Seriedade, charme e grandeza

Respondendo a uma pergunta sobre a formação do Reino de Maria e as qualidades de alma necessárias para dele se fazer parte, Dr. Plinio apresenta algumas reflexões a respeito da complementaridade existente entre paternidade e primogenitura, seu papel na constituição das eras históricas, e as relações entre seriedade, charme e grandeza.

 

Quando chegar minha vez de ler o Cornélio(1), espero encontrar em sua obra o comentário a dois verbetes que são complementares: paternidade e primogenitura.

Até a Revolução Francesa ainda se encontravam restos do patriarcado

O que há na paternidade para que a primogenitura, que é apenas a primeira flor da paternidade, tenha tal valor que, por exemplo, quando Deus castigou os egípcios com aquelas dez pragas, a última e a maior delas foi a morte de todos os primogênitos, até mesmo dos animais?(2)

Do ângulo que estou considerando, quase me impressiona mais a morte dos primogênitos dos animais do que dos homens.

Os antigos tinham o senso da família muito bem constituído e desenvolvido patriarcalmente, isto é, com algumas tradições e qualidades peculiares ao período do patriarcado. E as águas do patriarcado fluíram longe dentro do leito do rio da História. Até à Revolução Francesa e a generalização dela no mundo, encontramos restos do patriarcado nesta e naquela instituição.

Compreende-se, portanto, que seja particularmente duro para o patriarca perder aquele que é o seu primogênito. É algo como que fulminando o resto todo que veio, porque quebra o elo natural entre o patriarca e o restante de sua progênie. Por causa disso a morte do primogênito causa uma dor para o patriarca, para o chefe de família patriarcal especialmente.

Em nossos dias, o senso da primogenitura parece muito apagado, quase reduzido a zero. Mas para Deus, não. Porque o requinte do castigo não consistiu em matar um filho qualquer, mas o primogênito. E para se compreender a ligação do castigo com a primogenitura, quer dizer, o que vale o primogênito não como pessoa, mas enquanto primogênito, vem então o castigo até sobre os primogênitos dos animais.

Mistérios da paternidade

Eu precisava ver no Cornélio, mas parece que isto dá a entender o seguinte: que uma estirpe animal, com a morte dos seus primogênitos, fica degradada e que há um dom de perpetuação no primogênito que os outros não têm; por onde o primogênito do primogênito do primogênito possui uma representatividade de toda a estirpe que os outros não têm. Para isso atingir assim os animais, tem algum suporte na própria biologia. É misterioso, mas me parece enormemente sensato e explicável que seja assim.

Essas considerações nos introduzem no conhecimento dos mistérios da paternidade, no que ela tem de biológico. É uma coisa tão ampla que Deus quis que houvesse homem e mulher, para que essa ideia da autoria — um ser que gera outro — se exprimisse pela severidade e grandeza do homem e pela doçura da mulher, a fim de dar um complemento, como se um ser humano só não fosse suficiente para abarcar em si toda a causalidade de outro ser, tão grande é a paternidade, tão grande é a causalidade, tantos mistérios há dentro disso.

Então se compreende o papel da paternidade. Estou falando aqui da paternidade no sentido literal da palavra, mas também de outra forma de paternidade, que é a constituição das famílias de alma.

Famílias de alma

Geralmente os reinos, os países, as nações vivem tendo como arcabouço as famílias de alma. E quando as famílias de alma desse reino decaem, o reino decai irremediavelmente.

Essas famílias de alma, em geral, são fundadas por um indivíduo, segundo o qual as outras almas são suscitadas; ele é uma espécie de molde, conforme o qual Deus modela todas as outras vocações.

Em geral, vemos na História que na raiz de toda grande época das nações católicas existem algumas grandes almas que suscitam ou ressuscitam uma grande família religiosa, e depois, como uma espécie de exalação perfumada disso, nascem os grandes líderes temporais para servir a Igreja.

Então, por exemplo, Santa Teresa, Santo Inácio, São Francisco de Borja, São Francisco Xavier, São João da Cruz, etc. Pode-se imaginar um tecido de almas, um conjunto de focos luminosos de cujo encontro nasce um Filipe II que, para a Espanha, foi um patriarca menor do que o próprio mito, mas que fez uma grande coisa: deixar um mito no qual a posteridade creu, de maneira que o bem que ele não realizou, o mito fez depois dele.

Então eu me ponho a perguntar: “Com o Grand Retour(3) para nós aqui na Terra, o que haverá no Reino de Maria? Com que graças especiais, com que reluzimentos especiais o Divino Espírito Santo se fará sentir, quando chegar a hora de Ele insuflar a graça decisiva do Reino de Maria?” Isso nos deve modelar.

Todos nós conhecemos o fenômeno do heliotropismo: a tendência das plantas a se voltarem para o Sol. O “sol”, no caso, é o Divino Espírito Santo. E é necessário que Ele nos encontre ávidos d’Ele. De maneira tal que o Espírito Santo se manifestando, nós nos voltemos e nos abramos imediatamente.

Noção de seriedade

Contribuiria para isso passarmos a analisar agora outra noção: a de seriedade.

No seu primeiro aspecto, na sua definição mais elementar, a seriedade é a disposição de alma pela qual se quer ver a realidade absolutamente como ela é, e tirando-se todas as consequências que logicamente se devem tirar.

A seriedade comporta dois elementos: a observação inteiramente objetiva do objeto visto, e a legítima extração de conhecimentos de dentro daquilo que foi visto.

Então, a seriedade é a perfeição na objetividade e a plena fecundidade no suscitar consequências, a plena abundância das conclusões, tanto quanto àquela alma foi dado ter. É sério quem vê tudo como deve ser visto e conclui até onde ele pode concluir.

O homem que tem apetência de seriedade não faz, portanto, do ver ou do julgar, algo para se deleitar a si mesmo. Ele quer ver a verdade ainda que não o deleite, quer julgar ainda que não lhe seja grato julgar daquele modo. Ele quer julgar com justiça.

Portanto, ele está numa atitude de combate habitual contra si mesmo. Porque nós todos temos uma tendência à falta de seriedade, quer dizer, a ver as coisas como não são e a julgá-las como nos convém. Assim como, por exemplo, nenhum homem escapa à tentação contra a pureza, nenhum homem escapa da tentação contra a seriedade.

A seriedade plena visa constantemente os cumes

Mas a seriedade tem mais.

Aquilo que o homem sério vê, não basta que ele veja numa superfície plana. Por exemplo, um indivíduo que fosse voar muito alto e fotografasse um sistema montanhoso muito de cima. Aquelas montanhas pareceriam meio achatadas na fotografia, e quem a visse não teria a impressão de toda a altura das montanhas, porque o ponto de vista de onde foram fotografadas foi muito alto.

O homem não pode ter uma visão achatada da realidade, porque a realidade não é chata. A realidade é hierárquica, toda feita, portanto, de ascensões, de serranias. A realidade é uma imensa serrania, e é preciso vê-la assim, saber situar-se no lugar que dentro dela nos compete, e não onde nossa fantasia quereria nos colocar.

É tão fácil pecar contra esse dever! O homem tem uma tendência quase contínua para faltar contra essa obrigação, quase como a tendência para respirar.

E a seriedade plena, porque é altamente hierárquica, visa constantemente os cumes, aquilo que constitua um píncaro de tudo.

Por exemplo, se um homem sério considerar uma pedra, como a água-marinha, regala-se com o luminoso dela, fazendo uma comparação, mais ou menos subconsciente, com pedras que ele viu. Há, portanto, uma comparação com as outras coisas já consideradas por ele. E no fundo de sua cabeça, talvez sem que ele se dê conta, há uma espécie de desejo da pedra ideal que não existe na Terra, de pedra do Paraíso Terrestre, do Céu Empíreo, que possa regalar plenamente o ser humano na sua inteligência, na sua vontade, nos seus sentidos.

Desejo contínuo de perfeição

O homem sério volta-se continuamente para essas matrizes primeiras, tratando de explicitá-las. E quando analisamos sua vida, notamos ter sido uma longa peregrinação à procura da perfeição de todas as coisas.

Mas ele não tarda em perceber que nada é perfeito, a não ser Aquele que é a Perfeição, e o seu desejo de perfeição, em última análise, se volta para Deus. E que sem Deus Nosso Senhor tudo se pulveriza, perde o sentido, só Ele é absoluto. Sem o Absoluto, tudo afunda no relativo, no nada.

A pessoa séria compreende que esse seu desejo contínuo de perfeição, que é por assim dizer o bater de coração de sua seriedade, a alma de sua intransigência, o impulso de sua combatividade, a fonte inspiradora de seu carinho, de seu afeto, é o amor de Deus, pois só Deus é perfeito. Isso deve animar continuamente o homem sério.

Charme deslumbrante

Pelo exposto até aqui, vemos como o conceito de charme e de grandeza instalam-se com naturalidade nesse panorama.

Segundo um conceito corrente de charme, este se opõe à seriedade, pois é aplicado a seres que, em geral, nos fazem sorrir. São mais miúdos, engraçadinhos e têm uma forma pequena de perfeição que desperta um pouco de compaixão, de ternura, de vontade de proteger e, de outro lado, embevece.

Tomando a palavra charme nesse sentido, Deus é charmant(4)?

O charme é uma qualidade. Logo, em Deus deve haver charme, porém não com essa conotação que sugere limitação.

Como podemos imaginar que o Criador faça sorrir? Deus até deseja que o homem sorria. Quando criou, por exemplo, o colibri, os miosótis, Ele quis que o homem sorrisse. Desejou assim mostrar algo que é uma forma de perfeição “charmante”, que n’Ele existe de um modo grandioso, majestoso, produzindo de modo deslumbrante aquele efeito. O que poderíamos chamar, sem violentar a palavra, de charme deslumbrante, que sai da categoria do pequeno e voa para uma alta categoria.

Um charme deslumbrante seria o charme por excelência, do qual esses pequenos charmes da Terra são apenas reflexos.

Deus é infinito. Portanto, algo à maneira daquilo que, nas criaturas, chamamos charme, n’Ele existe infinitamente.

Menino Jesus: charme e grandeza

O Altíssimo é eterno, não muda nunca. Mas como somos seres limitados, gostamos de certas mudanças, Deus vai nos fazendo ver aspectos sucessivamente diversos d’Ele que mudam para nós, não n’Ele. Como Ele é infinito, podemos passar milhões e milhões de anos sem nunca esgotar esses diversos aspectos. E, na sucessão desses vários “quadros”, vários “painéis” de Deus — toda linguagem se torna vacilante para falar de uma coisa tão alta —, pode haver mudanças que expliquem ao homem o que ele sente quando vê, por exemplo, o furta-cor de uma borboleta, a agilidade ou o colorido das asas de um colibri.

E tudo quanto na natureza é irisado, opalescente, nacarado não será algo que diz respeito à sucessão com que em Deus vão se manifestando os charmes grandiosos e as grandezas que, de algum modo, são “charmantes”? Não será essa abóbada entre o charme e a grandeza que constituirá um encanto no Céu? Pode-se pensar isso.

Se isso é assim, tem que ser salientíssimo em Nossa Senhora, mais do que em toda a Criação reunida. Podemos compreender, por aí, como será nossa contemplação da Mãe de Deus, no Céu.

Maria Santíssima teve alguma coisa assim na Terra? Teve. Ela reuniu de um modo terreno o charme e a grandeza quando contemplou o Menino Jesus. Porque ali realmente é o pequeno, com todo o encanto da fragilidade, mas com a majestade de Deus.

Como terá sido realmente o Menino Jesus? Quem é capaz de excogitar isso? Menino Jesus diante do qual os reis magos se aproximaram reverentes, trazendo o que tinham de melhor, e que, entretanto, era uma criancinha que se amamentava do leite puríssimo de Nossa Senhora, que dependia d’Ela até para espantar um mosquito…

Podemos imaginar Maria Santíssima olhando para o Menino Jesus e, por exemplo, vendo que a natureza humana d’Ele queria ser mimada, mimando o Menino Jesus e pensando: “Deus quer ser mimado por Mim!”

É de não se saber o que dizer!

São temas nos quais eu gostaria de me aprofundar antes de morrer, para me apresentar diante de Deus com isso estudado, e com meu espírito formado para isso e por isso. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/8/1983)

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Ex 11.

3) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

4) Do francês: charmoso.

 

O olhar sereno e penetrante de Jesus

Há certas descrições que superam a própria fotografia. Um exemplo característico é a conferência na qual Dr. Plinio, entre outras coisas, descreve o quadro de Giotto representando o beijo de Judas. E interpreta a repercussão na alma do traidor da pergunta de Nosso Senhor: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”

O perfeito convívio entre o líder e os liderados supõe algo que seja o mais possível parecido com a autoridade entre o pai e os filhos. Mas de um pai que conheça perfeitamente o seu “métier” de pai — sua função, sua missão —, e compreende que faz parte dessa missão algo que é insubstituível: o querer bem. Não se reduz a isto, mas é uma coisa indispensável.

Censura e perdão

Ora, para querer bem é preciso ter entendido aquele a quem se quer. Os homens são desta maneira: para conseguir querer bem depois de ter entendido, é preciso uma forma de perdão, de suavidade, de mansidão que faça com que se consiga querer bem.

Quem é objeto desse sentimento, se for uma pessoa reta, não pode deixar de se sentir profundamente tocada. Essa é a escola que se aprende no Sagrado Coração de Jesus, no Coração Imaculado de Maria.

Por exemplo, na frase de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque: “Este é o Coração que tanto amou os homens e por eles foi tão pouco amado”, percebe-se pela redação que há um reproche, uma censura, mas há ao mesmo tempo um perdão.

Nela está contido o pensamento de que — apesar de quererem pouco a Nosso Senhor e Ele fazer uma censura, mostrando aos homens que essa atitude não está bem — isso é feito com tal amor pelo lado bom deles, e com tanta esperança de que se deixem tocar, que há qualquer coisa no homem que o seu lado duro, rebarbativo, pode, pela ação da graça, amolecer de repente e a pessoa ficar outra: agradecida, compreendendo que a montanha das suas imperfeições não levantou contra si um inimigo na Pessoa d’Aquele contra Quem as imperfeições foram levantadas.

A ovelha rebarbativa no meio do carrascal

Existe, portanto, um perdão suave, largo, enorme, infatigável e que, antes mesmo de a falta ser cometida, como que já foi esquecida. E o ofendido age como o bom pastor com a ovelha rebarbativa que se meteu pelo carrascal: é preciso ir pelo meio dos espinhos para pegá-la com jeito, porque a ovelha, que deveria ser jeitosa, não balir à toa e compreender o esforço daquele que já está metido no carrascal por causa dela, e não aumentar seu trabalho, pelo contrário, é caprichosa, cheia de gemidos, não suporta nada. Então, qualquer coisa que se faça ela esperneia, bale de um modo dolorido como quem diz: “Está doendo, está doendo! Você está querendo me tirar daqui? Tire mesmo, mas não deixe doer. Onde é que já se viu infligir-me essa dor?” Reclamando assim contra aquele que a está salvando.

Nós todos somos homens e sabemos que reações como essas podem nos vir ao espírito, e quanto nos toca — tendo feito coisas dessas em tal quantidade, que ficamos cegos e perdemos a noção de quanto fizemos — percebermos, em determinado momento, que nem aquele montão de ingratidões foi capaz de vencer aquela misericórdia. E que há a mesma doçura, a mesma bondade, o mesmo perdão, o mesmo desejo de ajudar absolutamente imutável.

Quando a alma sente isto e é tocada por uma graça especial, chegou a hora da vitória do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria.

Nosso Senhor Jesus Cristo é supremo em todos os sentidos da palavra e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora é suprema. Sendo Eles exemplos supremos, devemos imitá-Los nas ocasiões da vida particular — nas coisas pequenas, médias e grandes — em que recebemos ingratidões brutais, às vezes estúpidas, subestimas bárbaras, e não nos incomodarmos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, e a hora da punição não chega?”

Eu respondo: “Chega até para o Sagrado Coração de Jesus!”

Há certos graus de recalcitrância tão tremendos, que não se compreende como a maldade do homem chega a esse ponto.

Ósculo da traição

Sempre me causou repulsa máxima e furiosa a indiferença de Judas, naquele episódio em que ele trai Nosso Senhor. Os algozes não sabiam quem era Jesus e, portanto, a quem deveriam prender. Judas então diz: “Aquele a quem eu oscular, a este prendei!”

Quer dizer, a infâmia chega a esse ponto de ele, para indicar a sua vítima, a oscula, sabendo que recebe um ósculo de volta e, portanto, fazendo da troca dessa bondade, dessa amizade, o preço da traição!

Aí, naturalmente, há os limites que tudo tem, e se prepara a descarga da vindita de Deus no que ela tem de mais terrível. Nosso Senhor ainda é suave com ele, mas de uma suavidade com qualquer coisa da doçura de um acento materno e do estrépito de um trovão, quando ele diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”(1)

O famoso Giotto pintou um quadro figurando o ósculo de Judas a Nosso Senhor. Judas é apresentado mais baixo do que Jesus e beijando-O de baixo para cima, com uma beiçorra que parece estalar de carnes, um beiço sujo e molhado que ele cola com a sua saliva imunda no rosto divino do Redentor. Testa pequena, cabelo que desce até bem embaixo e já saindo desgrenhado da raiz da pele, e um jeito subserviente diante de Nosso Senhor, ou seja, traindo e ao mesmo tempo bajulando.

E Jesus com um olhar sereno, como quem penetra no fundo daquele lodaçal de infâmia, ainda para ser bom porque Ele é justo. Quer dizer, Ele quer fazer com que Judas tenha medo, pelo menos, já que não foi tocável pela bondade. Se a contrição não o tocou, que ele se salve ao menos pela atrição. Então vem aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?” Mas nesse “Judas” tem uma pergunta, como quem diz: “Meu íntimo, meu filho, aquele que está sempre comigo… Logo você?!”

Se Judas procurasse Nossa Senhora, obteria o perdão

Judas não dá resposta, mas vê a reação de Nosso Senhor e percebe-se que ele sai levando impresso na alma o castigo do pecado cometido. Ele não consegue mais desamarrar-se daquela pergunta, e aquilo repercute nele ainda que não queira: “Com um ósculo… com um ósculo… com um ósculo…! Judas! Judas! Judas! Tu trais… tu trais…” Trais quem? “O Filho do homem!”

Todas as perfeições de Nosso Senhor vêm ao espírito de Judas, e ele, imundo, levando a sua sacola de dinheiro, raciocina: “Traí por causa disso…”

E pela primeira vez aquela alma adoradora do dinheiro vê quanto este é pouco, ainda quando seja muito dinheiro. É tal o horror diante do que fez, que ele vai ao Templo e joga aquelas moedas no chão. Pensa libertar-se daquela figura, daquela pergunta, e do afeto envolvente daquela censura. Mas ele nem quer libertar-se da censura, nem deixar-se envolver pelo afeto. Se ele se deixasse envolver pelo afeto, iria procurar Nossa Senhora, prostrar-se-ia diante d’Ela e diria:

“Senhora, eu sou tão infame que pela primeira vez Vos chamarei de Mãe, apelando para esse extremo de bondade, porque Vos pedirei um perdão que só uma mãe concede ao seu filho, e mais ninguém. Minha Mãe, Mãe virginal e imaculada, que apesar disso também sois Mãe deste asqueroso, nojento, traidor, ganancioso, desleal, imundo que sou eu, aqui estou, pior do que qualquer leproso. Mas para Vós continua verdade que sou filho, e vos peço: curai-me!”

Todos os caminhos estariam abertos para ele. Mas ele não queria que o afeto o envolvesse, não queria voltar e pedir perdão.

Mas ele também não podia viver sem pedir perdão, porque o remorso era tremendo. Então, não podendo viver com, não podendo viver sem, a “solução” por ele encontrada foi de não viver. Resolveu se matar. Foi a uma figueira, pendurou-se ali e morreu.

Pode-se imaginar aquele corpo asqueroso pendente, malcheiroso, os urubus já esvoaçando em torno dele, as garras do Inferno já o segurando e dando risada, e pelos dedos do vento balançando em várias direções, quebrando de encontro à árvore, e ele se deixando fazer. Até o momento em que ele, por assim dizer, fechou as portas do Céu. Até o último instante ele não pediu perdão. Vemos, então, as vias de Deus infinitas, perfeitas, modelo da conduta de todo aquele que exerce uma autoridade espiritual ou temporal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/1/1993)
Revista Dr Plinio 201 – Dezembro de 2016

São João da Cruz, mestre do amor a Deus

Baluarte e cofundador da Ordem Carmelita Descalça, São João da Cruz sublimou-se numa vida entregue à ascese e à contemplação, ensinando aos homens, como Doutor da Igreja, não existir “trabalho melhor nem mais necessário que o amar a Deus”. Algo do perfil e da doutrina desse grande Santo nos é dado a conhecer este mês, através das incisivas palavras de Dr. Plinio.

Duas almas extraordinárias foram suscitadas por Deus, no século XVI, para juntas empreenderem a reforma da Ordem do Carmo. Uma delas, a grande Santa Teresa de Jesus. A outra, São João da Cruz, contemplativo insigne, confessor e Doutor da Igreja, cuja festa é celebrada no dia 14 deste mês.

“Uma das almas mais puras que há na Igreja”

Dele sabemos que, assim como Santa Teresa, nasceu na província de Ávila, Espanha, e sua primeira formação se deu em Medina Del Campo, onde estudou com os padres jesuítas. Desejava, porém, tornar-se carmelita e nesta Ordem ingressou aos 21 anos, recebendo sua educação teológica em Salamanca. Em 1567 ordena-se sacerdote e celebra sua primeira missa.

Chamado a uma austera e sublime vida contemplativa, o jovem religioso logo se decepcionou com o relaxamento monástico dos conventos carmelitas. Quando tencionava procurar a Ordem dos Cartuxos, na qual poderia expandir seus anseios de alma, encontrou-se com Santa Teresa e aceitou dela o desafio de promoverem a reforma do Carmelo.

Como sói acontecer, o zelo com que trabalhou pela observância religiosa lhe angariou maus tratos e difamações, chegando mesmo a ser encarcerado em Toledo. Nesse período de duras provações acendeu-se nele a labareda de sua poesia mística. Datam de então os célebres escritos, como a “Subida do Monte Carmelo”, Noite escura da alma”, “Cântico Espiritual”, “Chama de amor viva”, etc.

Por mais de vinte anos consagrou-se à uma existência semeada de ascese e fecunda contemplação, vindo a falecer aos 49 anos de idade, no dia 14 de dezembro de 1591. Canonizado em 1726, é também cultuado como o Patrono dos poetas espanhóis.

Santa Teresa o considerava “uma das almas mais puras que Deus tem em sua Igreja”, e outro de seus contemporâneos assim o descreve: “Homem de estatura mediana, de boa fisionomia, rosto sério e venerável. Seu trato era muito agradável e sua conversa bastante proveitosa para os que o ouviam. Foi amigo do recolhimento e falava pouco. Quando repreendia como superior, que o foi muitas vezes, agia com doce severidade, exortando com amor paternal”.

Quem saboreia ninharias não pode deleitar-se com Deus

Tendo conhecido esses breves traços biográficos e morais de São João da Cruz, analisemos agora algumas de suas máximas espirituais, valiosos ensinamentos que ele nos legou ao lado de seus grandes escritos.

Não conhecia eu a Vós, meu Senhor, porque queria ainda saber e saborear ninharias. Secou-se meu espírito porque se esqueceu de se apascentar em Vós. Essa sentença é uma verdadeira maravilha.

De fato, o amor à ninharia é das coisas mais invisceradas no gênero humano. E mesmo quando se trata de assunto sério, este geralmente é considerado sob o ponto de vista da bagatela. E não será exagero afirmar que muitos se comprazem em conversar sobre trivialidades.

Por exemplo, os que se acham num restaurante, numa praça pública, num veículo de transporte coletivo, etc., ou estão quietos, pensando em ninharia, ou conversam sobre a bagatela na qual cogitavam quando em silêncio. Mas, o gosto, o apego é pensar a respeito de ninharias.

Então, diz São João Cruz com muita propriedade: Não vos conhecia eu a Vós, meu Senhor, porque ainda queria saber e saborear ninharias.

Quer dizer, quem degusta ninharias, não pode se deleitar com Deus. Porque não é possível gostar de duas coisas opostas ao mesmo tempo. Ora, Deus é infinito, altíssimo, insondável, transcendente. A ninharia, pelo contrário, é a insignificância, a bagatelinha. Assim sendo, compreende-se que uma pessoa afeita às trivialidades não tem o espírito voltado para saborear Deus. Quem notar em si mesmo esse defeito, não deve tomar uma atitude mesquinha, dizendo: “Ah, então não tem remédio, porque gosto tanto de ninharia, que nunca me descolarei dela”. Importa, sim, fazer uma oração: “Meu Deus, dai-me o vosso espírito, o Espírito Santo, que me fará sentir apetência das coisas grandes e horror da ninharia”.

No Evangelho, Nosso Senhor diz que, de todas as orações, a mais certamente atendida é aquela na qual pedimos o Espírito Santo, o bom espírito. Portanto, o oposto à bagatela e à ninharia. Esta deve ser a nossa súplica.

Secou-se meu espírito, porque se esqueceu de se apascentar em Vós.

Qual é o espírito que se apascenta em Deus? Aquele que se compraz em pensar nas belezas da Igreja Católica, na doutrina e na vida de nosso movimento, que são expressões da Igreja e seus princípios. Este se apascenta em Deus, ou seja, é como uma ovelha que se nutre da relva divina e das maravilhas do Criador. Ao contrário daquele cujo espírito secou porque não se deteve na contemplação dessas grandezas, preferindo saborear ninharias.

A alma unida a Deus incute temor ao demônio

Outro ditame de São João da Cruz:
Se queres chegar ao santo recolhimento, não hás de ir admitindo, mas negando.

Frase magnífica. Quer dizer, os espíritos polêmicos, que negam tudo quanto seja revolucionário, isolam-se, rompem com as coisas más e chegam ao recolhimento. Porém, aqueles que aprovam, admiram e se abrem para tudo que é mau, esses são incapazes de recolhimento.

Sejas avesso em admitir em tua alma coisas destituídas de substância espiritual, para que não te façam perder o gosto da devoção e o recolhimento.

É o mesmo princípio enunciado na sentença anterior. A alma que está unida a Deus incute temor ao demônio como o próprio Deus.

Mais uma linda afirmação do Santo carmelita. Realmente, vê-se que o demônio teme o verdadeiro católico, e o ódio que demonstra contra este último é feito de temor. Ele estremece diante do que pratica a religião de modo íntegro, pois é uma alma unida a Deus.

Não devemos nos fiar de nós mesmos

Outra extraordinária proposição é esta:
O mais puro padecer traz e produz o mais puro entender.

Com tal pensamento São João Cruz nos ensina que só entendem profundamente as coisas aqueles que sabem sofrer até o fim. Aqueles aos quais aborrece o sofrimento, não compreendem coisa alguma.

Quem se fia de si mesmo é pior que o demônio.

Uma frase dura aos nossos ouvidos, mas brotada do coração e dos lábios de um Santo, Doutor da Igreja.

Fiar-se de si mesmo significa julgar não ser necessário recorrer a Nossa Senhora, porque tudo se consegue pelo próprio esforço. Por exemplo, quanto à virtude da castidade, a pessoa diz: “Ah, eu consigo praticá-la por mim mesmo. É só uma questão de força de vontade. Diante da ocasião perigosa, eu me transformo num colosso, e não preciso pedir auxílio à Virgem Maria. Vocês são um beatério e ficam implorando a ajuda d’Ela. Mas eu, com a minha força de vontade e minha inteligência, não tenho necessidade de pedir. Na hora eu enfrento!”

Na realidade, essa pessoa se estatela no chão; são derrubados cavalo e cavaleiro. E, segundo uma expressão arcaica que conheci, “cai de costas e quebra o nariz”, tão grande é o tombo. Por quê? Porque confiou em si mesma.

Melhor sofrer por Deus que fazer milagres

Quem opera com tibieza, perto está da queda. É um fato evidente.

Certa vez alguém me disse (referindo-se a outro, e no fundo fazendo o elogio de si próprio): “Fulano é tíbio, mas é muito correto”. Retruquei-lhe: “Sim, muito correto, porém está se desmilinguido”. Seria uma situação análoga à de quem, considerando um agonizante, afirmasse: “Ele está vivinho e inteiro”. Realmente o moribundo ainda não faleceu, mas a vida o está abandonando…

Como é possível negar a evidência? Por isso São João da Cruz adverte os tíbios: estão próximos da queda.

Escreve ainda o Santo:
É melhor vencer-se na língua, do que jejuar a pão e água.

Outra grande verdade. E esta nos leva a perguntar quais vitórias devemos conquistar no uso de nossa língua.

A primeira é não dizer coisas impuras; mas a maior é não falar algo que represente uma fraqueza diante da Revolução. Agrados, gentilezas, atitudes que deem a impressão de sermos filhos deste século, isso é que se trata de não dizer. E é esta a imensa vitória sobre a utilização da língua que devemos obter.

Por fim, essa bela e não menos verdadeira sentença de São João da Cruz:
É melhor sofrer por Deus do que fazer milagres.

Pode haver pessoas que realizaram milagres e, após a morte, foram para o inferno. Mas, não é possível que alguém sofra a vida inteira por Deus e depois se condene.

E o maior, o mais evidente é o milagre moral que se opera quando o homem padece de todas as maneiras, mas, por Deus, aceita o sofrimento e não volta atrás. Esse é o milagre por excelência!  Devemos, portanto, ter sempre em vista essa máxima do insigne São João da Cruz, expoente da ascese e da mística católicas: é realmente melhor sofrer por Deus do que fazer milagres.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Adelaide: pecadora por natureza, imperatriz pela graça

Geralmente tem-se a ideia de que uma santa sempre se conforma com a situação na qual se encontra, por pior que seja, e nunca ousa enfrentar as dificuldades com heroísmo. Bem o contrário disso, Santa Adelaide empregou todos os meios legítimos para libertar-se do jugo em que se achava.

No dia 16 de dezembro celebra-se a memória de Santa Adelaide, Imperatriz, a respeito da qual Omer Engerbert, na “Vida dos Santos”, diz o seguinte:

Esposa do Imperador Oto I

Santa Adelaide foi uma maravilha de graça e de beleza, segundo escreveu Santo Odilon de Cluny, que foi seu diretor espiritual e biógrafo.

Filha de Rodolfo II, Rei da Borgonha, nasceu em 931, casando-se aos 15 anos com Lotário II, Rei da Itália. A filha deste casamento foi, mais tarde, Rainha da França. Adelaide tinha 18 anos quando seu marido morreu, segundo se crê envenenado por seu rival Berengário. Este, em breve, proclamou-se Rei da Itália e ofereceu a mão de seu filho à viúva de sua vítima. Recusando-se Adelaide a fazer-lhe a vontade, Berengário apoderou-se de seus Estados e conservou-a presa no castelo de Garda. Aí ela sofreu os maiores ultrajes, mas ninguém conseguiu demovê-la.

Conseguindo fugir, dirigiu-se ao castelo de Canossa, propriedade da Igreja. Dessa fortaleza inexpugnável enviou um apelo a Oto I, Rei da Germânia, que correu em seu auxílio com um poderoso exército. Cingiu ele a coroa da Itália em Pavia, e foi mais tarde sagrado Imperador em Roma. E casou-se com Adelaide. O filho desse segundo casamento, Oto II, sucedeu seu pai e, a princípio, revoltou-se contra sua mãe. Temendo pela vida, ela refugiou-se na Borgonha. Foi então que conheceu Santo Odilon, e espalhou benefícios pelos mosteiros franceses. Mais tarde, voltando à Alemanha, mandou ao túmulo de São Martinho o mais rico dos mantos usado por seu filho, já então arrependido.

“Quando chegardes ao túmulo do glorioso São Martinho — escreveu ela àquele a quem encarregara dessa missão — dizei: ‘Bispo de Deus, recebei esses humildes presentes de Adelaide, serva dos servos de Deus, pecadora por natureza, imperatriz pela graça. Recebei também esse manto de Oto, seu filho único, e vós, que tivestes a glória de cobrir com vosso próprio manto Nosso Senhor na pessoa de um pobre, orai por ele.”

Logo que pressentiu chegar o seu fim, Adelaide se fez transportar a um mosteiro para morrer e repousar junto ao túmulo de Oto, o Grande, seu segundo marido.

Encarcerada, consegue fugir da prisão

Vemos aqui um outro tipo de iluminura medieval. Não é mais a da santa que vive no convento, portanto, no recolhimento e na paz do claustro, mas a da heroína. A Idade Média é fecunda em heróis e heroínas que passam pelas maiores aventuras, pelos maiores riscos, e não têm nenhum ideal de segurança social, de aposentadoria, mas querem e veem no risco, na luta, na incerteza — quando a serviço de uma causa elevada, em defesa de direitos efetivos e legítimos —, algo que dá à vida o seu sentido.

A existência de Santa Adelaide foi uma sucessão de altos e baixos. Era filha de Rodolfo II, Rei da Borgonha, e casou-se com Lotário II, Rei da Itália; teve uma filha que foi Rainha da França. Quando a santa tinha 18 anos, seu marido morreu, e Berengário, ao que parece, havia mandado envenená-lo.

Este se proclamou Rei da Itália e quis que ela se casasse com um filho dele. Ela deveria, portanto, contrair matrimônio com o filho do assassino do seu próprio esposo; teria uma vida fácil, agradável, e certamente não sofreria o que sofreu. Tendo ela recusado, foi encarcerada e durante muito tempo ficou exposta aos piores ultrajes. Mas, de repente, fugiu.

Como me agrada a fuga dessa santa! Como isso é diferente da ideia que habitualmente se faz de uma bem-aventurada! Segundo essa concepção, a santa presa fica sentada de lado, chorando, pensando em tudo, menos em fugir, e incapaz de fazê-lo; ela tem dificuldade em se mover, e não tem esperteza nenhuma, não sabe iludir os carcereiros, nem ter um gesto hábil para pular um obstáculo qualquer e sair correndo.

Inocência da pomba e astúcia da serpente

Mas essa é uma santa diferente. Infelizmente, o autor não nos conta como foi sua fuga. É uma santa que corresponde à imagem verdadeira dos santos, e não a essa figura caricaturada que eu fiz. O santo tem a virtude da fortaleza e a da prudência. E com fortaleza e prudência a pessoa foge de todos os lugares de onde deve e possa fugir. Santa Adelaide, portanto, precisava fugir do lugar onde estava presa, desde que materialmente fosse possível. Ela foge, e assim liberta-se do tremendo jugo em que se encontrava.

Entretanto, ela soube para onde fugir, porque em vez de ir para um lugar qualquer, dirigiu-se para Canossa, a terrível fortaleza da Idade Média, a qual se tornou ilustre pelo fato de que São Gregório VII ali recebeu Henrique IV, que lhe foi beijar os pés, pedindo-lhe perdão. Canossa era um feudo da Igreja e, por isso, não podia ser invadido por um soberano temporal. Santa Adelaide ali estava, portanto, inteiramente tranquila; ela não só sabia fugir, mas também onde refugiar-se. Era boa política; tinha a inocência da pomba e a astúcia da serpente.

Força de alma, denodo, intrepidez

E nesse lugar ela fez uma coisa que também não se esperava de uma santa: arranjou um marido e bem escolhido. Escreveu para o Rei da Germânia, que era o herdeiro presuntivo do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, rogando-lhe para ir defendê-la. Ele foi e depois a pediu em casamento. Então começa para ela uma nova vida.

Notem quantas mudanças nessa existência, quanta força de alma, quanto denodo, quanta intrepidez essas alterações supunham e quanta verdadeira virtude nessa magnífica santidade!

Ele foi sagrado Imperador em Roma e casou-se com a santa. O filho desse casamento, entretanto, foi um homem mau e começa aí mais outra tragédia; revoltou-se contra sua própria mãe, e por isso ela teve novamente que fugir e dirigiu-se para a Borgonha. Foi nessa região da França que ela conheceu Santo Odilon, e se tornou célebre; com certeza Santa Adelaide possuía bens, pelas liberalidades que fez aos conventos da Borgonha.

Mas seu filho se arrependeu, e creio que foi devido às orações de Santa Adelaide. Porque o fato de ela mandar um manto para São Martinho tem todo o aspecto de um pagamento de uma promessa, como quem dissesse a esse santo: “Se vós converterdes o meu filho, eu vos enviarei o manto dele”.

Tomar a iniciativa da luta

Então ela escreveu uma magnífica mensagem, da qual o fato mais bonito é o título que ela arranjou para si: “Adelaide, pecadora por natureza, imperatriz pela graça”. É um tal contraste de títulos, há uma tal grandeza na simplicidade desse contraste, que mereceria ser o epitáfio dela: “pecadora por natureza”, porque todos os homens por natureza são pecadores; ainda quando santos e não pecam, na sua natureza são pecadores; “imperatriz pela graça”. É uma coisa que ficaria bem num vitral, debaixo da figura nobre, serena e forte dela: “Santa Adelaide, pecadora por natureza, imperatriz pela graça”.

Peçamos a Santa Adelaide que nos dê uma graça que tenha relação com isso: é o espírito de luta, de intrepidez e — não hesito diante da expressão — o espírito de aventura.

São Tomás de Aquino diz que o suprassumo da virtude da fortaleza ocorre quando, sendo necessário, oportuno e criterioso, o homem não espera o inimigo vir a ele, mas toma a iniciativa da luta, cria a situação e investe contra o adversário.

Devemos pedir esse espírito de fortaleza, mas ao mesmo tempo, esse espírito de prudência, essa sagacidade, essa capacidade de discernir, de perceber, de escolher as situações, de dispor dos meios adequados para chegar aos fins que temos em vista.

E então, no nosso epitáfio, poderá ser escrito: “Nós fomos lutadores e amamos inclusive o risco, levado não até a temeridade, mas a um extremo que os tontos diriam ser temeridade. Teremos sido pecadores por natureza; mas, pela graça soldados intrépidos de Nossa Senhora”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/12/1968)

Natal

Após Dona Lucilia anunciar que a festa de Natal ia começar, todos — umas vinte crianças — dávamo-nos as mãos e começávamos a entoar o “Stille Nacht”. Íamos, então, levando o presépio com o Menino Jesus, desde a saleta onde estávamos até a sala dos brinquedos, na qual havia uma árvore de Natal.

Ali cantávamos canções de Natal, girando em torno da árvore, mas já sentindo o cheiro do chocolate com o qual se iam enchendo as xícaras, acompanhado de creme “chantilly”; e o odor do pinheiro um pouco queimado por algumas velas, que deitava um perfume de resina especial.

Havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia uma travessura, uma peraltagem, todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia sair das imagens de Nossa Senhora e do Menino Jesus que estavam no presépio, e se difundia por toda a sala.

Essa alegria proporcionava uma coisa que eu não sei exprimir. Mas era a ideia do “Puer natus est nobis” — Foi-nos dado um Menino —, e uma grande alegria tinha nascido no Céu. O Menino era Jesus. E ali se realizava algo de único, como que a repetição do Natal; parecia-nos estar vivendo as graças do Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)

Harmonia pensada por Deus

É fato que a graça de Deus toca a alma humana a propósito deste ou daquele aspecto que o mundo contemporâneo herdou do passado, de modo a nos dar a impressão de que o objeto contemplado se acha todo impregnado da mesma graça. Na verdade, o que admiramos será uma coisa natural, repassada de beleza e proporção, porém mero instrumento através do qual o dom divino exerce sua ação benfazeja sobre nosso espírito.

Assim nos aparecem, por exemplo, os monumentos europeus, muitos deles construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média, quando se delineou o sorriso — prenhe de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia — do gótico.

Tal impressão se faz notar, particularmente, quando admiramos uma ogiva: esta, pelo mencionado influxo da graça que nos move a admirá-la, desperta em nós bons sentimentos em relação ao Primeiro Mandamento, eleva nossas cogitações para as maravilhas divinas, de um lado; enquanto, de outro, produz sobre o temperamento do homem uma forma de quietude equilibrada, uma ordenação interior, um certo bem-estar e deleite de espírito sem os quais o existir quotidiano se lhe torna árduo ao extremo. Através desse deleite, desse equilíbrio, ele encontra a paz.

Mais ainda. A ogiva, conferindo-lhe essa tranqüilidade de alma, amaina por isso mil ansiedades e ardências, e o convida a uma necessária e comedida ascese. Dir-se-ia ser a ogiva uma espécie de gráfico da ordem do universo, que orienta o homem para essa valiosa disposição ascética, não rebarbativa, mas florida, mais espiritual que física. Porque o gótico empenha-se em manifestar mil doçuras e mil flores, as quais são de molde a oferecer ao homem alegrias e satisfações que desarmam muitas das objeções da anti‑ascese.

Com essa suavidade, a ogiva acerta, ajeita e tranquiliza o que houver de desarranjado no coração humano. Filha de uma arte inspirada pela graça divina, ela acaba exprimindo uma harmonia mais pensada por Deus do que pelos homens. Por isso é de uma extraordinária beleza!  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 11/11/1988)

Noite santa, Silenciosa…

Ao longo dos séculos da história cristã, as noites de Natal têm recordado aos homens e lhes feito compartilhar as bênçãos inefáveis do augusto momento em que o Redentor nasceu para o mundo. Sobretudo antes das festas laicas e comercializadas de hoje, as celebrações natalinas possuíam um néctar, uma poesia, um encanto, um discernimento de espírito por onde todos como que sentiam e conheciam a graça de Deus e de Cristo que desce como um orvalho do mais alto do céu, ou seja, do claustro sacratíssimo de Nossa Senhora, e sem transgredir a virgindade intacta da mãe, entra nesta terra. A Virgem teve um filho e a humanidade se extasia!

Dir-se-ia revestido de completa beleza o cenário dessa noite na Terra Santa, iluminada por estrelas reluzentes como nunca, povoada de Anjos que anunciam o nascimento do Salvador. Entretanto, como lucra em formosura o Natal, quando considerado nas manifestações de piedade e de inocência com que o festejam os povos germânicos! Imagine-se a igrejinha, a paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando 10 para a meia-noite; os aldeões que se aproximam com os tamancões grandes, porque a neve enche o caminho, e ainda cai aos flocos. A igreja, bem aquecida, acolhe generosamente os seus fiéis que entram depressa e logo se acomodam naquele pequeno palácio do Menino-Deus.

Ao longe, as casinhas da aldeia espargem cintilações douradas através de suas janelas, pontilhando de luz o imenso manto de neve com que se veste a natureza. Das chaminés escapam tufos de fumaça: é a festa de Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, atraentes e substanciosas delícias da culinária alemã postas no forno, os presentes junto à esplendorosa árvore montada na sala principal, enfim, tudo pronto para as santas alegrias que se seguem à jubilosa celebração litúrgica.

Esses vários aspectos constituem, dentro da inocência da neve, um quadro só, completado pelos sentimentos da canção natalina por excelência, o “Stille Nacht”.

“Stille Nacht! Heilige Nacht!Alles schläft, einsam wacht Nur das traute hoch heilige Paar. Holder Knabe im lockigen Haar, Schlaf in himmlischer Ruh!”

Noite silenciosa, noite Santa! Tudo dorme. Solitário, está velando O nobre e altamente santo Casal. E o Menino de cabelos cacheados, Dorme em celestial tranqüilidade!

Composta no século XIX por um modesto professor austríaco, o mundo inteiro a adotou como a música do Natal. E desde então não se compreende um 25 de dezembro em que não se entoe, nos mais diversos países e nos mais diferentes idiomas, o “Stille Nacht” é o nosso “Noite Feliz”…

Por movimentos aos quais não é alheia a mão da Providência, o consenso popular soube compreender o significado mais profundo desta canção, e daí a indiscutível primazia dela sobre as demais melodias natalinas. Que significado?

No “Stille Nacht” existe em alto grau a ideia de que os Céus se abriram, e o Menino Jesus fez um percurso gigantesco para chegar até nós. Portanto, por trás da ideia da Encarnação, e como elemento necessário para se situar inteiramente a posição do homem em face do nascimento do Verbo, está a noção de um acontecimento fabuloso, desmedido, imenso, que se deu e se converteu em intimidade e amor. E, por causa disso, em ternura, o tempo inteiro maravilhada.

É a ternura diante das fragilidades de um Deus feito homem, diante das quais nós não temos nem sabemos o que dizer. De outro lado, porém, esse mesmo Deus é o Senhor do Universo, onipotente, eterno Juiz de toda a Criação. Portanto, num sublime paradoxo, é a ternura e a compaixão para quem é infinitamente mais do que nós, extremamente delicadas, envoltas num alto critério de sentimento para serem dignas de se apresentarem Àquele que de fato merece essa compaixão, mas que é Deus. Então é a piedade humana ao mesmo tempo admirativa e súplice, é o homem que tem pena fazendo um pedido ao Deus de quem tem pena… Outro paradoxo, outra grandiosa beleza!

Paradoxos e contrastes que despertam em nossas almas toda sorte de delicadeza de emoções. Ao lado da ternura e da compaixão, a reverência, a veneração, a submissão de todo o nosso ser ao Divino recém-nascido, e um deixar-se levar a subidas cogitações às quais esse acontecimento entre todos bendito nos convida. Além disso, a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e um imenso agradecimento de quem recebe uma misericórdia sem limites, por nos sentirmos visitados e impregnados por todas as graças que Ele trouxe ao mundo, para a nossa salvação.

A todas essas boas disposições nos inclina a melodia do “Stille Nacht”, cujas notas e inflexões têm isso de próprio, que fazem um comentário do sentido da palavra cantada. Então, nos tons mais baixos, é a ternura vigilante que se debruça sobre a manjedoura, velando para que nada toque no Menino, que nada O moleste. Ele está chorando, mas a Mãe o consola… E com que incomparável desvelo!

Em outros momentos, porém, nas notas mais agudas, novamente ressalta a ideia de que este Menino de cabelos cacheados, é Deus. O Menino dorme. E a sua tranqüilidade, assim como Ele, não é da terra. É do Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Diante do Presépio

“Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita, Mãe d’Ele mas também nossa, …e São José, o varão sublime, que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades.

Ao contemplá-Los, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós…”

Plinio Corrêa de Oliveira

Por vossa bondade, salvai-me!

Ó clemente, ó piedosa, ó doce e sempre Virgem Maria! Vós fostes concebida sem pecado original, e nunca tivestes a menor falta nem deixastes de progredir tanto quanto Deus quis que progredísseis ao longo de vossa vida.

Sois a Virgem por respeito de cuja virgindade Deus operou o milagre estupendo: quis que fôsseis a Mãe de seu Divino Filho, mas por onipotência d’Ele, fostes preservada virgem antes, durante e depois do parto; de tal maneira a vossa virgindade é insondavelmente valiosa!

Mãe de Deus, Vós sois a Filha do Pai Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo, que em Vós gerou o Menino Jesus. Tendes, pois, tudo para ser atendida e, inclusive, sois cheia de misericórdia para com os pecadores.

Ora, um pecador sou eu. Venho aqui, de joelhos, Vos pedir: perdoai-me, não olheis para os meus pecados, mas para a vossa bondade. Olhai para o Sangue que vosso Divino Filho derramou para me salvar, e pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes por minha salvação.

Minha Mãe, não por meus méritos, mas por vossa bondade: salvai-me!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 29/11/1992)

Como seria a música de Natal perfeita?

Esse assunto, sobre o qual me perguntam, é uma matéria abundante, com o inconveniente de que versa sobre um tema do qual não entendo muito, que é a música. Mas enfim, de algo eu posso tratar.

Um canto que considerasse a vida de Nosso Senhor

Primeiro, a respeito do que seria a música de Natal perfeita. Há uma porção de hipóteses que se entrecruzam nisso, e depois uma série de feitios de espírito que se colocam diante disso. Por exemplo: a mim pessoalmente me agradaria uma música de Natal que considerasse o mistério do Menino Jesus que se encarnou, e apareceu entre nós… O que todos sabem. E que se relacionaria, entretanto, com o futuro do Menino Jesus; de maneira que dissesse alguma coisa a respeito dos trinta e três anos de vida de Nosso Senhor. Porque o nascimento, por mais sublime que seja, é apenas o começo. E quem considera o começo de uma estrada, volta os olhos para a extensão da estrada que se desenrola a partir daquele início.

E, portanto, eu gostaria de uma música de Natal que, em determinado momento, desenvolvesse algo — um pouco que fosse — sobre os trinta anos de vida oculta, contemplativa, d’Ele com Nossa Senhora. Depois a dor da despedida, a vida pública, a Paixão, a Morte, a Ressurreição e a glória no Céu! Terminando, por exemplo, com este pensamento: “Se os anjos cantaram ‘glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade’, o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus!” Ninguém teve a boa vontade que Ele teve, em nenhum sentido, nem de longe, nem comparado com nada. E então a glória d’Ele também é superior a de qualquer outro. Quando cantaram “glória a Deus no mais alto dos Céus”, os anjos louvaram a Jesus enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E quando entoaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram a Ele enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem; e, com essa verdadeira ordem, a verdadeira paz.

Depois, a luta d’Ele em sua vida pública e a Ascensão ao Céu, porque Ele era o Homem de boa vontade por excelência, que realizou tudo o que tinha de realizar e recebeu uma glória incomparável no Céu. Essa seria uma ideia que muito me compraz.

Mas especialmente me agradaria focalizar o caráter militante da Igreja. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o “Stille Nacht”, quase um canto épico. E não seria dirigida somente para as crianças. O Natal é, a titulo especial, uma festa de criança, mas ela é uma festa para todo mundo. Nosso Senhor chegou até a idade madura, trinta e três anos. E, portanto, o normal é que essa festa seja para todas as idades.

Canções para diversos estados de alma

Eu também imaginaria de bom grado canções de Natal para diversos estados de alma. Para a alma inocente, mas que se sente imersa neste mundo e dentro da luta para manter a virtude, que tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço e que dure até o fim.

Depois, o cântico de Natal da alma penitente. Há duas espécies de penitentes.

O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, que se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José, pedindo que ele obtenha da Santíssima Virgem um olhar de compaixão. Nossa Senhora atende ao pedido, e o recebe ultra maternalmente. Ele então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus.

Ele se sente indigno de entrar na gruta, e canta do lado de fora, dizendo:
“Até o boi e o burro, com seus bafos, são dignos de ficar aí dentro, porque estão na ordem de Deus. Mas eu sou um pecador, que rompeu em determinado momento essa ordem; e não sou digno de me aproximar. Aonde os animais entram, eu não entro! Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!”

Ela o cobre, e ele, sob o manto da Santíssima Virgem, recita um “Confiteor”. E recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como o gesto instintivo de uma criança, mas tem o sentido de um perdão. E ele se retira agradecido.

Depois podia haver a canção de Natal do pecador atolado no pecado, que gostaria de sair do pecado, mas que não quer querer. Mas ao menos chega ali e, de fora, canta pedindo a Nossa Senhora que lhe mande um mensageiro, que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe uma mensagem em seu bico.

A súplica é entregue, e nesta ele diz que não é como o pecador anterior, que rompeu com a Lei de Deus, mas depois rompeu com o pecado; e, quando entrou na gruta já estava reconciliado com o Criador. Mas ele não é nem o pecador arrependido, nem o boi, nem o burro: é a serpente. Ele está em pecado mortal! E, carregado de pecados, tem tristeza e ao mesmo tempo, esperança! E pede a Nossa Senhora, de longe, que Ela remova as montanhas internas do pecado na sua alma, e faça dele um homem que afinal se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Ele é o primeiro dos visitantes para quem o Menino Jesus, quando o pecador se aproxima da Santíssima Virgem, sorri e abre os braços. O pecador pede perdão e, contrito e perdoado, sai da gruta de Belém.

Seria algo muito adequado para os vários estados de alma, que daria ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente. O Natal do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. O Natal do cruzado do século XX.

Isso é uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento. Essa seria uma canção de Natal, a meu ver, perfeita.

O ”aroma” da graça de Natal na São Paulinho

A tudo isso eu acrescento uma coisa que me parece decisiva, como elemento dentro do assunto. Os Natais de outrora tinham uma sacralidade muito maior que dos dias atuais. No meu tempo de moço, dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. E alguns homens importantes tomavam na rua um ar de quem não percebia isso, e que estavam preocupados com outras coisas. Mas tinham o cuidado de não contundir, porque seria fazer saltar uma bomba!

E o centro velho de São Paulo, formado pelas Ruas Libero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois aquele conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, era assim: apareciam mais as casas que vendiam brinquedos e tinham na vitrine um presépio. Possuíam também — como se dizia naquele tempo — gramofones, que tocavam músicas de Natal. Andava-se a pé, por exemplo, na Rua Direita, e de ponta a ponta ouviam-se músicas de Natal, em estágios diferentes de andamento.

Mas quando chegava a noite de Natal, e as famílias todas — numa hora em que costumavam estar dormindo — começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho e na paz, as ruas ficavam vazias de qualquer gente que não fosse caminhando para o templo. E de dentro da igreja saía uma luz forte, que iluminava a rua cada vez que se abria a porta; começam a cantar etc. E depois batia o sino e iniciava a Missa, com o cântico de Natal…

Tinha-se a sensação de uma graça que vinha de uma altura incomensurável, e era de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito, as quais parecem incompatíveis, mas convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime; e de outro lado a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites.

Devo dizer que a “organizadora” das nossas festas de Natal era Dona Lucilia. Mas somente muito tempo depois dessas festas natalinas, dei-me conta de que eu gostava dessas comemorações porque o espírito dela as animava. Eu talvez de nada da minha infância tenha tantas saudades quanto desse “aroma” da graça de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)