória daqueles que fazem a vontade de Deus, mesmo quando humanamente nada são.

O homem eficiente e bem sucedido é aquele que cumpre a vontade de Deus

O grande princípio que daí se conclui é que a maior forma de grandeza consiste em fazer a vontade de Deus.

Só teve uma vida digna de nota, na qual todas as aptidões e a luz primordial(2) atingiram seu ápice, o homem que, no momento de sua morte, considerando sua vida, vê o plano que Deus executou por seu intermédio e percebe que o desígnio de Deus se realizou. Quem no retrospecto de sua vida é capaz de notar isso, morre justificado. Esta é propriamente a felicidade.

O grande homem, o homem eficiente, resume-se em quem conseguiu cumprir plenamente a vontade de Deus a seu próprio respeito. Em latim, “facere” é um vocábulo que significa “tirando de dentro de si”. “Efficiens” é uma eficácia que sai de dentro de si mesmo. O homem eficiente é aquele que faz. Mas faz o quê? Faz a vontade de Deus, pois caso contrário será capaz somente de praticar erros ou crimes. Por essa razão, a única preocupação em matéria de eficiência deve ser esta: saber qual é a vontade de Deus.

O exemplo da Santíssima Virgem: “Eis a escrava do Senhor…”

Não poderia ser esquecido o sumo exemplo dado por Nossa Senhora.

Como Ela Se definiu a Si mesma para o Anjo que vinha lhe trazer o anúncio de Deus? No momento em que São Gabriel declarou que Ela seria a Mãe do Redentor, qual foi a fórmula por Ela utilizada para afirmar que aceitava esta honra inimaginável?

Ela lhe respondeu: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”. Ou seja, Ela Se definiu a Si própria como Aquela que realiza o desígnio de Deus expresso em sua palavra. Esse é o verdadeiro conceito de submissão a Deus: é a vontade d’Ele realizando-se em nós. O homem bem sucedido e eficiente, por excelência, é aquele que foi escravo de Nossa Senhora e fez a vontade d’Ela e de seu divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/10/1968, 25/10/1968 e 26/10/1968)

1) Não possuímos a fonte desta ficha.
2) Luz primordial: Dr. Plinio assim denominava a verdade ou virtude, ou o conjunto de verdades ou virtudes, que uma alma é especialmente chamada a admirar e praticar.

O Juízo Final e a trama da História – II

Ao tecer comentários sobre o Juízo Final, Dr. Plinio põe diante de nossos olhos o momento grandioso no qual Jesus Cristo, Pontífice, Profeta e Rei, receberá das criaturas toda a glória que Lhe é devida.

 

Ao longo de todo o Juízo Final, Nosso Senhor Jesus Cristo estará oferecendo e recebendo glória enquanto Pontífice, cujo sacrifício foi aceito; como Rei, cujo governo foi bem sucedido, cuja guerra foi levada ao fim; enquanto Profeta, que previu tudo quanto foi realizado. De maneira que tudo quanto for narrado no Juízo será a glorificação do Pontífice, do Rei e do Profeta. A obra da Criação estará concluída e começará o grande domingo da História.

Pontífice da Humanidade

É Nosso Senhor, enquanto Pontífice, que no Juízo Final oferecerá ao Padre Eterno tudo quanto aconteceu na História; pois, no fundo, é o seu plano que foi executado. Ele tem o direito de oferecer os sofrimentos de toda a humanidade, porque nos tornamos capazes de sofrer por causa d’Ele. O padecimento de Nosso Senhor, de Nossa Senhora, a Corredentora, comprou-nos a capacidade de padecer.

Ofereço, então, meu sofrimento por meio d’Ele, porque é o Pontífice que oferece todas as coisas ao Pai Eterno. Se eu oferecer sem ser por meio d’Ele, minha oferta não será aceita.

Então há um contínuo evolar de tormento, de dor, de infelicidade da Terra, um contínuo gemido que caminha para o Céu e vai se transformando num brado de vitória e de glória. Mais ou menos como soldados que estão lutando numa trincheira, isolados, abandonados; é um sofrimento medonho! Mas tudo isso se torna glorioso quando se dá a vitória.

Assim, as provações tremendas, as incompreensões, tudo deve ser oferecido nessa perspectiva.

E vai se fazendo a trama da História.

Rei da História

A realeza de Nosso Senhor mostra-se já na distribuição dos méritos, os quais são o fluxo vital da História. Ele, como Pontífice, conquista e, ao distribuir, reina.

Analisando uma fotografia da Sagrada Face, no Santo Sudário, nota-se que há algo de extraordinariamente luminoso no alto da fronte, como se fosse um brilhante; algo que de fato Lhe dá majestade e poder de decisão.

Pois bem, é o diadema de Nosso Senhor, o único rei que reinou com a cabeça coroada de sangue, após serem tirados os espinhos. Esse sangue tornou-se o brilhante, o divino Koh-I-Noor(1) d’Ele.

Na consideração dessa luminosidade, percebe-se como do pontificado se passa para a realeza. Quer dizer, Ele tem a realeza “par droit de naissance”(2) e por direito de conquista. Nosso Senhor sofreu tudo que era preciso para resgatar o gênero humano, e tornou-Se dono daquilo que Ele resgatou. A humanidade era de Satanás e Ele a comprou por esse preço; portanto, Jesus possui também a realeza por direito de conquista.

Como Homem-Deus, Nosso Senhor é Rei de todas as coisas. Rei por ser da descendência de Davi, não só sobre o povo eleito, pois Salomão era chamado a uma realeza de hegemonia moral sobre toda a Terra, a mais gloriosa das realezas. E essa realeza Jesus Cristo deveria ter sobre o mundo inteiro, se não fossem os pecados dos homens. Se Nosso Senhor se encarnasse no Paraíso terrestre, Ele a teria.

Na Sagrada Face há uma decisão de Quem, na sua inteligência, vontade, sensibilidade, é o Rei de tudo e dirige a História. Aquela é Fisionomia de Rei. Nada se compara a Ele; o próprio Carlos Magno torna-se uma figura fátua. Nosso Senhor manda e os outros têm que obedecer, custe o que custar. No meu modo de interpretar, nota-se que Ele está morto, mas com tanta vida nessa morte!

Profetismo e História

Percebe-se que há n’Ele algo de profundamente pensativo, quer dizer, uma sapiencialidade, um desígnio que está feito “in radice” e vai se realizar nos seus pormenores, de acordo com um alto plano. E nisso Ele se afirma Profeta.

É o plano que, na sua sabedoria, Ele concebeu enquanto Redentor. Como Rei, Nosso Senhor manda aos anjos que intervenham, movimenta toda a Igreja. E executa aquilo que seu profetismo previu.

E todos os homens serão julgados, premiados ou castigados, em função da afirmação, da proclamação da glória de Nosso Senhor, como Pontífice, Rei e Profeta. A nossa glória consistirá em ter participado da glória d’Ele.

Colocados esses elementos na cena, o Juízo chega a ser uma espécie de imenso ofertório, caminhando para a Consagração. Tudo isso pode ser comparado com uma imensa Missa.

No momento em que termina o julgamento, há a glorificação suma de Cristo, porque cada coisa que Jesus fez é boa e o conjunto ainda é melhor.

Não se pode imaginar — seria de certo modo uma apresentação pictórica — o julgamento dos homens numa espécie de “monoclave”, do início ao fim. Não. Trata-se de um drama que vai crescendo e termina num auge.

Várias nações poderiam ser salvas, se sempre considerassem esse fundo de quadro.

Mensagem de Fátima e “Grand Retour”

À vista desse panorama, compreendem-se melhor os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima, porque eles são prefigura do fim do mundo. Não devemos imaginá-los sem o significado que continuamente apresentarão, ou seja, de Nosso Senhor que resgatou, governa e é Profeta; e que vai sendo desagravado no curso dos acontecimentos pelo castigo dos maus, pela virtude de que dão prova os bons, e depois pela glorificação de Jesus Cristo e dos bons, na entrada do Reino de Maria.

Assim é que se compreende o “Grand Retour”(3). Creio que sem a aptidão de considerar as coisas dessa maneira, não temos propriamente formação para o “Grand Retour”.

Isso suprime visualizações insuportavelmente mesquinhas a este respeito, como considerações puramente individuais.

Compreendemos, assim, o papel de nossa vida nesse conjunto de fatos. Cada um de nós não é o mero indivíduo, apto a realizar um destino apenas individual. Mas tem um papel a representar nesta outra dimensão da História; esse papel está à nossa espera e devemos crescer até ele.

Nossa vida individual pode ter aspecto bonito, mas que se conecta com o outro; do contrário ela não tem sentido.

Cada um de nós, na medida em que se eleva, entra nesse papel histórico, e os outros de algum modo percebem quando nos identificamos com nosso próprio papel.

O homem que, a meu ver, mais facilmente se percebe ter se identificado com seu próprio papel foi Carlos Magno. Não digo que ele foi quem melhor se identificou, mas quem mais facilmente se percebe.

Vislumbramos aqui o assunto arquetipização. Cada homem é único e, nesta ordem superior de coisas, pode vir a ser arquétipo de possíveis.

Exceção que confirma a regra

Tratarei agora a respeito de Nossa Senhora. Deus confirmou n’Ela todas as regras da ordem, bem como as exceções que confirmam as regras.

Deus constituiu propriamente a seguinte exceção: criou todo o universo, e o homem à sua imagem e semelhança, mas deixou sempre muito claro quanto Ele o transcendia. Entretanto, para mostrar até que ponto Ele é análogo, criou Nossa Senhora, ornou-A de tal maneira e tornou-A tão excelente, que, para O entendermos bem, de preferência devemos olhar para Ela.

Alguns, inclusive, afirmam que é “Cristocêntrico” voltar-se para Nossa Senhora, de tal maneira Jesus está mais presente n’Ela do que em todas as outras criaturas.

Pode‑se dizer que Nossa Senhora é, de certo modo, uma concentração de tudo quanto expusemos? Parece-me que sim, no seguinte sentido:

A glória de Nosso Senhor, como Pontífice, Rei e Profeta, é tão grande, que no Juízo Final Ele coroa sua Mãe — com esplendores que não se poderiam imaginar ser possíveis a uma mera criatura — como Corredentora, Co-reinante e de algum modo Co-profetiza.

Seria preciso depois aprofundar, à luz da Mariologia, essas três funções d’Ela em tudo que acabo de descrever. Pois tudo seria menos belo, menos esplêndido, menos glorioso, menos magnífico, se a como que imaginação de Deus não estivesse presente.

Imaginemos um general que vence uma guerra, e um rei não sabe como glorificá‑lo. O general diz então ao monarca:

“Se vós quiserdes me glorificar de fato, nomeai Condestável do exército a minha própria mãe, e dai‑me o bastão para eu pôr nas mãos dela. Nesta hora eu estarei glorificado, porque ela lutou comigo, fez isso e aquilo com toda a perfeição.”

No momento em que o general entregasse o bastão para sua mãe, haveria a máxima glorificação dele.

Assim também, o epílogo é a grande glorificação de Nossa Senhora, no dia do Juízo. Com isto de especial: até Nosso Senhor cantaria a glória d’Ela. Poderíamos imaginá-Lo — se se pode falar em cronologia —, ao encerrar-se tudo isso, cantando o Magnificat, sozinho, e depois acompanhado pela Criação inteira.

Como seria sua voz e resplendores, cantando o Magnificat, olhando para Ela? Não sei se haverá Eucaristia então, mas, se houver, Ele estará presente n’Ela. E outros mistérios a respeito de relações de Nosso Senhor Jesus Cristo — em sua divindade e humanidade — com Ela serão revelados. E constituirão gáudios maiores do que todos os outros, os quais ficarão, digamos, em nexo íntimo com a visão beatífica.

Tudo quanto eu disse a respeito de Nossa Senhora é uma insignificância.

Considerem o Sacro Volto [a Sagrada Face]. Cada dor que Nosso Senhor sofria repercutia n’Ela. E quando o Redentor levou em sua cabeça sagrada a pancada, que está expressa por aquela efusão de sangue no alto da fronte, Nossa Senhora sentiu-a na alma, com toda a intensidade do amor de Deus a Ela e do amor d’Ela ao seu Filho. E assim a fronte d’Ela cobriu-se de uma glória parecida com a de Nosso Senhor.

Por mistérios de Deus, de algum modo os homens veem melhor essa glória na fronte d’Ela do que na de Jesus, de tal maneira Ele quer glorificá-La. E para sabermos como n’Ele a glória é maior, devemos olhar para Nossa Senhora. Ela só pode ser bem vista n’Ele, e Ele, n’Ela.

Há aqui coisas inefáveis, porque a dupla relação da divindade com a humanidade em Jesus e, depois, d’Ele com Maria Santíssima, contém todo o “pulchrum, o verum, o bonum” do universo, a grandeza etc. É uma coisa tão extraordinária e maravilhosa, que é muito difícil termos ideia disso.

Toda essa História é de ouro, e o ponto final tem que ser preto, mas é um brilhante negro.

Porque amou a vulgaridade, Satanás não queria que nada disso fosse assim e, ao mesmo tempo, conhecendo de algum modo a grandeza de tudo isso, percebe o achatamento dele e de todos os que o seguiram. E um achatamento que é eterno, definitivo, e o castiga para todo o sempre. Mas o que mais o tortura é que essa grandeza venceu sua vulgaridade, e ele geme inteiro.

Ele está ligado à vulgaridade de maneira infame, torpe, enquanto nós devemos estar unidos à grandeza.

Há pessoas que têm inveja de nós, em razão de nossas qualidades. Se viesse agora o Reino de Maria e fôssemos postos no pináculo, esses que nos invejam por causa do que temos de terreno, mais sofreriam vendo o bem glorificado em nós.

Por exemplo, duas irmãs: uma ficou virgem e é glorificada; a outra se perdeu e foi lançada no inferno. Esta última sofre mais pela glorificação da virgindade, do que vendo a irmã que ela odiava, da qual tinha inveja.

Mais especialmente o inferno rangerá quando Nossa Senhora for coroada, porque ficará mais visível a vitória de Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1982)
Revista Dr Plinio 150 (Setembro de 2010)

 

1) Célebre diamante que pertenceu a soberanos indianos, oferecido à Rainha Vitória

2) Por direito de nascimento.

3) Grand Retour (Grande Retorno): palavras usadas por Dr. Plinio para designar o surto de graças que prepararão as almas para o Reino de Maria.

A honra!

Dirigindo-se a um auditório composto por jovens, em sua maioria, Dr. Plinio, de forma lógica e atraente, explica a diferença entre os conceitos de honra e glória. Busca ele apresentar, a par dos princípios, exemplos concretos para, desta forma, além de iluminar a inteligência, mover também a vontade.

 

Há um pequeno episódio, célebre na História francesa — eu diria até, na História do mundo.

Napoleão estava derrotado, pois, em Waterloo(1), Wellington destroçara seus últimos exércitos. A França estava desgovernada, e perto da fronteira francesa se encontrava um irmão de Luís XVI, o Conde d’Artois.

Luiz XVI, o rei que fora decapitado pela Revolução Francesa, não deixara herdeiro direto(2). Tinha ele dois irmãos: o Conde de Provence e, outro mais moço, o Conde d’Artois. Se o Conde de Provence morresse sem filhos, o Conde d’Artois herdaria o trono(3).

O Conde d’Artois estava aguardando o momento de entrar em seu país. Mas, dado que a França acabava de sofrer uma derrota espetacular, e as forças nacionais tinham sido drenadas por Napoleão nesta última resistência contra o adversário, o Conde d’Artois não queria tomar o trono às custas de uma convulsão social e política que pudesse exaurir ainda mais seu país. Ele preferia usar um meio jeitoso, político, para que, sem derramamento de sangue, fosse atendido seu ancestral direito ao trono.

Havia na França uma “velha raposa”, um homem que foi o mais hábil de seu século em matéria de diplomacia: Talleyrand, bispo apóstata de Autun, pertencente a uma família quase principesca.

Entre as suas inúmeras habilidades, estava a de manusear incomparavelmente bem as mil finuras da língua francesa. Possuía também muito prestígio político.

Certo dia, alguém veio à sua presença e lhe disse: “O Conde d’Artois está na fronteira, mas declarou que não entrará no país sem um chamado de alguém com influência na França. Estou aqui para saber se o senhor mandaria um cartão, convidando-o a entrar na França.”

Talleyrand — muito indolente na hora do descanso, mas uma águia no momento da ação — tomou um papel e escreveu com uma letra negligente o seguinte bilhete, que ficou célebre: “Monseigneur, nós estamos fartos de glória; traga-nos de volta a honra.”

O homem levou o bilhete para o Conde d’Artois, o qual afirmou: “Isto é um apelo.” E entrou na França.

Honra e glória

Qual a diferença entre honra e glória?

Houve tempo em que o homem prezava acima de tudo o fato de ser honrado. A honra valia mais do que a fortuna, a inteligência, ou qualquer qualidade natural.

Mas, além da honra, existe a glória. Por que a França estava farta de glória e não tinha honra? O que vale a glória sem honra? E a honra sem a glória? Uma pessoa possuidora de ambas, o que mais deve prezar: sua honra ou sua glória? O que vêm a ser esses dois valores?

A análise disto nos remonta a uma cogitação mais profunda. A mente humana é formada de um modo singular. Não há quem não tenha ouvido falar de honra e de glória. Porém, creio que a imensa maioria das pessoas não sabe qual a diferença existente entre honra e glória. E não tenho vexame de dizer que eu, às vezes, tinha curiosidade de conhecer no que os dois conceitos se diferenciavam…

Com a minha perpétua falta de tempo, embora tivesse certa curiosidade de saber, nunca consultei isto num dicionário. Hoje, sabendo que deveria tratar da honra e da glória, procurei os dois conceitos. Mas são eles apresentados de tal modo, que apenas consegue verdadeiramente entender os significados de cada um desses conceitos quem já tenha pensado sobre o assunto. Quando não se refletiu anteriormente sobre algo, muitas vezes não se entende a explicação do dicionário.

Menção honrosa

Dizia o dicionário: “Honra é a consideração e homenagem à virtude, ao talento, à coragem, às boas ações ou qualidades morais de alguém”.

Façamos algumas aplicações para bem compreender o sentido da palavra “honra”. Por exemplo, no meu remoto tempo de aluno do Colégio São Luiz, a cada seis meses davam-se prêmios para os melhores alunos. Havia uma conferição de medalhas: a de ouro para o aluno que tivera um desempenho excelente; a de prata para quem conseguira nota muito boa.

Àquele que estava acima do comum, dava-se “menção honrosa”, quer dizer, seu nome era mencionado com honra, mas não recebia medalha. Tratava-se de um diploma escrito: “Menção honrosa em tal matéria.”

A honra, no caso concreto, era a avaliação de um talento ou de um esforço que o aluno fez para estudar.

Casamento honrado

Outro exemplo. Hoje estive na Igreja do Coração de Jesus(4), a qual estava toda enfeitada para um casamento. Imaginemos a cerimônia: entra o pai da noiva, levando-a pelo braço. Ele se sente honrado em levar a sua filha ao altar. E a noiva se sente honrada em ser conduzida pelo braço do pai. Qual a razão?

Quando a filha tem uma virtude real e seu pai é um homem que se mostrou respeitável, por uma capacidade ou uma qualidade especial, ela lhe dá o braço contente: “Aqui está meu pai.” E o pai também fica satisfeito: “Esta é minha filha, que vai virgem às núpcias”, e a entrega ao noivo no altar, com cabeça alta: “Íntegra ela sai das minhas mãos para as suas”.

Nisso há honra porque está presente um talento ou uma qualidade moral especial. O ideal é estarem juntas ambas as coisas. É muito apreciável que um homem ou uma senhora tenha um talento marcante e, ao mesmo tempo, uma capacidade, uma virtude especial.

Família honrada

Suponhamos que, no entardecer da vida dos progenitores, uma família está reunida. Casa confortável, filhos numerosos em torno de uma mesa, alegres. É um jantar opulento, comemorativo das bodas de prata ou de ouro, quer dizer, os pais casaram-se há 25 ou 50 anos; felicidade de todos.

Estão honrando os pais. Por quê?

O pai, digamos, era um homem pobre e que fez alguma fortuna à força de negócios honestos, tendo revelado capacidade e, ao mesmo tempo, caráter, e todo o mundo na cidade diz dele: “Homem honesto é o Sr. fulano de tal”.

A mãe, muito dedicada — qualidade moral —, hábil dona de casa, conseguiu arranjar a casa de modo primoroso, sendo o jantar muito bem servido.

Têm honra por ambas as razões juntas: qualidade moral e talento, cada um a seu modo. O homem como chefe de família, ela como esposa fiel, cada um tem seus talentos e qualidades. Isto dá realce à festa das bodas, e torna saborosos os alimentos distribuídos que, sem isto, não teriam graça.

O prêmio Nobel

Alfred Nobel, inventor da dinamite, deixou uma fortuna enorme para premiar todos os anos quem se assinalasse por seu talento, ou por sua virtude, em alguma coisa especial.

Uma comissão internacional indica os nomes daqueles que devem receber o prêmio — uma boa fortuna em dinheiro —, o qual é conferido na Suécia pelo rei, havendo depois um banquete com homenagens, no palácio real.

Vemos aqui aparecer uma noção que vai para além da honra: é o conceito de glória. No que a glória difere da honra?

Glória

É fácil compreender o que é glória quando se apanham os conceitos essenciais. Diz o dicionário: “Glória é a fama adquirida por ações extraordinárias, feitos heroicos, grandes serviços prestados à humanidade, às letras, às ciências, etc.”

Não se refere, portanto, apenas ao bom chefe de família ou à boa senhora que se distingue.

Um homem erudito merece honra, mas não glória, porque não empreendeu uma ação extraordinária. Ele demonstra uma capacidade distinta; porém, distinção não é celebridade. Célebre é o distinto visto através de uma forte lente de aumento. E o Prêmio Nobel existe para premiar apenas as celebridades.

Imaginemos um homem inteligentíssimo, mas que nunca produziu nada, porque, por exemplo, tem muito má saúde. Ou então porque precisa trabalhar para manter a família, o que lhe impede de fazer uma grande produção intelectual da qual seria capaz. Eu poderia perceber que é um gênio. Para mim ele mereceria glória e eu o trataria com muita distinção. Mas é desconhecido pelo público. Para ter glória é preciso ser conhecido. Para ser conhecido é necessário fazer alguma coisa.

A glorificação de um santo

Então, além de possuir qualidades eminentes, ele precisa ser conhecido. Dou um exemplo característico: São José, o qual teve uma existência inteiramente apagada, porque foi desígnio de Deus que vivesse na humildade.

Ele merecia todas as glorificações possíveis: fez ações extraordinárias, foi verdadeiramente o pai legal do Menino Jesus porque, embora Nossa Senhora fosse virgem antes, durante e depois do parto, São José tinha um direito, como esposo de Maria Santíssima, ao fruto das entranhas d’Ela. Porém, poucas pessoas souberam disso, enquanto ele estava vivo. Resultado: glória São José não teve.

Mas quando a Igreja começou a se expandir, e a reflexão sobre o Evangelho passou a ganhar corpo, os católicos se deram conta de quem foi ele. São José já possuía tudo para ser célebre, porém suas grandes ações não eram conhecidas. Quando o foram, ele se tornou célebre.

O que distingue a honra da glória?

A honra é o brilho distinto, digno de nota, da virtude ou do talento. A glória é o fulgor de um talento extraordinário ou de uma grande virtude.

Voltemos ao texto escrito por Talleyrand. Napoleão possuiu glória, pois revelou um talento militar extraordinário e alcançou vitórias de que todo o mundo fala até hoje.

Mas não teve honra, porque foi desprovido de virtude. Se houvesse feito em favor de um poder legítimo aquilo que realizou em favor de si mesmo, ele teria tido honra. Mas ele não exercia um poder legítimo, era um usurpador, e isso não traz honra.

Graus de honra

Se o respeito, o apreço que se deve à virtude, merece ser chamado honra, todo homem que pratica a virtude de modo suficiente, e vive habitualmente na graça de Deus, é honrado. E “homem honrado” está muito bem qualificado, porque ele merece essa honra de quem cumpriu a Lei de Deus, e uma coroa o espera no Céu.

Porém, há dois graus de honra: uma é esta honra comum que todo homem deve ter, porque cada um precisa viver conforme a Lei de Deus.

Existe, entretanto, uma honra mais distinta, maior, que faz com que o homem seja admirado pelos que estão na graça de Deus. Estes dizem: “Ele realiza o que nós fazemos, mas vai mais longe. Não chega a praticar ações célebres, mas é bem mais virtuoso do que a média”. Então, entre os honrados, esse é um homem que tem uma honorificência especial. Isso supõe um esforço especial, porque toda virtude é difícil. Não há virtude fácil. Nas nossas condições, ela não teria beleza se não fosse difícil.

Mas não é só isto. Há também qualidades naturais, as quais Deus concede para quem quer, e que podem merecer honra. Por exemplo, o talento musical.

Alguns músicos nasceram com tal dom que, desde pequenos, fizeram obras-primas. O exemplo mais célebre foi Mozart, o famoso músico do século XVIII que, aos sete anos de idade, realizava concertos em público! Era um gênio! Essa qualidade musical decorreu de um conjunto de circunstâncias naturais, atavismos etc., bem como, provavelmente, de algum desígnio da Providência.

Ainda que Mozart fosse um homem de uma virtude comum, ele mereceria honra pelo fato de ter talento. E recebeu glória porque levou, pelo esforço, esse talento a um grau eminente.

Se ele tivesse sido um inconsequente e, por isso, não se dedicasse ao estudo da música, poderia, na idade madura, se apresentar num teatro, ocasião em que se diria: “Aqui está Mozart, um homem que aos 10 anos de idade compunha música. Ele agora tem 30 anos e vai tocar para nós.” Ele, então, dedilharia no piano uma música sem graça… O fato de se saber que ele nasceu com talento, mas não fez nenhum esforço, foi um “bicho preguiça”, provocaria desprezo.

Glória sem honra

Pode acontecer que uma pessoa seja de tal maneira dotada, do ponto de vista natural, que, sem esforço, brilhe de modo insigne. Pergunta-se: ela merece glória?

Merece. E se ela for preguiçosa? Terá uma glória sem honra.

Poder-se-ia perguntar o que é bom para um país: ter grandes gênios com glória, mas sem honra, ou possuir muitas pessoas com talento mediano com honra, embora sem glória.

Respondo: o homem com grandes qualidades e sem virtude, na maior parte dos casos, é um malfeitor. Exemplo, Talleyrand, que era dotado de qualidades políticas únicas. Ele praticou algum bem, mas, de fato, a soma de males que fez na vida foi enorme, porque usou mal seu talento, conforme convinha a seus interesses.

Um homem que tenha um talento oratório ou jornalístico muito grande será um benefício para seu país se ele usar bem o dom que recebeu para servir a Causa de Deus, de Nossa Senhora, da Igreja. Se não fizer isso, escreverá artigos de jornal, livros, fará conferências, orientando as pessoas para o mal. Nessas condições, será um malfeitor. É melhor para um país ter muita gente honrada, embora não gloriosa, do que muitas pessoas gloriosas, mas sem honra.

Peçamos a Nossa Senhora a graça de nunca buscarmos a glória, pois, na maior parte dos casos, compromete-se a glória quando a pessoa a procura para si. É preciso procurar a honra, a qual muitas vezes custa o sacrifício de qualquer possibilidade de glória. O caminho da honra nos espera. Se Ela quiser, será também a via da glória.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/3/1986)
Revista Dr Plinio 150 (Setembro de 2010)

 

1) Localidade da Bélgica onde, em 1815, ocorreu a batalha na qual Wellington derrotou as tropas de Napoleão.

2) Deixou o Delfim, que seria Luís XVII, que em sua infância, em consequência da Revolução Francesa, teve destino até hoje ignorado. Talvez tenha sido assassinado, após a execução de seus pais.

3) Ambos se tornaram reis da França: o Conde de Provence, com o título de Luís XVIII, e o Conde d’Artois, de Carlos X.

4) Situada em São Paulo, no bairro dos Campos Elíseos.