Transformando um pecador em santuário

Nossa Senhora, simplesmente pousando a sua mão virginal sobre uma alma cheia de defeitos e vícios, carregada de pecados, pode transformá-la num santuário.

Como pela oração d’Ela, em Caná, Nosso Senhor mandou que a água se transubstanciasse em vinho, assim também a Santíssima Virgem pode, a qualquer momento, obter de seu Divino Filho para um pecador graças tão abundantes, que a pessoa mais asquerosa e infestada pelo demônio volte a pertencer a Ela.

Peçamos a Maria Santíssima que, neste ano, seja feito conosco como nas Bodas de Caná. E nós, que somos hoje, na melhor das hipóteses, água misturada com um pouco de vinho, sejamos o vinho puro das Bodas de Caná.

Eis o pedido que fazemos ao Sapiencial e Imaculado Coração de Maria. Apoiados pelas preces de São José, esperamos que Ela o apresente ao Menino Jesus, com o nosso desejo de sermos inteiramente d’Ela. Que a Mãe de Deus nos dê a integridade desse desejo para levarmos o cumprimento de nosso dever até os últimos extremos do desempenho de nossa vocação.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/3/1970 e 23/12/1982)

Revista Dr Plinio 238 – Janeiro de 2018

A grande vitória é pertencer inteiramente a Maria

Eu assisti a muitas festas de ano-novo em outros tempos, em que cada pessoa manifestava, na intimidade de uma roda de parentes e amigos, suas esperanças para o ano vindouro. Um esperava
fazer um bom negócio, outro planejava uma viagem à Europa, etc. Assim, a passagem do ano era repleta de presságios favoráveis.

Hoje quase ninguém ousa fazer prognósticos para o ano que se inicia. Tem-se medo de falar no futuro, entra-se no novo ano como quem ingressa numa sala de operação.

Com efeito, vivemos dias de confusão, cheios de enigmas pesados e terríveis, dias de incerteza em que só uma coisa deve ser certa: é a deliberação de cada vez mais sermos de Nossa Senhora,  sempre mais unidos a Ela e dispostos a lutar por Ela. Porque a grande pergunta que domina todas as incógnitas do mundo contemporâneo é: Como está a luta entre o reino do demônio e o Reino de Maria?

Ao dirigir-me a almas animadas pela mesma Fé Católica, pela mesma devoção a Nossa Senhora, pelo mesmo desejo ardente do advento do Reino de Maria, derrota dos inimigos da Santa Madre Igreja e exaltação, ou seja, glorificação da Santíssima Virgem e do Reinado d’Ela, tenho certeza de que a Mãe de Misericórdia, voltada a nos proteger e favorecer, como a todos os homens, e que não ama nada no mundo tanto quanto a Santa Igreja Católica Apostólica Romana – à qual consagramos a nossa vida e em defesa da qual estamos dispostos a dar todos os instantes de nossa  existência – do alto do Céu sorri para todos esses seus filhos que se colocam a seus pés e suplicam as mesmas graças junto ao Sapiencial e Imaculado Coração d’Ela.

Certo de que Nossa Senhora também atenderá este meu pedido, imploro, com a alma genuflexa, que Ela nos aproxime e nos torne cada vez mais d’Ela.

Se no fim deste ano que agora se abre, apesar de todas as dificuldades e tropeços, nós pudermos dizer que estamos caminhando para o ano seguinte com passo decidido e sempre mais unidos à  Rainha das Vitórias, estaremos vencendo. A grande vitória é pertencer a Ela inteiramente.

Há uma frase na Liturgia da Igreja que pode ser aplicada a Maria Santíssima: “Deus, cui servire regnare est”(1). Ó Maria, servir-Vos é reinar. Nós queremos para nós esta forma de realeza: servir a Maria completa e ilimitadamente, até a hora em que Ela nos acolha no Céu.(2)

1) Do latim: Ó Deus, servir-Vos é reinar.
2) Extraído, com adaptações, de conferências de 1/1/1988 e 26/12/1989.

Mãe e Advogada nossa

Mãe do Homem-Deus, a Santíssima Virgem foi Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mãe do Redentor, tornou-Se Mãe dos pecadores e desempenhou, assim, um papel que, de certo modo, o próprio Deus não poderia exercer. Ele é o eterno Juiz que deve punir os que O injuriam. Nossa Senhora, porém, é Mãe. E às mães não cabe a tarefa de julgar, as a de interceder.

Elas são as naturais advogadas dos filhos, e estão solidárias com estes até quando o pai os increpa a justo título. Assim, por mais miserável, imundo e repelente que seja o filho pecador, a Mãe de misericórdia o perdoa e roga por ele ao Senhor, aplacando a justiça divina. Advogada supremamente boa, Nossa Senhora, em favor de cada um dos pecadores que a Ela recorre, dirige a Jesus Cristo esta súplica: “Meu Deus e meu Filho, pelo vosso dolorosíssimo sofrimento no Calvário, pela minha Imaculada Conceição, pela minha perpétua virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, peço-Vos: perdoai-o!”

Eis a missão de Maria Santíssima como nossa Mãe e Advogada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

Considerações sobre a Sagrada Face

Algumas representações de Nosso Senhor existentes nas catacumbas não se parecem com Ele. Aos poucos, a piedade católica compôs a Face do Redentor e, quando encontraram o Santo Sudário,  conferiu impressionantemente. Na Sagrada Face, conforme se analise, estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz.

 

Analisando a face humana, notamos que ela se compõe de duas linhas. Uma vertical e outra horizontal. Uma linha parte da fronte e desce à base do  queixo, de maneira que toda a horizontalidade das sobrancelhas, dos lábios e do queixo é percorrida sutilmente por uma verticalidade.

A face humana tem aspecto de cruz

Essa ideia de horizontalidade é acentuada pelas orelhas que têm no aspecto do homem uma importância que ninguém imagina! Mas é só um indivíduo não ter uma orelha que todo mundo nota. Se não tiver as duas orelhas, brame! Nenhum de nós olhou hoje para as orelhas dos outros, mas é só aparecer um sem orelha que se nota imediatamente, porque completa a fisionomia de modo imponderável, interessante, inesperado.

Trata se de saber qual é a altura ideal que na face humana deve ter a linha horizontal para completar a perpendicular, e dar esse aspecto de cruz que a face humana tem.

Poderíamos imaginar cruzes bonitas com a trave horizontal a diversas alturas. E esse mesmo princípio é enunciado de modo interessante pelo rosto humano, criando várias alturas do travamento da cruz. Podemos imaginar uma cruz bonita com o braço em cima, quase em forma de “T”; ou mais próximo do meio, contanto que não passe de certo ponto, pois deixaria de ser uma cruz na posição normal e passaria a ser cruz de São Pedro.

Depende de certa proporção entre o tamanho e a largura para indicar onde deve ficar a altura. A harmonia do rosto humano tem muita relação com isso. Esses indivíduos que interpretam os traços do rosto humano, etc., pensam que a harmonia consiste só em tomar esculturalmente cada traço e ver se é bonito. Mas isso dá a beleza, não o charme. O charme é dado, no fundo, por essa  proporção. E sempre que se encontra um rosto com certa expressão ou certo charme, deve-se procurar isso, porque no fundo encontra. É até um exercício interessante procurar o charme dentro  da fisionomia.

Vemos descrições de montanhas, de panoramas bonitos, e depois exclamações: “Como Deus foi sábio! Como foi bom ao criar isso! …” Eu concordo perfeitamente, mas por que não falam da face humana que vale muito mais do que qualquer montanha? A mais arrebentada das faces humanas contém mais elementos de beleza do que uma montanha linda. O homem é o rei da Criação, o resto é uma ralé em comparação com ele. Qualquer homem que quisesse saberia pôr em relevo algum cantinho de sua alma por onde ele tivesse mais dignidade do que o Himalaia, o qual, afinal, é uma imensa trouxa de terra e pedras.

Na Sagrada Face estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz

Da Sagrada Face eu tenho a impressão de que é impossível desvendar qual é a proporção, porque tudo é calculado de tal maneira que dentro da discrição dela nada é enfeitado. Estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz, conforme se analise.

Imaginem que nos dessem uma imagem da Sagrada Face na qual faltasse apenas traçar as sobrancelhas; e um de nós deveria fazer esse traço. Eu ficaria muitíssimo hesitante. Onde pôr as sobrancelhas ideais para a Sagrada Face? Quer dizer, um milímetro faz diferença. Como desenhar? Arqueadas? Retas? De que jeito?

Prestem atenção, elas estão presentes na Sagrada Face de maneira tão discreta, que nem nos lembramos do problema das sobrancelhas. Mas em todas há um mesmo tato que indica a mesma coisa e que guia por uma tradição de piedade e bom gosto os autores. E que indica uma forma.

Depois, a barba aumenta a linha perpendicular. Enquanto o cabelo caído e desdobrando-se pelos lados parece acrescer a linha horizontal. Então há possibilidades de horizontais dentro disso a perder de vista! É uma feeria de cruzes.

A Sagrada Face tem isso que também é insondável: vamos olhar nas catacumbas as representações de Nosso Senhor, e algumas não se parecem com Ele. Por exemplo, a pintura do Bom Pastor representa um pastor qualquer do campo romano com uma ovelha nas costas. É digno, estou longe de depreciar; mas não é a Face d’Ele. Depois, aos poucos, a piedade católica compôs a Face de Nosso Senhor e, quando encontraram o Santo Sudário, conferiu impressionantemente.

A Face d’Ele é tão perfeita que qualquer expressão da fisionomia que se queira comunicar-lhe – de tristeza, dor, majestade, bondade ou qualquer outra –, com um pequeno aceno fica  expressivíssima! São os opostos harmônicos. Não há face que seja mais expressiva e que menos precise mover-se para conter um mundo de expressões do que a d’Ele.

Mais ainda: as atitudes do Corpo divino importam pouco, porque a Sagrada Face absorve tanto a atenção que o resto fica quase como se fosse um busto.

Olha-se tanto para a Face que nem se deita bem a atenção sobre os pés divinos. Presta-se, isso sim, alguma atenção nas mãos.

Dimensões do universo e movimentos da alma humana

De posse desta noção, nós nos perguntamos o que fazer da ideia de São Tomás de Aquino segundo a qual o círculo é a mais perfeita figura, uma vez que é o efeito que volta à sua própria causa.

Então poderíamos nos perguntar se a cruz não é uma figura mais bonita. A cruz não é, propriamente, uma figura geométrica contínua, não é um triedro nem nada disso, são dois paus. Mas contém as duas dimensões do universo e os dois movimentos da alma humana.

A alma humana encontra um gosto específico em relacionar-se para cima e para baixo; e outro gosto especial em relacionar-se para o lado: transcendência e semelhança.

Ninguém pode viver sem essas duas disposições de alma. Por exemplo: alguém vive perpetuamente entre os inferiores e os superiores sem nunca encontrar um congênere, quando encontra faz uma festa!

Mas de uma vida só com um congênere dizemos: “Que tédio!” É de não poder suportar porque a alma humana pede, exatamente, esses dois movimentos. Então, deve haver – mas eu não tive tempo de refletir – no fundo da estética um princípio pelo qual se encontra também na natureza a presença da cruz como a coisa mais bonita que há.

Posto a forma esférica da Terra – agora a coisa é muito improvável, estou apresentando pontinhas de reflexão inacabada apenas pelo desejo de dar tudo –, poder-se-ia dizer que o meridiano e o eixo, projetados de certo modo, a sombra deles num plano daria uma cruz? Uma pergunta que se poderia fazer, mas é um pouco laboriosa.

Entretanto como se pode caracterizar isso numa Terra que é esférica? Por que isso não vale para qualquer ponto da esfera?

Disseram-me haver estudos demonstrando que o centro da Terra está no Santo Sepulcro. Isso me interessaria muito saber se houvesse dados a esse respeito, porque é uma coisa magnífica! Quando eu era pequeno, caçoavam nas aulas de Geografia do conceito da Idade Média, de que Jerusalém era o centro do mundo. E zombavam da ideia da esfera, dando a objeção que indiquei. E a objeção me deixava perplexo, naturalmente não saberia como responder, mas internamente pensava: “Demonstrem como quiserem, deve ser o centro, um dia isso aparecerá!”

De maneira que eu fico contente em saber e vai na linha das elucubrações que eu fazia a hipótese que estava lançando. Mas conhecer o critério segundo o qual isso é o centro me interessaria no mais alto grau. Serviria para uma série de outras elucubrações.

O dormir e o levantar-Se de Nosso Senhor

O perfil moral de Nosso Senhor, a meu ver, é inabarcável. Porque olhando para Ele – aliás também se dá de um modo curioso com Nossa Senhora, cuja verdadeira efígie, não conhecemos – temos a impressão de como a humanidade d’Ele, santíssima, resplandece de divindade. É natural. Jesus é tão pleno que em qualquer estado de alma em que esteja, temos a impressão de que Ele é aquilo e só aquilo.

Por exemplo, imaginando Nosso Senhor dormindo na barca, temos a impressão de um sono que não é o de bicho, desmaiado, mas é o repouso do equilíbrio perfeito da alma com o corpo. Não é, portanto, o sono do que ronca, gesticula, se move, sua, grita. Isso é uma coisa horrorosa!

Mas é um sono placidíssimo, em que a alma fica naquela distensão agradável, tranquila, porque o corpo inteiro não está se movendo e ela toda fica colocada sob a mão de Deus. E se tem a impressão de um repouso, de uma distensão e de uma união com o Padre Eterno e com o Divino Espírito Santo na inocência do sono, uma coisa que não se pode ter ideia! Então, tem-se vontade de dizer: “Olha, eu não creio que acordem a Ele nunca, porque de vê-Lo dormir eu vivo.

Eu tenho coragem para qualquer coisa, só de vê-Lo dormir!” Em certo momento os Anjos O acordam. Já pensaram o que é o despertar d’Ele? Sereno, tranquilo, abre os olhos… um caudal de compreensão de tudo, e começa a exercer, desde logo, um poder a respeito de todas as coisas, com a naturalidade com que um de nós move os braços. Ele Se levanta, “os ventos e os mares Lhe obedecem”(cf. Mc 4, 39). O erguer-Se de Nosso Senhor tem que ser mil vezes mais formoso do que o erguer-se do Sol. Não tem comparação!

Imaginem, por exemplo, de madrugada Ele se levantar e um Apóstolo, que acordou mais cedo, está na penumbra e se imagina não visto por Ele, começa a vê-Lo no momento em que Ele está, na aparência, inteiramente só, e aí começa a mover-Se, de repente Se levanta. E diante de nós aparece Ele, alto e majestoso. Nasceu o Sol! Se Sol se pusesse naquela hora, se Ele se levantasse no ocaso eu diria: “O Sol é uma bola inútil! Deixa de fazer esses seus sinais insignificantes porque você está reduzido a zero! O Sol nasceu aqui… vai ser dia porque Ele acordou! Não me venham com mais nada, o resto é lorota, está acabado!”

Estados de alma do Redentor

Vejamos agora os estados de alma. Na hora da compaixão temos a impressão de que Nosso Senhor é de tal  maneira compaixão, que Ele nem é capaz de outro sentimento a não ser este. Mas no momento da oração, tem-se a impressão que Ele se isola de tudo e fica em oração. E se alguém de longe O visse rezar poderia dizer: “A minha vida inteira não farei outra oração senão repetir a  d’Ele, porque depois que O vi rezar, não sei fazer outra coisa senão me lembrar daquilo e orar. O que são os meus Padres-Nossos, as minhas Ave-Marias em comparação com a oração feita por Ele?! Absolutamente nada!”

De repente é a ação. “Vamos ao mar da Galileia!” Pran!

Quer dizer, tudo isso tem uma tal grandeza que Nosso Senhor, em cada atitude da Alma, é como se Ele fosse aquilo! Ele é a Ação, o Sono, a  Compaixão, a Cólera, a Justiça. Aquela resposta aos fariseus: “Então dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus…” (cf. Mc 12, 17). Tem-se a impressão de que Ele ali é de uma argúcia tal que seus olhos resplandeceram de penetração.

Logo no primeiro brilho da argúcia, nos pomos de joelhos. Eu li que alguns autores espirituais censuraram uma atitude de São Pedro que, se forem todos, é censurável, mas se não for a totalidade  deles, estou do lado dos que admiram. Aquele dito de São Pedro para Jesus: “Afastai-Vos de mim, Senhor, porque eu não sou senão um miserável pecador!” (Lc 5, 8). Porque é tanta grandeza, tão  infinita, que não temos ideia; é muito além do que estamos afirmando! Tem-se vontade de dizer: “Eu me descomponho, me arraso, escorro como cera no chão diante de tanta grandeza. Senhor, afastai-Vos de mim porque sou um miserável pecador.

Mas não Vos afasteis demais porque sem Vos ver eu morro…”

Há em Nossa Senhora algo de parecido ao que existe em seu Divino Filho

De que maneira vemos isso em Nossa Senhora?

De modo muito bonito. Não sei se notaram que as invocações de Nossa Senhora são muito variadas, mas diversas delas se repetem. Por exemplo: Nossa Senhora Auxiliadora e Nossa Senhora do  Amparo são a mesma coisa. Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Nossa Senhora da Saúde é Ela enquanto socorre os doentes, portanto é uma especificação do gênero  Nosso Senhora do Perpétuo Socorro. Mas Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é Auxiliadora e Amparo, pois está socorrendo! Mas cada uma das imagens próprias a uma dessas invocações traduz uma personalidade própria. De maneira que Nossa Senhora enquanto Genazzano, ou enquanto Auxiliadora, é como se fossem pessoas distintas, harmônicas, mas diferentes.

É que a piedade popular se dá conta de que havia n’Ela, em proporções criadas, algo do que existe de parecido no Divino Filho d’Ela. E que em cada invocação Ela é tão plenamente, que julgaríamos estar tratando com outra pessoa.

Na realidade eu creio que se víssemos simplesmente Nossa Senhora, nós não aguentaríamos. Se Ela fizesse conosco como Nosso Senhor fez no Tabor, nós não suportaríamos, tal o esplendor, a pujança.

Alguém dirá: “Mas no Tabor até os Apóstolos pediram para ficar.” É verdade, porque foi mostrado tudo com uma doçura muito grande e com os contrapesos necessários.  Porque, do contrário, não aguentavam.

Pois um homem não aguenta a aparição de um Anjo, se este não ajudar o homem. E Anjo da guarda é a hierarquia menos elevada de Anjo. Imaginem Deus!

Façam, então, o retrospecto. A Santíssima Virgem dando explicações ao Menino Jesus Imaginem Nossa Senhora brincando com o Filho, dirigindo sua adolescência. O Filho perguntando para Ela com toda a seriedade: “Como é isto?

Explique-Me…” E a Santíssima Virgem sabe que Ele é Deus e conhece infinitamente melhor do que Ela. Mas Ela sabe também que a divindade não comunica essa informação à humanidade d’Ele, porque quer que esta a receba dos lábios d’Ela. Imaginem Nossa Senhora falando…

Para um de nós isso é um impacto que não aguentaria. Se o Menino Jesus dissesse: “Que forma tem a Terra?” Diríamos: “Hã! é, como é, isto é, ou seja… ahhh!…” E daí para fora, não saía a explicação. Depois começava a olhar para Ele e ficava intimidado.

“Sendo Ele tão infinitamente superior, o que vai achar da bobagem que vou dizer? Nem tenho coragem de me apresentar a Ele!”

Nossa Senhora, com toda a tranquilidade, diz: “Meu Filho…”, e dá a explicação angélica. Ele ainda faz duas ou três perguntas e Ela quase desmaia de encanto diante da sabedoria das indagações. Depois Ele agradece e vai brincar…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1980)

Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – I

Deveria haver uma educação pela qual a pessoa compreendesse que esta vida é um vale de lágrimas, porém colocado no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Ou seja, existe a possibilidade de altas felicidades, compradas a custo das lágrimas e do sangue. Não se trata de êxtases ou revelações, mas dos gáudios da união com Deus, prefigura da visão beatífica.

 

Como todos sabem, eu nasci na “Belle Époque”(1). Minha adolescência e mocidade transcorreram no período denominado “entre deux guerres”(2), no qual havia uma convalescença que não chegou a se consumar, um meio-termo entre a saúde e a doença, com algo do peso, mas também da alegria da convalescença, porquanto esta é um sair do estado doentio e um caminhar para a saúde que se aproxima.

Sem nenhuma complacência com o ilícito, Dr. Plinio apreciava o lícito material

Houve um período primevo no qual a minha inocência me dava muito o desejo de coisas extraordinárias, não expressas, mas nas quais entrava a graça. Porém pouco mais tarde a minha atenção foi, não inteira, mas fortemente, desviada desse campo de cogitação para os problemas referentes à minha perseverança, à interlocução e polêmica com o pensamento revolucionário, à necessidade de me agarrar na minha fidelidade para não me deixar levar e, portanto, para a luta.

Assim, essas cogitações superiores saíram um tanto de minha atenção, sem que jamais eu as recusasse. Mas era como se não coubesse na minha mente tanta coisa para pensar ao mesmo tempo. Então, isso ficou um pouco de lado como um quadro que se tem dentro de casa, do qual se gosta muito, mas que a vida cotidiana obriga a não estar prestando atenção sempre nas excelências do quadro. Assim também era isso dentro da minha alma.

Eu tinha a ideia de que dia viria no qual teria tempo de cogitar e de somar o que ia conquistando na luta, na polêmica, na concepção da sociedade temporal com aquelas alcandoradas e anteriores elucubrações, percepções, conaturalidades, apetências naturais elevadas, etc. A isso juntou-se o fato de que, ao começar a frequentar o mundo do “entre deux guerres”, ele me oferecia, mesmo dentro do lícito, muitas delícias. E eu, “truculento” em tudo, embora negando-me categoricamente qualquer complacência com o ilícito, era muito apreciador do lícito material: o luxo, a boa comida, o conforto, a vida agradável. Essas coisas passaram a se representar para mim como muito desejáveis e criavam a ilusão, mais ou menos implícita, de que o homem, possuindo virtude, prestígio e grande luxo, teria atingido o teto do que esta vida pode dar. Até certo ponto, isso projetava a poeira de um olvido sobre as apetências alcandoradas de outrora.

As felicidades apresentadas pelo mundo eram festivais do demônio

Nos primeiros cinco anos do que eu poderia chamar minha conversão, caiu-me nas mãos uma biografia de Santa Teresa de Jesus, em dois volumes, escrita por uma carmelita de Caen, na França. A descrição dos êxtases deliciosíssimos feita pela autora, acrescida ao fato de que eu estava numa fase onde nadava nas consolações muito mais deleitáveis do que o prestígio, conforto e luxo dentro da virtude, isso tudo me levou a compreender que havia outra gama de felicidade para a qual a minha alma estava desatenta, em virtude do curso das coisas.

Comecei, então, a procurar o que era isso. Para Santa Teresa de Jesus gostar tanto daqueles êxtases fantásticos, deveria haver na alma dela uma aptidão natural, que o sobrenatural satisfazia.

Fazendo a introspecção de mim mesmo, eu notava uma violentíssima vontade de degustar aquilo porque era a união com Deus, mas também – devo dizer – e muito, pelo gáudio inseparável dessa união. Quer dizer, essa união em si mesma, e salvo as noites escuras e provações, é cheia de gáudio como uma esponja pode estar cheia de água.

Então me perguntava: onde existe na minha alma uma apetência dessas coisas, tão dormente que eu não percebia, mas tão viva que, posto diante da descrição, levanto-me inteiro como que num bramido?

Muitos anos depois, lendo fragmentos de literatura grega, em geral, um pouco de Platão e, depois, Padres do Oriente, percebi que a alma deles se movia numa atmosfera de delícias do espírito. Nos gregos, eram delícias naturais, mas andando na linha da transesfera(3); nos Padres gregos, eram sobrenaturais e também naturais, visto que eles eram algum tanto herdeiros da cultura grega.

Perguntando-me qual o suporte dessas coisas, cheguei à conclusão de que aqueles arroubos da infância indicavam a zona natural da alma voltada para o desejo dessas graças, e na qual, entrando a graça, aquilo se desenvolve.

Deveria, pois, haver uma educação na qual a pessoa compreendesse o seguinte: esta vida é um vale de lágrimas, é verdade, mas um vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Portanto, existe a possibilidade de altas felicidades nesta vida, compradas a custo das lágrimas e do sangue, mas existe. Essas felicidades não são as da “Belle Époque”, do “entre deux guerres”, nem do que se lhe seguiu – que eram festivais do demônio –, mas são felicidades presentes nessa zona da alma.

Ponto de inserção do amor de Deus na alma

O homem fica um imbecil, cego, tartamudo e coxo se ele não vive em função disso. A meu ver, sem isso a pessoa tem condições dificílimas para praticar a Religião Católica e perseverar nela, porque o ponto de inserção do amor de Deus na alma é esse. Essa é a zona de nossa alma mais voltada para Deus, e é nas felicidades dessa zona que a pessoa encontra parte de sua motivação para não querer o vício, que é o obscurecimento e a renúncia a essas altas felicidades. De outro lado, é essa zona da alma que dá coragem para as renúncias impostas pela virtude.

Para ser implantado o Reino de Maria seria necessário que a graça criasse um ambiente em consequência do qual as almas ficassem assim, e as virtudes fossem preservadas pela educação e por tudo, constantemente nessa direção. Aliás, aí está a temperança. Sem isso essa virtude é uma espécie de ascese e ginástica.

Entretanto é preciso notar que aqui, sem que nós tenhamos percebido, se encontra um dos pontos mais delicados da fidelidade à nossa vocação. Porque o thau(4), quando está no seu florescimento primeiro, abre um caminho para isso. Há um determinado momento em que os atrativos sensíveis deste caminho deixam de reluzir, e a fidelidade ao thau passa a ser mais ou menos como a fidelidade conjugal num casal em que o esposo e a esposa perderam a graça um para o outro, mas aguentam porque é preciso. Com efeito, há uma espécie de segunda etapa matrimonial com o thau – se ousássemos nos exprimir assim – que é despida dessas coisas. Tenho a impressão de que não seria tão despida, mesmo na maior noite escura, se esse senso tivesse prevalecido, por onde a decadência equivale sempre a um determinado momento em que a pessoa quis fechar os olhos aos esplendores do thau para prestar atenção nas coisas da Terra. São as vaidades e aflições de espírito que levam a isso.

Se para nós a perseverança é dura e penosa, a vida é fatigante e cheia de abrolhos, isso tudo tomará um caráter de suportabilidade e até de alegria – não a da fruição, mas dessas alegrias que chamam para Deus –, na medida em que conseguirmos recompor na nossa alma essa forma de amor de Deus, que corresponde a ter sentido, conhecido e degustado a semelhança de certas coisas com Ele, e nisto ter degustado a Ele.

Não me refiro a coisas materiais, mas às internas da alma, prefigurações da visão beatífica. Não se trata de êxtases, visões, mas é natureza e graça. Isto recompõe as nossas almas e nos faz andar.                v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

 

1) Período de cultura cosmopolita na História da Europa que começou no fim do século XIX (1871) e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

2) Período compreendido entre o fim da I Guerra mundial (1919) e o início da II Guerra (1939). A primeira metade deste período chamou-se “les années folles” (os anos loucos), devido essencialmente às rupturas que se verificaram no relacionamento social.

3) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

4) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir pela derrota da Revolução, vitória da Igreja e implantação do Reino de Maria.

Os ódios sapienciais do Imaculado Coração de Maria – I

Maria Santíssima é toda cristalina, feita de suavidade e de pureza, dir-se-ia ser uma alma incapaz de odiar. Entretanto, pelo próprio amor insondável que Ela tem a Deus, é impossível que não odeie o que é contrário a Ele

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e o ponto de referência de todos os elogios feitos a Deus. Não podemos conceber um louvor de Deus perfeito que não tenha a Ela como ponto de referência.

O caminhar do espírito humano

O espírito humano caminha para a cognição de “proche en proche” – de próximo em próximo, mas nesse caminhar, qual é o próximo d’Aquele que é eterno, absoluto, perfeito, infinito, transcendente em relação a qualquer criatura? Deus mora, a um título muito especial, no interior das criaturas por Ele amadas. Então, como Ele habita em Nossa Senhora, que é tão especialmente objeto de seu amor?

N’Ela temos o modo de nos tornarmos mais próximos de Deus. Embora Ele seja inacessível, fica ao alcance de nossa mão, porque habita em nossa Medianeira. Sendo Ela o Palácio da Trindade, o Paraíso do Homem-Deus, por meio d’Ela podemos ter com Ele aquele contato sem o qual nada somos.

Por essa razão, para exaltar qualquer perfeição divina, até mesmo a sagrada cólera d’Ele, não podemos tratar disso sem falar a respeito d’Ela.

Quando um indivíduo peca e se fixa irreversivelmente no pecado, torna-se odioso

Como medir a cólera do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria? Como podemos sequer conceber o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria em cólera? Parece que as expressões são contraditórias, antitéticas. N’Ela não pode haver cólera, Ela é toda cristalina, toda feita de suavidade, de pureza. A cólera parece uma vibração de indignação, do amor de si mesmo contrariado, do egoísmo vilipendiado. Como se pode conceber disposições de alma tão baixas n’Aquela criatura que é toda Ela elevação?

A quem e como Nossa Senhora odiou? Costuma-se dizer que Ela odiou o pecado. É verdade. Mas o pecado só existe na pessoa do pecador. Não há um pecado tomado em abstrato. Antes de Adão e Eva pecarem, não havia pecado, pois não havia pecadores. Existia uma possibilidade de alguém pecar. Então, poder-se-ia odiar essa possibilidade, mas o ódio não teria como objeto um ser existente. Se Adão e Eva tivessem esse ódio ao pecado, enquanto sendo uma eventualidade, teriam encontrado mais recursos de alma para não pecarem.

Maria Santíssima odeia em todos os pecadores aquilo que é pecado e ama os pecadores, pois ama neles a possibilidade que, por disposição divina, têm de se arrepender. Mas a situação atual do pecador, enquanto permanecendo no estado de pecado, Ela odeia.

Como Ela odeia? Como nós podemos imaginar os ódios do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria?

Tenho a impressão de que com o pecado e com a virtude há quintessências. Alguns pecadores, por assim dizer, levaram tão longe o pecado quanto uma criatura humana pode levar a virtude. E, ao pé da letra, pecaram tanto quanto podiam, isto é, quanto estava na condição deles pecarem. Sendo criaturas muito elevadas, tiveram a possibilidade de pecar de modo muito abominável. Diz o ditado popular: quanto maior é a altura, tanto maior é a queda.

Assim, houve criaturas de uma natureza muito elevada chamadas por Deus a emitir um reflexo magnífico das três Pessoas Divinas. No momento em que pecaram e se fixaram irreversivelmente no pecado, essas criaturas tornaram-se odiosas. Ao ser criada, e tendo tomado conhecimento dessas criaturas e da hediondez do pecado por elas cometido, Nossa Senhora não foi em relação a elas senão ódio.

Maria Santíssima toma em consideração que o pecador forma um todo só com o pecado, assim como a pessoa virtuosa forma um todo só com a virtude. É mais ou menos como a pessoa feia e a feiura; como também a beleza constitui um todo com a pessoa bela. Tanto a beleza quanto a feiura são inerentes ao ser da pessoa.

Assim também o pecado, com a diferença de que este é livremente escolhido pelo pecador; e nisso a pessoa tem exatamente a nota mais humilhante, pois ela viu e aderiu àquilo por sua própria vontade.

O ódio se mede pelo amor

Então, pelo próprio amor insondável que Nossa Senhora tem a Deus, é impossível que Ela não odeie completamente aquele ser ao vê-lo como sendo o contrário do Criador. Para cada pecador a quem a Divina Justiça selou o destino e condenou ao Inferno, Maria Santíssima pode dizer as palavras da Escritura: “Eu te odiei com ódio perfeito!” (cf. Sl 138, 22). É um ódio ao qual não falta nada.

Esse ódio é feito de uma concepção retíssima e nobilíssima de como aquele ente deveria ser, pois Nossa Senhora conhece o modo único pelo qual aquela criatura deveria ser a imagem e semelhança de Deus, e ama muito aquilo. Ao ver que aquele ser rejeitou essa perfeição, transformando-se voluntariamente no contrário, Ela percebe que ele atingiu o requinte de sua própria maldade e o odeia completamente, por amor àquela mesma perfeição que Ela contempla em Deus.

É forçoso que, amando-se algo muito, se odeie igualmente o contrário. O ódio e o amor se acompanham como a figura e a sombra.

Os pés puríssimos de Nossa Senhora calcam os precitos com ódio

Poderíamos imaginar Nossa Senhora na presença de Deus e, diante d’Ela, uma alma que será julgada. Se for uma pessoa virtuosa, Ela a considera com amor e diz: “Filho meu, como te pareces comigo e com os dons que Deus pôs em Mim! Quero oscular-te, meu filho, dá-me tua fronte!”

De repente, aparece a alma de um pecador empedernido, trazendo o sinal do demônio na testa. Evidentemente, toda aquela força de atração se transforma em repulsa, e as palavras de carinho tornam-se increpação: “Eu desvio de ti minha face, tenho horror ao semblante que apresentas, ele causa-Me asco e indignação. Quero calcar aos pés a deformidade que por teu pecado assumiste, como calco a serpente eternamente!”

Poder-se-ia pintar um quadro representando a Santíssima Virgem calcando aos pés cada um dos réprobos que estão no Inferno porque, de fato, sobre eles pesa eternamente o ódio total e implacável d’Ela. E tendo Ela como uma de suas glórias pisar sobre os precitos, poderia dizer a Deus: “Faço-Vos este ato de reparação, meu Criador, que sois meu Pai, meu Filho e meu Esposo! Esses miseráveis quiseram ser o contrário de Vós, por isso meu pé puríssimo, elemento integrante e executivo da mais alta criatura que vossa Sabedoria e vosso Poder engendraram, calca-os com ódio, e Eu entoo o cântico de cólera e de triunfo de todos os justos no Céu e na Terra!”

Ela teve vontade de punir Salomão, que levou à perdição o povo eleito

Dos múltiplos exemplos que se poderiam apresentar, não há nenhum que me cause tanto arrepio quanto Salomão, o filho bem-amado, o rei que recebeu de Davi a coroa e a missão. Davi deixou prontos os materiais e os planos para a construção do Templo, mas foi Salomão quem teve a glória de construí-lo. Salomão, que é o autor do Livro da Sabedoria, entretanto prostituiu-se a ponto de adorar ídolos, transformar-se num devasso e morrer na libertinagem e na apostasia. Como era possível que uma alma de tal maneira decaísse daquele pináculo? Esse homem, que escreveu as palavras ditadas pelo Espírito Santo para serem comunicadas à humanidade, de repente transforma-se nesse vaso de abominação!

Ao ler no Livro da Sabedoria a narração da construção e inauguração do Templo, de que amor a alma santíssima de Maria deveria se sentir cheia! Era um perfeito reflexo do amor de Deus e quanta glória deveria dar a Ele!

Contudo, ao considerar a narrativa da queda de Salomão, como poderia não sentir um ódio tão grande quanto o amor por Salomão na sua justiça? Como não sentir náusea, asco, repulsa, vontade de rejeitar e de punir aquele que de tal maneira se tornou inimigo de Deus, levando à perdição o próprio povo eleito?!

Horror implacável a toda forma de pecado

Sabe-se que houve Santos que, ouvindo os penitentes em Confissão, sentiam o mau odor dos pecados cometidos por aquelas almas.

Quando o mau odor resulta simplesmente da negligência da pessoa no trato do próprio corpo, causa uma particular repulsa. Ninguém tem culpa pelo mau cheiro do corpo provocado por alguma doença, mas ser negligente e não ter horror ao mau odor de si mesmo já é uma forma de conivência que contagia de algum modo a alma com aquele mau odor físico.

Por exemplo, uma pessoa que por negligência nunca escove os dentes e tenha, por isso, um hálito abjeto. Ela sabe que, se escovasse os dentes, o mau hálito cessaria, mas não os escova porque não tem horror ao mau gosto e ao mau odor de sua boca. Somos levados a pensar que essa alma tem conaturalidade com certos defeitos morais, e ficamos com horror ao corpo que leva a um horror à alma, enquanto esta não tem aversão àquilo que para o corpo é horrível.

Ora, o pecador que poderia e deveria eliminar o seu pecado, mas se deixa ficar nesse estado, tem incomparavelmente mais culpa e é mais aderente ao mau cheiro de sua alma do que ao mau hálito de sua boca.

Imaginem Nossa Senhora sentindo o mau odor da alma de Salomão, por exemplo, que Ela, a posteriori, terá conhecido por completo. Salomão, cujas palavras deveriam ter o perfume do incenso ao ser queimado, o aroma dos frutos quando chegam à maturidade, após sua prevaricação ficou com o cheiro abjeto de todas as putrefações.

Se isso é assim, podemos compreender, então, o implacável horror de Nossa Senhora a toda forma de pecado.

Maria Santíssima conhece até mesmo o que é oculto

Assim também a Santíssima Virgem, a Quem nada era oculto, conhecia perfeitamente a abjeção a que tinha caído sua nação no tempo em que Ela nasceu. Ela sabia que o Messias estava por nascer naquela ocasião, mas via a que auge de degradação chegara o povo judeu. Nossa Senhora não podia deixar de ter, com muito mais lucidez do que o profeta, aquela visão de Ezequiel quando foi conduzido para dentro do Templo e viu em seus recintos ocultos os sacerdotes praticando idolatria, porém diante do povo fingiam adorar o Deus verdadeiro.

Ora, Maria Santíssima sabia que a classe sacerdotal se preparava para cair no abismo do deicídio, e seria a promotora mais ativa de todas as calúnias contra Nosso Senhor. O Sinédrio era propriamente a força deicida dentro de Israel.

Devemos imaginar a Virgem Maria menina entrando para o serviço do Templo, aos três anos de idade, e presenciando esta realidade bivalente: a casa de Deus, onde a glória d’Ele habita, os justos vão rezar, seu Divino Filho iria ensinar, ou seja, todo o Templo era uma espera ansiosa do Messias que deveria vir; e, ao mesmo tempo, Ela via, ao lado do culto verdadeiro, o culto secreto, disfarçado, abominável, e a prevaricação de toda a classe sacerdotal.

Alguém objetará:

— Mas Ela só tinha três anos!

Eu respondo:

— Ela era Nossa Senhora…

Não tem outra resposta a dar. Ela já conhecia tudo.

Com que enlevo Ela penetrou na casa de Deus! Qual não terá sido o cântico dos Anjos ao verem se aproximar Aquela de Quem nasceria o Salvador e que era a nova Arca da Aliança, da qual a arca guardada no Templo, com tanto respeito, era apenas uma prefiguração!

Reação das almas diante de Nossa Senhora menina

Podemos imaginar uma ou outra alma boa que havia por ali, quiçá a Profetisa Ana, o Profeta Simeão, e que, por premunições misteriosas, observando aquela criança diriam: “Que grande chamado tem essa menina!” Vendo-A passar no cortejo das outras meninas educadas para o serviço do Templo, talvez percebessem ser uma intercessora incomparável junto a Deus, e a Ela se dirigiam implorando os favores celestes. E a futura Mãe de Deus, por uma dessas correspondências internas da alma, dava a entender: “Eu tenho consonância contigo, tu és um comigo”. E aquela alma se banhava de alegria!

Provavelmente alguns faziam sua vida girar em torno d’Ela. Sabendo nas várias ocasiões do dia onde Nossa Senhora estava, olhavam para um quarto, por exemplo, para ver se Ela apareceria na janela; ou verificavam de que recinto a Menina saíra para poderem entrar lá logo depois, e por esta forma viver em Maria, com Maria e por Maria, que era uma forma antecipada de viver em Cristo, com Cristo e por Cristo.

Assim, deveria haver em torno da Santíssima Virgem almas fervorosas às quais Ela impulsionava ainda mais para o bem, elevando-as a um píncaro de santidade para elas inimaginável. Outras que eram boas, mas postas na mediocridade, a quem Ela convidava a um voo possante rumo à perfeição que deveriam ter atingido, mas não atingiram. A cada uma dessas a presença d’Ela dizia: “Ou tu Me amas, ou te atolas. Tua hora chegou! Vem, minha filha!”

Por fim, havia também os filhos de satanás, abominando qualquer forma de verdade, de bem ou de beleza, e que, ao sentir a presença d’Ela, dentro deles o demônio grunhia, encobria-se, efervescia, tinha medo, sentia a necessidade de abandonar a presa e sair fugindo, mas armava a alma daqueles malditos contra Ela.

Teve ódio e foi odiada

Se um bom católico no mundo de hoje divide, como não supor que Nossa Senhora não dividisse? Não podia deixar de haver no Templo, além dos amigos da Virgem, os inimigos que desviassem d’Ela o olhar, sentissem mal-estar perto d’Ela, A odiassem, tentassem eventualmente caluniá-La ou difamá-La, procurassem de todos os modos ser-Lhe nocivos, invocassem demônios para tentá-La, prová-La, recusassem-Lhe alimentos, enfim, A sabotassem de todos os modos. Salvo por uma disposição especial da Providência, isso deve ter sido assim. E tanto as almas que eram a favor d’Ela quanto as contrárias acabavam se articulando. Portanto, Nossa Senhora, no Templo, fez a Contra-Revolução oposta à Revolução que se preparava contra o Filho d’Ela.

Estas são hipóteses que se constelam em torno da Santíssima Virgem Maria e nos fazem entender o que foi a vida d’Ela, o papel que o ódio representou em sua vida desde a primeira infância.

Levo minha suposição mais longe: creio que Nossa Senhora, quando estava no claustro maternal de Santa Ana, já causava mal-estar nos que eram de satanás. O demônio, a partir do momento em que Maria Santíssima foi concebida, começou a perseguir Santa Ana de um modo especial, surgiram antipatias, ódios, como também venerações e simpatias, antes mesmo de se perceber que ela concebera uma criança. De tal maneira Nossa Senhora é o contrário do demônio, que ele tinha que sentir a irradiação da pessoa d’Ela, instigando contra Ela o ódio daqueles em quem ele habitava. Não é possível que não fosse assim.

Vemos, portanto, que, desde o primeiro instante de seu ser, Ela teve ódio e foi odiada. Essa compressão e descompressão do ódio e do amor representaram a própria trama da existência d’Ela.    v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/7/1980)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

Um belo complemento do traje eclesiástico

O barrete e outros sinais distintivos dos trajes eclesiásticos ou civis foram sendo abolidos, mostrando a tendência para a república universal desejada pelo comunismo, e que representa o reino do demônio, onde não haja mais raças, línguas, culturas, nem civilizações diversas, e todos os homens constituam apenas uma ordem parda ou cinzenta, indiferente, de pessoas sem qualquer personalidade.

 

Lembro-me perfeitamente de minha reação, em menino, ao ver o barrete eclesiástico, utilizado pelos padres jesuítas do Colégio São Luís.

Os três gomos do barrete simbolizam a Santíssima Trindade

Eu tinha conhecido sacerdotes salesianos – religiosos, portanto – da Igreja do Coração de Jesus, e seculares da Igreja de Santa Cecília, que era nossa paróquia. Não conhecia outros, embora os visse passarem pela rua. Mas não sei por que razão, quer os salesianos, quer os padres seculares, eu nunca os tinha visto de barrete. Quando muito, os via usando-o ao entrarem para a Missa, mas tiravam logo ou já vinham com ele na mão. O fato é que o barrete não tinha me chamado especialmente a atenção.

Quando entrei para o Colégio São Luís, quase todos os padres usavam barrete, sistematicamente, sobretudo na época mais fria do ano.

As cátedras naquele tempo eram altas, tinham uns quatro ou cinco degraus, e o professor falava muito de cima, numa espécie de banco, um quadrilátero vazio e por detrás uma madeira revestindo a parede, formando assim uma espécie de cenário para ele. Era uma coisa muito respeitável e própria a prestigiar o magistério. Naturalmente isso desapareceu, como desaparecem as coisas boas sob o influxo da Revolução, perdendo o caráter honorífico, restando apenas o funcional. Era a morte gradual da noção de honra e o advento da funcionalidade não honorífica, onde não mais a função da honra, mas apenas o útil representa algum papel.

Foi nesse ambiente, acima descrito, da sala de aula com a cátedra antiga que tive uma impressão magnífica ao ver o professor usando o barrete. Pensei: “Que coisa digna, bem arranjada, como vai bem com a batina !” Ademais, sentado naquela cátedra, com a seriedade com que falavam naquele tempo, dando aula, quase se diria que o barrete era uma coroa preta colocada sobre a cabeça.

O barrete é encimado por três gomos, que simbolizam a Santíssima Trindade, dispostos de tal forma que um dos lados do barrete fica vazio. Entretanto – vejam como são as conclusões de uma criança! –, habituado a certo tipo de simetria, eu julgava que do outro lado o gomo tinha caído, e que por economia os padres não o tinham mandado colar. Era a explicação que eu encontrava… E lamentava comigo. Cheguei a pensar: “Se eu pedisse dinheiro a papai e mamãe para mandar comprar uns gomos para eles porem, não será que ficaria bem?” Mas eu percebia que havia qualquer coisa por onde não era para mexer nisso, nem perguntar, e deixar a coisa assim. Mais tarde entendi o porquê.

Quando a Igreja toca em algo ela faz maravilhas

Mas fiquei encantado e, embora eu fosse muito menino, veio-me ao espírito a seguinte reflexão: “Eu conheço muitos homens respeitáveis e de idade avançada, não eclesiásticos, que lucrariam tanto em usar uma coisa desse gênero!” Um ou outro até usava, para se proteger do frio, uma espécie de gorrozinho cilíndrico, em geral feito de um tecido muito rico e vistoso, com cores alegres. Ainda que o homem fosse de idade, ele punha isso na cabeça. Mas eu pensava: “Esses gorrozinhos que eles põem não valem nada. Veja o que os eclesiásticos põem na cabeça! Quem compôs esse barrete? Não foi nenhum desses padres. Com certeza, se eu perguntar quem foi eles não sabem, porque isso se perde nos tempos. Então, quem foi? Foi a Igreja.” E me lembro de ter vindo à mente esta reflexão claramente: “Observe como na Igreja, sendo divina e exímia em todas as coisas grandes, há uma qualidade por onde até nas pequenas, quando ela toca com a ponta dos dedos, faz uma maravilha!”

Assim, fiquei realmente encantadíssimo com o barrete eclesiástico. Imaginem a minha tristeza quando comecei a perceber que o uso do barrete era cada vez mais abandonado.

Além de compor bem e ser um belo complemento do traje eclesiástico, o barrete corresponde a uma ideia que desapareceu completamente. Quando eu era pequeno, os meninos de minha idade já usavam chapéu. Qualquer que fosse a espécie do chapéu, ao transpor o limiar de qualquer das portas de sua própria casa, a “fortiori” da residência dos outros, o menino tinha que tirar o chapéu. Usar chapéu dentro de casa era o auge da impolidez, da falta de delicadeza. Tratava-se de uma coisa toda convencional, mas era assim.

Porém, o convencional antes da Revolução Francesa era outro. O homem passava o dia todo de chapéu, e só o tirava diante de pessoas de muito respeito, ou quando ele se referia à Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, Sagrada Eucaristia. Também quando entrava uma pessoa ilustre no salão, por exemplo um príncipe, um marechal de França, um membro da Academia de Letras, um cardeal.

A Revolução promoveu o desaparecimento do barrete, do chapéu, do uniforme

Essas são atitudes convencionais, não estão ligadas ao direito natural. Entretanto, é conforme ao direito natural que haja cerimônias. Como e quais elas sejam, na maior parte dos casos é uma convenção elaborada ao longo da História pelos costumes, pela índole de cada povo, etc.; não é imposto por uma lei moral, não decorre da ordem natural das coisas.

Por exemplo, a nós ocidentais parece a coisa mais normal do mundo nos cumprimentarmos apertando a mão. Mas no Oriente isso não é costume nem um pouco. O cumprimento é feito de longe, com certa forma de reverência, de vênia. É legítimo, são coisas convencionais.

Contudo, não é meramente convencional que haja cerimônias. E para atingir a ordem natural, a Revolução instituindo o igualitarismo tinha que promover o desaparecimento do barrete, como do chapéu, do uniforme, tanto para leigos como para eclesiásticos.

Eu assisti a essas três etapas: os leigos que deixaram de usar o chapéu, depois o paletó, passando já a usar bermudas. Os militares que abandonam o uniforme e se vestem como os civis, quando não estão em serviço, confundindo-se, então, com qualquer um nessas ocasiões.

Ora, era evidente que a Revolução solicitasse ao clero que abolisse a tonsura, abandonasse a batina e usasse apenas um distintivo. Depois, não usasse mais distintivo algum. Nessa demolição entrou também, necessariamente, o barrete que me deixou tão saudosas recordações.

No completo desaparecimento dos trajes distintivos das várias condições de vida já se fere, arranha-se a ordem natural, porque, embora não seja imperativamente necessário, é da mais alta conveniência para a boa ordem natural das coisas que as diversas condições de vida tenham seus distintivos.

É a razão pela qual, por exemplo, o homem e a senhora casados usam aliança. Quem não é casado não usa. Quem olha percebe logo qual o estado civil daquela pessoa. Isso é tão próximo da ordem natural, que a abolição de todos esses sinais tende para a república universal desejada pelo comunismo, e que representa o reino de demônio, onde não haja mais raças, línguas, culturas, nem civilizações diversas, não haja mais nada de diverso, e todos os homens constituam apenas uma ordem parda ou cinzenta, indiferente, de pessoas sem qualquer personalidade.

Estas foram as reflexões sugeridas pela saudosa lembrança do imponente barrete dos meus mestres jesuítas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/7/1983)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

 

Maternidade Divina, essência da devoção marial

Por ser o homem composto de espírito e matéria, todo o cosmos se dignifica pelo fato de a união hipostática ter sido feita com a natureza humana.

Estabelece-se, assim, uma hierarquia admirável, toda semeada de contrafortes: acima de tudo Deus, infinito, incomparável a qualquer criatura; em seguida, Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de quem se constituiria naturalmente um abismo se não fosse colocada uma criatura humana, píncaro de tudo quanto pode ser a mera Criação: Maria Santíssima, sua Mãe.

Ela é o espelho mais perfeito que de Deus possa ser uma simples criatura. Nossa Senhora é a Rainha dos Anjos, dos homens, do Céu e da Terra, revestida de todos os outros títulos, qualidades e graças, inclusive a mediação universal, pelo fato de ser Mãe de Deus. A Maternidade de Maria, de algum modo, é a própria raiz e essência da devoção marial.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/8/1965)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

A vitória da confiança – I

No século XVII, a Polônia foi invadida por soldados suecos e noruegueses protestantes que avançaram como um dilúvio por todo o país. O rei fugiu, a maioria dos nobres pactuou com o inimigo, o clero nada fez. Apenas um punhado de monges, alguns nobres e um pequeno número de plebeus resistiram, comandados por um varão heroico: Frei Agostinho Kordecki.

 

Desejo comentar o cerco de Czestochowa e a resistência do Mosteiro de Jasna Gora durante a guerra entre a Suécia e a Polônia, em 1655.

Polônia: muralha separando o mare magnum de duas heresias

Há uma preliminar que devo fazer notar para compreendermos a nobreza da luta cuja história vamos considerar. Não se trata simplesmente da resistência de um mosteiro polonês contra a investida de um exército sueco e, portanto, de uma mera guerra nacional. Se assim fosse, já seria uma coisa digna para a qual valeria a pena um polonês dar a sua vida; sua pátria foi invadida, ele tem deveres para com ela, então sacrifica a sua vida, está bem.

Entretanto, para esses religiosos do Mosteiro de Jasna Gora estava em foco uma causa muito mais alta, que era a causa da Religião. Porque, de um lado, a Polônia constituiu, em todos os tempos, uma espécie de muralha separando o “mare magnum” de duas heresias na Europa: de um lado, o mundo russo, que naquele tempo já era cismático; e, de outro, o mundo protestante, isto é, a Prússia e os Países Bálticos. Constituindo uma potência no Báltico, por ter porto naquele mar e separar a Rússia da Alemanha, a Polônia é uma longa manus da Igreja Católica naquelas terras de apostasia.

Outro pressuposto a ser considerado é que o rei invasor, Carlos Gustavo da Suécia(1), foi um dos maiores generais e talvez o líder protestante mais importante da época. A Suécia e a Noruega constituíam naquele tempo um só reino. A península escandinava possuía guerreiros excelentes. Os soldados sueco-noruegueses não tinham quem os superassem em valor militar na Europa. Além de ser um grande general, Carlos Gustavo dispunha de muito boa marinha, de maneira a atravessar aquelas distâncias entre a Suécia e o continente com toda facilidade.

Este rei interveio na guerra de Religião que estava se travando no continente europeu entre católicos e protestantes, a propósito da direção do Sacro Império Romano-Alemão. Os protestantes queriam desbancar a Casa d’Áustria da direção do Sacro Império e impor um imperador protestante, de maneira a virar todo o mundo alemão para o protestantismo. Carlos Gustavo percebeu muito bem que ele não conseguiria isso se não tomasse conta da Polônia, que apoiava os príncipes católicos contra os príncipes protestantes.

A Polônia era um reino eletivo com uma constituição política excessivamente descentralizada, no sentido de que os nobres tinham um poder que transformava o rei numa espécie de figura de proa sem verdadeiro poder militar. Isso enfraquecia a nação nas investidas que ela sofria. Ademais, a Polônia tinha nesse tempo um rei fraco. Assim, os soldados suecos e noruegueses avançaram como um dilúvio pela Polônia adentro.

Sinais do castigo divino

Um dos poucos pontos que resistiram foi o mosteiro localizado na colina de Jasna Gora, em Czestochowa. Resistiu, portanto, na luta contra o invasor da pátria e o maior líder protestante daquele tempo, numa guerra eminentemente religiosa na qual o mosteiro funcionou como fortaleza onde, como veremos, Nossa Senhora fez uma série de milagres estupendos.

Czestochowa era para a Polônia o que Aparecida é para o Brasil, mas com muito mais relevo, porque tivera uma participação efetiva nas grandes lutas daquela nação, maior do que Nossa Senhora Aparecida teve aqui.

Ora, a Polônia tinha caído na tibieza, atraindo sobre si o castigo divino que se fez anunciar por alguns sinais.

Quando Deus Altíssimo decidiu castigar os poloneses, primeiro enviou, em sua bondade, vários sinais prenunciando a catástrofe que se aproximava. Assim, permitiu que, a 10 de fevereiro de 1654, a alta torre do Santuário de Czestochowa fosse atingida por um raio e se consumisse em fogo.

Então, o primeiro sinal da cólera de Deus foi um raio que caiu sobre o campanário do santuário e o destruiu. A torre é símbolo da Igreja, e esta é o símbolo do país.

Nesse mesmo ano, a 9 de julho, todos viram um milagre que ocorreu no Sol, sobre cuja superfície apareceu uma cruz que se ia transformando em coração, o qual era transpassado por uma espada. A certa altura do disco solar via-se a mão de uma pessoa segurando uma maçã que se dividia em quatro partes, transformando-se depois num açoite.

No ano seguinte, partia do Norte o açoite de Deus contra os poloneses: Carlos Gustavo, rei dos suecos.

Os suecos tomaram facilmente todo o país, quase sem resistência

Passando diretamente à narração da batalha em Czestochowa, vemos as tentativas do inimigo de vencer o mosteiro pacificamente.

Os suecos tomaram facilmente todo o país, quase sem resistência. Quase toda a nobreza, parte da qual era calvinista, aceitou Carlos Gustavo como protetor da Polônia, abandonando o Rei João Casimiro à própria sorte. Após conquistarem Cracóvia, no extremo Sul, enviaram, por ordem do rei sueco, um exército de três a quatro mil homens para tomar o Santuário-fortaleza de Czestochowa, a uns duzentos quilômetros dali.

Adiantando-se ao inimigo, o Conde Jan Wejhard Wrzesowicz, a fim de conquistar as boas graças do rei dos hereges, exigiu dos frades que entregassem a Fortaleza de Jasna Gora a ele, católico, para evitar que ela caísse por via direta em mãos suecas. Se não atendessem a sua exigência, ele ameaçava tomar à força o santuário. Os monges, tendo à frente seu prior, Frei Agostinho Kordecki, tentaram demover o conde de sua vil pretensão e recusaram sua proposta.

Esse miserável queria que os monges entregassem o mosteiro-fortaleza a ele, mas na linha da tática “ceder para não perder”, como que dizendo: “Entreguem-me o mosteiro para que eu o defenda porque, do contrário, tomo-o à força, pois é preciso que alguém o defenda eficazmente contra o Rei da Suécia.” Entretanto, era evidente que ele não queria isso. Sua intenção era entregar o mosteiro para o Rei da Suécia. Então Frei Kordecki, com muito critério, tentou dissuadi-lo de seu intento, mas recusou a proposta.

Enquanto isso, alguns nobres, fugindo do avanço sueco, buscavam refúgio em Jasna Gora. Um deles aconselhou os religiosos a não cederem aos seus inimigos e afirmou que os que ali buscavam refúgio estavam dispostos a morrer em defesa da honra do santo lugar, confiantes na proteção de Nossa Senhora.

É muito bonito isso porque, sendo um mosteiro, não possuía tropas próprias e, portanto, não tinha como se defender da exigência daquele conde traidor. É quando a Providência manda o auxílio: são os nobres que vinham fugindo de outro lugar e se internam ali, prometendo fazer a resistência.

Notem que só depois de o superior, Frei Kordecki, ter recusado a proposta do Conde Jan Wejhard vieram-lhe os reforços. Nossa Senhora quis antes que ele praticasse, sem forças, o ato de coragem para depois vir a força que lhe justificaria o ato de coragem. É bem o modo de Nossa Senhora tantas vezes nos tratar:

— Vá para a frente! – diz Ela.

Nós respondemos:

— Mas, minha Mãe, não tem chão firme aqui!

— Pise.

Nós pisamos e… “Ah, tem chão!”

“Antes morrer dignamente do que viver na impiedade”

Continuemos a leitura.

Após a primeira recusa dos monges frente ao binômio “medo-simpatia”, o Conde Jan Wejhard, contudo, não desistiu de seu plano. Enviou um “ultimatum” ao prior exigindo, sem rebuços, que Jasna Gora se rendesse ao rei sueco, jurando submissão e fidelidade ao usurpador. E que os religiosos se comprometessem a denunciar qualquer sublevação de que tivessem notícia no futuro.

Os monges responderam imediatamente, por meio de seu prior: “Antes morrer dignamente do que viver na impiedade”.

Perfeito! Vejam o que a Providência quis deles. Esse traidor acabou levando uma declaração de guerra na cara.

Frei Kordecki não deu a seguinte resposta que seria presunçosa: “Venham, que eu vou lhes provar que tenho coragem”. Mas disse o seguinte: “Você é mais forte do que eu e me ameaça. Pois bem, eu prefiro morrer. Portanto, vou resistir. Se você vier, eu o mato”. E, depois, quando ele veio, matou mesmo. É a atitude perfeita.

Como faz bem à alma ver que essa é a conduta de sacerdotes bem orientados! Eu sustento que um dos Santos mais suaves que houve em toda a História da Igreja – São Francisco de Sales –, posto nessas condições faria exatamente isso. São João Bosco, Santa Teresinha, São Francisco de Assis fariam o mesmo, porque santidade é isso. E quando não é isso, não é santidade, é tapeação.

Aliás, quando estive na cidade de Genebra, em 1950, um guia me mostrou o muro a partir do qual São Francisco de Sales tentou reconquistar aos protestantes, a mão armada, a cidade de Genebra da qual era Bispo. Era o Santo da “Filoteia”. Muito bom com os bons. Mas quando o sujeito é um ímpio, o trato é ali! Corresponde ao símbolo lindo que São Bernardo deu aos Templários: traje branco e preto. Branco é o trato com os filhos da luz, e preto, com os filhos das trevas.

Valeria a pena, se tivéssemos recursos, fazer um filme reconstituindo essa cena. Uma atmosfera muito delicada numa igreja com uma imagem de Nossa Senhora, pétalas de flores caindo, uns raios de Sol entrando obliquamente pelo vitral e incidindo de cheio sobre um frade que reza piedosamente. É o Frei Kordecki que começa a recitar a sua prece: “Minha Mãe, esmagai-os!” Levanta-se, passa perto de uma criancinha, agrada-a, dá-lhe um pouco de comida, em seguida vai enfrentar o conde traidor com um olhar de quem discerne os espíritos, e diz: “Não, senhor, não cederei!” Depois volta calmo para o claustro, rezando o Rosário. Isso deixaria a “heresia branca”(2) desnorteada.

Deus parecia ter abandonado…

Como o conde traidor não tivesse meios para conquistar Jasna Gora pelas armas, atacou algumas propriedades do convento, causando-lhes dano e apressou-se em ir ao encontro do General Miller, o qual se deslocava com tropas suecas nas imediações. Acenando-lhe com os tesouros do santuário, conseguiu convencê-lo a atacar Jasna Gora desde logo.

O prior, convocando o Conselho do mosteiro, comunicou aos religiosos a sua decisão de não entregar o santo lugar aos hereges, e de resistir com todos os meios disponíveis. Sua decisão foi unanimemente aprovada.

Vejam como o conde que antes quis se aproximar do convento aconselhando, como “aliado”, a que tomassem cuidado e entregassem a ele a fortaleza, quando viu que os suecos protestantes estavam próximos, não teve outro desejo senão atraí-los para caírem em cima dos tesouros do mosteiro. É a “quinta-coluna”(3) sempre fiel a si própria: dá “bons conselhos”, é amável, é blandiciosa, mas quando chega a hora do perigo atraiçoa e procura vender. Como ele não foi atendido e não pôde trair, incitou os inimigos para atacarem o convento.

Enquanto isso, o Rei João Casimiro refugiava-se no vizinho Principado de Opole, na Silésia, onde trataria de reunir os remanescentes do exército da Polônia. Mas nenhum auxílio podia prestar a Jasna Gora. Muitos nobres, por outro lado, satisfeitos com as promessas de paz e segurança feitas pelos suecos, começavam a voltar para suas propriedades. Mas Stanislau Warazycki, capelão de Cracóvia e primeiro Senador da Coroa, enviava nesse momento provisões e doze canhões, como dote seu, para auxiliar na defesa de Jasna Gora.

É o que se nota em toda parte: aquela vontade da vidinha e de uma certa paz. Quando a pessoa se acostuma a uma vida sem esforço, com facilidade também acredita nos inimigos e não quer ver, mesmo quando outros a advertem, que se trata de uma cilada. Assim, esses nobres poloneses, quando os protestantes acenaram com uma paz, desde que houvesse certa tolerância, imediatamente voltaram para suas propriedades. Quer dizer, entregaram-se totalmente nas fauces do leão.

Por outro lado, esses nobres que deveriam defender a independência da Polônia e, sobretudo, a Religião tinham a obrigação de proteger o Mosteiro de Czestochowa; porém, terminaram abandonando o mosteiro à sua sorte. Houve, entretanto, Stanislau Warazycki, capelão de Cracóvia e primeiro Senador da Coroa, que enviou um pequeno reforço para Jasna Gora. Foi o que lhes deu a Providência. E como disse o superior, os habitantes do mosteiro-fortaleza preferiram resistir até com o sacrifício da própria vida, segundo aquela famosa frase de Judas Macabeu: “É preferível morrer no combate a ver nosso povo perseguido, e profanado o nosso santuário!” (1Mac 3, 59).

Parece um trecho desolador da história, porque se faz o vazio em torno de Czestochowa: o rei foge, a maior parte dos nobres adere aos invasores, apenas um nobre de categoria envia um reforço pequeno, e está criada para Czestochowa uma situação aparentemente sem saída. A impressão principal era de que Deus os tinha abandonado. Na realidade, Ele estava preparando a grande glória da manifestação de Nossa Senhora em Czestochowa.

Precisamente, quando Deus permite que aqueles que querem lutar por Ele sintam-se inteiramente abandonados, na realidade Ele não os abandona. Pelo contrário, promete-lhes implicitamente uma aliança especial. Leva-os ao combate e dá a entender que os ajudará, mas os meios humanos são pequenos. Parece uma catástrofe geral. Entretanto, Deus quer mostrar com isso que é Ele quem salvará a situação.

A hora de solidão era o início da glória

Ao mesmo tempo, Deus prepara para seus defensores uma glória especial. Porque a grande glória de Czestochowa é esta: enquanto o rei foge, os nobres, que são a classe militar por excelência, abandonam a posição de fidelidade para com o reino, para quase todos pactuarem com o inimigo, o clero também não faz coisa alguma – o que o autor da narrativa prudentemente omite, mas se vê, pelos silêncios, o que se passou. Czestochowa, com um punhado de monges, alguns nobres e um pequeno número de plebeus, fica sozinha na resistência. A glória consistiu em ficar só. Exatamente a vitória depois ficará luminosa porque só eles resistiram. Aquela hora de solidão era o início da glória deles.

Assim também quando, por vezes, em nossa história vemos que ficamos inteiramente sós, não devemos nos apavorar. Pensemos que precisamente essa solidão vai manifestar a glória de Nossa Senhora que vencerá em nossa fraqueza. De outro lado – consideração minor, mas que para as horas de depressão pode ter o seu valor psicológico, pelo menos –, devemos lembrar que quem reage e luta a partir de quase nada, quando chega ao auge tem uma glória muito maior.

Chegam informações de que o General Miller, com um exército de três a quatro mil homens e dezenove canhões de grosso calibre, mais alguns bandos de apoio do Conde de Srzeszczwicz, de Waclaw Sadowski e do Príncipe da Saxônia, parte de Wielun em direção a Czestochowa, onde deveria chegar no dia 18. Então, não faltaram conselhos prudentes ao padre prior. Assim, o prior do convento de Wielun, considerando a desproporção das forças militares, aconselhava Frei Kordecki a não oferecer resistência, poupando assim Jasna Gora de danos materiais. Isso teve sua influência nos defensores de caráter mais fraco.

Esses que sitiam são protestantes, mas vêm com um convite de fora de um padre a outro padre, de um superior de convento a outro, incitando também a se entregar. E sempre com a mesma argumentação: “Poupem de danos materiais esse convento tão famoso, histórico, artístico! Padre prior, se esse convento for destruído, mais do que às balas protestantes, ele deverá sua destruição ao senhor. Porque se o senhor não tivesse resistido, os protestantes não o teriam destruído. Na história gloriosa dos superiores, seus antecessores, que tanto construíram, veja que papel o senhor vai fazer. O senhor vai ser, na crônica desse convento, Frei Kordecki, o destruidor. Pense, reze, medite diante de Deus antes de tomar a resolução de expor Jasna Gora, tesouro da Polônia, às bombas dos suecos.” O demônio sussurra à consciência: “É isso mesmo, é imprudência. Já falei…”, etc.

Ora, o mau conselho faz o papel de uma seta incendiada lançada dentro do convento.

Frei Kordecki não contava só com os recursos materiais. Animava a todos a oferecerem a vida em defesa da honra do santo lugar e a depositarem toda a confiança na Virgem Santíssima, que em tão extrema necessidade não lhes faltaria com o auxílio. Pede a todos que assistam à Missa que rezaria diante do altar da imagem de Nossa Senhora de Czestochowa. Ordena que se leve o Santíssimo Sacramento em procissão pelos muros e bastiões. Benze os canhões um por um, os projéteis de chumbo, os de ferro e os barris de pólvora.

O fogo da luta e do combate é inerente à virtude da fortaleza

Admito perfeitamente a possibilidade de que Frei Kordecki venha a ser canonizado. No processo de canonização, a Igreja examina todos os passos da vida do candidato à honra dos altares. Portanto, para canonizá-lo a Igreja chegaria à conclusão de que no ato acima narrado ele manifestou as virtudes teologais – fé, esperança e caridade – e cardeais – prudência, justiça, temperança e fortaleza – em grau heroico.

Pois bem, tal é a deformação produzida pela “heresia branca” na devoção ao longo da História que, hoje em dia, não haveria uma igreja construída em louvor a ele na qual se pudesse ver representada a bênção da pólvora e dos canhões, com os soldados dele armados e ele abençoando solenemente, com as tropas protestantes chegando ao longe para o combate.

Provavelmente encontrariam em sua biografia a afirmação de que, antes ou depois desse episódio do cerco de Jasna Gora, Frei Kordecki deu aulas de Catecismo. Então ficaria “Santo Agostinho Kordecki, padroeiro dos professores de Catecismo”, representado sorrindo, junto a uma criancinha.

É a deformação metódica dos Santos pela “heresia branca” que torna exatamente necessária a leitura de biografias como esta. Para mostrar bem que esse fogo da luta e do combate é inerente à virtude cardeal da fortaleza, sem a qual ninguém é canonizado; e contra a qual se uma pessoa pecar, ou vai para o Purgatório – se o pecado for leve –, ou para o Inferno, se o pecado for grave. Está acabado.

Entrementes, os suecos chegam aos pés de Jasna Gora. São duas horas da tarde. O General Miller envia, por um delegado, uma proposição de paz por escrito, propondo a capitulação pacífica de Jasna Gora para evitar um inútil derramamento de sangue. Também o adversário declarado se finge de clemente.

As tropas inimigas tomavam já posição para o assédio aos muros e estudavam a posição dos canhões da fortaleza.

“Não nos pareceu conveniente responder por escrito a essa carta. – registra Frei Kordecki. Já não era hora de escrever, mas de agir pelas armas. Respondemos-lhes pelas bocas dos canhões.”

A resposta foi tão convincente que, ao anoitecer, Miller teve que pedir uma trégua, e aproveitou para assegurar aos frades que nenhum mal pretendia fazer ao santuário.

Como as tropas suecas houvessem ocupado depósitos de trigo pertencentes ao convento e localizados fora dos muros, seus defensores bombardearam-nos à noite com projéteis incendiários a fim de que não servissem de provisão ao inimigo.

No dia seguinte, Miller ocultou sua artilharia na vizinha aldeia de Czestochowa e daí bombardeou Jasna Gora. Quando os religiosos se deram conta disso, consideraram que a destruição da aldeia nada significaria em comparação com a defesa do santuário de Nossa Senhora; e dirigindo sua artilharia nessa direção, incendiaram as casas de telhados de feno. Surpreendidos, muitos suecos saíram a campo aberto e foram alvejados pelos defensores do mosteiro.

A boca dos canhões falou, não tenho nada a dizer. O comentário está feito por si. Vemos bem a ofensiva tomada por esse homem.

O comandante dos hereges envia nova mensagem pedindo a capitulação, pois Carlos Gustavo lhe ordenara tomar a Fortaleza de Czestochowa. Era noite e como o dia seguinte era domingo e festa de Nossa Senhora marcaram-se várias cerimônias, entre as quais uma procissão com o Santíssimo Sacramento, no interior dos muros. Em vista disso, os suecos tiveram que aguardar até ao meio-dia pela resposta que, afinal, foi negativa.

É uma altaneria extraordinária! Os suecos que esperem. Nós estamos agora adorando o Santíssimo Sacramento durante uma festa de Nossa Senhora, e não vamos dar atenção a protestante. Mais tarde responderemos.         v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26 e 30/6/1972)

 

1) Carlos X Gustavo (*1622 – †1660), da Casa de Palatinado-Zweibrücken. Reinou de 1654 a 1660.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

3) Termo surgido durante a guerra civil espanhola (1936-1939) para se referir aos habitantes de Madri simpatizantes do General Franco, os quais, dentro da cidade, trabalhavam a favor do exército inimigo. Por extensão, a expressão é utilizada para designar quem exerce ação subversiva ou traiçoeira dentro de um grupo, fazendo-se de amigo para favorecer o adversário.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

Ano de lutas

Em diversas ocasiões, ao longo de minha vida, tenho assistido à passagem do ano. Assim, em épocas comuns e tranquilas da História foi-me dado notar a banalidade desse acontecimento. Lembro-me bem das festas de Ano-Novo do período entre “deux guerres”, isto é, entre a Guerra Mundial terminada em 1918 e a que começou em 1939: banais, cheias de chanchada, brincadeira e otimismo idiota.

O modo pelo qual o mundo de hoje transpõe os umbrais que o separam de um novo ano é muito diferente desses remotos festejos a que assisti. Retrocedendo no tempo e singrando o caminho que ficou para trás, encontramos que cada abertura de um ano, na aparência festiva, é acompanhada de uma perspectiva mais trágica. Qual a perspectiva para a qual caminhamos nesta passagem do ano?

Poderíamos dizer que é a passagem da crise para a catástrofe. Em geral, quando se fala de crises de povos e civilizações, trata-se de um processo lento e complexo que se vai acumulando, mas ainda não é a catástrofe. Esta vem quando a crise chega ao seu pleno desenvolvimento e vai derrubar todas as coisas que ela vinha minando.

Há uma diferença, portanto, entre a crise e a catástrofe, como entre a doença muito grave e a morte. As crises podem ter graus de gravidade diversos. Quando a gravidade é suprema, porque conduz a uma meta gravíssima e está a um passo de atingi-la, então estamos nos bordos da catástrofe.

Ao transpormos o limiar deste novo ano, temos a sensação de passar da plena agitação para a catástrofe trágica. Que espécie de catástrofe? É o total evanescer, ou o quase completo apagar-se de tudo aquilo que ainda constitui algo de vivo na Civilização Cristã do Ocidente, devido à crise profunda que mina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, e à que lavra na sociedade temporal.

Por outro lado, nossa Obra está em pleno florescimento e vai se estendendo por toda a Terra de um modo inesperado. Ninguém podia imaginar que tantos lírios nascessem do lodo, durante a noite e sob a tempestade! O que deixa os observadores pasmos é o fato de este lodo parecer propício ao florescimento de lírios tão alvos.

Com efeito, todos os que promoveram o lodo para que nele apenas vivessem os porcos ficam absolutamente desconcertados vendo nascerem nele os lírios, perto dos quais os porcos se sentem mal. Lírios dos quais se poderia imaginar, no alto, a figura heráldica de um leão que deita as garras e ameaça.

É possível que este novo ano seja de combates. Nossa Senhora o sabe. Os estrondos publicitários, nós os evitamos, mas não fugimos diante deles. É o que todo país, cônscio de seus direitos, faz em face do injusto agressor: procura evitar a agressão pelos meios adequados, mas se é impossível sustar a ofensiva, os injustamente agredidos se defendem na estacada de suas fronteiras.

Peçamos, por meio de Nossa Senhora e São José, ao Divino Menino Jesus – que no massacre dos inocentes viu o primeiro sangue dos mártires fazer luzir o purpúreo de sua cor para a glória do Redentor que viera ao mundo – que nos prepare para toda espécie de embates neste novo ano. Lutas, sobretudo, contra nossos próprios defeitos e contra a Revolução, combates terríveis que nos esperam e nos quais devemos ter todo o espírito de fé, toda a fortaleza necessária para continuarmos a progredir, a avançar e a desconcertar o adversário.

Um conselho contém todos os outros: cada vez mais devoção a Nossa Senhora. Espero d’Ela que eu seja infatigável nisso. E que se eu morrer inteiramente lúcido, as minhas últimas palavras ainda sejam de recomendação aos meus filhos espirituais para que sejam sempre mais devotos da Santíssima Virgem. Quem pede e obtém isto cresce em todos os sentidos, vence todas as batalhas.*

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

*-  Cf. Mensagem de Natal, 21/12/1983.