Uma das facetas do Imaculado Coração de Maria

Um dos meios bonitos de conhecermos o espírito e o Imaculado Coração de Maria consiste em estudar a vida de São João Batista. Por ter sido ele santificado no seio de Santa Isabel pela palavra de Nossa Senhora, vê-se que Ela comunicou-lhe ali, misteriosamente, o espírito d’Ela. E tudo quanto o Precursor realizou em sua vida era uma decorrência dessa graça inicial recebida e constantemente intensificada, pelos rogos d’Ela.

Podemos, então, ver São João Batista enquanto asceta austero, pregador do Cordeiro de Deus que viria, e como herói que enfrenta Herodes e morre como mártir, sublime de grandeza e de serenidade. É uma das facetas do espírito de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

Eucaristia

Imaginemos uma pequena capela onde um sacerdote dá a algum de nós a Eucaristia.

Visíveis apenas o padre, um de nós, e um discozinho de farinha e água. Porém, a fé nos ensina que todos os anjos e santos do Céu adoram cada partícula do Santíssimo Sacramento existente na Terra; e portanto presenciam aquela comunhão, cantando e louvando o Divino Redentor. Nossa Senhora, por sua vez, louva a Nosso Senhor porque Ele está Se dando a nós. De maneira que o Céu inteiro está olhando para aquela cena e pede a Nosso Senhor misericórdia por aquele que está recebendo a Eucaristia.

Pode-se conjecturar algo mais alentador? Quanta alegria e que beleza nessa cena! Se antes de comungar pensássemos um pouco nisto, não é verdade que iríamos receber a Eucaristia com mais esperança, mais confiança, mais alegria? É evidente!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência em 15 setembro de 1973)

Excelências do Coração de Jesus

Graças a Dona Lucilia, desde muito criança Dr. Plinio desenvolveu uma profunda devoção ao Sagrado Coração de Jesus, faceta do Homem-Deus que ele procurou cada vez mais explicitar e amar durante toda a vida. Eis o excerto de uma de suas numerosas conferências sobre o tema.

 

Estando no mês em que se celebra a festa do Sagrado Coração de Jesus, parece-me muito oportuno admirarmos a beleza de algumas das invocações com que O honramos na sua Ladainha. Esta é um verdadeiro tesouro de maravilhas e louvores, próprio a encher nossas almas de amor e adoração a Ele.

Coração do Filho, Coração da Mãe

Tomemos, por exemplo, essa belíssima invocação: Coração de Jesus, formado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Mãe.

Se considerarmos o Coração de Jesus em sua realidade material e carnal, objeto de nosso culto como símbolo da vontade de Nosso Senhor e, portanto, do seu amor para conosco; se o considerarmos enquanto formado no seio imaculado de Nossa Senhora, com a matéria que a Mãe fornece para a constituição do corpo do Filho, ligada à divindade d’Ele em união hipostática compreendemos que a carne de Jesus é a própria carne de Maria, o sangue de Jesus é o próprio sangue de Maria, e, portanto, o Coração de Jesus é de algum modo o Coração de Maria.

Se nos detivermos na evocação desse processo de geração tão admirável, pelo qual Jesus foi assim formado do corpo de Maria, num oceano, num incêndio de amor e de adoração d’Ela para com esse filho que se modelava em suas entranhas, compreenderemos ainda mais como o Coração de Jesus está ligado ao Coração Imaculado de Maria, e como podemos ter uma confiança sem reserva na eficácia da intercessão de Nossa Senhora junto a Nosso Senhor.

Com efeito, Ele jamais poderia recusar qualquer coisa a essa Mãe Santíssima, perfeitíssima, da qual Ele não tem nenhuma queixa, antes o mais superlativo e total contentamento que o Criador pode ter em relação à sua criatura. Mais ainda: de cuja carne virginal Ele sabe ter sido formada a sua própria carne, e cujo Coração pulsa em uníssono com aquele que lateja em seu sagrado peito.

Creio que, para os devotos de Nossa Senhora, essa invocação se reveste de imenso significado, e merece ser recitada com especial fervor.

Um céu de majestade

Outra lindíssima invocação é esta: Coração de Jesus, de majestade infinita.

Segundo o luminoso ensinamento de Santo Agostinho, onde está a majestade, ali se acha também a humildade. As duas são inseparáveis. Daí concluímos que o Coração de Jesus, abismo de humildade, é por isso mesmo um firmamento de majestade.

Se dons artísticos eu tivesse, muito me alegraria representar a figura de Nosso Senhor, exprimindo não apenas a sua majestade ou somente a sua humildade, mas retratá-Lo numa dessas apresentações em que se vê, num só relance, aquilo que a majestade tem de comum com a humildade, ou vice-versa, e que é aquela esfera superior de virtude onde essas duas excelências particulares como que se encontram e se fundem.

Algo dessa ligação da suma majestade com a suma humildade me parece existir numa imagem na qual não está visível o Sagrado Coração, mas nem por isso deixa de ser muita expressiva nesse sentido: trata-se do “Beau Dieu d’Amiens”. Ali O vemos como um rei digníssimo, um doutor nobilíssimo, mas ao mesmo tempo tão sereno, tão manso, tão senhor de si, que se percebe que Ele seria capaz de receber a pior injúria e de se conservar inteiramente quieto, pacífico, sem nenhuma reação de amor próprio, desde que fosse essa a atitude mais santa no momento.

Foco de todo o amor de Deus

Outra invocação: Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade.

Caridade é o amor de Deus. O fato de o Coração de Jesus ser essa fornalha  ardente ou seja, não só uma fornalha, que de si já traz a ideia do ardor, mas uma fornalha ardentíssima exprime bem a ideia de que Ele é o foco de todo o amor de Deus. E que a devoção ao Coração de Jesus, por intermédio do Coração Imaculado de Maria, é especificamente esplêndida para quem se lamenta de ser tíbio, de estar se arrastando de maneira vagarosa na vida espiritual. É a devoção mais indicada e mais excelente, capaz de comunicar o fogo e o fervor da caridade a essas almas que deploram sua estagnação nas vias da piedade.

Modelo de verdadeira paciência

Também me parece muito importante, para nossa época, a invocação com a qual louvamos o Coração de Jesus, paciente e misericordioso.

“Paciente” significa aquele que sofre. É, portanto, o Coração de Jesus sofredor e misericordioso, pronto a padecer até mesmo as injúrias que Lhe fazem os homens. É o Coração d’Ele enquanto amando o sofrimento, compreendendo que é a grande lei da vida e que, sem isso, a existência não vale absolutamente nada. Pois, em última análise, consideradas as coisas sob certo ângulo, o valor de uma criatura humana se mede por sua capacidade de aceitar com coragem e resignação as dores que a Providência permite em seu caminho.

E então temos o Coração de Jesus como nosso modelo de paciência. E uma das formas importantes de sermos pacientes, nesse sentido superior da palavra, diz respeito à atitude que tomamos em relação aos nossos próximos. Quer dizer, sabermos aturar os desaforos e provocações, sermos amáveis e bondosos para com aqueles que nos fazem sofrer pelo seu mau gênio, pelas dificuldades de trato, etc. Para isso, é necessário pedirmos ao Sagrado Coração de Jesus essa paciência de que Ele é a fonte.

Além dessa forma preciosa de paciência, uma das expressões mais típicas da capacidade de sofrer é o espírito de iniciativa, pelo qual o homem vence a preguiça, a moleza, o tédio, o amor a si mesmo e se lança ao trabalho, à luta apostólica, e se joga até o mais grosso e ardoroso dessa luta, se necessário for, quites a deixá-la imediatamente se o interesse da Igreja conduzi-lo no sentido oposto.

Eis a melhor forma de paciência que devemos rogar ao Coração de Jesus, é esse espírito de iniciativa e de combatividade, em virtude do qual renunciamos a todos os nossos relaxamentos.

Paciente e misericordioso. É a misericórdia enquanto corolário da paciência, disposta a tudo aturar e a tudo perdoar. Sim, convençamo-nos dessa maravilhosa verdade: o Sagrado Coração de Jesus nos perdoa uma vez, duas vezes, duas mil vezes, e não quer que desanimemos de seu perdão.

Assim, esta é a magnífica invocação que nos exorta a nunca perder a confiança na clemência de Nosso Senhor, pela intercessão do Coração Imaculado de Maria: Coração de Jesus, paciente e misericordioso. Paciente com os meus defeitos, com os meus pecados; misericordioso em relação às minhas lacunas. Pelos rogos do Coração de vossa Mãe Santíssima, tende pena de mim, ó Senhor.

Vítima que pagou por nossos pecados

Envolvendo idéias análogas à da invocação anterior, é a do Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados.

Às vezes acontece nos sentirmos fundamentalmente indignos e as almas mais puras e mais altas o podem sentir até com maior intensidade. E compreendemos que, diante da justiça infinita de Deus, não somos absolutamente nada. Donde essa invocação constituir inestimável motivo de tranqüilidade para nós. Ela significa que, se meus sacrifícios, sozinhos, não têm valor diante do Altíssimo, há entretanto uma Vítima que vale tudo: porque é uma Vítima sem mancha, sem jaça, ligada por união hipostática à própria divindade. E essa Vítima é Nosso Senhor Jesus Cristo, que se ofereceu por mim, de tal maneira que tudo aquilo que eu tenho receio de não conseguir, essa Vítima alcança.

Ela carregou os meus pecados, por eles sofreu, e em virtude desse holocausto eu considero minhas faltas com vergonha, com contrição, pelo menos com atrição, mas em todo caso com imensa confiança, porque Alguém se imolou e derramou por mim, pela minha salvação, todas as gotas do seu sangue. Por isso eu devo ter confiança, não em mim, mas nesse sangue infinitamente precioso que por mim foi vertido à exaustão.

Esse é o Sagrado Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados.

Fonte de toda consolação

Consideremos uma última invocação: Coração de Jesus, fonte de toda consolação.

A palavra “consolação” encerra dois sentidos: num deles quer dizer fortalecimento; no outro, alegria, suavidade, unção do Divino Espírito Santo na alma. E em ambos os sentidos o Sagrado Coração de Jesus é fonte de toda consolação.

Sabemos quanto Ele enche de júbilo e de satisfação espiritual as almas que Lhe são devotas, os corações que se abrem para a sua bondade infinita. Mas importa compreendermos também que a nossa força vem d’Ele. E quando nos sentirmos fracos, tíbios, desorientados, sobretudo quando estivermos sem coragem diante de algum grande ato de generosidade, não devemos avançar sozinhos, imaginando que por nosso próprio mérito o conseguiremos. Não! O Coração de Jesus é a fonte de toda a força. Por meio do Coração Imaculado de Maria, canal único e necessário para nos aproximarmos do Coração de Jesus, temos de nos dirigir a Ele e implorar as forças de que carecemos.

E seguramente não seremos frustrados em nosso pedido. Em determinado momento sentiremos a força de que precisamos, inclusive e acima de tudo, para realizarmos as coisas mais árduas e difíceis com relação à nossa vida espiritual.

Aqui ficam, portanto, algumas considerações que nos podem ser úteis em nossa piedade. Por exemplo, quando comungarmos, procuremos nos lembrar dessas invocações, pensando que recebemos na alma, por presença real, física, verdadeira e viva, esse Coração no qual adoramos todas as perfeições expressas nessa Ladainha.

Sagrado Coração de Jesus

Na imagem do Sagrado Coração de Jesus contemplamos a força, a varonilidade, a seriedade, a decisão do Rei e Mestre por excelência. Mas, ao lado disso, vemos n’Ele tanta doçura, tanta harmonia e um modo tão bondoso de tomar todas as coisas, que sentimos algo a nos dizer: “É feliz quem está com Ele, acerta na escolha do caminho da vida quem se põe afim com Ele, porque é objeto dessa bondade”. E Ele tem o poder de dar aquilo que o afeto d’Ele promete. Nosso Senhor Jesus Cristo não mente: de alguma maneira, custe o que custar, Ele nos concederá o prometido.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora do Sagrado Coração

Ao cantar as glórias de Nossa Senhora no seu relacionamento com o Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio nos deixa ver o alto grau de contemplação ao qual, quando ainda muito jovem, chegou sua alma profundamente mariana.

 

Se há uma época para cuja miséria só pode existir esperança de remédio no Sagrado Coração de Jesus, esta é a nossa.

Inútil seria atenuar a enormidade dos crimes que por toda a parte pratica a humanidade em nossos dias. Disse Pio XI, em uma de suas Encíclicas, que a degradação moral do mundo contemporâneo é tal, que o coloca na iminência de se ver precipitado, de um momento para outro, em condições espirituais mais miseráveis do que aquelas em que se encontrava quando veio ao mundo o Salvador. (…)

O sol da misericórdia divina

Uma humanidade perseverante na sua impiedade tudo tem a esperar dos rigores de Deus.  Mas Deus, que é infinitamente misericordioso, não quer a morte desta humanidade pecadora, mas  sim “que ela se converta e viva”. E, por isto, sua graça procura insistentemente todos os homens, para que abandonem seus péssimos caminhos e voltem para o aprisco do Bom Pastor.

Se não há catástrofes que não deva temer uma humanidade  impenitente, não há misericórdias que não possa esperar uma humanidade arrependida. E para tanto não é necessário que o arrependimento tenha consumado sua obra restauradora. Basta que o pecador, ainda que no fundo do abismo, se volte para Deus com um simples início de arrependimento eficaz, sério e profundo, que ele encontrará imediatamente o socorro de Deus, que nunca se esqueceu dele. Di-lo o Espírito Santo na Sagrada Escritura: ainda que teu pai e tua mãe te abandonassem, eu não me esqueceria de ti. Até nos casos extremos em que o paroxismo do mal chega a esgotar a própria indulgência materna, Deus não se  cansa.  Porque a misericórdia de Deus beneficia o pecador até mesmo quando a Justiça  divina o fere de  mil  desgraças  no  caminho da iniquidade.

Estas duas imagens essenciais da justiça e da misericórdia divina devem ser constantemente postas diante dos olhos do homem contemporâneo. Da justiça, para que ele não suponha temerariamente salvar-se sem méritos. Da misericórdia, para que não desespere de sua salvação desde que deseje emendar-se. E, se as hecatombes de nossos dias já falam tão claramente da justiça de Deus, que melhor visão para completar este quadro, do que o sol da misericórdia, que é o Sagrado Coração de Jesus?

Infinito amor para com os homens

Deus é caridade. E por isto mesmo a simples enunciação do Nome Santíssimo de Jesus lembra a ideia do amor. O amor insondável e infinito que levou a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade a se encarnar! O amor expresso através dessa humilhação incompreensível de um Deus que se manifesta aos homens como um menino pobre, que acaba de nascer em uma gruta.

O amor que transparece através daqueles trinta anos de vida recolhida, na humildade da mais estrita pobreza, e nas fadigas incessantes daqueles três anos de evangelização, em que o Filho do Homem percorreu estradas e atalhos, transpôs montes, rios e lagos, visitou cidades e aldeias, cortou desertos e povoados, falou a ricos e a pobres, espargindo amor e recolhendo na maior parte do tempo principalmente ingratidão.

O amor demonstrado naquela Ceia suprema, precedida pela generosidade do lava-pés e coroada pela instituição da Eucaristia! O amor daquele último beijo dado a Judas, daquele olhar supremo posto em São Pedro, daquelas afrontas sofridas na paciência e na mansidão, daqueles sofrimentos suportados até a total consumação das últimas forças, daquele perdão medi-

ante o qual o Bom Ladrão roubou o Céu, daquele dom extremo de uma  Mãe celestial à humanidade miserável.

Cada um destes episódios foi meticulosamente estudado pelos sábios, piedosamente meditado pelos Santos, maravilhosamente reproduzido pelos artistas, e sobretudo inigualavelmente celebrado pela liturgia da Igreja. Para falar sobre o Sagrado Coração de Jesus, só há um meio: é recapitular devidamente cada um deles.

Realmente, venerando o Sagrado Coração, outra coisa não quer a Santa Igreja, senão prestar um louvor especial ao amor infinito que Nosso Senhor Jesus Cristo dispensou aos homens. Como o coração simboliza o amor, cultuando o Coração, a Igreja celebra o Amor.

Nossa Senhora, Advogada dos pecadores

Por mais variadas e belas que sejam as invocações com que a Santa Igreja se refere a Nossa Senhora, em nenhuma delas deixaremos de encontrar uma relação entre Ela e o amor de Deus. Essas invocações, ou celebram um dom de Deus, ao qual Nossa Senhora soube ser perfeitamente fiel, ou um poder especial que Ela tem junto ao Seu Divino Filho. Ora, o que provam os dons do Deus, senão um amor especial do Criador? E o que prova o poder de Nossa Senhora junto a Deus, senão este mesmo amor?

Assim, pois, é com toda a propriedade que Nossa Senhora pode ao mesmo tempo ser chamada “espelho de justiça” e “onipotência suplicante”. Espelho de Justiça, porque Deus a amou tanto, que n’Ela concentrou todas as perfeições que uma criatura pode ter, e por isto mesmo em nenhuma Ele se espelha tão perfeitamente como n’Ela. Onipotência suplicante, porque não há graça que se obtenha sem Nossa Senhora, e não há graça que Ela não obtenha para nós.

Assim, pois, invocar Nossa Senhora sob o título do Sagrado Coração é fazer uma síntese belíssima de todas as outras invocações, é lembrar o reflexo mais puro e mais belo da Maternidade Divina, é fazer vibrar a um só tempo, harmonicamente, todas as cordas do amor, que tocamos uma a uma enunciando as várias invocações da ladainha lauretana, ou da Salve Rainha.

Mas há uma invocação que quero lembrar especialmente. É a da advogada dos pecadores. Nosso Senhor é Juiz. E por maior que seja a sua misericórdia, não pode também deixar de exercer a sua função de juiz. Nossa Senhora, porém, é só advogada. E ninguém ignora que não é função do advogado outra coisa senão defender o réu. Assim, pois, dizer que Nossa Senhora do Sagrado Coração é nossa advogada implica em dizer que temos no Céu uma advogada onipotente, em cujas mãos se encontra a chave de um oceano infinito de misericórdia.

O que de melhor para se mostrar a esta humanidade pecadora, a qual, se não se fala de justiça de Deus, se embota cada vez mais no pecado, e se dela se fala desespera de se salvar? Mostremos a justiça: é um dever cuja omissão tem produzido os mais lamentáveis frutos. Ao lado da justiça que fere os impenitentes, nunca nos esqueçamos,  entretanto, da misericórdia que ajuda o pecador seriamente arrependido a abandonar o pecado e, assim, a se salvar.

Contemplando o Sagrado Coração de Jesus

Junho é o mês do Coração de Jesus. Dr Plino tinha essa devoção arraigada em sua alma desde a mais remota infância, e a desenvolveu ao longo de toda a sua vida, como se pode ver no texto da conferência que transcrevemos a seguir.

 

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é tão antiga em mim que — como já contei aos senhores — antes mesmo de eu saber dizer “papai” ou “mamãe”, quando minha mãe me perguntava: “Onde está o Sagrado Coração de Jesus?”, eu apontava para a imagem d’Ele.

Conhecer uma devoção é, sem dúvida nenhuma, debaixo de certo ponto de vista, degustá-la. E o degustar alguma coisa, para o meu modo de ser, nunca é completo enquanto eu não conhecer essa coisa até ao fundo. Uma das razões que me empolgaram tanto no livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, é que ele toma o assunto central e vai até onde se pode e se deve ir para ter conhecimento da questão. Vendo a montagem racional desse assunto, em função da doutrina católica, eu o compreendi. E compreendi bem, como gosto de compreender.

Entendendo desse modo, eu me sinto muito mais eu mesmo, sinto-me muito mais em casa para amar, porque a mente humana gosta de ver a insondabilidade das coisas, se com praz em de ver a força do raciocínio, se alegra em sondar palmo a palmo uma questão e ir até ao fundo dela.

É assim que o homem ama. Ao menos é assim que eu sei amar. Não sou, nem um pouco, amigo desses espíritos cartesianos que pensam que tudo se resume em compreender e que, uma vez compreendido, está tudo acabado. Não. É preciso ter o raciocínio, mas também o sentimento. Por que fazer a escolha entre o raciocínio e o sentimento? Se Deus fez o homem capaz de raciocínio e sentimento, tenhamos ambas as coisas, para fazer a vontade de Deus e para sermos nós mesmos.

O que se deve entender por “coração”?

Tomo os elementos que me parecem fundamentais nesse grande e misterioso assunto que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Por “coração” os antigos entendiam não precisamente o que se entende hoje, mas algo que é ao mesmo tempo mais vasto e, em certo sentido, diferente.

Em nossos dias, o coração é quase o símbolo do sentimento desacompanhado da razão. Diz-se que o coração de uma pessoa vibra quando ela sente um certo enternecimento, quando é alvo de um ato de bondade, ou quando tem uma condescendência com algo.

Mas coração é só isso?

Para os antigos, não era assim. Eles tomavam o coração como o órgão que nós conhecemos, que pulsa, que tem aurículas, ventrículos, faz sístoles e diástoles, e em razão de cujo funcionamento — uns mais solidamente na sua jovem idade, outros mais precariamente nas idades avançadas — todos estamos vivos. Mas coração significava para eles algo mais. Era o conjunto das coisas que o homem vê, ama e guarda na sua mente, por assim dizer, como se fossem “slides”, porque lhe falaram mais.

A palavra coração representa esse conjunto de coisas enquanto amadas pelo homem com um amor que não é apenas uma conaturalidade ou uma simpatia, mas é um ato racional. As coisas que foram julgadas segundo certa doutrina verdadeira — que é o ponto de referência de tudo — e foram encontradas conformes a essa doutrina, e, por isso mesmo, amadas. A sensibilidade é um eco harmonioso, delicado e nobre, desse amor. Mas, é preciso ter compreendido bem e ter chegado bem até ao fim no julgamento, para amar inteiramente. É necessario compreender até ao fundo, para admirar e amar de corpo inteiro, de coração inteiro.

O coração do católico. O Coração de Jesus

O coração do católico representa, nesse sentido, a mentalidade dele, que inclui a sua sensibilidade, mas indica sobretudo aquilo que — estando de acordo com a doutrina católica, apostólica, romana — ele conhece pela Fé como verdadeiro. Aquilo que ele ama acima de tudo e toma como uma “linha rectrix” de todas as outras coisas, porque é conforme à verdade verdadeiríssima, à verdade soberana, à verdade padrão, segundo a qual todas as outras verdades são de fato verdades, e contra a qual todas as aparências de verdade não são senão erros enganosos.

Em todo caso, tendo já como pressuposto que o coração é o símbolo da mentalidade, nós podemos nos perguntar como era a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um tema audacioso, é uma navegação tão alta que o homem tem medo de chegar até lá. Mas, de outro lado, esse ar atrai. Quanto mais alto se voa nele, mais se tem vontade de subir, e medo de ser obrigado a descer. É o contrário da aviação terrena.

O que nos é dado entrever daquilo que seria a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo em algum de seus aspectos?

Devemos considerar essa mentalidade muito mais na sua Humanidade Santíssima do que na sua Divindade. Nesta última, o tema subiria tanto que não seria fácil, pelo menos a um leigo, tratar da questão. Mas a Humanidade santíssima d’Ele está mais perto de nós. Um “perto” cuja distância vai de uma ponta a outra do universo, porque a perfeição d’Ele não tem comparação com nada e com ninguém.

A Fé nos ensina que o Verbo se encarnou e habitou entre nós. A natureza humana d’Ele está ligada pela união hipostática à natureza divina. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnou-se e desse acontecimento único resultou Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa dualidade de naturezas numa só pessoa significa que a sua Humanidade santíssima tinha com a Divindade um contacto mais íntimo que que teria com Deus o Santo mais perfeito.

Mistérios da união hipostática

Essa união, porém, não deixa de ter aspectos misteriosos para nós. Por exemplo, na Oração do Horto das Oliveiras, parece que a natureza humana de Jesus teve uma como que treva, uma como que noite escura, em relação à natureza divina, de maneira que Ele se sentiu abandonado e rezou:

— Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice.

E veio um Anjo que o consolou, e Ele se reanimou.

Também, no alto da Cruz, Ele teve uma exclamação que parece lançar uma luz especial sobre o mistério das relações entre a sua natureza humana e a natureza divina. Ele bradou:

—Meu Pai, meu Pai, porque Me abandonastes?

É verdade que este é o primeiro versículo de um salmo que prenuncia a sua vitória, e, recitando-o, afirmava que ia ressuscitar. Mas, de qualquer forma, havia ali um brado de abandono.

Foi tão grande esse abandono que pouco depois Ele disse: “Consummatum est!” E entregou o seu Espírito.

Os senhores estão vendo, por aí, que havia mistérios, havia dores e padecimentos nesta humana natureza tão ligada à natureza divina. E como nesta vida há uma certa proporção entre os sofrimentos e as alegrias, que tremendos padecimentos devem ter sido os d’Ele, uma vez que devem ter sido tão extraordinárias suas alegrias! Os senhores podem imaginar, numa alma unida a Deus, formando com Deus uma só Pessoa, a alegria que isso pode dar! Nenhum Anjo do Céu tem essa alegria! Ele tinha e tem no Céu. Mas, de outro lado, se há uma proporção das alegrias com as dores, que dores, e que dores, e que dores Ele deveria sofrer!

“Tudo está consumado”: a dor do inexplicável

Poucas coisas fazem sofrer tanto o homem quanto a dor do inexplicável. Quando ele tem explicação para a sua dor, ele sofre menos. Mas, quando a dor é inexplicável e cai sobre ele como algo que ele não entende… Não é porque ele queira tomar satisfações de Deus, mas é que do não-entender lhe vem o medo de que aquilo seja um castigo por alguma culpa, que aquilo seja algo fora dos desígnios divinos.

Nosso Senhor não podia ter culpa, e Ele sabia disso, e nada para ele era inexplicável. Porém, que misteriosos sofrimentos Ele teve? Nós não o sabemos. Só sabemos uma coisa: é que Ele passou pelos tormentos mais pasmosos que jamais um ser tenha padecido na História. Esses sofrimentos de alma eram tão extraordinários que deixariam qualquer homem com a saúde arrasada em poucas horas: poderiam sobrevir enfartes, derrames cerebrais, e tudo o que os senhores possam imaginar. Ele aguentou até o fim, e seu último ato foi um ato de lucidez: “Consummatum est — Tudo está consumado”.

Depois de criar o universo, Deus o viu em seu conjunto e considerou que cada coisa era bela, boa e verdadeira, mas que o conjunto era mais belo do que cada uma das coisas em particular. Tem-se a impressão de que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao morrer, considerou tudo o que sofreu e viu que tinha sofrido tudo o que devia padecer, e que era uma beleza, uma torrente de sangue e de dores, como nenhum oceano poderia conter. A última gota de sangue estava derramada, a última dor, a mais inexplicável, a mais pungente, estava sofrida. Estava tudo pronto. Ele contemplou a formosura deste horror e disse: “Está tudo oferecido pela Redenção do gênero humano: “Consummatum est”. Eu sofri tudo o que tinha que sofrer, e tudo o que se pode sofrer, Eu sofri de maneira a minha tarefa redentora estar inteiramente pronta: “Consummatum est”. Só me falta o último lance, que é a separação da alma do corpo. Depois disso, cessarei de sofrer. Mas esse último lance, Eu ainda tenho que dar: morrerei!”

E morreu… Que coisa maravilhosa! Com que sensibilidade, mas com que compreensão profunda de sua missão, com que força e continuidade Ele sofreu aquilo tudo! É algo que não se pode medir suficientemente.

Harmonia de perfeições

Ora, devemos imaginar o Homem Deus com todas essas forças e grandezas implícitas na alma, imaginá-Lo assim, vivendo os vários aspectos de sua vida terrena.

Por exemplo, quando Ele acariciou as crianças que vieram falar com Ele e disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu”. Os senhores estão vendo o afeto, a bondade, a doçura… Não há homem de qualquer idade que vendo-O dizer: “Deixai vir a Mim os pequeninos”, não pense: “Bem, então há um lugarzinho para mim também, por mais que eu seja um pequenino, porque, em comparação com Ele, todo mundo é pequenino. Eu vou me aproximar”.

Que doçura nessas palavras! Essa é a suavidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual era ao mesmo tempo tão forte e, no sentido mais sublime da palavra, tão decidido. Resolveu sofrer, sofreu até ao fim e até ao ápice tudo, e de bom grado, sem excluir nada. Tão terrível e tão misericordioso, a ponto de dirigir-se ao bom ladrão e fazer a primeira canonização na Igreja Católica:

— Tu hoje estarás comigo no Paraíso.

Os senhores podem imaginar como o bom ladrão se sentiu reconfortado e animado com essa promessa. Ficasse com inveja dele. Cada um de nós que, na hora da morte, ouvisse essas palavras: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, se levantaria da cama para glorificar a Deus e dizer: “Mas então, Senhor, o que esperais? Vamos! Vamos, levai-me!”

Mas como pode uma alma humana compor esses quadros de conjunto, de maneira a, quando vir Nosso Senhor expulsando os vendilhões do templo, pensar n’Ele acariciando uma criancinha ou contando a parábola do Bom Samaritano; imaginá-Lo, com uma bondade indizível, curando este, aquele, e aquele outro, espargindo em torno de Si alegria, consolação, tranqüilidade, saúde; pensar n’Ele encantando os Apóstolos que O ouviam enlevadíssimos?

Como conjugar essas duas visões: Ele tão forte, tão incomparável, tão único, e, ao mesmo tempo, tão misericordioso e tão acessível aos pequeninos?

É preciso lembrar-se d’Ele como está no Santo Sudário, e aí se compreenderá como Ele era, no sentido mais nobre da palavra, o atleta de Deus, o herói de Deus! Siegfrid, Lohengrin, toda espécie de “heróis” dessa ordem, sublimados por Wagner, aqueles homens da mitologia antiga, tudo isso é quinquilharia em comparação com o Varão do Santo Sudário!

Como imaginar no Menino Jesus, apenas nascido em Belém, como imaginar que nessa Criança, cuja alma contém todas as canduras e inocências imagináveis e excogitáveis, estava o Herói que iria sofrer de maneira a impressionar os homens até ao fim do mundo?!

N’Ele todas essas perfeições se ajustavam de maneira a não se poder compreender. Ele é muito maior do que o campo de nossa visão. Ele é uma maravilha que, ou nós O consideramos por partes, ou não O conseguimos considerar.

Adorar todas as perfeições do Sagrado Coração de Jesus

Cada um adora Nosso Senhor como foi chamado a adorá-Lo. Como sou eu quem está falando, tenho de dizer o que me vai na alma. É meu modo de ser.

Eu nunca me contentaria de adorar só um desses aspectos sem procurar reuni-lo a todos os outros e, ao

menos muito sumariamente, fazer a ideia de como seria o conjunto. Eu tenho a impressão de que, se eu O conhecesse nesta vida terrena, uma das coisas que eu mais gostaria era de admirar e de adorar as transições de estados de espírito d’Ele, o como Ele passava de uma disposição para outra. De modo que eu pudesse compreender como é que uma disposição se encaixava na outra. E nessas transições, adorar a harmonia desses estados de espírito tão diversos. Parece-me que, com isso, o meu desejo das correlações, das reversibilidades e das harmonias, das ordenações em tudo, encontraria algo que o saciasse.

Há no teto da igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, um afresco que é uma pintura boa, ao estilo do século

XIX. Esses quadros habituais de Nosso Senhor, muito respeitáveis e veneráveis, satisfazem muito a piedade, mas em geral fixam a atenção do homem num determinado estado de espírito de Nosso Senhor. Nos quadros do Sagrado Coração de Jesus, os autores fixam sempre — e a justo título, muito fundadamente — a sua misericórdia infinita. Mas a sua misericórdia infinita era só uma de suas perfeições. Não podemos sustentar que Ele não tinha outras perfeições, uma vez que Ele as tinha todas.

Como é belo esse afresco! Como é ótimo, como me tem feito bem ao longo de minha vida! Mas eu gostaria que outros quadros pintassem Jesus em outros estados de espírito.

Por exemplo, Ele meditando. O olhar absorvido, enlevado e contemplativo d’Ele, sozinho no deserto, durante quarenta dias de jejum. Gostaria de imaginá-Lo junto de uma pedra, no deserto árido, ou com uma vegetaçãozinha ordinária e muito rasteira, que seria o contrário da sublimidade da cena. Ou com uma bonita areia que se estende ao longe. No fundo, um pôr-de-sol em brasa e seu divino perfil se recortando sobre ele… Jesus meditando e orando. Portanto, sua natureza humana, por assim dizer, fazendo filosofia e teologia. Como é que seria a sua expressão fisionômica nessas ocasiões?

Se Ele já se tinha deleitado na contemplação do universo, quanto mais se deleitaria na contemplação daquilo que é mais do que todo o universo, Nossa Senhora! Gostaria de imaginá-Lo, então, na sua Humanidade e na sua Divindade juntas, olhando para dentro dos olhos de Nossa Senhora. Ela, enlevadíssima, num êxtase altíssimo. E Ele, enquanto Deus, pensando: “A minha obra-prima!”; e enquanto Filho e Homem pensando: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que um de nós daria para estar do lado de fora da porta e olhar pelo buraco da fechadura? Se nos exigissem como preço disso fazer qualquer sacrifício depois, nós faríamos. Morrer depois, não nos importaria! Ter visto essa cena e morrer… para que viver mais? E, de fato, me pergunto: haveria ânimo para viver, depois de ter visto isso? De que adiantaria, por exemplo, depois disso ver a beleza do mar? Eu gosto tanto do mar, mas depois de ter visto Maria, o que é ver o mar?…

Eis o Coração que amou tanto os homens!

Voltando àquele afresco da igreja do Coração de Jesus. Está Ele aparecendo a Santa Margarida Maria. O lugar da aparição está todo iluminado. Ele fala a ela com uma expressão de muita bondade, muito comprazimento, muita misericórdia. E ela está muito enlevada, naturalmente. A cena é ainda completada com as palavras tocantes de Jesus. Ele aponta o seu próprio Coração e lhe diz: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado!”

Os senhores compreendem que é de cortar o coração! Que um tal Coração tenha amado tanto e tenha sido tão pouco amado, não se sabe o que dizer! Evidentemente, nós fomos amados por Ele muito mais do que nós O amamos, porque Ele é tão maior do que nós, que um ato de amor d’Ele deixa os nossos pobres amores muito atrás… Entretanto, o problema é que nós não O amamos até onde podemos, e era o que nós deveríamos fazer. Ele diz essas palavras com misericórdia e bondade. Mas eu gostaria de perceber ali todos os outros estados de espírito; gostaria de perceber essa correlação e de, por assim dizer, pela admiração, pela adoração — que é a palavra adequada quando se trata d’Ele — pela adesão, de algum modo tentar viver isso em mim. Enternecer-me como Ele, adorar como Ele, resistir como Ele, sofrer como Ele! Por que não?! Isso todos nós gostaríamos de fazer.

Uma coleção fabulosa

Se nós pudéssemos fazer uma coleção dos timbres de voz de Jesus ensinando como Mestre!… Ninguém foi mestre como Ele, que é o Divino Mestre! Explicando com clareza, com sabedoria, com profundidade, horizontes extraordinários, mas com uma simplicidade de desconcertar. Seu ensino é tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundo! Santo Agostinho dizia que o ensinamento d’Ele era como um rio no qual um elefante se afogaria e um cordeiro passaria sem molhar senão os pés.

Como nós gostaríamos também de, por exemplo, colecionar os seus sucessivos olhares! Para não falar senão em dois : o olhar para São Pedro, que o converteu e o fez chorar a vida inteira, e um olhar para Nossa Senhora. Escolham o momento. Talvez o momento do último olhar nesta vida. Com certeza, antes de morrer, Eles trocaram um olhar em que transpareciam o carinho e a adoração da parte d’Ela, e o amor indizível, o apreço extraordinário e o carinho da parte d’Ele, ao se separarem.

Como seria a história de todos os seus olhares? E como seria o olhar d’Ele expulsando os vendilhões do Templo? Para Pilatos, desprezando toda a covardia do Procurador Romano? E o olhar de repreensão aguda e severa para Anás e Caifás?

Tudo isso era um reflexo do seu Coração. Esse Coração pulsou, ora com mais, ora com menos intensidade, ao longo de todos esses acontecimentos.

E por isso é belo pensar como a mente e o Coração d’Ele, numa união, viveram todos esses acontecimentos da sua vida terrena. Até ao fim do mundo haverá gente que adorará esses vários aspectos de Jesus.

Oração a fazer ao Sagrado Coração de Jesus

Que oração fazer a esse Divino Coração? Nós podemos repetir, olhando para Nosso Senhor crucificado, com seu Coração chagado pela lança do centurião, a jaculatória que está na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus e que me encanta:

“Cor Jesu lancea perforatum, miserere nobis. — Coração de Jesus perfurado por uma lança”, tende compaixão de nós. Vós que levastes a pena de mim a ponto de quererdes que, depois de morto, vosso Coração ainda recebesse essa ferida, e que o resto de água misturado com sangue saísse de vosso lado por meu amor, tende pena de mim!”

E rezar também: “Anima Christi, sanctifica me. — Alma de Cristo, santificai-me”. Nada há de mais santo do que a Alma de Cristo… Que a Alma de Cristo, por assim dizer, toque em mim e me torne um Santo! Eu não quero outra coisa.

“Corpus Christi, salva me. — Corpo de Cristo, salvai-me. Sangue de Cristo inebriai-me. Água do lado de Cristo, lavai-me… e lavai-me mais ainda! Paixão de Cristo, dai-me forças. Olhai para minha miséria, minha moleza e minhas insuficiências. Dai-me força na luta contra os vossos inimigos. Ó Bom Jesus, ouvi-me, pelos rogos de Maria. Escondei-me nas vossas feridas. Cobri-me, com vossas feridas, da justa cólera do Padre Eterno. Na hora de minha morte, chamai-me e mandai-me ir para junto de Vós, para que Vos louve com os vossos Santos, com a Santa das Santas, por todos os séculos dos séculos. Amém.”

Transbordante de dons celestiais

Embora sempre cheia de graça, houve um determinado momento em que Maria Santíssima, por sua perfeitíssima fidelidade e gratuita predileção de Deus para com Ela, adquiriu a plenitude de dons celestiais correspondente: o instante em que Ela Se tornou Esposa do Espírito Santo e Mãe do Salvador.

A santificação de Nossa Senhora continuou até o momento em que, depois da Ascensão de Jesus Cristo, recebeu o Espírito Santo para distribuí-Lo a toda a Igreja, pois em Pentecostes o Paráclito desceu sobre Ela na forma de uma chama que se derramou sobre todos os Apóstolos.

Por fim, quando Lhe era como que impossível crescer em santidade, de tal maneira sua alma estava repleta de celestiais dons, a Mãe de Deus teve a sua “dormição”, como é chamada sua morte, por uma linguagem teológica muito apropriada e poética.

Com efeito, foi da plenitude recebida por Maria que todas as graças vieram para os homens. Assim, a humanidade inteira se beneficia do transbordamento das graças da Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/8/1965)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

Cerimônia de investidura do cavaleiro medieval

Quando um jovem era armado cavaleiro, o senhor de seu pai lhe entregava sua própria espada, dizendo: “Não a conquistei de um chefe sarraceno. Eu mesmo mandei forjá-la, e durante muito tempo a usei. Cabe-vos agora ser digno dela”. Na Idade Média todo mundo tinha um senhor, o qual era para com seu vassalo como um pai em relação a seu filho.

 

Vamos comentar a descrição que Léon Gautier, em seu livro “A Cavalaria”(1), faz da investidura do cavaleiro.

As portas do heroísmo cristão, do martírio e do holocausto se abrem

A noite desce sobre o velho “donjon”, e o mosteiro mais próximo encontra-se a uma légua. Rodeado por seus jovens pajens, o jovem que vai ser armado cavaleiro despede-se de sua mãe e de seus irmãos […]. O caminho se faz alegremente, mas sem desordens […]. A viagem não é longa, e eis que, de um momento para outro, percebe-se na penumbra o portal da igreja […]. Os jovens entram alegres e recolhidos.

Léon Gautier é um grande especialista em matéria de Idade Média, e por isso merece que se preste muita atenção a cada uma de suas palavras. Ele vai descrevendo a investidura do cavaleiro a partir dos seus mais remotos começos.

O jovem deixa seu castelo para fazer a vigília de armas no mosteiro mais próximo. Ele vai acompanhado pelos seus pajens, jovens como ele e da mesma classe social, que mais tarde serão, eles próprios, cavaleiros também. Vão alegres para a vigília, mas, assinala o autor, sem barulho. Quer dizer, não é uma alegria estúrdia, tola, mas é um júbilo no qual se manifesta a admiração, o respeito pela ação que vai ser feita e, por causa disso, uma alegria cheia de recolhimento.

O que quer dizer recolhimento neste caso? Uma alegria sem dissipação, na qual a pessoa tem em mente a alta razão pela qual está alegre: “Meu amigo vai receber a condição de cavaleiro pelo sacramental da Cavalaria, que um dia eu devo receber também. As portas do heroísmo cristão, do martírio, do holocausto se abrem, portanto, para ele. Que coisa linda! Eu admiro, respeito isso! Alegro-me em que meu companheiro vá receber esta graça”.

Combatente na defesa da Civilização Cristã e para a expansão do Reino de Maria

Esta alegria é verdadeira na medida em que ela conserve sempre a recordação dos seus próprios motivos. É diferente do gáudio do tonto que começa a se alegrar por uma razão boa e daqui a pouco está se regozijando por uma asneira e se alegra como um asno. A alegria recolhida é diferente. É o júbilo da posse ou da expectativa da posse iminente daquilo que é superior. É esta a alegria que leva, pelas tranquilidades das serranias e dos campos da Idade Média, o grupo de jovens ao mosteiro que os espera.

Não se distingue mais nada a não ser um grande foco luminoso, ao fundo, em uma das capelas. É lá que se realizará a vigília de armas, nessa capela consagrada a São Martinho, como indica um vitral que representa o Santo em trajes de cavaleiro, dando a um mendigo a metade de sua capa.

Por uma dessas sínteses muito felizes em que aparece o gênio, a santidade e a sabedoria da Igreja Católica, o cavaleiro não é apenas combatente; é glorioso sê-lo na defesa da Civilização Cristã e para a expansão do Reino de Maria na Terra. E porque é terrível no combate, odiando o erro, mas sem ódio àquele que errou, ao mesmo tempo em que ele é um herói formidável, é um homem cheio de caridade. E por isso ele luta pelas viúvas, pelos órfãos, pelos pobres, é altamente esmoler. Não possui muito dinheiro consigo, porque não tem ocasião para fazer riqueza; ele não é um burguês, dono de uma padaria ou de uma casa onde se vendem tecidos, e que vai tirando e acumulando lucros, mas um homem desprendido, que sem outros interesses percorre a Terra para defender o Reino de Cristo. Então, ele tem pouco dinheiro, mas é esmoler.

O vitral representa o episódio em que São Martinho de Tours, grande cavaleiro, ao mesmo tempo um símbolo da nação francesa, passando durante o inverno por um lugar onde há um pobre tiritando de frio, divide sua capa e dá metade dela ao indigente. Esse ato de amor ao próximo por amor de Deus deve ser praticado por aquele que, também por amor de Deus, vai combater e até odiar o próximo quando este se transforma num fautor, propagandista, baluarte do erro ou do mal.

Eram as vésperas de Pentecostes.

Foi escolhida, portanto, para receber a investidura da Cavalaria a lindíssima festa em que a Igreja celebra a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e a transformação completa da mentalidade deles, de homens que tinham mostrado um espírito tão diferente do cavaleiro, fugindo quando Nosso Senhor foi preso, e que recebendo o Espírito Santo se tornaram os primeiros cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foram sem dúvida os Apóstolos, verdadeiros heróis da Fé.

Ao mesmo tempo em que mata o herege, o cavaleiro reza para que ele se salve

Os futuros cavaleiros começam sua vigília invocando a Mãe de Deus. A noite será longa. É-lhes proibido sentar-se por um só instante.

Por que “os futuros cavaleiros”? Porque os pajens do jovem um dia também serão cavaleiros e fazem junto a vigília.

Um dos traços lindos da Idade Média é a devoção a Nossa Senhora. A vigília começa pedindo o auxílio da Medianeira de todas as graças, por meio da qual tudo se consegue e sem a qual coisíssima nenhuma se obtém.

Proibido sentar-se um só momento; fica-se em pé ou ajoelhado a noite inteira. Alguém me dirá: “Mas é duro!” Esta é uma dureza minúscula em comparação com as outras agruras que deverá enfrentar o cavaleiro ao longo de sua vida. Ele entra na vida dura. E a razão de ser de todas essas festas é que é dura a via para a qual ele entrou. Se entrasse para uma via mole, tais festas seriam uma tolice. O motivo é que ele, por amor a Deus e a Nossa Senhora, ingressou na via dura.

Eles rezam por si e pelos seus […]. Pensam nos rudes golpes de lança que eles darão, talvez também naqueles que receberão.

Oram provavelmente por aqueles que receberão seus golpes de lança. Aqui vemos caracterizado o amor ao próximo, por amor de Deus. Eles dão uma estocada no maometano ou no herege albigense e o derruba por terra, mas desejam a salvação eterna do homem que estão abatendo. Jogam no chão, mas não querem lançá-lo no Inferno. Ao mesmo tempo em que o matam, rezam para que ele se salve. São Bernardo chega a dizer que o guerreiro que luta com ódio pessoal é como um assassino, mas quem combate por um ódio doutrinário, porque aquele indivíduo adotou o erro e por isso deve ser combatido, este serve a Deus.

Missa especial para armar o cavaleiro

Eles pensam no grande dia que se levanta para eles, no elmo, […] no gume de sua espada; rezam mais uma vez. Enfim uma pequena luz branca penetra no santuário que pouco a pouco vai se tornando claro. Não há dúvida, é a aurora.

É muito bonita esta ideia: uma noite inteira de vigília, e depois uma pequena luz que entra aqui, lá, acolá, e as primeiras claridades da manhã penetram pelos vitrais do santuário onde estão os futuros cavaleiros que vão lutar pela glória de Deus, de sua Igreja e da Civilização Cristã.

Então um barulho de passos se faz ouvir na igreja. Um sacerdote chega e se prepara para celebrar a Missa […]. Essa Missa é muito solene e de muito remota origem. Ela é muito anterior à vigília de armas que os antigos não conheciam […]. Mais tarde o noviço fará uma confissão geral e se aproximará do Sacramento da Eucaristia. No século XII ainda não se faz alusão a esta Comunhão. Enfim a última bênção do padre libera o jovem e seus companheiros que se dirigem para o portal da igreja. São seis horas da manhã. O ar é fresco e eles têm fome.

Notem com que naturalidade isso é apresentado. Depois de uma coisa tão sublime, este pormenor: eles têm fome. Eis a naturalidade da Igreja que, tendo elevado os espíritos às mais altas considerações, cuida também do mais comum, porque tudo está dentro da ordem posta por Deus, harmonizado. O Criador quis que os homens tivessem fome de oração, mas também fome de pão. E a Igreja, ao mesmo tempo, estimula à oração e abençoa o pão. Tudo está numa sequência em que a harmonia incomparável do espírito católico se faz sentir.

Aparentes oposições são próprias do gênio e do espírito da Igreja

A volta para casa se faz novamente com alegria. Mas desta vez uma alegria mais vivaz. É bastante natural, depois de dez horas de meditação e de oração.

O recolhimento deu-lhes certa necessidade de se expandirem. Voltam mais alegres porque suas almas estão penetradas de Deus. Depois de uma longa oração não se deve imaginar que o próprio é regressar para casa cansado, dizendo: “Puxa! Onde está a cama para eu ir correndo deitar-me?” Não. A alma que aproveitou bem a oração volta animada para a vida diária, e não preguiçosa.

No castelo a mesa está posta. O futuro cavaleiro faz honra ao pão branco e às peças de caça que estão colocadas na mesa.

É, portanto, um desjejum vigoroso, com carnes, etc. Ele está alegre, comungou, encontra-se em estado de graça, prevê a festa e a cruz que se segue àquela.

É preciso tomar forças para a solenidade que está próxima. O dia será duro e belo […]. Logo depois desta refeição matinal, a cerimônia de investidura do cavaleiro começa.

O autor passa a descrever lentamente todas as partes da cerimônia na qual se arma o cavaleiro. É muito curioso ver como a Igreja vai aos poucos civilizando os povos. Aqueles eram tempos bárbaros nos quais o banho não era uma preocupação da pessoa. Como a Igreja promove o bem em tudo quanto faz e de todos os modos possíveis, mesmo naquilo que não está diretamente na sua missão, ela estabelece na cerimônia da investidura do cavaleiro um banho: o futuro cavaleiro tem que se banhar. Precaução altamente útil naquele tempo, ainda mais que não havia água encanada e o banho não era simples como em nossos dias.

O banho era realizado numa tina com água de rosas. E aqui está mais um desses paradoxos magníficos da Igreja: o homem vai ser armado de aço da cabeça aos pés; pois bem, esse homem é preparado pela prece, depois por um banquete e, em seguida, um banho de água de rosas para chegar todo perfumado dentro da armadura. Essas aparentes oposições são próprias do gênio e do espírito da Igreja que faz tudo assim.

Cerimônia de sua investidura

Chega, então, o momento solene da investidura:

O senhor de seu pai se dirige direto rumo a ele segurando a espada. A famosa espada tão ardentemente desejada, suspensa num rico talabarte.

Por que o senhor do pai dele? Isso é muito bonito. Nós estamos numa sociedade feudal onde todo mundo tem um senhor. Houve um rei da França que fez um decreto dando ordem a todos os homens que ainda não tinham senhores que escolhessem um, mas todos deveriam ter um senhor. E o senhor era para com seu vassalo como um pai em relação a seu filho. Assim como numa festa em família, estando presente o avô, a presidência caberia naturalmente a ele, também o senhor do pai do neo-cavaleiro foi convidado para presidir essa grande festa. É ele, então, que vai armar o cavaleiro. É a presença do vínculo feudal, misturando a autoridade familiar com a do Estado.

Dizia-se de um modo muito belo no “Ancien Régime”, continuador de tantas tradições medievais: o pai é o rei de seus filhos e o rei é o pai dos pais. Este era o pensamento, que vemos expresso nessa cerimônia.

Quando o rapaz vê aproximar-se a espada com o talabarte, fecha os olhos e se recolhe. E o senhor do pai dele faz um discurso: “Esta espada, eu não a conquistei de um chefe sarraceno. Fiz forjá-la eu mesmo, durante muito tempo a usei. Cabe-vos agora ser digno dela”.

Que coisa bonita! O indivíduo recebe, portanto, a própria espada daquele que é suserano de seu pai, o qual diz: “Isso vale muito mais do que se fosse de um sarraceno; usou-a um herói católico. Agora você vai utilizá-la, torne-se digno dela. Tenha respeito por essa espada que foi empregada dignamente no serviço de Deus. Seja ela, nas suas mãos, utilizada do mesmo modo”.

O jovem oscula respeitosamente o pomo da espada, que é oco e contém habitualmente augustas relíquias.

Honra, delicadeza e força

Enfim, o pai do novo cavaleiro se aproxima por sua vez: “Curva a cabeça que eu te vou dar a ‘colée’”.

É um golpe que o pai dá no filho para torná-lo cavaleiro. Não é uma coisa puramente protocolar.

Não é um golpe ligeiro que ele acena sobre a nuca de seu filho, mas sim um formidável golpe com a sua palma direita. O jovem quase cambaleia. Diz o pai: “Cavaleiro sejas, ó meu belo filho, e corajoso em face de teus inimigos!”

Essa tapona é como quem diz: “Muitas virão, muitas receberás; seja a primeira a de teu pai para te ensinar a reagir como herói”. Eu acho isso perfeito. Não há nada mais que replicar.

“Eu o serei, se Deus me ajudar”, responde o novo cavaleiro.

Nada, portanto, de presunção: “Ó, meu pai, deixe comigo…” Não! Humildade: “Sem o auxílio de Deus, não serei; mas se Ele me ajudar, eu serei, ó meu pai”.

Ouvem-se barulhos e gritos. As pessoas se afastam. Um relinchar claro se distingue. É a entrada dos cavalos. São cavalos enormes, magníficos. Eles chegam conduzidos pelos escudeiros. O cavalo de nosso barão é um presente de seu senhor. Ele é jovem, mas de raça e tem o nome de Veillantif, como o cavalo de Roland. Assim que o animal é trazido, o novo cavaleiro o abarca com um só olhar e dá alguns tapinhas amigáveis no pescoço; depois, de um salto só, ele se põe na sela, sem tocar no estribo.

Para mostrar que a coisa é séria, para valer. Portanto, mais uma vez, delicadeza e força.

Então lhe trazem suas duas últimas armas, as quais não se dão a não ser quando o cavaleiro está na sela: o imenso escudo que cobre um homem inteiro, e a lança que tem oito pés de altura.

É muito bonito receber ali essas armas!

Sobre o escudo está pintado o brasão da família.

O símbolo da família nem sempre é pintado, mas em relevo no próprio metal, lembrando ao cavaleiro que a partir daquele momento toda a honra da família está relacionada com a coragem que ele tenha no campo de batalha. Se for valente, ele continua aquele rio de virtude, de coragem, que é o curso de sua família através da História; se for um poltrão, pelo contrário, vai envergonhar a sua família e todo o seu passado; mais ainda, transmitirá a seus filhos um nome desonrado, maculado.

No alto da lança flutua um estreito e longo gonfalão com três faixas de pano. Não resta mais ao nosso barão senão provar que ele é bom cavaleiro.

Está um final bem francês, elegante, bem-apanhado.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1977)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Cf. GAUTIER, Léon. La Chevalerie. Cholet: Edition Pays & Terrois, 1999. p. 314-330.

 

Considerações sobre o Brasil Império – IV

Após tomar uma série de medidas contrarrevolucionárias, Dom Vital foi preso por ordem de Dom Pedro II, censurado pelo próprio Pio IX e anistiado pela Princesa Isabel. Tendo viajado a Roma para se defender num processo contra ele instaurado, foi considerado inocente pela Santa Sé, de um modo inteiramente providencial, mas acabou sendo morto pelos inimigos da Igreja.

 

Naquele tempo, as confrarias religiosas eram muito ricas, porque vinham da época do Brasil Colônia, com muitas propriedades. Havia pouco fervor religioso, pela simples razão de que o clero passava por uma grande decadência. Por exemplo, um dos regentes do Império era o Padre Diogo Antônio Feijó, um jansenista que andou com os estudos adiantados para uma quase separação do Brasil com Roma. Era sabidamente um mau padre.

Sagrado bispo na velha Catedral de São Paulo

Por outro lado, os inimigos da Igreja tinham proibido o noviciado nas Ordens religiosas no Brasil, de maneira que nenhum brasileiro podia entrar em nenhuma delas. Então, as Ordens muito ricas começaram a mandar seus jovens candidatos, em quantidade, fazer os estudos na Europa, de onde voltavam já ordenados padres. Isso as leis não podiam proibir. Eram os felizes dias do pontificado de Pio IX, e os seminários davam a melhor formação possível.

Um desses seminários era o dos capuchinhos na França, onde foi estudar um jovem pernambucano muito inteligente, alto, bem constituído, forte, com uns olhos oblongos, pretos, tão penetrantes que ele disse nunca ter olhado para uma fisionomia sem que num primeiro olhar compreendesse completamente a psicologia, as intenções da pessoa. Seu nome era Vital Maria Gonçalves de Oliveira, natural da cidade de Goiana, em Pernambuco. Ordenou-se, veio para o Brasil como capuchinho e começou a exercer o ministério em São Paulo.

Ele não era meu parente, mas amigo de parentes meus originais de Goiana como ele. Ocupava, então, o cargo de Ministro do Interior do Império o meu tio-avô, Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira.

Naquele tempo, quem indicava os bispos a serem nomeados pelo Papa era o Imperador. O Papa podia recusar, mas não lhe era permitido nomear um bispo sem ouvir o Imperador. O João Alfredo julgou que daria uma bela tacada nomeando essa pessoa muito chegada a ele para bispo, e propôs o Padre Vital ao Primeiro-Ministro, Visconde do Rio Branco. Este, para comprazer ao João Alfredo, concordou e apresentou o nome ao Imperador, o qual aceitou e ele foi sagrado bispo na velha Catedral de São Paulo.

Minha avó materna assistiu a essa ordenação e comentava que se lembrava dele, ainda em pé, na porta da catedral, dando a bênção ao povo, com as mãos de uma alvura e de uma beleza que chamara a atenção dela.

Dom Pedro II decreta a prisão de D. Vital

Ele foi para Pernambuco resolvido a tomar uma série de medidas contrarrevolucionárias. Ficou um ano ou dois em Olinda e Recife, tomando a temperatura, o pulso das coisas, orando e gemendo junto ao Santíssimo Sacramento, e pedindo que desse um jeito de vibrar um golpe nos inimigos da Santa Igreja.

Em certo momento, julgou já estar em condições de desferir o golpe e o fez por meio de cartas pastorais, destituições de maus priores de confrarias e até suspendendo de ordens os maus padres. Isso produziu uma polvorosa.

Ora, tudo isso Dom Vital fez baseando-se em um breve de Pio IX, e havia um velho tratado entre a Casa Real de Portugal e o Vaticano pelo qual, segundo a interpretação do Governo, os decretos papais não podiam ser aplicados sem a autorização do Imperador. O Vaticano negava isso.

Os opositores de Dom Vital recorreram ao Imperador alegando esse tratado. Dom Pedro II enviou, então, o seguinte recado a Dom Vital: “Eu mando prendê-lo e trazê-lo para o Rio de Janeiro para ser julgado, se Vossa Excelência não revogar as medidas tomadas. Ao que ele respondeu: “Então venham me prender, porque é inútil, eu não mudo”.

E o Imperador decretou a prisão. No dia estipulado para a execução do mandato, o chefe da Polícia de Recife foi ao Palácio da Soledade onde, na hora marcada, estava Dom Vital com mitra, báculo, vestido de grande cerimônia e cercado com as principais figuras de seu clero. Dirigindo-se ao chefe da Polícia, disse:

— O senhor veio me prender? Prenda-me!

O chefe da Polícia não esperava aquela cena… Ficou sem jeito e declarou:

— Vossa Excelência está preso.

— Assim não – retrucou Dom Vital –, é preciso que o senhor faça violência sobre mim.

— Eu não farei violência sobre o senhor.

— Se o senhor não fizer, não me entrego à prisão, porque quero que conste ter o Governo imperial exercido violência sobre mim.

— Mas que violência?

— Ponha a mão sobre o meu ombro e diga que eu estou preso. Assim entenderei que o senhor me ameaçou de força física e me entregarei.

Ele pôs a mão sobre o ombro do bispo e disse:

— Vossa Excelência está preso.

— Está bem, vou a pé até o cárcere.

Ora, isso era impossível. Levar como prisioneiro um bispo com mitra, báculo e todo paramentado, a pé para a cadeia, sairia uma arrelia popular que iria longe…

Diz-lhe o chefe da Polícia:

— Vossa Excelência é prisioneiro, quem manda sou eu! Está preparado um carro para levá-lo à prisão, onde deverá esperar o próximo navio que venha da Europa para levar Vossa Excelência para o Rio.

— Está bem. Agora entro no carro como prisioneiro.

Entrou e foi conduzido à prisão. Depois de dois ou três dias, passou um navio por Recife que o levou para o Rio de Janeiro.

Chegada ao Rio de Janeiro

Por uma tradição pitoresca e uma contradição cruel, Dom Vital viajou em um navio no qual tremulava no alto do mastro a bandeira do Império brasileiro, porque a Igreja estava unida ao Estado e o bispo era não só um alto dignatário eclesiástico, mas também do Estado. Entretanto, o dignatário que lá viajava estava preso. De maneira que nos vários portos onde o navio parava ao longo do extenso percurso, o ilustre viajante permanecia a bordo, sob vigilância, impedido de desembarcar.

Assim chegou Dom Vital ao Rio de Janeiro, onde uma prova particularmente cruel o aguardava. O Bispo do Rio de Janeiro naquele tempo era Dom Pedro Maria de Lacerda, homem mole, amigo de todas as composições e de todos os arranjos, única pessoa no Império que conseguia ter medo de Dom Pedro II, o mais patriarcal e bonachão dos imperadores. Dom Lacerda não se aguentava de medo ao ver seu colega, Dom Vital, expor a Igreja Católica aos riscos os quais ele imaginava que corria.

O Visconde do Rio Branco, pai do famoso Barão do Rio Branco, era o Presidente do Conselho dos Ministros. A ele cabia, juntamente com o Conselheiro João Alfredo, Ministro do Interior, tornar efetivo o mandato imperial de prisão de Dom Vital.

O Barão do Rio Branco, conhecedor exímio das fronteiras do Brasil…

Uma vez mencionado o Barão do Rio Branco, abro um parêntesis na história de Dom Vital, adianto-me no tempo e entro na época da República Velha para narrar um episódio pitoresco.

O Brasil, país de uma extensão enorme, estava com quase todas suas fronteiras indefinidas, porque não interessava à antiga colônia portuguesa fazer brigas por causa de limites de terras onde não se poderia chegar. A linha fronteiriça passava quase toda ela por terras incultas e inabitadas. Então, que interesse havia em discutir limites? Porém, já no tempo da República era de se prever o momento em que essas terras interessariam. Então, tornava-se necessário um homem que conhecesse, palmo a palmo, todo o traçado da linha do Tratado de Tordesilhas.

Espanha e Portugal tinham uma dúvida a respeito do interior do continente, e para evitar uma guerra entre ambos os países, recorreram à arbitragem do Papa Alexandre VI. Ele traçou uma linha perpendicular a partir de determinados pontos, e essa divisão foi aceita pelos dois países ibéricos no famoso Tratado das Tordesilhas. Naturalmente, foi um dos elementos para determinar, mais tarde, os limites entre as antigas colônias tornadas nações independentes.

O Barão do Rio Branco era cônsul, o que, naquele tempo, correspondia a um corte na carreira diplomática, pois o cônsul só tratava de questões comerciais e os diplomatas dos assuntos políticos. O diplomata era embaixador, usava um uniforme brilhante, com alamares de ouro, chapéu de dois bicos com pluma, espada, morava num palácio, era cercado de pompa. O mesmo não se dava com um cônsul.

Ora, o Barão do Rio Branco tinha se embarafustado por essas questões de limites completamente, numa época em que ninguém se interessava por isso. Ele era um leão na matéria, possuía cópias dos tratados e toda a documentação.

…é nomeado Ministro do Exterior

Quando se apresentou a necessidade de fazer a delimitação do nosso território, apelou-se para ele que foi nomeado, logo de uma vez, Ministro do Exterior, por cima de todos os diplomatas.

Entretanto, na hora de ser nomeado Ministro do Exterior, apareceu uma dificuldade: ele usava o título de barão, e a República não reconhecia títulos de nobreza. Portanto, nos decretos por ele outorgados seria obrigado a assinar José Maria da Silva Paranhos Júnior. Não podia utilizar o título de Barão do Rio Branco.

Vejam como os tempos eram outros… O Presidente da República ia elevar esse homem da condição de cônsul para a de ministro, e uma brilhantíssima carreira se abria para ele. Só faltava tomar posse. Então lhe avisaram:

— Vossa Excelência não pode usar o título de Barão do Rio Branco para ser ministro de uma república. A nobreza foi extinta e a República não reconhece barões.

Ele disse:

— Está bem, então desisto do meu título de ministro. Arranjem essas fronteiras como entenderem. Eu não aceito.

Estava posta uma incompatibilidade. Mas na terra do “jeitinho” haveria de aparecer um meio de resolver esse impasse. E o “jeitinho” foi este: ele assinava “Rio Branco”, mas não “Barão”.

Assim, todos os decretos promulgados por ele vinham assinados: “Rio Branco”. Ora, logicamente ele não tinha o direito de chamar-se “Rio Branco”, pois seu nome era José Maria da Silva Paranhos Júnior. “Rio Branco” correspondia ao extinto título de nobreza. Pois bem, todo mundo fingiu que estava muito bem e tocou-se a vida para a frente.

Ele era um técnico exímio em matéria de Geografia, conhecia os limites do Brasil perfeitamente. Neste ponto era um gênio. Para traçar uma fronteira é preciso conhecer os mínimos acidentes geográficos: uma montanhazinha, um regatinho, um lago, um pântano, nem sei o quê… Ele não só conhecia isso, mas negociava muito bem. Resultado: ele obteve para nós os imensos limites de nossas fronteiras.

O Bispo de Olinda e Recife é encarcerado na Ilha das Cobras

Voltando ao Brasil Império: Dom Vital desembarcou no Rio de Janeiro, onde, por ordem do Visconde do Rio Branco e do Conselheiro João Alfredo, em cumprimento do mandato do Imperador, foi enviado para a cadeia.

Com Dom Pedro Maria de Lacerda apavorado, uma parte do clero brasileiro contrário a Dom Vital e a opinião pública brasileira mais ou menos sem entender o que estava se passando, pasma de ver um bispo preso, o Rio de Janeiro inteiro assistiu, apaixonado, os debates, que tiveram lugar no Supremo Tribunal e foram muito teatrais, à maneira do século XIX.

Assim como o século XX, na sua primeira metade, foi o século do cinema, e na segunda metade o da televisão, o século XIX foi o do teatro. A Europa e o mundo se encheram de teatros, de companhias ambulantes de atores que visitavam todos os países.

Dom Vital era bem moço naquele tempo, creio que ainda não tinha 30 anos, alto, tez muito alva, barba longa, sobrancelhas espessas, trajando o burel franciscano. Ele entrou na sala escoltado pela polícia e dirigiu-se para o banco dos réus. Um ministro do Supremo Tribunal se levantou, pegou sua própria poltrona, foi até o banco dos réus e disse: “Senhor Bispo, vossa Excelência merece o lugar de um ministro. Tenha a bondade!”

Naturalmente, aplausos delirantes dos partidários de Dom Vital e vaia dos seus adversários. O ministro pouco ligou, voltou ao seu lugar. Pouco depois veio um funcionário do Tribunal trazendo outra poltrona para o ministro se sentar, e o julgamento começou. Este durou várias sessões nas quais Dom Vital fez uso da palavra para se defender. Quiseram que ele constituísse um advogado, mas ele disse: “Eu não constituo advogado porque não reconheço a este Tribunal o direito de me julgar. Sou Bispo da Igreja Católica e a mim só há um poder que julga na Terra: é o Papa, em Roma. Mais ninguém!”

Afinal o Tribunal condenou Dom Vital a quatro anos de prisão com trabalhos forçados. Contudo, o Imperador sentiu que era demais mantê-lo sob trabalhos forçados, porque se espalhariam por todo o Brasil uma série de gravuras representando o bispo com ferros e enxada nas mãos, vestindo trajes de sentenciado, o que daria a Dom Vital um redobrado prestígio de mártir. Então o monarca fez um decreto dando-lhe indulto quanto aos trabalhos forçados, mas obrigando-o à pena de prisão.

Uma carta de Pio IX

A partir daquele momento começou a vir gente do Brasil inteiro para visitar e venerar Dom Vital na prisão. Vinham pessoas de categoria do interior do Estado do Rio de Janeiro – fazendeiros, políticos –, mas também pessoas simples de todo o País, que viajavam a cavalo, em liteira ou banguê.

A liteira era um meio de transporte onde a pessoa viajava sentada numa cadeira colocada dentro de uma cabinezinha carregada por escravos. O banguê era mais cômodo: uma rede presa a dois paus com dois escravos levando aos ombros e o dono deitado nela.

Uma viagem dessas demorava vários dias e, por vezes, representava risco de morte. Tive ocasião de ver o testamento da famosa Marquesa de Santos, dispondo de todos os bens e pedindo Missas por sua alma, no qual ela declarava que viajaria para o Rio de Janeiro por mar e que, à vista do perigo considerável dessa viagem, precisava fazer o seu testamento.

Apesar disso, foi gente em quantidade de São Paulo e dos mais longínquos confins do Brasil, chegava ao ancoradouro do Rio de Janeiro, tomava barquinhos fretados para levar os peregrinos até a Ilha das Cobras, só para ver Dom Vital, receber dele uma bênção e depois voltar.

Até então, para o bispo prisioneiro era apenas um crescimento de prestígio. Entretanto, certo dia aparece Dom Pedro Maria de Lacerda acompanhado do Internúncio, aporta o barquinho, descem e pedem para falar com Dom Vital. Naturalmente, são recebidos, sentam-se e aí começa o martírio de Dom Vital.

— Tenho uma carta do Santo Padre Pio IX para Vossa Excelência – diz o Internúncio.

Dom Vital sentiu que vinha um golpe. Ele, que lutara pelo Papado até o último ponto, levava um golpe do próprio Papa. Não podia ser mais cruel. Era um verdadeiro martírio de alma. Ele respondeu:

— Pois não, desejo ver.

Um dos dois puxou a carta e lhe entregou. Ele abriu, leu, e viu tratar-se de uma carta de Pio IX mandada por meio do Secretário de Estado, Cardeal Antonelli, censurando a atitude dele.

Terminada a leitura, Dom Vital dobrou a carta, colocou-a no bolso e ficou quieto. Um dos dois, que conhecia o conteúdo da carta, disse:

— Mas, como? Vossa Excelência não nos comenta nada sobre a carta?

— Comento que a recebi.

— Bom, mas Vossa Excelência não nos dá a carta?

— Não, o destinatário sou eu. Portanto, sou o dono dela. Ela está no meu bolso.

— Mas então, não há comentário a fazer?

— Não. A carta é para mim, não é para Vossa Excelência.

Ao que parece, ele não respondeu a Pio IX. Quando saísse da cadeia, ele iria a Roma se entender com o Papa.

Anistia concedida pela Princesa Isabel

Nesse ínterim o Imperador viaja para a Europa e deixa a Princesa Isabel como Regente do Império. Ela era a primogênita, e o Imperador não teve filhos homens. Logo, se ele morresse, a Imperatriz seria a Princesa Isabel. Naturalmente, ela ficava na regência do Império, como herdeira do trono. Sendo muitíssimo católica, uma das providências que ela teve mais empenho em tomar, na ausência do pai, foi anistiar Dom Vital.

Uma vez libertado, Dom Vital voltou para Recife onde sua absolvição causou uma festa geral, sendo ele recebido apoteoticamente pelo povo. E foi para o Palácio da Soledade. Lindo título para um palácio de bispo; lembra a soledade de Nossa Senhora, ou seja, o estado em que Ela ficou só, no período entre a Morte e a Ressurreição de Nosso Senhor. Então, Palácio da Soledade eu acho um nome imponente, lindíssimo.

O Vigário Geral da Diocese tinha mandado pintar todo o palácio por fora e por dentro, e Dom Vital foi recebido com festas e permaneceu lá. Mas depois de ter passado algum tempo, ele declarou que ia a Roma para dar satisfações a Pio IX. Ele queria conversar sobre a carta, levava a missiva consigo.

Em Lourdes, uma misteriosa voz infantil anuncia a vitória

Ele partiu para Roma e foi recebido por Pio IX com frieza. O Papa comunicou-lhe que seria processado canonicamente e estudariam se ele estava ou não com a razão.

De fato, o processo começou e ele compareceu às Congregações romanas competentes para prestar depoimento e depois viajou para Lourdes, onde estava começando o auge das curas milagrosas. Ali ele almoçou e foi fazer uma sesta, tendo um desses sonos em que as preocupações esvoaçam em torno da pessoa como morcegos. De repente, Dom Vital ouve uma voz de criança, que parecia vir do lado de fora do hotel, dizer: “Dom Vital, o processo está julgado, Vossa Excelência ganhou”.

Ele se impressionou com aquilo, julgando que talvez fosse uma graça de Nossa Senhora, porque uma voz vinda da rua dizer-lhe isso em português, naquele tempo em que os turistas eram muito mais raros do que hoje, as viagens caras, difíceis, era uma coisa muito singular. Ele ficou impressionado e, algum tempo depois, recebeu um telegrama do representante dos capuchinhos em Roma, confirmando: “Seu processo está ganho.”

Esse capuchinho escreveu a Dom Vital contando que a comissão de cardeais que devia julgar o caso dele permaneceu numa sala, à espera da hora marcada para o início do julgamento. Ali ele esteve com todos os cardeais antes de começar a reunião e, como representante da Ordem dos Capuchinhos, falava a favor de Dom Vital. Mas notou que todos os cardeais estavam contra.

Quando eles se trancaram no recinto onde deveriam deliberar sobre o assunto, o capuchinho ficou do lado de fora e já considerava o caso perdido. Não se sabe o que aconteceu, mas quando eles abriram a sala, estava pronto o decreto considerando Dom Vital inocente. Foi para ele uma vitória brilhantíssima!

Pintam com tinta tóxica o quarto em que Dom Vital dormia

Entretanto, outra provação se delineava no horizonte. Um padre, parente meu muito chegado, pernambucano de Goiana, e que era cônego, conhecido como Cônego Luís Cavalcanti, contou-me que ouviu isso do próprio secretário de Dom Vital, que viajava sempre com o Bispo de Olinda. Dizia este sacerdote brasileiro que Dom Vital era um fisionomista extraordinário e, tendo visto uma fisionomia, não esquecia mais. Em certo momento, ele disse para o secretário:

— O senhor preste atenção: em todos os lugares aonde eu vou aparece sempre o mesmo homem, cuidadosamente disfarçado, me acompanhando, e sempre arranja um jeito de me saudar, fazendo-se de muito católico, querendo sempre saber para onde vou.

Quando o fato se dava, depois de o homem ir embora, Dom Vital dizia para o secretário:

— O senhor reconhece?

O secretário afirmava que algumas vezes o homem estava tão bem disfarçado que ele por si não reconheceria, mas Dom Vital dizendo quem era, ele percebia. Outras vezes o secretário o reconhecia também. Dom Vital tratava o tal homem sempre com muita polidez.

Dom Vital adoece de repente e começa a cuspir sangue junto com matéria orgânica preta, que parecia pedaços do pulmão. Chamaram os melhores médicos da França e todos diziam não ser tuberculose, mas não sabiam qual era a doença. Como não existia ainda a radiografia, eles só podiam diagnosticar por auscultação, e esta não indicava nada que ajudasse no diagnóstico. Para resumir, Dom Vital morreu.

Houve naquela época, em Portugal, a morte de vários membros da Família Real portuguesa que atrapalhavam uma certa sucessão ao trono, e ninguém sabia do que morriam. Investigações feitas neste século provaram que na tinta utilizada para pintar as paredes dos quartos onde eles moravam era introduzida uma substância tóxica, que criava nos pulmões um processo de desagregação o qual levava à morte. Ao ser examinada a tinta do quarto de dormir de Dom Vital, foi detectada a mesma substância tóxica. Compreende-se, então, por que Dom Vital morreu.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/11/1985 e 7/12/1985)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

São Cirilo de Alexandria – Execração até o último limite

Partindo do exemplo de São Cirilo de Alexandria, arrojado defensor da Maternidade Divina de Maria, Dr. Plinio faz uma penetrante análise sobre como Deus execra aqueles que, entre a verdade e o erro, tomam uma posição intermediária, como está consignado no Apocalipse: Se fosses frio ou quente, Eu te aceitaria; mas como és morno, começo a vomitar-te de minha boca. Os mornos são o melhor dispositivo de proteção do erro, mas os execrados do Coração de Jesus.

 

Sobre São Cirilo de Alexandria, cuja memória é celebrada em 27 de junho, diz Dom Guéranger:

Defensor da maternidade divina de Nossa Senhora

Por carta, São Cirilo tentou reconduzir Nestório, mas esse sectário aferrava-se a suas opiniões. Por falta de argumentos, Nestório queixava-se ao Patriarca da ingerência de São Cirilo. Como sempre em tais circunstâncias, Cirilo encontrou homens apaziguadores que, sem partilhar o erro nestoriano, considerava que o melhor, com efeito, era não responder, por temor de o irritar, de aumentar o escândalo e de ferir a caridade.

A esses homens, cuja singular virtude tinha a propriedade de se abalar menos das audácias da heresia que da afirmação da Fé cristã, a esses partidários da paz a qualquer preço, respondia Cirilo:

“Como Nestório ousa deixar dizer em sua presença, na assembleia dos fiéis, anátema seja quem chama Maria Mãe de Deus; pela noção de seus partidários, ele chama de anátemas nós e os outros bispos do universo e os antigos Padres que em todas as partes e em todas as épocas reconheceram e honraram unanimemente a Santa Mãe de Deus? E não estamos em nosso direito de devolver-lhe sua palavra e dizer: Se alguém nega que Maria seja a Mãe de Deus, seja anátema? Se o medo de qualquer aborrecimento afasta de nós o zelo pela glória de Deus e nos faz calar a verdade, com que rosto podemos celebrar em presença do povo cristão os santos mártires, quando o que faz o elogio desses que morreram é unicamente o cumprimento desta palavra: pela verdade combatiam até a morte?”(1)

O trecho é verdadeiramente magnífico. São Cirilo, que viveu no século V, combateu a heresia de Nestório afirmando a maternidade divina da Bem-aventurada Virgem Maria. Nos primeiros séculos da Igreja houve pessoas que, impugnando o dogma da divindade de Nosso Senhor, afirmavam que Ele era só homem e não Deus. Outros afirmavam que Ele era Deus, mas não homem, e que tomava o aspecto, a aparência de homem, como um fantasma, porém negavam que Ele fosse o Homem-Deus. Dos dois lados a heresia tentou abalar a crença católica de que Nosso Senhor Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, como professamos até hoje.

Os que mais atrapalham a Causa católica

A heresia de Nestório, ao negar a perfeita união entre as naturezas humana e divina em Nosso Senhor Jesus Cristo, constituindo uma só Pessoa divina, tinha uma consequência no que diz respeito a Nossa Senhora, pois afirmava ser Ela apenas mãe do homem Jesus, e não Mãe de Deus. Portanto, a maternidade divina de Maria não existia.

Estabeleceu, assim, a clássica distinção entre ortodoxos, que professavam haver em Nosso Senhor Jesus Cristo ambas as naturezas em uma Pessoa Divina, e heterodoxos, partidários de Nestório. Entre essas duas correntes havia os tais pseudo-equilibrados, querendo fazer ecumenismo e irenismo. Estes achavam, já no século V, ser melhor não fazer discussão porque irrita o adversário, tornando mais difícil a possibilidade de conversão, além de agir contra a caridade. Então, voltavam-se contra São Cirilo porque este Santo falava mal deles.

Pergunto se não é exatamente o que se passa em nossos dias. Há uma raça de almas que correspondem àquilo que está dito na Escritura: Se fosses frio ou quente, Eu te aceitaria; mas como és morno, começo a vomitar-te de minha boca (cf. Ap 3, 15-16). Isto é, se tu aceitasses a verdade, Eu te aceitaria; se tu aceitasses o erro e te arrependesses, Eu te perdoaria. Mas como és daquela espécie de gente morna, que não está nem do lado da verdade, nem do lado do erro, tu Me causas a náusea que a água morna provoca. Sabe-se que a ingestão de água morna em certa quantidade é nauseante. É até usada para provocar a náusea, em determinadas doenças. São os execrados de Deus, que Ele vomita de sua boca, com aquele tipo especial de horror que é o nojo, que caracteriza a náusea. É isto que Nosso Senhor tem em relação a esses.

São eles os que mais atrapalham a Causa católica. Porque sempre se aproximam dos outros dizendo para não seguirem os defensores da verdade, porque eles, mornos, são católicos também, mas não tão exagerados quanto os outros. É por causa disso que as fileiras dos verdadeiros seguidores da Causa católica contam muito menos adeptos do que deveriam contar. O melhor dispositivo de proteção do erro não está entre aqueles que o professam, mas entre os que dizem professar a verdade, porém nas táticas protegem o erro; são verdadeiramente a quinta-coluna que sempre existiu nesse tipo de luta.

Isto nos deve levar a compreender que espécie de horror devemos ter a esse tipo de almas. E se queremos ser inteiramente conformes a Nosso Senhor, imaginem a náusea que essas almas nos devem dar! Quando ouvirmos tais argumentos, o que devemos sentir é náusea. Porque se devemos ser perfeitos como nosso Pai Celeste, e se é legítima aquela jaculatória “Sagrado Coração de Jesus, tornai meu coração semelhante ao vosso”, então precisamos também ter náusea daqueles de quem o Pai Celeste tem náusea. E se queremos ser como o Coração de Jesus, devemos ter horror àqueles de quem Ele tem horror.

Aí está o pedido que devemos fazer a Nossa Senhora: compreender de modo vivo o horror dessa posição e ter contra ela toda a execração infinita que Deus possui em relação a esse tipo de gente. Uma execração que vai até o último limite: é o nojo, o asco, o desprezo. Essa posição intermediária atrai mais a cólera divina do que a definida posição contrária.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1966)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Cf. GUÉRANGER, Prosper-Louis-Pascal. L’année liturgique. Septuagésime. p. 324.