Santa Teresa de Jesus – Alma de rara grandeza

A extraordinária figura da Santa cujo fogo de alma incutiu novo ânimo e vigoroso impulso à Ordem do Carmo, suscita em Dr. Plinio profunda admiração, refletida nestes comentários nos quais aproxima, num vívido paralelo, essas duas estrelas do firmamento da Igreja: Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux.

Um dos comentários mais adequados que se poderia fazer a respeito de Santa Teresa de Jesus, a Grande, cuja festa se comemora em 15 de outubro, é o que tange à sua verdadeira grandeza de alma, e como esta difere da “imensa pequena” grandeza de Santa Teresinha do Menino Jesus.Um dos comentários mais adequados que se poderia fazer a respeito de Santa Teresa de Jesus, a Grande, cuja festa se comemora em 15 de outubro, é o que tange à sua verdadeira grandeza de alma, e como esta difere da “imensa pequena” grandeza de Santa Teresinha do Menino Jesus.

Qualidades naturais e espirituais deslumbrantes

Quando se lê a vida de Santa Teresa tem-se uma espécie de deslumbramento que nos leva a dizer: “Trata-se de uma avultada personalidade, com todas as suas potencialidades plenamente desenvolvidas”.

Por ocasião de sua morte, um escritor, em carta a um amigo na qual contava algumas novidades, afirmou: “Morreu um grande homem, a freira espanhola Teresa de Jesus”. Tal era a impressão causada por ela a seus contemporâneos.

Possuía inteligência vasta e privilegiada, ao mesmo tempo matizada e forte, talhada para altos vôos. Além disso, dotada de uma vontade firme e sensibilidade controlada por inteiro.

A essa riqueza natural a Providência acrescentou diversos dons sobrenaturais, cuja amplitude pode ser avaliada pelos fenômenos da vida mística com ela ocorridos. Ou seja, visões, revelações, êxtases, todo um especial convívio com Deus, em que se percebe o refulgir colossal da graça, causando-nos a impressão de extraordinária personalidade que verdadeiramente nos deslumbra. Foi, de fato, uma grande dama, uma grande mulher, uma grande freira e grande santa.

Tipo perfeito da religiosa matriarca

Todas essas culminâncias, como montanhas superpostas, produziam tais sensações de assombro que, durante sua vida terrena, algumas pessoas talvez sentissem certo receio de se acercar dela.

Era, em última análise, a grandeza da personalidade humana num de seus exemplares mais privilegiados na ordem da natureza, refulgindo com sublimidades da graça, e dando uma ideia completa do que seria o tipo perfeito da religiosa matriarca. Pois Santa Teresa de Jesus tornou-se uma admirável matriarca. Ela foi, como mãe espiritual, aquilo que o patriarca é como o fundador de uma linhagem. Possuía de modo invulgar quase todos os carismas e bênçãos do patriarca, a ponto de nos fazer esquecer das debilidades do sexo feminino e vermos nela uma espécie de querubim, com todas as eminências de um ser puramente espiritual.

Assim foi Santa Teresa de Jesus, a Grande. Aliás, poderia ser considerada também como a santa do feitio de alma da geração velha(1), dotada de todos os recursos psíquicos que caracterizam o equilíbrio ideal. Naturalmente, nessa geração houve indivíduos dos mais inteligentes até os menos favorecidos no tocante ao intelecto, porém, ainda nestes últimos existia certa normalidade, força, repouso sobre si mesmo, plenitude, que Santa Teresa manifestava de modo extraordinário.

Paralelo com Santa Teresinha

Santa Teresinha do Menino Jesus, pelo contrário, não foi geração nova, mas representa de algum modo a aurora da época em que esse tipo de personalidade surgiu. Ou seja, a família de almas pequenas, profundamente admirativas das grandes almas, pelas quais nutrem respeito, procuram imitá-las, mas compreendem que no plano natural não lhes foi concedida a mesma plenitude.

A santa de Lisieux tinha acessos de timidez, inibição e outros movimentos de alma complexos que, no âmbito humano, representam limitações. Por exemplo, quando a mãe a chamava do alto de uma escada, fazendo-o de modo risonho e acolhedor, ela a galgava num passo rápido; porém, se de maneira severa, ela ficava enregelada e não conseguia subir. Ora, se o fato ocorresse com Santa Teresa de Ávila, de uma ou outra forma, ela subiria a escada saltando os degraus.

Donde Santa Teresinha afirmar que Deus não a atraía através de fenômenos extraordinários, como visões, êxtases ou revelações, e sim por meio de pequenas coisas feitas com amor, naturalidade, com confiança ilimitada na bondade do Altíssimo.

A mesma música, com acentos de delicadeza

Santa Teresinha do Menino Jesus fundou a pequena via que não poderia ter sido vivida com mais envergadura de alma, largueza de horizonte e plenitude de santidade do que ela própria o fez. Executou a mesma música magnífica de Santa Teresa de Ávila, contudo tocada em outro instrumento, mais delicado e suave. Não obstante, no fundo com austeridade, generosidade e entrega a Deus tão grandes que, quando se lê a vida de Santa Teresinha, chega-se a esta conclusão: por mais que Santa Teresa tenha sido colossal realizando coisas extraordinárias, Santa Teresinha foi colossal fazendo coisas pequenas. E esta última característica não fica abaixo da primeira.

Trata-se da maravilhosa variedade das obras de Deus, fazendo-nos compreender que cada um de nós, procurando santificar-se naquilo para o que nasceu, deve estar tranqüilo e satisfeito, pois obedece à vontade do Criador.

Deus glorificado na junção das duas Teresas

Assim entendemos como Deus é glorificado na junção dessas duas Teresas; cada uma como que representa um capítulo da história da alma humana e uma forma de santidade da Igreja.

Como disse, não se pode reputar que Santa Teresa do Menino Jesus fosse uma pessoa cheia de debilidades e carências. Porém, estava na aurora das almas da pequena via, que fazem coisas simples, comuns, modestas, despretensiosas, e podem alcançar uma grande santidade. A esse título ela deve ser considerada a padroeira da geração nova, aquela que indica o caminho reto, fácil, para os pequenos. Estes, sem almejarem os grandes vôos de Santa Teresa de Jesus, entretanto são capazes de tocar em alturas tão elevadas quanto ela logrou alcançar.

Eis, portanto, um paralelo estabelecido entre as ­duas santas. Uma se explica pela outra. Se quisermos contemplar toda a grandeza de Santa Teresa de Ávila, consideremos Santa Teresinha. Se desejarmos aquilatar a riqueza da santa de Lisieux, analisemos a vida de sua predecessora. Tais são as maravilhas de Deus que devemos admirar e cujo alcance inteiro não raro escapa ao olhar humano.

O espírito prático não se opõe à contemplação

A propósito de Santa Teresa de Ávila, parece-me oportuno apontar algo que concerne de perto a nossa vocação.

Em geral, os fundadores das ordens contemplativas têm importante nexo com a causa contra-revolucionária, e Santa Teresa foi fundadora de um ramo da Ordem do Carmo, à qual nos é dada a ventura de pertencer na qualidade de Terceiros. De fato, esta Ordem é uma só, embora esteja dividida em dois ramos (calçados e descalços), e tanto os Terceiros de um quanto de outro integram a estirpe carmelitana. Somos, portanto, da mesma família de almas de Santa Teresa de Jesus.

Além desse vínculo, vários aspectos da sua vida demonstram haver certa semelhança entre ela e nosso movimento, e um em particular, pois tende a ser pouco analisado por nós.

Ao conhecermos a infatigável atividade de Santa Teresa, aliada à sua não menos intensa vida interior, compreendemos tratar-se de erro funesto pensar que o espírito prático é o oposto do contemplativo, gerando a falsa idéia de que a piedade de uma pessoa realizadora e dinâmica deve diminuir na proporção de suas obras, e que o tempo por ela dedicado à oração prejudica seus empreendimentos.

Conta-se que o abade trapista francês, Dom Chautard, autor do livro A alma de todo apostolado, certa vez se encontrou com Clemenceau, primeiro-ministro da França, e este lhe perguntou:

— Como o senhor tem tempo para fazer tanta coisa?A resposta do religioso:

— Acrescente às minhas ocupações diárias a celebração da Missa, a leitura do breviário, outras tantas práticas de vida de piedade, e então sobra tempo para as demais atividades…

Afirmação magnífica, à qual não falta aquela precisão francesa, que diz tudo em poucas palavras.

Algo de análogo ocorre conosco. Uma pessoa ávida dos minutos diria que dedicamos tempo exagerado à oração, e melhor serviríamos aos interesses da Igreja se comprimíssemos determinadas preces quotidianas. É uma idéia inteiramente equivocada, e o êxito notório de nosso apostolado pelo Brasil e o mundo prova que só o alcançamos porque dedicamos todo o tempo necessário à vida interior. Ou seja, se mais tempo a ela consagrássemos, resultados ainda mais práticos e eficazes seriam obtidos. E acrescento: teríamos no mais alto grau os dons para cumprir nossa missão.

Equilíbrio entre contemplação e ação

Nesse sentido, há um episódio célebre na vida de Santa Teresa de Jesus que ilustra bem como a contemplação e a ação devem estar unidas.

Certo dia recebeu ela, por obediência, ordem de preparar uma panqueca para o almoço das freiras. Para fritá-la, é necessário manusear a frigideira de modo a lançar a panqueca para o alto e fazê-la girar no ar, o que exige muita atenção de quem a prepara. Em determinado momento, entra uma freira na cozinha e vê Santa Teresa no auge de um êxtase, a face iluminada, transfigurada, e continuando a fritar a panqueca. Quando terminou sua oração, o quitute estava pronto e muito bem feito.

Vejo neste fato um belo símbolo do equilíbrio entre a contemplação e a ação. Quer dizer, quem desejar fazer boas “panquecas” em matéria de apostolado, reze fervorosamente; isto é, se orar, o apostolado dará bons frutos; sem oração, os frutos serão menores ou nulos.

Temos, assim, colhido no admirável exemplo de Santa Teresa de Jesus, um princípio de ouro que toda alma chamada a uma vocação apostólica deveria gravar e cultivar no seu interior.

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Geração velha, geração nova: cf. Dr. Plinio número 81.

Luminosas “migalhas”

Embaladas por águas tranquilas e misteriosas, as gôndolas parecem dormitar à espera de passageiros. Formas características, pontas elegantes, detalhes pitorescos. Gôndolas vazias, amarradas a estacas de formas incertas, numerosas, como se fossem uma floresta de linhas e de silhuetas refletidas, plantadas no mar raso.

Neblinas indefinidas, brumas matutinas, vespertinas, que a tudo envolvem: barcos, torres, homens. Lindos revérberos sob cuja luz se revelam lances de muros, arcarias góticas, jogo de cúpulas.

Nuvens de um avermelhado que se mistura com o plúmbeo profundo do céu, desenhando no firmamento uma espécie de mapa da cidade que se estende na terra. Nas pontas das torres, das cúpulas, cruzes e ornatos tão leves e tão poéticos que, ao soprar o vento, dir-se-ia começarão a se agitar e a tocar música nos ares de Veneza!

Prédios que se empilham uns sobre os outros, dando a ideia de construções feéricas e, mais uma vez, roçados pela névoa ligeira. Comprazem-se nas auroras lindas, mas são igualmente sensíveis aos encantos do ocaso e da noite.

As águas venezianas refletem como que ao infinito as velas, as quilhas e os adornos das embarcações que sobre elas repousam. E então parecem, já não água, mas vidro, cristal, espelho imobilizado. Águas sempre portadoras de novidades, da famosa laguna de Veneza.

Casas velhas e escalavradas. Pequenos (e outrora) palácios, onde se nota habitar uma gente empobrecida, sim, mas que sabe conservar o atrativo do seu passado.

Na verdade, tudo isso possui uma beleza e uma poesia que me levariam a contemplá-lo por um longo tempo, dizendo: “Mais formosura do que isso existe, e muita, na própria Veneza. Porém, dá-se aqui como quando saboreamos um pão delicioso e algumas migalhas dele caem sobre a toalha da mesa, e temos um gosto peculiar em comer a migalha, como quem degusta, num só pedacinho, o pão inteiro. Pois bem: essas são migalhas do incomparável esplendor de Veneza…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 31/3/1974; 31/8/1976 e 17/4/1985)

Arquetipização

Uma nota muito importante da escola de Dr. Plinio é a arquetipização, ou seja, a busca da perfeição de todas as coisas. Esta tendência do senso do ser leva a pessoa continuamente a um desejo de elevação. Aplicando esse princípio à consideração de ambientes, Dr. Plinio analisa o estilo grego, românico e gótico.

 

Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus está difusa pelo ar uma impressão de aconchego e de proteção muito grande, mas também de muita sabedoria, tranquilidade e bondade. No fundo, o que é isso?

Uma operação eminentemente religiosa

Quando entramos em algum ambiente, o que por excelência causa impressão, mais do que qualquer objeto, é a pessoa que encontramos ali ou a quem, de algum modo, aquele ambiente e os objetos nele contidos nos reportam.

Lembro-me de ter visto um quadro representando o Lago Titicaca, na Bolívia, de um azul e um prateado lindíssimos! Tinha-se a impressão de uma imensa asa de borboleta que ondulava ao sopro do vento. Embora esse lago não seja uma criatura humana, nem foi ideado por um artista, ao vê-lo tem-se uma impressão parecida com a que se teria no convívio com uma pessoa que nos causasse análogo efeito.

Assim também, quando ao contato da graça sentimos uma determinada impressão sobre um objeto, de fato temos a sensação de como se estivéssemos com Deus. Na Igreja do Coração de Jesus nós não vemos a Deus, mas sentimos a impressão que teríamos se estivéssemos com Ele, mostrando-Se sob aquele aspecto. A impostação de que Deus Se nos faz conhecer, sem que nós O vejamos, é o principal na Igreja do Coração de Jesus.

Essa impressão, portanto, é um como que ver a Deus. Creio que esse ponto é absolutamente capital para compreendermos o que são as arquetipizações. Porque embora numa arquetipização possa não estar presente uma graça tão grande quanto à do Coração de Jesus, e se possa conceber uma arquetipização no plano apenas natural e sem presença nenhuma da graça, é fato que a verdadeira arquetipização conduz a uma ideia de como seria uma determinada coisa se ela fosse ainda mais semelhante a Deus.

É, portanto, um ver a Deus em todas as coisas que constitui a alma verdadeiramente católica. Isso não significa, por exemplo, que olhando para uma cadeira estou imaginando o Padre Eterno sentado ali. Não tem propósito! Mas aquela cadeira, se eu a arquetipizo, vejo melhor o por onde ela se parece com o Criador. Logo, buscar a arquetipia de todas as coisas é procurar ver melhor a Deus nelas, e constitui uma operação eminentemente religiosa, ainda que no plano natural.

A isso dou muita importância para se compreender o que é vida interior, o recolhimento notadamente na nossa escola. Porque na escola comum seria, por exemplo, ao ver uma coroa, faço o seguinte raciocínio: coroa é símbolo do poder; então, como é belo o poder que Deus instituiu.

Sem dúvida, é uma via muito boa. Mas faz parte do nosso espírito olhar a coroa e vê-la como um símbolo – na ordem natural e na sobrenatural – mostrando a Deus nesse sentido da arquetipização, isto é, um modo de compor como seria a figura de Deus a partir dessa coroa. Esse meu gosto de arquetipia é, no fundo, um anseio de Deus, mas ainda não explícito. É um desejo imediato de ver uma coisa mais excelente do que a coroa, o qual, de ponto em ponto, me conduzirá a Deus.

Tendência do senso do ser à perfeição

Então, no próprio modo de considerar a coroa entrou um certo estilo de ver a beleza que subconscientemente já está orientado para Deus.

O trabalho do subconsciente aqui eu acho muito importante, porque se foi feito com o mero consciente, sem um movimento da sensibilidade mais ou menos simultâneo, a coisa não se fez como eu estou dizendo. É o livre curso do impulso do senso do ser que tende naturalmente para a excelência do ser. Propriamente a palavra “subconsciente” aqui é um termo tão emaranhado que prefiro me exprimir assim: é o livre curso do impulso do senso do ser rumo à perfeição de todas as coisas no seu próprio gênero.

Essa tendência do senso do ser à perfeição das coisas leva continuamente a um desejo de elevação e, portanto, deve conduzir a pessoa a querer que existam na ordem humana os mais altos representantes dos mais elevados graus que chegam mais perto da perfeição do ser. Por isso, a hierarquia é uma necessidade. Pelo que o senso do ser é eminentemente contrarrevolucionário, porque enquanto o revolucionário quer arrasar todos os seres que representam, dentro da hierarquia, escalas para a perfeição, o contrarrevolucionário tem empenho em que a ordem social e a ordem eclesiástica vão destilando pessoas, e que haja cargos por onde elas vão se aproximando cada vez mais de uma determinada altura, a qual é a plenitude que nos fala mais de Deus.

O estilo grego e o românico

Mas voltando à consideração de ambientes, ao compararmos um edifício em estilo românico com um do estilo grego, que diferença notamos? Uma coisa curiosa, pode haver razões técnicas para isso, eu não discuto, mas as construções gregas têm uma solidez suficiente de maneira a não dar a impressão da fragilidade que preocupa, inquieta, isto é certo. Entretanto, elas não possuem o aspecto de fortaleza e não brilham pela força. Dir-se-ia quase que o grego tem a preocupação de fazer esconder a força do prédio sob o aspecto da ligeireza, da leveza, da elegância.

Então, por exemplo, a coluna grega é, o quanto possível, esguia, lembrando o tronco de uma palmeira, etc. As colunas e todo o prédio românico são pesadões. O edifício tem algo das paredes de uma fortificação, e dá ao espírito uma ideia de luta que de nenhum modo está presente no aspecto da perfeição do universo que o prédio grego quer sustentar e manifestar.

Olhando para o Parthenon, por exemplo, ninguém pode dizer: “Oh, que luta!” Ou exclamar ao ver a Tribuna das Cariátides: “Quanto heroísmo!” Sou entusiasta dessa tribuna, mas isso não se pode afirmar. Aliás, desconfio que as colunas delimitavam uma espécie de periferia e que o templo era um quadradão de alvenaria por dentro. É preciso dizer, desde logo, um quadradão de tal maneira sem graça que, se não fossem o teto e as colunas, seria a coisa menos interessante que poderia haver. Provavelmente, dentro era meio obscuro, mas uma obscuridade inteiramente diferente da existente no românico.

Ao se considerar uma construção românica tem-se a impressão de um homem que carrega um peso sério, preocupações difíceis, mas que estão na altura dele. E que ele tem força, porque é um gigante, para entestar com aquilo e tocar para a frente. Esse é o lado românico. Vê-se também que as qualidades dele são de uma pessoa muito preocupada. Há uma atmosfera difusa de preocupação na obscuridade do templo romano.

Mas nasce o vitral, o qual introduz em tudo isso uma certa forma de beleza, de pulcritude, que completa aquela carranca do prédio românico com algo que não é propriamente a louçania. O edifício românico é muito “pensativo”, muito “preocupado”. As cores do vitral românico não são tais que falem da alegria, da satisfação. Elas falam de uma espécie de doce maravilhoso, de maravilhosa doçura, que se compagina bem com aquilo e que é a meditação em Deus, do homem cansado. Do homem que não vai cantar o “Gloria in excelsis Deo”, o “Magnificat”, mas que também não vai gemer como Jó em cima de seu monturo; entretanto ele encontra um certo consolo no meio da sua tristeza, que é propriamente o bem-estar da consolação, o consolo cristão.

A esperança do Céu começa a iluminar: nasce o gótico

Quando se inicia a Idade Média, isso vai tomando, com a ogiva, um caráter diferente, porque a esperança do Céu vai iluminando aquilo que não está muito presente no românico. O românico parece mais dizer: “Deus te ajuda na Terra. Confia em Deus”. E o gótico parece mais afirmar: “É verdade, Deus te ajuda na Terra, mas isso não é tão importante. O melhor é que Ele te ajuda no Céu. Pensa no Céu! Volta-te para lá! Lá tu terás a explicação de tudo”.

Essa posição, que parece ser a perfeita, começa a fazer desabrochar a leveza dentro da seriedade e da atmosfera de uma igreja que continua com certos traços de fortaleza. Aí sim, os vitrais começam a ter louçania. Também a altura dos templos parece dar um caráter festivo e cheio de esperança, o que se reflete no modo de realizar o culto, os paramentos se tornam esplendorosos, etc. Assim, a partir de um determinado momento a esperança do Céu se acentua mais do que a esperança da ajuda nesta Terra. Para mim, o auge disso e o contrário do românico é a Sainte-Chapelle. É uma maravilha!

Mas também fala muito nesse sentido aquele tipo de coluna gótica que se abre como uma palmeira. Aquilo é muito bonito e já fala de um mundo em que a seriedade se tornou leve, de tal maneira ela venceu a dor e a aflição sem ter fugido. Na ordem do espírito, aquele guarda-sol é quase o primeiro precursor da aeronáutica, pois faz pensar um pouquinho numa ligeireza que nos vai levar para o Céu, vai girando e conduzindo nossas almas para regiões azuis que elas devem contemplar.

Nesse sentido, o gótico aparece menos consolante do que o românico. Para o homem desolado que entra em um edifício deste estilo, o românico parece dizer afetuosamente: “Sente-se, sofra, eu vou ajudá-lo no seu sofrimento”. O gótico é outra coisa. Ele como que diz o contrário: “Tome rápido contato comigo que seu sofrimento passa logo. Eu o levo para as regiões do Céu”. São os braços de Deus que se baixaram para elevar o homem. É um pouquinho como um pai ou uma mãe que se inclina sobre uma criancinha com dificuldade de andar e a suspende. Assim é o gótico conosco.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/11/1986)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

Da arquetipia ao sobrenatural

A obra-prima da inteligência dá-se quando ela chega ao píncaro de sua própria capacidade de arquetipizar. É uma forma de inteligência na qual o indivíduo vê, tão longe quanto ele possa, a perfeição das coisas. O homem sacral deseja sempre ir mais além, pois possui um espírito ascensional infatigável.

 

Quando o homem chega ao último ponto que a inteligência alcança, ao último impulso do senso do ser no desejo de arquetipia, onde ele atinge? E a que grau de arquetipia se prestam as coisas da natureza?

A obra-prima da inteligência: o píncaro da capacidade de arquetipizar

São, portanto, coisas diferentes: até que ponto eu, Plinio, levando adiante tanto quanto é possível em mim a arquetipia, há um limite além do qual eu, por minha natureza, não posso conceber a perfeição? Nesse limite eu paro. Eu acho até, diga-se de passagem, que o píncaro da inteligência é o píncaro da concepção da arquetipia.

No mais agudo sentido, a obra-prima da inteligência é quando ela chega ao píncaro de sua própria capacidade de arquetipizar. A obra criadora do homem não é o tirar uma coisa como que do nada e compor, mas é conceber, a partir do criado, a criatura em seu máximo grau de perfeição.

Quer dizer, é uma forma de inteligência na qual o indivíduo vê, tão longe quanto ele pode, a perfeição das coisas. No que entra a inteligência, entra o acréscimo que a vontade dá à inteligência. A vontade, cheia de amor pela arquetipia natural – estou falando da natureza –, tende e dilata as fronteiras de sua inteligência. Por outro lado, a coisa bem compreendida aumenta as fronteiras da vontade. Há um dueto entre a inteligência e a vontade a caminho da máxima perfeição. Quando chega ao último grau que o homem pode alcançar em matéria de arquetipia, ele atingiu a fronteira de si mesmo. Esse homem, se não fosse o sobrenatural, poderia cantar o Nunc dimittis1.

Quando eu deixar esta vida, queria apresentar-me a Deus e a Nossa Senhora tendo levado a minha possibilidade de arquetipizar tão longe quanto possível. Não gostaria de morrer antes de ter visto isto assim. Espero comparecer perante Deus com todo o grau de excelência que Ele, na ordem natural, possa ter querido para mim. Isto então é o píncaro da coisa vista em mim mesmo. E desejo também levar todos aqueles que me foram confiados aos respectivos píncaros. Nesse sentido, nossa vida é um convite contínuo para essa arquetipização.

Até onde algo pode ser arquetipizado?

Outra consideração a fazer seria: até que ponto a coisa, em si, se presta a ser arquetipizada? Ela tem uma fronteira e, objetivamente, não pode ser sublimada além de um certo limite.

Por exemplo, uma xícara. Eu seria capaz de imaginar a xícara ideal? Eu julgaria interessante organizar um museu com uma coleção de todas as xícaras que houve no mundo e que foram dignas de serem vistas… Como se visita um museu assim? É perguntando-se, antes de entrar, o seguinte: Como seria a xícara arquetipizada, perfeitíssima? Depois, outra pergunta que seria muito interessante: Para a xícara arquetípica, qual a colherzinha ideal?

De fato, este seria o epílogo da alma e o sentido da velhice de um homem de pensamento, quando, por exemplo, ele se aposenta, passa a tarde lendo jornal, conversando um pouco com um amigo, enfim, fazendo de tudo e nada, e dão a ele a oportunidade de arquetipizar o panorama geral da vida que teve. Isso, repito, é na ordem da natureza.

Eu gostaria, muito de passagem, de deixar assinalado esse conceito de inteligência. Não é compreender depressa, nem a fundo. É compreender no alto. Por exemplo, conheci alguém que não tinha a inteligência assim. Essa pessoa procurava sempre o prático, o concreto e o meticuloso. Ora, é preciso arquetipizar!

A arte popular é a atitude do camponês que arquetipiza o mundo dele. E não é fazer o mundo de um conde, é produzir a arte popular. Linda, esplêndida! A cidade de Rothenburg, por exemplo. Há museus para esse gênero de arte. Tudo que se chama artesanato tende a isso. Ninguém compreenderá a Idade Média se não tiver estas noções bem postas dentro da alma.

Outro exemplo: o indivíduo que inventou a ogiva vale mais do que Colombo que descobriu a América, nem há comparação. Não se sabe quem é, é um anônimo. Mas um homem que primeiro arquetipizou uma janela para daí sair a ogiva e partindo dessa coisa quadrada – aliás, a Renascença adorou a janela em ângulo reto – pensou na ogiva, é um gênio, um gigante. Eu gostaria de me ajoelhar diante dele, se ele foi um santo.

Outro ponto é a questão dos limites da arquetipização na própria coisa. Porque, por exemplo, não parece que se possa fazer de uma janela uma forma mais bonita do que uma ogiva. Neste gênero, a ogiva parece ter chegado ao fim do caminho. É mesmo ou haveria mais?

Da arquetipia à graça

Há uma coleção de arquetipias possíveis, mas somando, reunindo todas elas, fica uma figura vaga de algo que Deus não criou, que mais ou menos existirá, provavelmente no Céu Empíreo, e nos deixará inteiramente sem saber o que dizer.

Quando o homem chega a esse ponto, a sua alma não está satisfeita. Pelo contrário, ele localiza uma zona dela que estava na bruma, dormindo, e que era para ele, por causa disso, uma fonte de mal-estar medonho – porque a alma quando dorme cansa, e quando trabalha descansa –, algo por onde ele tendo arquetipizado tudo, chega à conclusão: “Está perfeito, mas há mais! Eu não me farto com isso. Eu alcancei tudo, e mais uma vez cheguei a um píncaro. Anseio por mais, entretanto, verifico que na natureza não há mais.”

Aí é a hora da graça. Porque nessa hora a alma conhece aquilo que ela desejava sem encontrar na ordem da natureza. Ela não sabia, mas ela varou a ordem da natureza à procura de algo mais alto do que a natureza pode dar. Esta coisa mais elevada é a graça.

Quando, então, a pessoa recebe uma graça, obtém qualquer coisa em que ela entende que seu papel está alterado: não é mais ela que vai à procura do píncaro, é o píncaro que vai se afundando dentro dela. É um píncaro voltado para baixo, que vai entrando nela. É a caminhada dela para subir para o píncaro que desce, à maneira da estalagmite e estalactite que tendem a se unir.

Neste caso é muito mais a receptividade do alto da estalagmite para encontrar a estalactite do que o contrário. Inicia-se uma via na qual, através da oração e do pedido incessante e humilde, a pessoa pede para receber aquilo que ela não pode puxar, que é a estalactite até embaixo, mas que ela pode atrair.

É interessante que quando a graça toca no homem, ela vai embebendo toda a “estalagmite”. A graça não é como no fenômeno natural – a estalagmite e a estalactite são consolidações do mesmo líquido que pinga –, ela é a ponta do dedo de Deus. A estalagmite miserável é a pontinha do dedinho do homem. São coisas completamente diferentes. A graça vai impregnando cada vez mais o homem. Tudo quanto ele viu antes sob o mero aspecto da natureza vai tomando para ele consonâncias sobrenaturais maravilhosas. Na ponta disso ele está pronto para o Céu.

Uma sublime preparação para a morte

Um de meus desejos com o que foi exposto é fazê-los compreender como devem ser, em nossa família de almas, os últimos anos da vida de um homem e o seu repouso final. Seria um deslumbramento contínuo – com as noites escuras, as cruzes e as dores – até a “toilette” final da alma, que é feita por Deus, como um rei mandaria enfeitar a sua noiva do modo como ele desejasse, para estar à altura de se casar com ele. O soberano daria as joias, os tecidos, as ideias, as diretrizes, e as mandaria cumprir. Assim também faz Deus com nossas almas.

Eu acho que isto é profundamente católico. Lamento muito que as preparações para a velhice e para a morte não se façam em função desse ponto de vista. Só essa perspectiva dá ao homem a resignação de envelhecer e a esperança de ressuscitar.

Em última análise, para resumir tudo numa palavra só, a perfeição natural prepara o conhecimento da transcendência e tende para ela. A transcendência é um abismo, um infinito, pois o seu objeto é Deus. Mas para lá tende o homem com toda a sua alma.

Sacralidade e sobrenatural

Agora, o que é a sacralidade? Há um estado da natureza vagamente análogo ao sobrenatural. Donde se pode dizer, por analogia, de uma coisa natural que ela tem algo de sacral. Um grandioso panorama pode dar a impressão de algo sacral. O termo “sacral”, em seu sentido próprio corresponde ao sobrenatural; no sentido analógico é uma excelência tão grande do natural que faz pensar no sobrenatural.

O homem sacral é aquele cuja mentalidade está toda impregnada desse conhecimento transcendente ao qual me referi acima, desse amor e dessa força ascendente rumo ao sobrenatural. Porque não basta ele imergir nas águas do sobrenatural, é preciso querer ir mais além. Este é o homem sacral, dotado de espírito ascensional infatigável.

O que é o homem sagrado? É quem recebeu um sacramento da Igreja que de modo particular o ligou com a ordem sobrenatural, deu-lhe poderes dentro dela e se apossou dele para fazê-lo um instrumento ministerial dessa ordem. E, portanto, ainda que não queira, ele tem na sua alma elementos pelos quais, tocando-se nele, toca-se no sobrenatural. Entretanto, esse homem poderá ter muito mais se ele se der inteiramente a essa transcendência.

A Igreja Católica é a sagrada fonte da sacralidade

A Igreja é de tal maneira sagrada, a tal ponto escachoa toda espécie de sacralidades, que ela é a fonte de todas as sacralidades. Ela é sacral em tão alto grau que a palavra “sacral” fica para ela meio apagada, e tendemos a dizer que ela é sagrada. Não porque ela não possua a sacralidade, nem por esta não lhe ser apropriada, mas porque é característico dela um estado tão eminente, que é, em certo sentido, um gênero maior na sacralidade.

A Igreja é então sagrada porque foi revestida de todos os dons sobrenaturais por Deus. Mas é sagrada também nisto: na ordem do sagrado, os dons a colocaram sumamente elevada e lhe deram o caráter de fonte, quase um papel parecido com o de Deus na Criação: a Igreja é, em certo sentido, o motor imóvel, o fim último. Como fonte, ela seria como que a criadora de todo sagrado existente na Terra, de maneira que pousando n’Ela o olhar, a pessoa conclui: “Cheguei a meu ponto, embora aí dentro ainda possa subir.” É o mais alto concebível. São os degraus por onde se chega ao Céu.

Por isso a palavra “sacral” torna-se um pouco, ou bastante, fraca para a Igreja, quase inadequada, como se dissesse: “Tal rei é bem-educado.” Estala a palavra. Embora o rei, de fato, seja bem-educado, não se pode compreender um rei mal-educado. Aliás, deve ser o modelo da boa educação.

Portanto, perguntar se o vocábulo “sacral” é um monopólio da ordem temporal, não é. Seria um monopólio da Igreja se esta não estalasse a palavra. Mas o termo convém inteiramente a ela. A Igreja é a sagrada fonte da sacralidade.

Sacralidade e ordem temporal

Pelo contrário, a sacralidade convém à ordem temporal como o seu mais alto adorno. Assim como se diz que a Igreja é a sagrada fonte da sacralidade, deve-se dizer que a ordem temporal é toda embebida de algo mais alto do que ela e reluz da vida sobrenatural da qual ela não é fonte, mas um receptáculo. Ela cintila e deflui, não como o alto da montanha onde nasce uma fonte, mas como as encostas por onde baixam as águas nascidas no píncaro. O alto da montanha é a Igreja. A ordem temporal é a parte mais alta em torno do cume, e de onde tudo defluiu para baixo. Daí o caráter sacral da ordem temporal.

Há dois modos de alguém se deixar penetrar pelo sacral. Um é a vocação de renunciar a tudo quanto é terreno, mas completamente, até o limite do inconcebível, para servir inteiramente a Deus. Então, renunciar até àquilo que é legítimo possuir. Outro é, pelo contrário, utilizar-se daquilo que Deus deu de um modo tão santo, que se santifique em alto grau no uso daquelas coisas.

Dois exemplos característicos seriam São Luís, Rei da França e São Francisco de Assis. São Francisco de Assis levou ao extremo os despojamentos da pobreza; São Luís, pelo contrário, foi santo num píncaro da ordem temporal. São vocações distintas.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1986)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

 

1) Referência ao Cântico de Simeão: “Deixai, agora, vosso servo ir em paz…” (Lc 2, 29-32).

 

Arquetipização, amor à cruz e seriedade

Desde a primeira infância, Dr. Plinio possuía uma tendência à arquetipização, que era alimentada pela frequência à Igreja do Sagrado Coração de Jesus. O ambiente, as imagens, o órgão lhe causavam encanto, mas ele sentia a necessidade de que ali também houvesse uma fortificação; e percebia que dentro daquela harmonia e beleza estava encravada a cruz.

 

Na Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, eu sentia como um estado de espírito que ficasse pairando pelo ar, uma mentalidade difusa que parecia dizer algo através de cada um dos elementos da decoração. O que havia de mais alto, mais eminente, mais preciso, se exprimia através da imagem do Sagrado Coração de Jesus, sugerindo o modo de Ele ser.

Uma “bonbonnière” de Sèvres

Tudo quanto via em mamãe era, para mim, um elemento integrante d’Ele. Primeiramente, percebi a Ele na Igreja do Coração de Jesus, da qual — por pasmoso que seja — o próprio Sagrado Coração de Jesus também é um elemento integrante.

Toda a vida, desde bem pequeno, houve no meu espírito uma tendência para a arquetipização. Não no sentido de me iludir, achando algo arquetípico quando na realidade não é, mas pensando mais ou menos o seguinte: “Se isso fosse perfeito, como seria?” E julgando mais pelo que aquilo deveria ser, do que pelo que era. Eu não tinha maturidade para exprimir isto assim, mas é o que estava no meu espírito. Suponho que fosse uma graça.

Dou um exemplo fora do ambiente da Igreja do Coração de Jesus.

Se eu visse uma “bonbonnière”, o mais importante para mim não era fazer a crítica dela, mas saber como ela seria se o plano do indivíduo que a fez tivesse chegado ao auge. Em seguida “decretava” — por pobreza de expressão, por falta de clareza de espírito, por uma porção de coisas — ser aquele objeto “mais bonito”, porque morava ali um plano mais bonito do que em outro objeto.

Lembro-me de que vovó tinha uma “bonbonnière” de Sèvres, daquele tempo em que se importavam as coisas da Europa às torrentes, a baixo preço. Não era um objeto pomposo, mas eu o achava lindo!

Com a partilha dos bens, isto ficou para uma tia minha, e lamentei que a “bonbonnière” não tivesse ficado com mamãe. Uns 30, 40 anos depois, numa das idas à casa dessa minha tia, vi a “bonbonnière” ao alcance de minha mão; e, não sem susto da dona da casa, peguei-a e comecei manuseá-la. Fingi não perceber o susto de minha tia, que temia que o objeto caísse no chão. Eu tinha fama na família de ser “quebrador”. Não era uma fama injusta…

Tive uma decepção ao analisá-la, e percebi que achava linda a “bonbonnière” que o artesão quisera fazer, não a que estava ali. Quando menino, não separava suficientemente a arquetipia da realidade, e julgava que a “bonbonnière’ linda estava de algum modo também presente ali.

O que acabo de descrever é muito menos raro do que parece. O espírito humano é correntemente propenso a isto.

As mitras ”preciosas” dos bispos

Conto algo característico desse processo de arquetipização, por onde mostro como ele é legítimo.

O velho carnaval paulista possuía aspectos dados ao suntuoso. Aquelas moças e mocinhas tinham fantasias de princesas do Oriente e roupas de “Ancien Régime”. Para imitar joias, compravam pedras falsas, as quais punham nos ornatos. E todo o mundo achava bonito, interessante, sabendo ser pedra falsa. Arquetipizavam aquilo que estavam vendo.

O que faziam as moças e mocinhas, ninguém achava ridículo.

Faziam-no também os bispos. Mitras que deveriam ser de tecidos riquíssimos — porque eram chamadas “mitra preciosa”, “mitra áurea”, como reminiscência dos tempos em que eram preciosas mesmo —, no meu tempo de jovem eram feitas com tecidos comprados na Rua Santa Ifigênia(1), nesses especialistas de objetos de alfaiataria religiosa.

Mais de uma vez, terminada a cerimônia da Páscoa, vi um bispo chegar à porta da catedral, os sinos todos tocando, o portal fazendo moldura para ele; e reluzindo na mitra todas aquelas pedras falsas que poderiam ornar as fantasias de carnaval.

Ninguém achava ridículo. Era uma legítima arquetipização. Quer dizer, é um processo legítimo, sem o qual a boa ordem do pensamento humano é quase incompreensível.

Comigo, esse processo se dava desde que me lembro de mim, já na pré-idade de formação da razão, dos primeiros princípios.

Bons arquétipos e realidade

Também com relação ao mal. Alguém diria que nasci com uma vocação maniqueia furibunda, mas não é verdade. Era o “inimicitias ponam”(2), e outras categorias de espírito que ainda não conhecia, as quais estavam dentro disso. Reputo que eram graças.

Por exemplo, já tive ocasião de falar do Herr Kinker, o dono de pensão medonho, que me pôs uma vez na chuva(3). Ele se me apresentava como uma personificação do mal alemão. Mas eu o via como ele não era, porém certamente de acordo com modelos alemães que o Herr Kinker procurou imitar. E vinha logo a ideia: “Está vendo?! Há uma porção de pessoas como o Herr Kinker. Existe no fundo, algo semelhante a ele, e isto eu detesto!”

Isto se dava arqui-carregadamente na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde tudo era arquétipo e arquetipizado.

Concebo que um artista faça uma crítica daquilo e encontre defeitos. Mas esta graça de arquetipização não gosta da análise científica e artística, porque nega a arquetipização e desvia a atenção dela.

Devemos tomar cuidado com os bons arquétipos que formamos na alma, pois mesmo quando não correspondem à realidade, são mais profundos que a realidade vista.

O timbre de voz de Nosso Senhor

É importante notar ser esta atitude de alma uma explicação de minha pessoa aos olhos dos outros. Se quiserem entender muitas de minhas atitudes, vejam que estou agindo em função de um arquétipo.

Mas este arquétipo não é como o do indivíduo que estudou na escola de Belas Artes e se põe a desenhar uma fachada excelente, porque conhece os princípios. Ou este arquétipo sai à maneira de um jorro, do fundo da alma, do senso do ser em contato com a realidade, ou não adianta nada. Essas regras são como as regras da lógica: não servem para pensar, mas para formular com clareza o pensamento. Pois, se não se descobriu a verdade antes de usar a regra da lógica, só com a regra não se vai descobrir.

Na Igreja do Coração de Jesus havia algo arquetípico mais ou menos esparso pelo ar, do qual estou certo de que era uma graça. Quer dizer, admito que, a rogos de Nossa Senhora, Deus desejasse que eu fosse propenso a essa operação psicológica, mental, natural, e assim me concedesse graças nesse sentido, para eu conseguir realizar minha vocação.

Por que tenho certeza de que havia na Igreja do Sagrado Coração de Jesus uma graça? Porque, sem saber que era uma graça, pensava mais ou menos o seguinte: “É curioso, mas parece que tudo nesta igreja fala à minha alma! E fala com o timbre de voz que teria Jesus se estivesse na Terra! Esse é o próprio timbre de voz d’Ele!”

Não pensem que eu tinha uma visão, não se trata disso.

Uma igreja bela, mas faltava-lhe algo de fortificação

Graças a Nossa Senhora, também arquetipizava muito os Santos em função das imagens. De maneira que aquela coleção de imagens, ao longo das naves da Igreja do Coração de Jesus, era para mim imponentíssima, de Santos arquetipizados!

Ouvindo o órgão de lá, parecia-me a voz de Deus. Sabia que não era, mas achava ser algo como a voz de Deus.

No fundo da minha alma, isso me sensibilizava até onde era possível sensibilizar alguém. Depois de sentir profundamente aquilo, ficava querendo bem, e agradecendo. Porque percebia algo de muito bom que havia em mim potencialmente, que se movia agradecido e dizia: “Eu vos esperava, aqui estou!” Acho que era a graça do Batismo, a presença de Deus.

Tenho a impressão de que com todas as crianças acontece o mesmo.

Notava, entretanto, uma característica do Coração de Jesus não presente naquela igreja, mas que deveria estar. Sentia-me ali como se estivesse dentro de uma linda capela medieval posta no meio do campo. Ora, na Idade Média não existiam capelas colocadas no meio do campo; precisavam ter em volta muralhas, caso contrário o inimigo as destruiria.

Eu julgava, então, que a Igreja do Coração de Jesus deveria ser naturalmente fortificada. E aquela ausência de força, de “bellum”, da guerra, fazia-se sentir. Com isso, algo de minha alma não estava expresso, deixando-me a ideia de um complemento que faltava.

Contudo, consolava-me a grade da Igreja do Coração de Jesus e aqueles dois corpos de edifício, que davam ideia de um mal a combater e uma estabilidade a afirmar contra a intempérie. Alguma coisinha falava vagamente de uma circunstância adversa a ser tomada em consideração.

Gostava muito da figura do Padre Eterno, um belo mosaico existente em cima do tabernáculo, porque Ele era representado como um ancião batalhador e dominando.

Dona Lucília entendia essa atmosfera, mas não explicitava

Isso que eu sentia, algumas pessoas difusas pela igreja também sentiam mais ou menos. Não todas, mas uns dez por cento.

Dentre os outros, muitos tinham restos de religiosidade conspurcados: utilitários, consuetudinários, feitos um pouco de moda e de outros elementos meramente terrenos. No meu tempo de menino, aquela era a igreja da moda de um bairro bom de São Paulo.

Porém, se deixassem de haver ali dentro as almas que sentiam aquilo que eu estava notando — das quais o exemplo mais próximo, mais querido, mais eloquente era mamãe — os outros não voltariam mais. Era uma espécie de rede, por uma ação de “proche en proche”(4) e de presença, mais ou menos invisível.

Parecia-me também que as pessoas que frequentavam a igreja, e sentiam o que eu discernia, gostavam dessa graça, mas nunca teriam coragem de comentar, pois todo mundo cairia na gargalhada e diria ser uma demência! Portanto, não se devia falar sobre isso. E quem sentia não comentava, mesmo entre os que igualmente percebiam os imponderáveis da Igreja do Coração de Jesus. Mentalmente, formulavam algo do que sentiam, mas não iam além disso.

Acho que mamãe tinha ideia de que era uma graça, o que a levava a rezar muito lá. Todos esses matizes creio que ela os tinha, até riquíssimos, mas não sabia dizer. E nunca disse.

As pessoas tocadas por essa graça, em certo momento, achavam-na monótona

Eu percebia também essa própria graça atrair uma boa porcentagem desses que a sentiam. Contudo, se a graça se mantivesse e eles tivessem que ficar muito tempo em contato com ela, a maior parte achava monótono. Chegavam lá, deliciavam-se, se encantavam, mas depois sentiam tédio. E com um pouco mais, um pouco menos de tempo, sumiam.

Eu ficava perplexo: “Como é esse negócio? Não posso compreender: gostam tanto e fogem? Não aguentam o que admiram?” E pensava: “Dá-se o mesmo com relação a mamãe. Fazem com ela a mesmíssima coisa!”

Cheguei, então, à conclusão: “Algo disso há de transparecer em mim algum dia. Terei a vida que possuem essas coisas. Vou ser muito atraente para uma minoria, mas esta vai se cansar rapidamente de mim…”

Tenho certeza de que, no fundo, o que aparece em mim é isso que hauri no Coração de Jesus, com esse complemento de fortificação muito acentuado. Eu não seria eu mesmo e não me definiria como devo, se não fosse isso. Qualquer reunião feita por mim tem, no fundo, isso. Naturalmente em grau muito menor do que na Igreja do Coração de Jesus.

De um jeito ou de outro, todo o atrativo que eu possa apresentar para a companhia de outras pessoas, está marcado por isso. Portanto, sei que o itinerário forçoso é este: em certo momento cansa.

Tenho certeza de que isso acontece com todas as pessoas que são conformes à graça, sobretudo no nosso século. Porque isso é a proa de navio contra todo o espírito moderno, é a própria definição do espírito anti-moderno.

Os admiradores de Jesus se cansaram d’Ele…

Há uma nota em tudo quanto eu disse, sem a qual isso seria enormemente incompleto.

Na Igreja do Coração de Jesus, e em todas as imagens do Sagrado Coração de Jesus da boa escola, havia uma nota de tristeza. Porque dentro de toda essa harmonia, toda essa beleza, estava encravada a cruz.

Nosso Senhor Se apresentava para nosso olhar como sendo o próprio Homem-Deus, com todos os títulos para ser amado. A isto Ele acrescentou milagres e doutrinas.  Quando se lê uma frase do Evangelho, às vezes se pergunta por que o mundo inteiro não para, e fica comentando aquele pensamento por toda a eternidade! Quer dizer, Ele fez o inimaginável! E vê-se ter despertado admiração. Entretanto, seus admiradores se cansaram d’Ele…

Essa rejeição certamente causava uma dor profunda na humanidade santíssima d’Ele, precisamente por ser imerecida.

Um espírito superficial diria a Nosso Senhor: “Não Vos importeis. Vós nadais dentro de vossa própria perfeição. Por que precisais desses ‘pés-rapados’ que procurais?”

Seria um cálculo mal feito, evidentemente.

Portanto, a vida de Nosso Senhor era tristíssima. E há no fundo do olhar e do Coração d’Ele uma tristeza habitualmente morando. É o por onde aparece o melhor d’Ele.

Aceitar uma vida assim é aceitar de morar dentro de uma tristeza. Ao mesmo tempo nós sermos a casa da tristeza e a tristeza ser a casa de nossa alma; morarmos nós nela e ela em nós. E aceitar isso como “normal”, quer dizer, corriqueiro, inevitável, constante, até o fim.

Devemos procurar eliminar a alegria diante da simples ideia de que depois tem o Céu. Porque isto é um modo “happy-end”(5) de tomar as coisas, que não está na via de Nosso Senhor.

Realmente, depois há o Céu, mas existe a cruz que desfecha na morte, intermediária entre o homem nesta Terra e o Céu.

Este amplexo com a tristeza confere renúncia, abnegação, bondade, perseverança, constância a todas as nossas disposições de alma.

Não sei se torno claro quanto isso é essencial e como não seria cristão se não fosse assim.

Disso, sobretudo, muitas pessoas têm horror. Percebem e fogem! Ficam horrorizados.

A recusa da cruz traz o apagamento da luz

A cruz é como a sabedoria: a sabedoria da cruz vai desde a manhã sentar-se à porta da casa de cada um, esperando como uma mendiga que lhe queira abrir. Ela faz isto com todas as pessoas, de todos os jeitos, de todos os modos, conservando a dignidade como — guardadas as proporções — em grau divino a conservou Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, não é uma baixeza indigna, mas uma atitude em outra clave. E isto não é aceito.

O “flash”(6) faz uma operação curiosa: cobre isso de alegria, de maneira que inicialmente a pessoa não percebe a cruz. Em certo momento, suspeita estar ela aparecendo. E um dos pontos do entibiamento e do tédio sucede quando o indivíduo, confusamente, no meio do perfume das flores, começa a sentir o cheiro da cruz e a rejeita.

Se fosse pelo menos a cruz dramática: a pessoa se deita e faz-se crucificar! Mas não. É a cruz de todos os dias, com sua banalidade, sua monotonia, sua luta contra tal tentação concreta, que a pessoa não quer aceitar, mas não quer vencer; tal xodó, tal birra, tal coisa que não quer perdoar, sobretudo.

O indivíduo quer colocar no centro de sua vida uma fonte de alegria. Quando quer isso desista, porque fracassou!

Quando a pessoa recusa a cruz, apaga-se a luz. Ela pode achar a Igreja do Sagrado Coração de Jesus a mais bonita possível, mas fica átona. A alegria desaparece, começa a julgar tudo tedioso. Continua a achar bonita a igreja, mas de um bonito tão apagado que as coisas mais admiráveis que lá existem não despertam comentário.

A biografia de Huysmans(7) que li foi para mim uma revelação e uma delícia para a alma, porque, quando ele se converteu, passou a ver muitíssimas dessas coisas de novo.

Quando vem a conversão, a pessoa começa a perceber que a Liturgia é linda e a re-perceber as belezas da Igreja. Enquanto mero artista, o Huysmans percebia, não tem dúvida; mas isto não tem vida.

Os convites da graça, as recusas e a seriedade diante da vida

Suponho que a graça produza esse processo no espírito de todos, mas a maioria vai, desde logo “apostatando” e tendo, já no começo, um tal desamor, que não conservaram nem remorsos, nem recordação. De onde uma obliteração profunda, dentro da qual algo ficou. A “cathédrale engloutie”(8) é isto. Algo ainda fala à alma, mas as pessoas vivem de soterrar essa graça.

Ao longo da vida, todos os dias, as pessoas recebem vários convites nesse sentido, mas já vão correndo ao primeiro bueiro, para ver onde podem jogar fora o convite. Esta é a realidade.

Mas Nossa Senhora é tão boa que um pavio sempre fica, e essa luz pode reacender.

Isto é propriamente o Reino de Deus e sua justiça que devemos procurar. Os Apóstolos o que quiseram foi isto. Isto borbulha no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, sobretudo na “Oração Abrasada”, que é um “geyser” disto! Quando se ouve falar de Carlos Magno, das Cruzadas, isto borbulha!

Ficaram, assim, umas fontes no deserto lançando água para uns homens que, de longe, ainda olham para elas e dizem: “Como são bonitas… Agora me deixe comer tâmaras…” Voltam as costas para a fontes e começam a comer tâmaras.

Ou, o que é pior: “Deixe-me afundar no pecado!” Porque quem recusa esta graça perde as condições para conservar uma castidade perfeita.

Estas considerações produzem certa melancolia, mas que não vão sem alguma alegria.

Tudo isso junto, como se chama? Seriedade.

Encerramos uma conversa séria. Como é melhor ser sério do que torcer!

Meus caros, que Nossa Senhora os ajude!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/10/1985)

Revista Dr Plinio 208 (Julho de 2015)

 

1) Localizada na região central da cidade de São Paulo.

2) Do latim: porei inimizades (Gn 3, 15).

3) Ver Revista Dr. Plinio n. 9, p. 4-5.

4) Do francês: de próximo em próximo, gradativamente.

5) Do inglês: final feliz. Alusão à mentalidade difundida pelos filmes de Hollywood.

6) Graça atual de caráter místico que confere um particular discernimento do sobrenatural. Ver Revista Dr. Plinio n. 55, p. 16-20.

7) Joris-Karl Huysmans, escritor e crítico de arte francês
(* 1848 – † 1907).

8) Do francês: catedral submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.

Práticas da perfeição cristã

Dando continuidade aos seus comentários à “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio salienta a necessidade de nos compenetrarmos de que nascemos, antes de tudo, para cumprir a missão e o plano de Deus a nosso respeito. E tal desempenho envolve o sofrimento que devemos abraçar, “sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos”.

 

Na segunda parte de seu opúsculo destinado aos Amigos da Cruz, São Luís Grignion de Montfort estabelece o programa de santidade que o próprio Divino Mestre nos deixou. Escreve ele:

Toda a perfeição cristã, com efeito, consiste:

1º) Em querer tornar‑se santo: “Se alguém quiser vir após Mim”.

2º) Em abnegar-se: “renuncie a si mesmo”;

3º) Em sofrer: “carregue sua cruz”;

4º) Em agir: “siga‑me” (Mt 16, 24; Lc 9, 23).

Portanto, ao interpretar a admirável frase de Nosso Senhor no Evangelho, São Luís demonstra como ela encerra um desejo de santidade, uma renúncia, um padecimento e uma ação. São os elementos fundamentais da conquista da perfeição cristã. A seguir, o autor comentará cada um desses componentes.

Muito poucos querem abraçar a cruz de Cristo

“Se alguém quiser vir comigo” — “Alguém” e não “alguns”, para marcar o pequeno número dos eleitos que querem se identificar com Jesus crucificado, carregando sua cruz. É tão pequeno esse número, tão pequeno, que se o soubéssemos, ficaríamos pasmados de dor.

É tão pequeno, que há apenas um em cada dez mil, como foi revelado a vários santos — entre outros a São Simão Estilita, segundo narra o Santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, São Basílio e alguns outros. É tão pequeno, que se Deus quisesse reuni‑los, gritar‑lhes‑ia, como o fez outrora pela boca de um profeta: reuni‑vos um a um, um desta província, outro desse reino (Is 27, 12).

Cumpre notar que São Luís Grignion não se refere apenas ao seu tempo, mas considera todas as épocas, em todos os lugares: assim mesmo, o número de pessoas que verdadeiramente querem tomar a cruz de Nosso Senhor e segui-Lo, é pasmosamente pequeno.

Sem o auxílio da graça não se aceita uma vida de renúncias

São Luís prossegue:

“Se alguém quiser” — se alguém tiver vontade autêntica, firme e determinada, não pela natureza, pelo costume, pelo amor próprio, pelo interesse ou respeito humano, mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo, que não se dá a todos. O conhecimento do mistério da cruz, na prática, só é dado a poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e aí se deixar pregar na cruz, com Jesus, em sua própria pátria, é preciso que seja um corajoso, um herói, um determinado, um homem formado em Deus, que despreze o mundo e o inferno, seu corpo e sua vontade própria; disposto a deixar tudo, a tudo empreender e a tudo sofrer por Jesus Cristo.

Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles dentre vós que não têm essa determinação, andam com um pé só, voam com uma asa só e não são dignos de estar no meio de vós, porque não são dignos de serem chamados Amigos da Cruz, à qual devemos amar com Jesus Cristo, “corde magno et animo volenti”. Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai‑a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

Esse pensamento de São Luís Grignion é muito importante, porque nos revela a necessidade de uma graça especial para determinar os homens a seguirem a cruz de Nosso Senhor.

Quer dizer, se alguém julga que somente fatores humanos são capazes de levar uma pessoa a aceitar uma verdadeira vida de sacrifícios, esse se acha completamente enganado. E igualmente errado estará quem pense que a tal nos inclinará o costume, a natureza ou o “ânimo dedicado”. Não existe ânimo dedicado nessa matéria. Há homens que, às vezes, demonstram certa facilidade para algumas formas menos penosas de dedicação. Mas entregar-se até o sangue nas grandes dificuldades, não se consegue sem o auxílio da graça.

Sabemos, pela experiência pessoal de cada um, como é dura a batalha pela perseverança na virtude: luta e entrega individuais, em que a tradição e o ambiente doméstico podem ajudar um tanto, mas não são fatores determinantes para nos levar à pratica da virtude. É preciso a força da vontade secundada pelo socorro divino.

A graça “toda vitoriosa” do Espírito Santo

Curioso notar como São Luís Grignion se refere também ao interesse e ao respeito humano — tomado aqui no sentido de honras e regalias que se prometem a alguém — como ineficazes para convencer o homem a tomar a Cruz. Ou seja, nenhuma razão natural, nenhum valor terreno e mundano é capaz de determinar uma pessoa a cumprir estavelmente os Mandamentos de Deus. Só mesmo com o amparo do Céu, como o próprio autor insistirá na frase seguinte:

Mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo que não se dá a todos.

Agrada-me salientar essa bela expressão de São Luís: “graça toda vitoriosa”.

Com efeito, há certas graças que o Espírito Santo concede aos homens, em geral graças de conversão, que trazem consigo a vitória na vida espiritual. Graças tão ricas, tão eficazes, alcançadas por meio de Maria Santíssima, que nos fazem sentir um desejo quase irresistível de progredir na virtude e de abraçar as vias da santidade de modo mais resoluto.

Certo, mesmo sob o influxo dessa graça poderemos conhecer eclipses, enfrentaremos toda espécie de ventanias, de tropeços, mas, afinal, aquela luz divina nunca se apagará inteiramente no nosso horizonte. E acabaremos por segui-la e por atingir nosso bom porto, conduzidos pela misericórdia de Nossa Senhora.

Prudência sobrenatural

Continua o santo autor:

Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai‑a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

É interessante analisarmos a razão pela qual São Luís Grignion se refere à “má ovelha”. A meu ver, uma razão de prudência sobrenatural, que se explica nesses termos: quando um grupo forma um todo homogêneo, a presença nesse conjunto de um elemento heterogêneo pode maculá-lo por inteiro.

Imaginemos, por exemplo, um lindo tecido sobre o qual cai uma gota de tinta. Diríamos: “o pano está manchado”. E estranharíamos se outro objetasse: “Não, desculpe-me, mas apenas um centímetro quadrado desse tecido está sujo; o resto está limpo”. Ora, um centímetro quadrado de mancha num tecido branco, implica em que todo ele está manchado. Se se deseja a alvura inteira do pano, é preciso remover a mancha.

Se aceitarmos a cruz, cumpriremos nossa missão

“Se alguém quiser vir comigo”, que tanto me humilhei e aniquilei, que me tornei mais semelhante a um verme, que a um homem;  comigo, que só vim ao mundo para abraçar a cruz, para colocá‑la no centro de meu coração, para amá‑la desde a minha juventude; para suspirar por ela durante a minha vida; para carregá‑la com alegria, preferindo‑a a todas as alegrias do céu e da terra, e que, enfim, só me contentei quando morri em seu divino abraço.

Eis um dos sublimes pensamentos de São Luís Grignion de Montfort, pois se refere à posição do homem perante a missão que ele recebeu de Deus; missão que sempre traz uma cruz, à qual deseja carregar. Aqui está, expressa em termos magníficos, a vocação do verdadeiro Amigo da Cruz.

Trata-se, portanto, de termos a compenetração de que viemos ao mundo, não para nos divertir nem para satisfazer caprichos. Viemos, antes de tudo, para cumprir nossa missão, o plano de Deus a respeito de cada um. E o desempenho dessa missão envolve o sofrimento que devemos abraçar, agarrarmo-nos a ele, sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos, mas tomá-lo por inteiro. Claro está, suplicando a Nossa Senhora que nos alcance de Deus as forças necessárias para beber o cálice das dores como Ela e seu Divino Filho o fizeram na Paixão, sem deixar escapar uma gota sequer. Seja o que for, por mais duro, mais difícil, mais enigmático e incompreensível aos nossos olhos, aceitarmos.

E não é apenas aceitar a cruz, mas nos adiantarmos e a agarrarmos, nos prendermos a ela, com todo o amor e toda a força de nossa alma. Amo minha missão e o sofrimento sacrossanto que ela traz consigo. O resto me importa menos ou não me importa nada. Quero a cada uma dessas gotas de sacrifício, com integridade de coração, sem me esquivar de nenhuma. Devo preferi-las “a todas as alegrias do céu e da terra”, e “amá-las desde a minha juventude”.

Outra expressão de extrema beleza. Na verdade, muitos podem dizer que desde a juventude, desde os albores da infância, sentiram o sopro da graça que lhes convidava para sua vocação. E se corresponderem, no momento de deixarem este mundo, poderão olhar para trás e dizer a Deus:

“Senhor meu Pai,  ao menos, de um modo ou doutro, amei a vocação que me destes desde o começo de minha vida. E esta não foi outra coisa senão procurar o cumprimento da missão que me confiastes. Agora morro nas vossas mãos e nas de Maria Santíssima; aquilo que me mandastes fazer, eu fiz. Dai‑me, pois, Senhor, o prêmio da vossa glória.”

É a missão realizada. Mas, missão aceita é, antes de tudo, a cruz aceita. Abraçada a cruz, está cumprida a missão. E é a graça de tomarmos a cruz que devemos pedir a Deus, de toda a alma e com toda a confiança, por meio de Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/7/1967)

 

Lágrimas, milagroso aviso

A “Folha de S. Paulo” de 21 de julho p.p. publicou recentemente uma fotografia procedente de Nova Orleans, na qual se via uma imagem de Nossa Senhora de Fátima a verter lágrimas. O documento despertou vivo interesse no público paulista. Penso, pois, que algumas informações sobre este assunto satisfarão os justos anelos de muitos leitores.

Não conheço melhor fonte sobre a matéria do que um artigo intitulado, muito americanamente, “As lágrimas da imagem molharam meu dedo”. Seu autor é o Pe. Elmo Romagosa. Publicou seu trabalho o “Clarion Herald” de 20 de julho p.p., semanário de Nova Orleans, e distribuído em onze paróquias do Estado de Louisiana.

Os antecedentes do fato são universalmente conhecidos. No ano de 1917, Lúcia, Jacinta e Francisco tiveram várias visões de Nossa Senhora em Fátima. A autenticidade dessas visões foi confirmada por vários prodígios no sol, atestados por toda uma multidão reunida enquanto a Virgem se manifestava às três crianças.

Em termos genéricos, Nossa Senhora incumbiu os pequenos pastores de comunicar ao mundo que estava profundamente desgostosa com a impiedade e a corrupção dos homens. Se estes não se emendassem, viria um terrível castigo, que faria desaparecer várias nações. A Rússia difundiria seus erros por toda parte. O Santo Padre teria muito que sofrer.

O castigo só seria obviado se os homens se convertessem, se fossem consagrados a Rússia e o mundo ao Imaculado Coração de Maria e se fizesse a comunhão reparadora do primeiro sábado de cada mês.

*    *    *

Isto posto, a pergunta que naturalmente salta ao espírito é se os pedidos foram atendidos.

Pio XII fez em 1942, uma consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria. A irmã Lúcia asseverou que ao ato faltaram algumas das características indicadas por Nossa Senhora. Não pretendo analisar aqui o complexo assunto. Registro apenas, de passagem, que é discutível se o primeiro pedido de Nossa Senhora foi atendido ou não.

Quanto ao segundo pedido, isto é, a conversão da humanidade, é tão óbvio que não foi atendido, que me dispenso de entrar em pormenores.

Como Nossa Senhora estabeleceu o atendimento de seus pedidos, como condição para que fossem desviados os flagelos apocalípticos por Ela previstos, está na lógica das coisas que baixe sobre a humanidade a cólera vingativa e purificadora de Deus, antes de vir a nós a conversão dos homens e a instauração do Reino de Maria.

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Das três crianças de Fátima, a única sobrevivente é Lúcia, hoje religiosa carmelita em Coimbra. Sob a direção imediata desta última, um artista esculpiu duas imagens, que correspondem o quanto possível aos traços fisionômicos com que a Santíssima Virgem apareceu em Fátima. Ambas essas imagens, chamadas “peregrinas”, têm percorrido o mundo, conduzidas por sacerdotes e leigos. Uma delas foi levada recentemente a Nova Orleans. E ali verteu lágrimas.

O Pe. Romagosa, autor da crônica a que me referi, tinha ouvido falar dessas lacrimações pelo Pe. Joseph Breault, M. A. P., ao qual está confiada a condução da imagem. Entretanto, sentia ele funda relutância em admitir o milagre. Por isto, pediu ao outro sacerdote que o avisasse assim que o fenômeno começasse a se produzir.

O Pe. Breault, notando alguma umidade nos olhos da Virgem peregrina no dia 17 de julho, telefonou ao Pe. Romagosa, o qual acorreu junto à imagem às 21h30, trazendo fotógrafos e jornalistas. De fato, notaram todos alguma umidade nos olhos da imagem, que foi logo fotografada. O Pe. Romagosa passou então o dedo pela superfície úmida, e recolheu assim uma gota de líquido, que também foi fotografada. Segundo o Pe. Breault, esta era a 13a. lacrimação a que ele assistia.

As 6:15h da manhã seguinte, o Pe. Breault telefonou novamente ao Pe. Romagosa informando-o de que desde as 4 horas da manhã a imagem chorava. O Pe. Romagosa chegou pouco depois ao local, onde, diz ele, “vi uma abundância de líquido nos olhos da imagem, e uma gota grande de líquido na ponta do nariz da mesma”. Foi essa gota, tão graciosamente pendente, que a fotografia divulgada pelos jornais mostrou a nosso público.

O Pe. Romagosa acrescenta que vira “um movimento do líquido enquanto surgia lentamente da pálpebra inferior”.

Mas ele queria eliminar dúvidas. Notara que a imagem tinha uma coroa fixada na cabeça por uma haste metálica. Ocorreu-lhe uma pergunta:

Não haveria sido introduzida, no orifício em que penetrava a haste, certa porção de líquido que depois escorrera até os olhos?

Cessado o pranto, o Pe. Romagosa retirou a coroa da cabeça da imagem: a haste metálica estava inteiramente seca. Introduziu ele, então, no orifício respectivo, um arame revestido de papel especial, que absorveria forçosamente todo líquido que ali estivesse. Mas o papel saiu absolutamente seco.

Ainda não satisfeito com tal experiência, introduziu no orifício certa quantidade de líquido. Sem embargo, os olhos se conservaram absolutamente secos. O Pe. Romagosa voltou então a imagem para o solo: todo o líquido colocado no orifício escorreu normalmente. Estava cabalmente provado que do orifício da cabeça  –  único existente na imagem – nenhuma filtração de líquido para os olhos, seria possível.

O Pe. Romagosa ajoelhou-se. Enfim ele acreditara.

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O misterioso pranto nos mostra a Virgem de Fátima a chorar sobre o mundo contemporâneo, como outrora Nosso Senhor chorou sobre Jerusalém. Lágrimas de afeto terníssimo, lágrimas de dor profunda, na previsão do castigo que virá.

Virá para os homens do século XX, se não renunciarem à impiedade e à corrupção. Se não lutarem especialmente contra a autodemolição da Igreja, a maldita fumaça de Satanás, que no dizer do próprio Paulo VI, penetrou no recinto sagrado.

Ainda é tempo, pois, de sustar o castigo, leitor, leitora!

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Mas, dirá alguém, esta não é uma meditação própria para um ameno domingo. – Não é preferível – pergunto – ler hoje este artigo sobre a suave manifestação da profética melancolia de nossa Mãe, a suportar os dias de amargura trágica que, a não nos emendarmos, terão que vir?

Se vierem, tenho por lógico que haverá neles, pelo menos, uma misericórdia especial para os que, em sua vida pessoal, tenham tomado a sério o milagroso aviso de Maria.

É para que minhas leitoras, meus leitores, se beneficiem dessa misericórdia, que lhes ofereço o presente artigo…

Plinio Corrêa de Oliveira, (Folha de São Paulo, 6/8/72)

Nossa Senhora de Fátima, o extremo sacrossanto

Virgem Mãe, Senhora de Fátima, que anunciastes ao mundo tão extremas aflições e tão excelsas alegrias, revelando os terríveis castigos e os grandes triunfos pelos quais passará a Cristandade!

A  Vós, que denunciastes com tanta clareza os extremos de abominação moral a que chegamos e, ao mesmo tempo, fizestes ver a plenitude de vossa insondável santidade, eu Vos suplico: mudai o meu espírito!

Não permitais que eu continue sendo uma dessas incontáveis pessoas de horizontes curtos e de interesses circunscritos à pequena esfera de sua própria individualidade. Fazei, pelo contrário, que pela despretensão e abnegação eu seja uma alma aberta e ardente, capaz de medir em toda a sua extensão os extremos que em Fátima se divisam e de tomar uma posição intransigente e completa a favor do extremo sacrossanto que sois Vós, oh! minha Mãe: extremo de amor de Deus, de pureza, de humildade, de despretensão, de inquebrantável combatividade!

Fazei com que eu, assim, seja um contrarrevolucionário modelar, um perfeito apóstolo dos últimos tempos.

Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta em 8/5/1971)

Padroeira do Brasil

Pode-se dizer que o Brasil é um feudo de Nossa Senhora enquanto concebida sem pecado original, ou seja, da Imaculada Conceição.

O fato dessa imagem ter sido encontrada no Rio Paraíba, no século XVIII, é de grande significado para o Brasil. Naquela época, embora francamente admitido pela maioria dos católicos, o dogma da Imaculada Conceição ainda não estava definido. E fazer uma profissão de Fé nesse augusto privilégio de Nossa Senhora constituía um distintivo de requintada ortodoxia.

Ora, exatamente a partir do aparecimento dessa imagem, mais de um século antes da definição dogmática, foi o Brasil colocado sobre o patrocínio da Imaculada Conceição. Isto indica um chamado especial da Mãe de Deus para nossa Pátria, e é motivo de imenso júbilo para todos os brasileiros devotos da Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1970 )

Oração: Nossa Senhora Aparecida, glória, alegria e honra do nosso povo

Ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças e, mais do que todas, concedei-nos a graça das graças: Ó Mãe, uni intimamente a Vós este vosso Brasil!

Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes. Tornai sempre mais largo e misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

Fazei-nos sempre mais fortes na luta por Cristo-Rei, Filho vosso e Senhor nosso. De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para Lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina do cêntuplo nesta Terra e da bem-aventurança eterna.

Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil, com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece? Onde encontrá-las senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superiora a qualquer louvor humano? De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito palavras que amorosamente aqui repetimos: “Tu gloria Ierusalem, tu lætitia Israel, tu honorificentia populi nostri” (Jt 15, 10).

Sois Vós a glória, a alegria, a honra deste povo que Vos ama!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do Jornal “Última Hora” de 12/10/1983)