Transmissão de um espírito

Na vida de Santo Eliseu há um aspecto muito alto que é sua sucessão com relação a Santo Elias.

Elias, no momento de abandonar a Terra, passou a Eliseu um manto, simbolizando com este gesto que lhe transmitia seu espírito.

Tendo recebido o espírito de Elias, Eliseu ficou em condições de dirigir a incipiente Ordem do Carmo.

Esta transmissão mostra bem qual é a importância da graça que se chama “um espírito”.

Ao se falar em espírito jesuítico, carmelitano, beneditino, não se faz referência apenas a realidades meramente doutrinárias, mas são graças que se comunicam de pessoa para pessoa, a fim formar as grandes famílias de almas existentes na Igreja Católica. São graças susceptíveis de uma transmissão, e é essa transmissão que constitui propriamente a família de almas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/6/1964)

Santo Eliseu, os meninos e os ursos

Um episódio da vida de Santo Eliseu nos traz importantes ensinamentos a respeito do perfil moral de um verdadeiro católico.

 

Em 14 de junho se comemora a festa de Santo Eliseu, profeta e pai da Ordem do Carmo, sucessor de Santo Elias.

Luta contra a “heresia branca”

Não posso ouvir falar desse Santo sem me lembrar do livrinho onde aprendi História Sagrada, no qual havia uma ilustração a respeito do episódio e da atitude de Santo Eliseu em face de uns tantos meninos. O Santo Profeta já havia recebido o manto de Elias e, certa vez, estava andando e uns meninos começaram a caçoar dele porque era calvo. Tendo o Santo pronunciado uma maldição contra os meninos, vieram uns ursos e os devoraram (cf. 2Rs 2, 23-24). Lembro-me de que, à primeira leitura, fiquei chocado com a ferocidade de Santo Eliseu. Porém, essa impressão passou e esqueci a questão.

Mais tarde, entrei para o colégio e conheci meus colegas. Quando comecei a ver aquela meninada, refleti que Santo Eliseu tinha razão de fazer o que fez… Mas depois pensava: “Seriam aqueles meninos tão canalhas quanto estes? Enfim, pelo menos pode-se conceber que eram. Para estes aqui, ursos!”

Contudo, depois eu cogitava que se alguém mandasse vir os ursos para comerem os meninos, encontraria a oposição daquilo que, mais tarde, chamaria de “heresia branca”(1). Então o Profeta Eliseu começou a ser um advogado no meu debate interno. Em minha primeira grande briga da vida, que foi contra a “heresia branca”, Santo Eliseu era meu defensor. Pelo menos ele amava as coisas direitas como eu amo. E é assim mesmo: atacou uma coisa boa, urso em cima! Se não for isso, não compreendo a Religião Católica. Ora, eu a entendo, graças a Deus. Logo, na concepção da “heresia branca” há qualquer coisa de errado.

De acordo com a “heresia branca”, o “Santo” deve ser uma pessoa sem segundas intenções, sem astúcia. As recomendações de Nosso Senhor de que se deve unir a simplicidade da pomba à astúcia da serpente, para a “heresia branca” não valem nada. Ela pensa apenas na pomba, realizando com isso aquilo de que fala o Profeta Oseias: “…como pomba imbecil e sem inteligência” (cf. Os 7, 11). Ora, os adeptos da “heresia branca” são precisamente pombas imbecis e sem inteligência.

É, portanto, muito formativo sabermos que um grande Santo, como São Vicente de Paula – merecidamente tido como o Santo da caridade –, fundou uma sociedade que atuava na corte de Luís XIV, e que reunia várias figuras importantes do clero e da nobreza, as quais, sem o conhecimento do restante da corte, combinavam atividades para desenvolver na própria corte e na sociedade francesa a influência da verdadeira Religião.

Vigilância em relação aos efeitos do pecado original

Essa minha reminiscência infantil a respeito do Profeta Eliseu nos recorda também o ensinamento, o qual sempre convém lembrar, de que criança também pode ser ruim. Há um mito da criança boazinha, inocente por definição, e uma condescendência humanitária estúpida com relação às crianças.

É preciso abrir os olhos e ver bem: o pecado original vem a partir de pequeno e infecta a criança desde muito cedo, e ela é capaz de ações muito censuráveis. No caso da calvície de Santo Eliseu, é evidente que aqueles meninos tomaram esse pretexto para caçoar de outra coisa, a fim de agredir e debicar dele enquanto homem de Deus. Por causa disso é que foram punidos dessa maneira.

A punição dos inimigos da Igreja é inevitável

Daí tiro uma dedução inesperada, mas verdadeira: se era legítimo que os ursos viessem comer as crianças porque estavam caçoando de um homem de Deus, pergunto se não é legítimo que venham os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima e em muitas outras revelações privadas. Tais castigos não são, exatamente, a vinda dos ursos? Os ursos não estão vindo das estepes para acabar justamente com aqueles que tomam em relação à Religião uma posição errada, transformando-se em inimigos internos ou externos da Igreja?

Então, à força de pensar, chega-se à conclusão de que a punição é inteiramente inevitável. Vem do fundo do Antigo Testamento um episódio a mais para nos convencer disso.

Importância da fidelidade a um espírito transmitido

Há em Santo Eliseu também outro aspecto muito alto que é sua sucessão com relação ao Santo Profeta Elias. Todos se lembram de que Elias, no momento de abandonar a Terra, passou a Eliseu um manto e, com este, também seu espírito. Assumido então pelo espírito de Elias, Eliseu ficou em condições de dirigir a nascente Ordem do Carmo.

Essa transmissão do espírito mostra bem qual é a importância da graça que se chama um “espírito”. Ao falarmos em espírito jesuítico, espírito carmelitano, espírito beneditino, tomadas essas palavras em seu bom e verdadeiro sentido, elas não indicam apenas noções doutrinárias, mas são graças que se comunicam depois, de pessoa a pessoa, para formar as grandes famílias de almas existentes na Igreja Católica. Portanto, graças susceptíveis de uma transmissão de uma pessoa para outra, e é essa transmissão que constitui propriamente a família de almas.

Então, devemos pedir a Nossa Senhora que nos ponha debaixo do mesmo manto e faça com que, sob esse manto, todos nós recebamos o mesmo espírito, e o nosso Movimento seja sempre uno, com a fidelidade ao espírito que tem. A respeito dessa fidelidade e dessa unidade é preciso que não tenhamos a menor dúvida. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/6/1964)

 

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

 

O Pão dos fortes

A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Na procissão de “Corpus Christi”, devemos querer glorificá-Lo e pedir que esse Pão comunique a sua força a todos, para obstarem a ação do demônio. Como seria bonito que, de trecho em trecho, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

 

A Solenidade de “Corpus Christi” é uma festa litúrgica instituída pela Igreja para comemorar, homenagear a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. Daí o nome “Corpus Christi”.

Reparação pelas blasfêmias proferidas por protestantes

Essa festa foi instituída pelo Papa Urbano IV, no século XIII, e teve um grande desenvolvimento no período da expansão protestante, como réplica à contestação feita por eles à afirmação de que Nosso Senhor está realmente presente na Sagrada Eucaristia, e com o intuito de estimular os católicos a oferecer uma reparação a Nosso Senhor por causa da blasfêmia que aquela heresia propugnava a esse respeito.

Com o curso dos tempos, e se tornando menos ativa a polêmica entre católicos e protestantes, essa nota polêmica da festa também diminuiu de carga e ela passou a ter como tônica a importância da devoção eucarística na vida espiritual dos fiéis. Cada vez mais a atenção dos católicos, no período que corresponde à História moderna e depois à História contemporânea, foi se concentrando nessa maravilha do amor de Nosso Senhor para com os homens, que é a sua presença real no Santíssimo Sacramento. No século XIX, a Igreja instituiu a Congregação do Santíssimo Sacramento, os sacramentinos, fundada por São Pedro Julião Eymard, especialmente para honrar continuamente o Santíssimo Sacramento na sua adoração perpétua.

São Pio X – já no século XX, portanto – instituiu a Comunhão para as crianças e deu forte impulso à Comunhão frequente, até mesmo quotidiana, para as pessoas que pudessem receber a Sagrada Eucaristia. Os congressos eucarísticos se espalharam por toda a Terra e, com essa irradiação da devoção eucarística, a festa de “Corpus Christi” tomou realce. É a própria glorificação de Nosso Senhor sacramentado.

Esta festa se celebra por meio de uma procissão nas ruas.

Compreendo que se possa dizer ao homem, premido por problemas pessoais, psicológicos e de toda ordem, vendo o mundo atormentado naufragando nas crises contemporâneas, que o mais importante é a adoração ao Santíssimo Sacramento. Entendo até que esse homem tire disso um proveito e invoque a Sagrada Eucaristia para não naufragar. A atenção dele está fortemente chamada para a sua condição de náufrago. E que, portanto, é preciso estabelecer uma relação entre sua situação e essa devoção. Do contrário, todas as conversas sobre a festa correm o risco de deixar o homem sem recursos, sem uma atração devida para um mistério tão augusto.

Tudo quanto dissemos a respeito dessa festa é perfeitamente verdadeiro. Entretanto, é como se, por exemplo, me mostrassem uma fotografia de uma árvore com tronco pujante, forte, mas na qual os galhos não aparecem. Aquilo é uma árvore verdadeira, forte; porém sem os galhos, só o tronco não dá ideia da árvore.

Bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento

O que ficou dito é o tronco – realmente saboroso, venerável, perfumado – do assunto, mas esse tronco impõe uma irradiação para toda uma galharia.

Em primeiro lugar, a polêmica entre protestantes e católicos, tendo-se tornado menos acre, era o caso de perguntar se nisso não entrou moleza, tibieza da parte dos católicos, e se não se deveria tomar uma atitude que tornasse mais acerba essa polêmica. A festa de “Corpus Christi” até seria uma ocasião muito boa para isso. São só os protestantes? Naquele tempo, eles estavam no centro do panorama, porém, com o passar dos anos, toda espécie de heresias, de abominações se multiplicaram pela Terra como fruto do protestantismo. Este gerou seus filhos e com eles encheu a Terra. Assim, essa procissão não deveria ter um caráter contrário a todos esses filhos do protestantismo? Portanto, não deveria ser ainda mais polêmica?

Santa Genoveva, com o Santíssimo Sacramento, fez recuar os bárbaros que avançavam sobre Paris. Os bárbaros de nossos dias avançam e nós não podemos conceber essa festa como glorificação daquilo que é nossa arma para fazermos recuar os bandidos?

Eu sou entusiasta dessa festa e de tudo quanto foi dito a seu respeito, mas me sinto triste por ela ter sido privada desses complementos indispensáveis.

Para combater é preciso ter força. A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Esse Pão dos fortes nós vamos levar pelas ruas para glorificá-Lo, fazendo um pedido para que Ele comunique a sua força a todos quantos se encontram na rua e para obstarem a ação do demônio.

Que coisa linda acrescentar uma intenção exorcística na bênção do Santíssimo Sacramento, dada no final da procissão! Como seria bonito que, de distâncias em distâncias, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

Por outro lado, é verdade que durante todo esse tempo a devoção ao Santíssimo Sacramento se desenvolveu muito. Mas não foi só ela. Cresceu muito também a devoção a Nossa Senhora. Não se deveria invocar muito mais a Santíssima Virgem ao longo das procissões, com cânticos louvando-A enquanto modelo da adoradora do Santíssimo Sacramento? Ela foi o tabernáculo vivo que abrigou Nosso Senhor até seu nascimento e que, depois da primeira Comunhão d’Ela, conteve-O até o momento de Ela morrer. Tudo isso precisa ser lembrado e é por meio d’Ela que devemos dirigir nossas preces ao Santíssimo Sacramento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1982)

Encantos da ordem temporal

A sociedade temporal é o ambiente próprio ao homem, proporcional à sua natureza e estatura, à qual ele pertence e constitui o tema comum de suas cogitações. Contudo, a esse homem posto no âmbito temporal, por uma misericórdia insondável Deus concedeu a riqueza de alma que o torna capaz de, a partir de observações do seu dia-a-dia, elevar-se à ordem espiritual que ilumina e empresta sentido à sua existência neste mundo.

Desse modo, continuamente, tudo que nos cerca na civilização temporal, quando bem ordenado, é para nós imagem de Deus. E se as aceitamos como tais, conformamos nossa alma ao Criador, nos deixamos influenciar beneficamente pelo sobrenatural, somos conduzidos a tomar uma posição religiosa diante dos valores temporais, a relacioná-los com os dados recebidos no catecismo, com o que aprendemos de doutrina católica, etc.

Assim, nossa missão consiste em termos um autêntico enlevo pela ordem temporal nas suas variadas facetas, enquanto colocando em movimento os mais altos princípios da vida de pensamento de um homem e, pois, da vida espiritual. Donde, então, haver no âmbito terreno uma beleza de ser, um esplendor de relações e de ordenação que devemos aprender a contemplar.

Vivendo na ordem temporal, nela não estamos postos apenas nem sobretudo para fazer, produzir ou ganhar, mas para nos portarmos diante da realidade que nos cerca como o Evangelho dizia de Nossa Senhora: guardando todas as coisas e as conferindo em nosso coração. “No coração”, isto é, no pensamento, na mente.

Compreenderam-no bem nossos maiores, aqueles que edificaram séculos de civilização cristã. Por isso mesmo, ainda hoje acariciam nossos olhos e corações tantos e tão encantadores aspectos de antigas cidades do Velho Continente. Heranças de épocas em que essas verdades se achavam mais vincadas no espírito humano. De tempos em que, por exemplo, a produção econômica e comercial ainda não estava envolvida pelas influências materialistas contemporâneas, e se fazia num ambiente de calma, de pensamento e de fino gosto. Questão de mentalidade: segundo a concepção espiritualista, o melhor modo de agir humano se faz com a mente, e por isto a produção econômica dá o melhor de si, como qualidade e até como quantidade, quando feita na calma sem ócio e no recolhimento meditativo…(1)

Quer dizer, se soubermos cultivar, antes de tudo, esse lado contemplativo, seremos capazes de elaborar coisas belas e até belíssimas, como seremos capazes de nos elevar facilmente do campo temporal para o espiritual.

Houve um Rei de França que, tocado pela excelência e beleza do trabalho realizado pelos vidraceiros da Lorena, outorgou-lhes a condição de gentis-homens. De maneira que estes mantinham sua vida operária, semeada de pensamentos nobiliárquicos que, vez por outra, transpunham seu padrão quotidiano para um estilo superior. Eram artesãos, imersos na faina manual com uma pitada de nobreza posta como minúscula coroa sobre a cabeça.

Analogamente, esta seria a condição do homem católico leigo: elemento da sociedade temporal, mas dignificado como gentil-homem no Reino de Deus, na sociedade espiritual, porque foi batizado e traz emoldurada a fronte por um diadema que é sua condição de membro da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Será um vidraceiro, sim, mas com quanto desembaraço esse vidraceiro se movimenta na corte do Rei e se comporta como fidalgo, pois tem a alma posta no melhor e no mais alto. 

 

1) Cf. Catolicismo, agosto de 1958

Imaculado Coração de Maria: lições de santidade Imaculado Coração de Maria: lições de santidade

Refletindo a respeito de uma piedosa invocação da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, Dr. Plinio não se prende aos esquemas devotos tradicionais, mas tira conclusões inesperadas a respeito do materialismo que pode nos escravizar…

 

Como em geral acontece com as ladainhas compostas ao longo dos tempos pela piedade católica, as jaculatórias da Ladainha do Imaculado Coração de Maria sugerem, cada uma, desdobramentos e considerações que muito enriquecem nossa vida espiritual e nossa devoção à Santíssima Virgem.

Procuremos analisar, por exemplo, a invocação “Cor Mariae, in quo Jesus sibi bene complacuit”, que em português poderíamos traduzir assim: Coração de Maria, no qual o Coração de Jesus bem se compraz.

Plenitude de satisfação

Devemos começar por observar que este “bem” salienta a ideia do inteiro e perfeito comprazimento de que nos fala a jaculatória. Ou seja, o Coração de Maria possui uma tal excelência que, tanto quanto é possível à natureza criada, nada lhe falta, e por isso nele Nosso Senhor encontra uma satisfação completa, que não conhece névoa, que não tem limites nem máculas. Excetuando o fato de que o contentamento infinito de Jesus é e só pode ser com o próprio Deus, em tudo o mais Ele acha total alegria no coração e na pessoa de sua Mãe Santíssima.

Quer dizer, Nosso Senhor fita a Santíssima Virgem, olha-A, e ao vê-La, ao contemplá-La, ao analisá-La, experimenta o maior dos prazeres, um deleite indizível, que sobrepuja todas as outras delícias que Lhe proporciona a consideração de suas demais criaturas.

Não poderia ser diferente, em se tratando d’Aquela que foi escolhida, desde toda a eternidade, para engendrar em suas entranhas virginais o Filho e Deus; d’Aquela, portanto, em que tudo haveria de ser absolutamente puro e perfeitamente magnífico. Em todos os momentos de sua vida terrena, Ela não deixou de crescer em santidade, de um modo inimaginável. Cada graça que Deus lhe concedeu para se adiantar na virtude era correspondida com tal excelência que todo o progresso feito por Ela é insondável para a mente humana.

Assim, em todos os instantes da existência de Nossa Senhora neste mundo, Jesus teve com Ela um contentamento completo.

Mesmo nas ocasiões mais difíceis como, por exemplo, quando Ela se viu chamada a consentir na morte de seu Divino Filho, e através de uma anuência inteira, heroica, da qual não sobrasse nenhum resíduo, mesmo em situações como essa o procedimento de Maria foi perfeito, no sentido mais exato da palavra. Porque Ela era, enquanto mera criatura, absolutamente exímia. E, como reza a Ladainha, Nosso Senhor encontrou n’Ela a sua complacência.

Uma lição da sabedoria divina

Do fato desse comprazimento podemos tirar uma bela lição que Deus dá aos homens.

Com efeito, criou Ele magnificências materiais extraordinárias. Quantos mistérios haverá por todas as galáxias do universo? E quando nos detemos na análise dos micro organismos, dos seres pequenos, quantas novidades imensas se descobrem ao nosso maravilhamento! Todo esse fabuloso conjunto, incluindo os homens e os Anjos, constitui para Deus o objeto de uma eterna contemplação.

Ora, tendo Ele tanto a apreciar, todavia coloca acima de tudo, como fonte do supremo gáudio que pode tirar de suas criaturas, a consideração de Nossa Senhora. Ela que, enquanto ser criado, não é o mais alto pois na ordem da natureza o homem vem abaixo do espírito angélico -, porém, do ponto de vista graça, virtude e santidade, não só está acima de todos os Anjos, como é deles Rainha. É essa incomparável santidade, portanto, que Deus se compraz em considerar, e em auferir dela uma especial e completa felicidade.

Qual a lição que daí devemos colher?

É um ensinamento que combate o nosso fundamental materialismo. Infelizmente, a grande maioria dos homens está imbuída da ideia de que o verdadeiro prazer nesta vida consiste na posse de bens materiais, de qualquer natureza que seja: dinheiro, saúde e uma série de outras coisas que estão fora das vias da verdadeira felicidade do homem nesta terra.

Com efeito, sem engano podemos dizer que, nesta vida, encontra a felicidade autêntica quem é capaz de seguir o exemplo de Deus e fazer a sua alegria da consideração das outras almas e da virtude que nelas exista. O homem que passa pelo mundo procurando a virtude e a santidade para admirá-las, amá-las e servi-las, onde ele as encontra, aí se detém e põe seu prazer e seu júbilo. De maneira tal que ele tenha mais satisfação em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que no local mais magnífico em meio a pecadores.

Por quê? Porque o santo representa um particular reflexo, uma transparente manifestação de Deus. A alma de um santo possui uma perfeição que nenhuma beleza criada tem, e, por causa disso, aquele que sabe procurar os verdadeiros valores da vida, vai atrás da santidade, da perfeição moral dos seus semelhantes.

E quando a encontra, ele dá graças a Deus, eleva sua alma a Nossa Senhora e agradece também a Ela, porque é pelo seu maternal auxílio e intercessão que aquela santidade existe numa alma, e foi por meio d’Ela que ele, homem humilde e admirativo, teve a alegria e a honra de encontrar essa alma virtuosa. Ele teve a glória de experimentar um antegozo do céu, que é o conhecer, nesta vida, um verdadeiro santo.

Sigamos o exemplo de Nosso Senhor

Tratemos, então, de imitar a Deus, que se compraz na alma perfeitíssima de Maria.

Devemos procurar, em nossa existência terrena, as almas honestas, conhecê-las, amá-las e saber discernir nelas o esplendor do bem. Devemos nos alegrar com essa bondade, até mesmo comparando-a e contrastando-a com o que há de mal em torno dela. Devemos ter genuíno comprazimento ao ver que Nosso Senhor recompensa a virtude dessas almas que Lhe são tão diletas, assim como importa que compreendamos e aceitemos a reprovação que Ele, em sua infinita justiça, reserva à maldade impenitente. É o Deus três vezes santo, absolutamente puro e superior, que condena o que é errado, porque não é conforme a Ele.

Quantos ensinamentos a se tirar de apenas uma das mencionadas invocações! Essa é a beleza inexcedível de tudo o que é de Deus, é a insondável formosura de Nossa Senhora, é o maravilhoso tesouro dos princípios da doutrina católica!

Embora muito houvesse ainda por se aprender com as preciosas verdades contidas nessa jaculatória, creio não poder deixar de ressaltar o seguinte e importante aspecto: o enlevo de Jesus em relação à sua Mãe Santíssima, infinitamente inferior a Ele e por Ele amada com amor inexprimível, mostra-nos bem como devemos procurar ver a santidade até naqueles que são inferiores a nós. Amar essa perfeição, enlevar-se com ela, é, mais uma vez, imitar o exemplo de Deus olhando para Nossa Senhora.

E no fim dessas breves considerações, só nos resta elevarmos uma prece filial e confiante ao objeto da inteira complacência de Jesus:

“Ó Coração Imaculado de Maria, fazei o meu coração sem mancha, cheio de fé, de força, de heroísmo e santidade, como o vosso!”

Maravilhas da presença eucarística

Em 1164, enquanto o Papa Urbano VIII residia em Orvieto, produziu-se não longe dali, na cidade de Bolsena, retumbante milagre: um sacerdote tentado por dúvidas sobre a presença real de Nosso Senhor na Eucaristia celebrava Missa, quando, no momento da Consagração, brotou sangue da Hóstia, molhando os corporais e a pedra do altar. O Santo Padre fez trazer os corporais a Orvieto, e decidiu estender à Igreja universal a Festa de “Corpus Christi”, em honra do Corpo de Nosso Senhor na Eucaristia . Foi por essa ocasião que São Tomás de Aquino compôs o belo ofício da Festa com o hino “Pange Lingua” e a seqüência “Lauda Sion”.

No dia 15 deste mês recordamos, uma vez mais, essa verdade de Fé da presença real de Jesus Cristo sob as aparências do pão e do vinho. Presença que perdura nas espécies eucarísticas, ao alcance  de todos os fiéis nos sacrários do mundo inteiro, e à qual era Dr. Plinio particularmente sensível. Certa feita, a um pequeno círculo de discípulos seus, comentava:

“Imaginemo-nos surpreendidos pela notícia de que Nosso Senhor Jesus Cristo vem aparecendo, todos os dias, no alto de uma colina nos arredores de São Paulo. Se assim é, interrompemos de imediato nossos afazeres e nos dirigimos a esse local bendito, pois não há outra atitude a tomar. Onde está Ele, lá estaremos nós.

“Ora, quantas e quantas vezes Nosso Senhor se acha imensamente mais perto! A dois passos, na capela de nossa sede, realmente presente nas espécies eucarísticas conservadas no sacrário! Tão perto, e não raro tão pouco visitado. Ao vermos uma capela com o Santíssimo, quase vazia, a pergunta que nos contrista o coração é esta: não poderia ter mais pessoas junto d’Ele, a todo momento? Pois não existe lugar onde esteja Jesus Eucarístico, do qual se possa dizer tão frequentado quanto seria razoável.

“Na verdade, importa haver almas imbuídas de tal sofreguidão eucarística que, sendo-lhes possível entrar um instante na capela, adorar o Santíssimo e sair, não o deixassem de fazer; ou que, ao passarem perto da capela, não deixassem de abrir a porta e fazer uma genuflexão do lado de fora; ou que, ao menos, quando fossem se deitar no fim do dia, pensassem: Nosso Senhor está dormindo nesta casa. Que alegria! Almas que sofressem, não de uma escrupulosa obsessão eucarística, mas de uma fome eucarística, um ardente desejo de estar aos pés do tabernáculo, adorando Jesus Sacramentado e com Ele convivendo, um minuto que seja.

Todos somos convidados a ter essa fome eucarística. Já nos terá acontecido: entramos na capela meio estabanados, damos dois  passos e, de súbito, nos colhe a profunda sensação. . . Alguém está aqui! Um silêncio especial nos envolve, circunda, penetra em nossa alma .  Olhamos e não vemos senão as paredes, o sacrário e os motivos eucarísticos neste esculpidos ou pintados. Dir-se-ia não haver mais nada. Porém…

“Estejamos certos: o que nesses momentos sentimos não é fantasia, imaginação ou associação de imagens em virtude de outras emoções de natureza semelhante, experimentadas em outras ocasiões. Não. Trata-se de um agir da graça. Algo que, acima de todas as capacidades de intelecção se faz sentir à nossa alma, de maneira tal que compreendemos ter Nosso Senhor nos dito uma série de coisas superiores a toda palavra! É a sua voz divina a ressoar em nossos corações. Deveríamos, pois, saber nos aproximar de Nosso Senhor Sacramentado, contentes, e em silêncio: Falai, Senhor, porque vosso servo Vos escuta.

“Tudo isso é imensamente sutil, insondavelmente belo, e constitui uma realidade que é um tesouro, uma estrada na vida de piedade aberta para nós na Primeira Comunhão. A todos, no dia em  que inauguramos nosso convívio com Jesus Eucarístico, ofereceu-nos Ele essa palavra, essa ação. Por isso mesmo, ao me deitar à noite, sempre que olho para a lembrança de minha Primeira Comunhão sobre o criado-mudo, lembro-me daquelas graças então recebidas . E novamente me encanto. . .”

Plinio Corrêa de Oliveira

O PODER DA FÉ E DA DEVOÇÃO

Exposta aos luminosos ósculos do sol, envolta nas sombras de uma nublada atmosfera, ou emergindo numa certa penumbra prateada romana (que é preciso conhecer para compreender toda a sua beleza), a grande cúpula da Basílica de São Pedro se destaca no cenário da Cidade Eterna. No alto, uma espécie de pequeno mirante se adelgaça até se cobrir de uma esfera dourada, tendo por arremate o símbolo de nossa Redenção. É a glorificação festiva da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O “Cupolone” (assim a chamam em italiano) é como que separado em gomos por largas estrias de pedra, todas elas de uma simetria perfeita, cobertas de uma camada azulada, tendente ao prateado e meio propensa a refletir o céu.

Imenso, sob ele se poderia construir um edifício com várias dezenas de andares. Tal é o tamanho interno da Igreja de São Pedro.

À esquerda e à direita da grande cúpula erguem-se duas menores, na aparência sem muita significação. Entretanto, quando queremos compreender a razão de ser de algo ou de alguém, não  devemos considerar apenas a impressão que causa por sua atuação e presença. Devemos igualmente imaginar como seriam as coisas se ele estivesse ausente ou se não existisse. Essa é a pergunta  que nos importa fazer, diante dessas duas cúpulas pequenas, diminutas imitações do “Cupolone”. Poderiam alegar que a função estética delas não passa de mero enfeite. Eu digo: são enfeites, mas por que possuem essa capacidade de adornar?

Imaginemos que essas cúpulas menores não existissem. Teríamos logo a impressão de que o “Cupolone” esmaga a igreja. Portanto, para a ótica humana, elas como que suportam psicologicamente o  peso da cúpula gigantesca, e ajudam a tornar leve algo que, sem elas, tornar-se-ia por demais pesado.

***

Abaixo da grande cúpula, surge o frontispício da Basílica, assinalado por vigorosas colunas. Nele encontra-se a “loggia”, isto é, o balcão de onde os papas costumam abençoar o povo reunido na Praça de São Pedro. Ato que se reveste de brilho e emoção particulares quando se dá logo após a eleição do Sumo Pontífice. Segundo a sapiencial tradição da Igreja, o Conclave se realiza no palácio o Vaticano, a portas fechadas. Os fiéis, conhecendo a hora em que os Cardeais se reúnem para as votações, dirigem-se para a praça e ali permanecem à espera do resultado. De uma pequena chaminé evola-se uma fumaça preta, quando o novo Papa ainda não foi eleito. O povo então se dispersa, desapontado e ansioso. Quando sai branca, uma estrondosa ovação ressoa pelos  ares: a Igreja já não está mais órfã.

Após os rituais que se seguem a uma eleição pontifícia — como a escolha do nome adotado pelo sucessor de Pedro e a obediência que lhe é prestada pelos cardeais presentes —, o Papa se dirige para esse balcão. As portas se abrem ante o entusiasmo indescritível do povo: este conhecer á, finalmente, a fisionomia do atual Pai da Cristandade. Os carrilhões da Basílica começam a tocar,  acompanhados pouco a pouco pelos sinos de todas as igrejas de Roma. É a glória de São Pedro que se faz ouvir em toda a Cidade Eterna. Então o Sumo Pontífice dá a primeira bênção “urbi et orbi” —  para Roma e para o mundo inteiro.

***

A “loggia” e o frontispício triangular, testemunhas de toda essa glória do Papado, olham para a praça, no meio da qual se levanta um enorme obelisco. É um tipo de pedra coberta de inscrições egípcias, que se encontrava originariamente na terra dos Faraós. Em monumentos semelhantes costumavam esses soberanos deixar gravados os fatos marcantes de seu reinado e outros acontecimentos do gênero.

No alto do obelisco foi colocada uma cruz, que nos faz recordar, emocionados, o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis”— enquanto o mundo todo gira, a Cruz permanece de pé.

É muito interessante observar que a arquitetura da Praça de São Pedro foi concebida de maneira a que ela representasse a forma da cabeça de uma chave, que toma contornos a partir das colunatas de Berninni, dispostas em semi-círculo. Habitualmente, no dia de “Corpus Christi”, o Papa realiza aí a procissão com o Santíssimo Sacramento, acompanhada por uma multidão de fiéis, sob o dobrar dos sinos da Basílica e das igrejas romanas.

O corpo da chave é desenhado por uma avenida de linha retíssima — a Via della Conciliazione — que chega até as margens do rio Tibre. Assim ficam lembradas as chaves de São Pedro, a dos Céus e a  da Terra, quer dizer, o mando do reino celestial e, indiretamente, do terreno.

***

Entre todos os eloquentes aspectos que enriquecem a Basílica do Vaticano, entre a fabulosa pluralidade das cores de seus mármores, o reluzimento de seus ouros e a beleza extraordinária de suas pratas, um objeto sobressai por seu maravilhoso simbolismo: é a famosa imagem de bronze de São Pedro. Antiquíssima, datada ainda do tempo anterior à Idade Média, e cujos pés os católicos do  undo inteiro vêm oscular. De tantos beijos depositados ao longo dos séculos, ficaram os dedos do pé completamente sem saliência. É o poder do amor e da dedicação sobre o poder do bronze. Os lábios dos fiéis, penetrados pela doçura da Fé, corroeram a dureza do metal…

Revista Dr Plinio 35 (Junho de 2001)

Huysmans Apelo à conversão

Ainda muito moço, Dr. Plinio despontara como notável orientador da juventude católica. Abordando com coragem temas às vezes espinhosos e polêmicos, ele utilizava as páginas do “Legionário” para proporcionar uma formação adequada aos jovens. Exemplo disso são os dois artigos publicados em janeiro de 1932, nos quais comenta as obras de um grande escritor católico francês.

 

A literatura de nossos dias, acorrentada à sensualidade, está em franca crise de assuntos. Esta crise é, mesmo, o mais sério problema com que têm de lutar todos os literatos hodiernos. O cinema, o romance, a novela, a poesia, tudo enfim, está assolado por uma tremenda crise de temas. Os enredos giram eternamente em torno de casos amorosos.

Ora, os aspectos amorosos da vida, por  mais que nos modernizemos, só podem dar lugar a quatro combinações: ou são duas pessoas casadas, que abandonam seus respectivos lares para constituírem juntas um terceiro sobre os escombros da felicidade de seus primeiros cônjuges; ou é uma pessoa casada, que se apaixona por uma solteira, culminando a paixão numa ruptura dos laços conjugais; ou a ruptura não se dá,  mas morre oportunamente o cônjuge embaraçoso, de sorte que o viúvo ou viúva pode, mal fechado o caixão do defunto, atirar-se nos braços da outra; ou são duas pessoas solteiras que se tributam  mutuamente um amor combatido barbaramente pelo “sogro” implacável.

Estes casos comportam evidentemente algumas variantes. Ou o crime corta o nó górdio de uma vida supérflua, que ameaçava durar demais; ou o adultério brutal põe termo a uma situação incômoda; ou o cônjuge supérfluo se suicida discretamente, para deixar o lugar a seu sucessor mais feliz. Evidentemente, porém, estas combinações também são limitadas e se esgotam ao cabo de  algum tempo. De tal sorte que, quem se entrega assiduamente à leitura de romance durante cinco anos, fica conhecedor de todo o estoque amoroso de nossas livrarias. E, com um pouco de  argúcia, poderá ver, logo ao ler as primeiras páginas, qual o desfecho da história, desfecho este que depende das inclinações do autor, e dos sentimentos e posição que atribui aos personagens do  romance.

Um autor que combata este círculo vicioso, para ingressar em um campo novo, é, evidentemente, um Cristóvão Colombo do espírito, que abre para a inteligência continentes novos, mundos inexplorados. É o que se dá com Huysmans, um dos mais estranhos e admiráveis escritores do século passado (século XIX). Seu mérito foi o de ter sabido confeccionar as mais espantosas obras literárias que se possam imaginar, abstraindo totalmente de complicações amorosas.

J. K. Huysmans, literato naturalista, residente em Paris, encontrou-se a certa altura de sua vida mergulhado em tremenda crise intelectual. Suficientemente lúcido para abominar seu século, mas  destituído de qualquer amparo sentimental em alguma amizade sólida ou afeição de família profunda, Huysmans, ao mesmo tempo que se isolava cada vez mais do convívio de todos, fazia dentro de si um vácuo tremendo.

Tendo abandonado todos os seus amigos, destruído todas as suas antigas ilusões, perdido todos os seus parentes, vivia isolado em Paris, em pequeno quarto, onde passava dias infindáveis em companhia de um gato, a maldizer indefinidamente o século XIX. Foi então que conheceu um pseudo-médico, des Hermies, fidalgo “déclassé”, que frequentava rodas espíritas, de mágicos, astrólogos, etc. no “bas fonds” canceroso que existe em Paris. A princípio, seduziu-o no amigo o cunho original e misterioso de sua vida. Esta sedução se acentuava à medida em que ia privando com as pessoas mais chegadas a des Hermies, todas elas atacadas de um misticismo acatólico e doentio, que exalava os miasmas da mais absoluta putrefação espiritual. Levado por suas inclinações de  diletante, Huysmans não recuou à vista de tal ambiente.

Sobreveio-lhe, nessa ocasião, em condições misteriosas, um convite para que assistisse a uma “missa negra”, celebrada em honra do demônio por um sacerdote privado de ordens sacras. Excitada  fortemente sua curiosidade, aceita o convite e é conduzido a um lugar estranho, em que se amontoam mulheres e homens carregados com o peso de todos os vícios e todas as baixezas. Sobre o  altar, um Cristo rindo, num “rictus” ignóbil, ultrajante.

Toca uma sineta, entra o sacerdote. Começa a missa, entre contorções dos presentes. Quando chega no momento da consagração, o sacerdote pronuncia as palavras sacramentais banhado em suor, a voz repassada de ódio, o olhar carregado de estranhos eflúvios diabólicos. Distribui a Sagrada Eucaristia aos presentes, que a profanam abominavelmente.

Gargalhadas satânicas, blasfêmias tremendas, insultos implacáveis, nada se poupa ao Corpo adorável de Nosso Senhor.

Manifestações evidentemente diabólicas irrompem por todos os lados. É o triunfo de Satanás, glorificado pelos assistentes num delírio de abjeção e de infâmia. Enojado, ferido nos poucos sentimentos que ainda lhe restavam, Huysmans se esgueira pela porta e foge espavorido. Desde então, uma grande preocupação assaltou sua inteligência e acabou trazendo-o submisso aos pés da Igreja. Vira o demônio, vira o espírito das trevas urdindo contra a Sagrada Eucaristia as mais tremendas infâmias.

Ora, — refletia ele —, se o demônio, de cuja existência já não posso duvidar, odeia a hóstia consagrada pelos sacerdotes católicos, é porque realmente ela é o Corpo de Cristo. Logo, a Igreja Católica é verdadeira.

Daí uma conversão dolorosa, penosa, que se vai arrastando através de inúmeras lutas, de combates sem fim, travados contra a carne rebelde às injunções da vontade, e o espírito rebelde às exigências da Fé. Quando entra em uma igreja, extasia-se diante das belezas da liturgia católica. Sua alma se eleva até os pés de Deus, ao som do órgão, no desenrolar grave e compassado da  música sacra. Poucas almas sentiram como a sua as belezas do cantochão. Sua descrição do “De Profundis”, do “Miserere” e da Missa de defuntos são as mais belas páginas que tenha lido em minha vida.

Frequentando assiduamente as igrejas de Paris, a todas surpreende nas suas horas de mais intensa sentimentalidade.

Ora, é Notre Dame de Paris, detendo nas suas ogivas seculares uns restos de claridade coada através dos vitrais, enquanto some no céu, lentamente, tristemente, um sol crepuscular. Ora é uma igreja operária, na qual observa detidamente as mulheres paupérrimas, os mendigos, os operários exaustos, os miseráveis dos arrabaldes de Paris, que vêm dirigir a Deus, depois de um dia de intenso trabalho, preces infindáveis, enquanto, de dentro do tabernáculo, o Senhor invisível os consola repetindo mudamente o Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que choram, os que sofrem, os que têm sede de justiça”…

No entanto, Huysmans ainda não ousou aproximar-se dos sacramentos. Recai no pecado com tal facilidade que nem se atreve a aproximar-se do tremendo tribunal da Penitência.

Resolve, então, ir fazer um retiro numa Trapa. Começa aí a parte culminante de seu segundo livro, “En Route” (“A caminho”), de que me ocuparei no próximo artigo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 93, 31-1-32. O segundo artigo da série será reproduzido no próximo número.)

Revista Dr Plinio 39 (Junho 2001)

Visita a Santa Isabel

Episódio sumamente rico em importantes aplicações para nossa vida espiritual, a Visitação de Nossa Senhora nos mostra como Santa Isabel, prima da futura Mãe de Deus, teve um conhecimento imediato de que o Messias se achava ali presente, encarnado no seio puríssimo de Maria. Ela o soube, não só por uma inspiração da graça, mas também por uma espécie de sentimento, de percepção do divino, excelentes, que a fizeram discernir a presença de Jesus.

Essa percepção, esse sentimento, cada católico deveria ter — em grau proporcionado — para amar todas as coisas que sejam segundo Deus, e para rejeitar aquelas que Lhe são contrárias.

Desassombro, coragem e galhardia

Ao contrário do que pretendem alguns espíritos exageradamente pacifistas, segundo os quais qualquer forma de perigo deve ser afastada da vida, o ser humano por sua natureza, a mais elevada e nobre das criaturas tem um certo gosto do risco. Essa afeição é um dos elementos que trazem felicidade para a existência. E, não raras vezes, afastar de alguém o risco pode causar-lhe grande prejuízo.

Este princípio torna-se mais compreensível e aceitável quando se considera, por exemplo, as touradas ibéricas. Especialmente aquelas em que o toureiro se lança a cavalo na arena.

É impossível não sentir a impressão de risco que transmite a marcha do cavaleiro e de sua montaria diante do perigo. Nota-se o prazer, uma espécie de alegria, de euforia mesmo, em se atirarem naquela situação desafiadora. E parece que o risco produz, psicologicamente, no cavalo e no cavaleiro, como um arejamento fresco e agradável. E que espetáculo! Cavalgar dentro da aventura e do imprevisto; improvisar as manobras que devem ser executadas; avançar, recuar, atacar, defender… tudo realizado de acordo com uma certa regra interior, que faz exatamente o esplendor da tourada!

Em geral, o cavalo corre de modo extraordinário, com um passo lindo e audacioso. Dir-se-ia não é assim, pois trata-se de puro instinto que o animal possui uma noção raciocinada do que se está passando, e acha uma verdadeira beleza jogar-se para frente e raspar no perigo. Tem-se a impressão de um bem-estar do cavalo, no momento em que o touro avança, quase o toca, e ele se esquiva com donaire, como se dissesse: “Touro, tu não és senão touro; eu sou cavalo. Sou elegância, força e garbo. Você é massa bruta! E por causa disso, posso raspar-me em você, posso até permitir que seu chifre me risque, e eu ter a alegria de roçar pelo perigo e sair vitorioso!”

Curiosamente, essas reações do cavalo lembram certas atitudes do espírito humano colocado diante do perigo, em várias circunstâncias do quotidiano nesta terra: não só quando a vida está ameaçada, mas numa jogada política, numa polêmica acirrada, num negócio arriscado, num empreendimento difícil, etc., há pessoas que se saem como o cavalo diante do touro.

E se este segundo animal é a força bruta, sem expressão nem nada de humano em sua postura, já no primeiro há qualquer coisa de sobre-animal, parecendo transcender não o faz, claro está a mera condição de bicho e participar em algo do reino dos homens, pelas atitudes que demonstra na arena. Característica esta que nos leva a admirar outro interessante aspecto desse tipo de tourada.

O autêntico cavaleiro sabe transmitir alguma coisa de sua personalidade à montaria. E vê-se que, ao enfrentar o touro, o cavalo compartilha do heroísmo do toureiro. Geralmente, este é esguio, destro, cheio de movimentos ágeis, e quando ele mesmo raspa pelo perigo, sente euforia. Quando executa a manobra para cravar a “banderilha” no touro, e quase é atingido pelos chifres de seu adversário, ele seria comparável a um homem que está tomando o melhor trago de rico licor. É o licor do risco! O delicioso licor que o pacifista exagerado de nossos dias não sabe compreender nem apreciar…

Quando se esquivam do  oponente, a atitude do cavaleiro e do cavalo  não é a de dar as costas e se pôr a correr. Eles saem de lado, procurando contornar o touro para lhe fincar mais uma farpa. É a imagem da “distância psíquica”, de um inteiro domínio de si, calculado e ativo. Pode-se olhar para o toureiro e para o cavalo: ambos estão numa posição em que não têm medo. Não perderam a noção da realidade e só estão procurando dar uma volta, com elegância e distinção, para atacar com mais eficácia!

É este um lado esplendoroso da luta entre cavaleiro e touro que nos faz considerar um outro aspecto da vida humana: o gosto que tem o homem justo, colocado na presença do mal, diante de ignomínias insuportáveis que se propagam e não podem ser contidas senão pela força, de enfrentá-las e de vencê-las, obedecendo aos altos desígnios de uma Fé sumamente equilibrada. Então ele, obrigado a atacar, avança e subjuga.

É realmente belo que o homem,  em presença do mal, o goste de calcar aos pés. E a sensação do golpe atingindo o alvo, é uma experiência na qual o homem se realiza inteiro!

Por fim, um outro aspecto a se contemplar nas touradas a cavalo. Durante todo o certame, não se vê nada de teatral no toureiro. Ele não presta uma atenção vaidosa em si. Mas está sempre vigilante, e por isso não tem receio de que a coragem lhe pregue alguma peça nos momentos decisivos. Naturalmente, conhece à saciedade o seu “métier”, está muito bem treinado, e, note-se, todas as sensações que nascem nele na aparência, impulsivas e até irrefletidas são na verdade enriquecedoras da razão.

É o garbo, a galhardia, a coragem e o desassombro, o esplendor da “distância psíquica”, a vivacidade da inteligência e da varonilidade que enfrentam o perigo. São qualidades,  também elas, frutos da civilização cristã.