Teoria do Amor à Cruz

O mundano, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formado, admira quem é cheio de honras, dinheiro e conforto. O verdadeiro católico, dotado de sabedoria, desapegado de seus bens e que os utiliza por amor a Deus, possui uma dignidade, um decoro, uma distinção, uma compostura, que são o brilho da Cruz de Cristo.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort(1) apresenta o seguinte elemento para praticarmos perfeitamente o amor à Cruz:

“Renuncie a si mesmo!”

Longe dos Amigos da Cruz os orgulhosos e os sensuais!

Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! “Abneget semetipsum”, renuncie a si mesmo! Longe da Companhia dos Amigos da Cruz os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruído e colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a mim” do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (Lc 18, 2), que não podem suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebaixem sem exaltar-se!

Tende bem cuidado para não admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, que se queixam da mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e falta de mortificação.

Mudança completa de mentalidade

Há aqui umas pequenas observações a fazer. Em primeiro lugar, essa ideia claríssima, de Nosso Senhor:

“Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz!”

Essas são palavras já tão conhecidas e referidas, com tanta superficialidade e banalidade de espírito, por pregadores de segunda classe, que elas tomam aspecto de chavões. Ora, Nosso Senhor não poderia ter dito chavões. E não é possível que o Espírito Santo tenha inspirado chavões. De maneira que, chavões não podem ser. Existe uma pátina de trivialidade por cima dessas coisas, que não se pode confundir com a substância delas, porque do contrário seria admitir que Nosso Senhor diria banalidades, o que é o absurdo dos absurdos.

Como nós podemos atender esse conselho de Nosso Senhor?  Tal conselho de algum modo toca o preceito e até o âmago do preceito: “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo…”; e deve ser aniquilado e crucificado, de tal maneira que só se glorifique na pobreza, nas humilhações e nas dores.

Em primeiro lugar, isso supõe uma espécie de metanoia, uma mudança completa de mentalidade. Porque o homem, pelas forças, pelas tendências de sua natureza, admira o contrário dessas coisas. Ele tem admiração pelo sucesso, pela riqueza, pelas glórias, pelo bem-estar. E quando ele vê uma pessoa nos píncaros da fortuna e das honrarias, gozando do sumo bem-estar, é levado a querer admirá-la. Pelo contrário, quando um indivíduo não tem isto, ele tende a não admirá-lo.

Honras, dinheiro e conforto

É por causa disso que os amigos do mundo procuram cercar de glória, de dinheiro, de bem-estar os homens que eles querem prestigiar; e buscam evitar o acesso a essas coisas às pessoas cujo prestígio desejam evitar. Porque eles sabem que uma grande glória, uma grande fortuna, a ostentação de um bem-estar mais nítido, são tribunas do alto das quais um homem afirma a sua superioridade perante os outros, e se transforma num doutor deles; o que ele diz, os outros acreditam facilmente, ele se torna um símbolo e um guia para os outros. Quer dizer, ele representa a própria plenitude da humanidade. Doutor, símbolo e guia são as três formas pelas quais um homem pode arrastar a opinião pública atrás de si.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, isso é igualmente sabido”.

Eu afirmo: “É verdade, porém não é tão lembrado”. Além disso, é preciso dizer o seguinte: devo retificar em mim esse modo de pensar, e aí está o aspecto metanoia. Quer dizer, preciso agir internamente em mim mesmo, pedir a Nossa Senhora que me dê a graça de ser de tal maneira, que essas coisas não contribuam para que eu tome alguém como meu mestre ou doutor, meu símbolo e meu guia. Mas que eu seja capaz de compreender que isso não são credenciais para ninguém, debaixo de nenhum ponto de vista, e devo tomar outros critérios para julgar os homens.

Por exemplo, o mundanismo não é senão isso. Toda forma de mundanismo acaba tendo esses sintomas. A pessoa que é mundana, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formada, admira o homem cheio de honras, ou de dinheiro, ou de conforto.

Erva daninha em nosso espírito

Eu lhes garanto o seguinte: se fizermos um exame de consciência cuidadoso, corremos o risco — não digo uma certeza, mas um risco sério — de encontrar resquícios disso dentro de nós. Quer dizer, há pessoas que admiramos e exercem império, se não sobre a nossa razão, pelo menos sobre as nossas vivências, porque elas têm algum desses três títulos. E isso de tal maneira nos fascina, que não somos capazes de abalá-lo, de derrubá-lo. Mais ainda, quando desejamos nos credenciar à consideração dos outros, em vez de procurarmos brilhar pelo esplendor da Cruz, intentamos dar-lhes ideia, ou de que somos ricos, ou cercados de muitas honras, ou de que temos um bem-estar esplêndido.

De maneira que há uma verdadeira necessidade de meditarmos a respeito disso, para evitar o desenvolvimento de uma erva má, que a todo o momento está renascendo no espírito de todos nós, ou de quase todos nós; corta-se e renasce, corta-se e renasce.

Por exemplo, conversas mundanas, tratando sobre pessoas que têm qualquer evidência na classe à qual pertencemos. No fundo, tais conversas são sempre seguidas de um preito de admiração à pessoa de quem se fala, por causa desses títulos. Daí vem o efeito debilitante do mundanismo sobre nós. Porque, admirando essa gente, imediatamente em nosso espírito forma-se uma posição falsa a respeito de nós mesmos. Começamos a nos sentir pouca coisa, inibidos, a duvidar do alcance dos grandes lances que nós jogamos. Por quê? Porque não temos dinheiro, honras, em quantidade suficiente para deslumbrar os outros. Possuímos o suficiente para aparecer com dignidade, com decoro, se quiserem, mas para deslumbrar não. Temos o nosso bem-estar nessas proporções. E muitas formas de insegurança em nós resultam da pujança dessa erva daninha no nosso espírito.

Dignidade, desapego e amor de Deus

Se os que estão neste auditório dessem orientação espiritual, compreenderiam melhor o mal que pode fazer a uma alma, numa hora errada, a evocação de um mundano. Aquilo entra como uma picada de uma mosca venenosa e pode estragar um dia, exatamente por causa do mundanismo.

Alguém poderia dizer: “Dr. Plinio, o senhor está preconizando que nós não procuremos nos vestir bem, ter um decoro, uma compostura! E que sejamos uns trapos, ao contrário do que o senhor toda a vida ensinou! Porque se é para ostentar só a Cruz de Jesus Cristo, não se pode fazer brilhar as outras coisas que a pessoa tem”.

O princípio se transmuda da seguinte maneira: como faço brilhar a Cruz de Cristo em mim?

Há uma expressão fisionômica do verdadeiro católico que lhe dá compostura, dignidade e beleza. É um quê pessoal indefinido, o qual resulta da intimidade ou da compenetração da alma com os mais altos princípios da doutrina católica. As expressões mais elevadas do pensamento se tornam para ela como que naturais. A posse da virtude da sabedoria, incluindo em si todas as outras virtudes adequadas, adaptadas ao próprio temperamento; com aquele senso da dignidade sobrenatural do que a pessoa é de fato; com o desapego das coisas no que diz respeito à vaidade, e com aquele puro amor, desejando que essas coisas brilhem, porque são dons de Deus, e para que agradem ao Criador, mas desinteressado em que façam pôr em relevo a miserável pessoinha de cada um de nós; quando isso entra numa alma dá-lhe uma dignidade, uma honestidade, um decoro, uma distinção, uma compostura que é o brilho da Cruz de Cristo.

A Cruz de Cristo é o conjunto de sofrimentos necessários para adquirir a sabedoria. É o conjunto de renúncias, de asceses, de aplicações contínuas e, portanto, muitas vezes esses sofrimentos são sentidos nos pontos fundamentais, com os devidos equilíbrios, contrafortes, as devidas hierarquias; a alma pena para ter amor à Cruz de Cristo. E o esplendor da Cruz de Cristo é uma certa nota de desapego, que vem junto com todos esses dons, e é condição para que esses dons se tornem suscetíveis de serem amados por outros.

Quando uma pessoa tem uma superioridade qualquer, é difícil fazer com que os outros aceitem a própria inferioridade. Mas o modo pelo qual isso ainda é possível, com o auxílio da graça, consiste em fazer com que os outros notem o desapego. Mas se notam uma satisfação vibrante, apegada àqueles dons, e o olhar oblíquo para ver se outros estão admirando ou não, e uma efervescência se não for admirado, os outros notam o apego. Apego gera apego, e nada torna um inferior tão apegado quanto o apego do superior.

Prestígio verdadeiro e sacrossanto

Então, a posse de todas as qualidades de uma determinada alma — que a graça ou a natureza lhe concedeu —, consideradas pelo aspecto sapiencial, nas proporções sapienciais, com renúncia a qualquer coisa contrária e sendo a posse desapegada, isto dá à alma algo que é fator de prestígio verdadeiro e sacrossanto, incomparavelmente maior do que o prestígio de ter automóvel ou qualquer outra coisa.

Esse autêntico prestígio vale mais do que o da Ciência. Há um mundanismo dos homens livrescos e outro dos fúteis. E, no fundo, um é tão fútil quanto o outro; apenas o segundo é um mundanismo mais deslumbrado e ensebado.

Há uma espécie de honestidade, de dignidade, de grandeza de alma, em comparação com o qual tudo mais é resto.

Senso aristocrático e sabedoria

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor parece fazer uma exclusiva glorificação da virtude. A glória do homem é a virtude e nada mais. Ora, isso está em contradição com o hábito que o senhor tem de realçar muito os valores aristocráticos”.

Não é verdade. O que é aristocracia? O senso aristocrático é o aspecto da sabedoria pelo qual o homem sábio nota o que é mais excelente e o que é menos excelente. E dá às coisas com que ele trata um valor que está de acordo com as hierarquias delas. E, quanto a si mesmo, se mostra compenetrado do valor que lhe toca nessas hierarquias, tudo por amor de Deus. De maneira que nada pode produzir um senso aristocrático tão “raffiné”, tão requintado, quanto a verdadeira sabedoria.

O espírito hierárquico não é senão um amor sapiencial à desigualdade, que leva o homem a ter um amor próprio — não de quem está pensando em si mesmo —, mas um amor adequado ao seu próprio grau, tanto quanto ao grau dos outros. E a respeitar cada coisa, não porque é sua, mas por amor de Deus.

Vê-se em muitas pessoas que têm, por exemplo, qualquer grau aristocrático, se entra o amor de Deus ou o amor de si mesmo pelo meio, e a vivacidade com que se interessam pela instituição nobiliárquica, quando não diz respeito a elas.

Então o amor à Cruz não é em nenhuma hipótese o “débraillé”, o desarranjado, o esmolambado, nem o sentimental. Mas é qualquer coisa que prepondera sobre isto.

Segurança e insegurança

Quanto às seguranças e inseguranças, isso dá no seguinte: quem tem esse espírito condenado por São Luís Grignion de Montfort, ou que pelo menos possui “vegetações” subconscientes desse espírito, no conflito ou no contraste entre as duas formas de esplendor — a da Cruz e a do mundo —, chega a sentir-se inseguro. Quem ama verdadeiramente essa hierarquia de valores compreende a força dela e que essa insegurança não tem razão de ser. Pode-se ir para a frente, e aguentar o confronto com toda a firmeza, porque em si a superioridade da Cruz é simplesmente incomparável.

Se nós tivéssemos sempre a compenetração disso, como a nossa vida se tornaria mais fácil! E como todas as nossas atividades se tornariam mais compreensíveis! Por exemplo, um dos segredos de nosso apostolado, do nosso modo de nos apresentarmos em público, consiste em realçar isso. Aqui está a nossa grandeza.

Pôr em ordem a consciência

Alguém perguntaria: “Mas então o senhor considera que o dinheiro, o traje e outras coisas são inúteis para a apresentação?”

Eu não disse que essas coisas são inúteis. Afirmo que elas são de uma utilidade real, mas secundária, para serem assumidas por essa superioridade de espírito e representá-la. Elas existem para sublinhar o prestígio da virtude junto às pessoas com menos profundidade de vistas. Elas representam, em relação ao esplendor da Cruz, o papel do pedal do piano em relação à nota musical, aumentando sua sonoridade. E, como a força do mundo está continuamente procurando acalcar o pedal que diminui a sonoridade, é normal que se acalque o pedal oposto. Mas não é indispensável e nem o principal.

Que vantagem há em explicar isso? Os que se encontram nesta sala não apreenderam nada de novo pelo que eu disse. Mas se lembraram de alguns princípios úteis, tiveram ocasião de se embevecer e de amar mais uma vez a doutrina católica diante de uma reexposição de tudo quanto ela tem de bonito, e sobretudo puderam pôr em ordem a sua consciência, em face a alguns desses chavões, que sempre constituem umas pedrinhas nos sapatos da pessoa.

Aí está uma pequena teoria do amor à Cruz, num comentário muito livre desse texto de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 29/7/1967)

 

1) Carta-Circular aos Amigos da Cruz, n. 17.

 

Amigo da Cruz

Uma das consequências mais prejudiciais do “American way of life”, difundido por todo o mundo por Hollywood, talvez tenha sido incutir nas mentalidades a ilusão de que é possível uma vida sem Cruz; e de que a felicidade está em gozar todos os prazeres — lícitos e não lícitos — que o mundo proporciona. Posteriormente, a televisão e a internet não fizeram senão exacerbar essa ilusão ao máximo. Assim, estamos hoje colhendo os amargos frutos dessa utopia. Como a vida real não corresponde ao mito representado nas telas, “as pessoas inauguram uma série de fraudes psíquicas para levar uma vida como se não sofressem”, alerta Dr. Plinio. Vem daí a frustração seguida, tantas vezes, pelo desequilíbrio mental, pelo desespero, resultando na fuga para as drogas e para a criminalidade, ou ao menos para a extravagância, de parcelas crescentes da população de todas as idades.

Desconhece-se uma faculdade da alma humana: a capacidade e a necessidade de sofrimento, a que Dr. Plinio chamou “sofritiva”. Quando ela não é atendida pelo padecimento efetivo, a pessoa sente uma frustração no fundo da alma, mais dolorosa do que o próprio sofrimento. Na realidade, “a felicidade da vida consiste em sofrer com conta, peso e medida, em vista de um determinado fim e ter o bom sofrimento que justifica esse fim. […] Como o homem tem essa espécie de capacidade ‘sofritiva’ que precisa se esgotar sofrendo, e como ele sofre mais não sofrendo, a questão é ter um sofrimento que seja, por assim dizer, adequado e proporcionado a ele, que tenha razão de ser e um fim que ele compreenda, e que a alma dele seja capaz de aguentar. Então ele o dá por bem empregado e, com isso, realizou o seu fim”.

Este é o ponto: “a única forma de felicidade verdadeira da vida é conseguir o fim para o qual se existe. Por mais que custe, por mais que doa, por mais que seja difícil, alcançado o fim, a pessoa está feliz!”

Em suma, “não há nada mais adequado para conferir nobreza à alma do que o sofrimento; sem este, não pode haver nobreza para a alma. Depois do pecado original, não há faculdade da alma que adquira a plenitude sem o sofrimento”.

O otimismo metódico pelo qual se quer viver como se o mal e o erro não existissem, é uma das formas de evitar o sofrimento.

Portanto, “o conceber a vida como uma série de sucessos é completamente falso, frustro e errado. A vida não é ter sucesso ou não, a vida é ter feito o dever, o qual, às vezes, é o de não ter sucesso. É o de representar um dos maiores papéis: o do infortúnio digno, do insucesso com elevação de alma, e com isso habituar os outros ao próprio infortúnio. Ser o mestre dos outros no infortúnio é um dos mais nobres papéis na vida!”

O celeste rosto de Maria

Quantas vezes o reflexo de um castelo nas águas de um lago é mais belo que o próprio edifício!

Ao caminhar sobre o Mar de Tiberíades, Jesus refletiu-Se nas águas. Entretanto, Ele era mais belo do que o reflexo.

Sem dúvida, isto seria verdade em quaisquer águas do mundo: do Danúbio, do Sena, do Tejo, do Guadalquivir, do Reno, da Baía da Guanabara, e de tantos lugares magníficos da Terra.

Mas o que seria verdade em todos os mares da Terra, não o era apenas num “mar”, maior do que todos eles, entretanto, tão menos extenso: Maria. Porque quando Nosso Senhor olhava para sua Mãe Santíssima, coisas que só Ela compreendia n’Ele se refletiam no semblante d’Ela. E quem olhasse para o celeste rosto de Maria teria como que uma porta de acesso de ouro, para compreender os mistérios da Sagrada Face de Jesus!

Em Maria, só em Maria, mas plenamente em Maria, alguém olhando veria algo que Jesus só manifestava a Ela e àqueles que sabem procurá-Lo n’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1980)

Altivez e humildade

Na Idade Média esplendorosa, os cavaleiros eram ufanos e briosos na luta, mas cordeiros da obediência, mostrando a justaposição das virtudes opostas do verdadeiro  católico, levadas até o extremo.

 

Encaminharam-me uma nota referente a Ordens militares de Cavalaria, mais especificamente da Ordem Militar de Santa Brígida. O texto é tirado da “História das Ordens  Monásticas Religiosas e Militares”, do sacerdote franciscano Pierre Hélyot(1).

Dois modos de se tornar herói

Assim nos diz a referida obra: Lemos nas revelações, quando da origem da Ordem de Santa Brígida, que Jesus Cristo lhe fez conhecer quanto Lhe eram agradáveis os votos daqueles que, sob o nome de cavaleiros,

se engajavam para dar a sua própria vida pela d’Ele, e para defenderem e manterem pela força das armas os interesses da Igreja e da Religião Católica.

Mas o mesmo Salvador queixou-Se também à Santa de que esses mesmos cavaleiros se haviam afastado d’Ele, desprezavam as suas palavras, faziam pouco caso dos males que Ele havia suportado na Paixão e, conduzidos pelo espírito de soberba, amavam mais morrer na guerra com a única ideia de obter a glória e atrair para si a estima dos homens, do que viver na obediência dos seus Mandamentos.

Esse foi sempre o defeito da Cavalaria. Um indivíduo pode ser herói por duas razões. Uma delas é uma grande razão: ser herói por amor de Deus. Outra corresponde a uma das maiores provas da estultice humana que possa haver: por vaidade ou faceirice. Porque é incompreensível qual a forma de faceirice que possa compensar ao homem a perda de sua própria vida. Do que me adianta morrer supondo que os outros estão me julgando um colosso, se perco a vida  e  não ouço as palmas  que  me  são dadas por ocasião da morte?

Manifestação da estultice humana

Uma coisa que eu nunca pude compreender é o fato de cavaleiros da Idade Média decadente se revestirem completamente de metal, e investirem um contra o outro naquela luta violentíssima de torneio, na qual eles podiam ser gravemente feridos, apenas para ficar bonito diante dos outros.

Imaginem que num embate desses o cavaleiro ficasse cego . Do que adiantou ficar bonito? Todo mundo exclama: “Ah, que coisa extraordinária!”, e o indivíduo no escuro, apalpando . . . Que sentido tem isto? É uma coisa literalmente incompreensível porque viola todas as regras da lógica. Se for feita a um cego a seguinte proposta: “Você pode ficar curado de sua cegueira. Mas se continuar cego, todo mundo vai achar lindo”. Ele quererá continuar cego? Ele escapole de dentro da cegueira de todo jeito. E, se puder, arranja o lindo de outro jeito ou consola-se sem o lindo, mas ficar cego, não.

Contudo, o espírito humano é passível de tantas deformações que, embora parecesse fácil encontrar heróis que o fossem por amor de Deus, de Nossa Senhora, por fé na vida eterna, e impossível conseguir heróis que o fossem por uma razão terrena e estúpida, a verdade é o contrário.

O homem está tão degradado pelos efeitos do pecado original, tão diminuído, que ele facilmente, em certas épocas da História, dá para herói sem sentido religioso. E quando ele entra numa Ordem de Cavalaria, o difícil não é ser herói, mas manter o verdadeiro motivo pelo qual se deve ser herói.

É uma das manifestações mais aflitivas da imbecilidade humana, mas essa expressão foi muito crua no tempo da decadência da Cavalaria e, portanto, das Ordens de Cavalaria também.

Destruir os inimigos de Deus e proteger os seus amigos

Entretanto, Jesus declarou  a Santa Brígida que se quisessem retornar a Ele, estava pronto a recebê-los e, ao mesmo tempo, Ele prescreveria a maneira que Lhe seria mais agradável, e as cerimônias que se deveriam observar quando eles se engajassem em seu serviço.

Vemos nisso o amor de Nosso Senhor às Ordens de Cavalaria, o perdão e o convite para restaurá-las.

O cavaleiro deveria vir  com o seu cavalo até o cemitério da igreja, no momento em que ele assumia a condição de cavaleiro, onde, tendo apeado  e  deixado  o seu  cavalo, devia tomar o seu manto, cuja ligadura precisaria se pôr sob a fronte, para a marca de milícia e da obediência na qual ele se engajava para a defesa da Cruz.

O estandarte do príncipe devia ser levado diante dele, para indicar que precisa obedecer às potências da Terra em todas as coisas que não são contrárias a Deus.

Tendo entrado no cemitério, o clero deveria vir diante dele com a bandeira da Igreja, sobre a qual estivesse representada a Paixão de Nosso Senhor, a fim de que ele aprendesse que precisava tomar a defesa da Igreja e da Fé e obedecer aos seus superiores.

Entrando na igreja, o estandarte do príncipe precisaria permanecer na porta; no templo só devia ingressar a bandeira da Igreja, para mostrar que o poder divino excede o secular e que os cavaleiros precisam se preocupar muito mais com as coisas espirituais do que com as temporais.

Ele devia ouvir a Missa e, à Comunhão, o rei ou aquele que o representasse, aproximando-se do altar, precisaria colocar uma espada na mão do cavaleiro, dizendo-lhe que lhe dava a espada a fim de que não poupasse a sua vida pela Fé e pela Igreja, para destruir os inimigos de Deus e proteger os seus amigos. Entregando-lhe o escudo, deveria dizer-lhe que este era para se defender contra os inimigos de Deus, para dar socorro às viúvas e aos órfãos e para aumentar a honra e a glória de Deus. Em seguida, colocando-lhe a mão no pescoço, precisaria dizer-lhe que ele estava submetido ao jugo da obediência.

Prioridade da Igreja sobre o Estado

Para compreender essa cerimônia, é preciso lembrar que na Idade Média houve sempre o problema de situar bem as relações entre a Igreja e o Estado, e, por causa disso, nos países ou nas ocasiões em que prevalecia o bom espírito, havia uma preocupação extrema de marcar a prioridade da Igreja sobre o Estado.

Estávamos na era bem-aventurada na qual a Igreja, crendo firmemente em si mesma e afirmando-se uma instituição de direito público, se afirmava superior ao Estado e proclamava o papa como o mais alto dignatário de toda a Terra, Vigário de Jesus Cristo e superior ao imperador e a todos os reis. Vemos, nessa descrição, uma cerimônia perfeitamente elaborada para indicar isto. É muito frequente na Europa os cemitérios ficarem ao lado das igrejas, verdadeiras matrizes paroquiais.

Então, no cemitério – provavelmente para indicar a proximidade e a resignação com a morte –, dava-se a primeira cena desse encontro.

O cavaleiro ia precedido com a bandeira do príncipe, mas quando vinha a bandeira da Igreja, representando a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, tudo desaparecia. O cavaleiro como que deixava o serviço do príncipe, ou seja, do Estado, em tudo quanto contrariasse à Igreja; colocava-se inteiramente ao serviço da Esposa de Cristo e ia ser, a partir daquele momento, um religioso sujeito aos três votos: pobreza, castidade e obediência.

Então, a bandeira do príncipe ficava na porta da igreja, por ser inferior, por nem ser digna de presenciar a cerimônia . Mas um representante do príncipe dava a espada, para indicar como o rei aprovava aquela cerimônia. Nota-se nesses pormenores o íntimo conúbio entre a monarquia e a Religião existente naqueles tempos.

Obediência: diminuir-se aos olhos dos homens, crescer diante de Deus

Vê-se também em outros lugares das mesmas revelações a fórmula dos votos de profissão dos cavaleiros, que deve  ser  concebido nestes termos: “Eu, enferma criatura, que não suporto os meus males senão com dificuldade,  que só amo a minha própria vontade e cuja mão só tem vigor quando é preciso bater,  prometo obedecer a Deus e a vós que sois o meu superior, obrigando-me com juramento de fazer o bem às viúvas e aos órfãos, de jamais realizar qualquer coisa contra a Igreja Católica e contra a Fé, e me submeto a reconhecer a correção, se acontecer que cometa qualquer falta, a fim de que a obediência à qual estou ligado me faça evitar o pecado e renunciar à minha própria vontade, e que possa, com maior fervor, prender-me somente à de Deus e à vossa”.

É uma fórmula linda, que exprime o conteúdo da obediência. O cavaleiro aceita a obediência para renunciar à sua vontade própria, que o inclina para o erro e para o mal. Então ele, sob a obediência de um superior que o guia para o bem, está defendido contra esta inclinação. Ele assumiu o compromisso de só fazer o que quiser uma pessoa mais firme no bem do que ele próprio. De maneira que, pelo voto de obediência, ele fica protegido contra os extravios de sua natureza enfermiça.

Ele, cavaleiro fogoso, valoroso, herói, renuncia a dispor de si mesmo e, com isso, se diminui aos olhos dos homens, mas cresce aos olhos de Deus, porque fazendo a vontade do superior não faz a vontade do superior, mas de Deus, que fala por meio do superior.

Assim, o cavaleiro tem a alegria, durante a vida inteira, de conhecer a vontade de Deus sobre ele e segui-la, porque a vontade de Deus é a vontade do superior. A todo momento, então, o cavaleiro sabia o que Deus queria, conhecendo o que o superior desejava dele.

Justaposição de virtudes opostas

Vejam o contraste de alma: de um lado, cavaleiros tão ufanos e briosos na luta; de outro lado, verdadeiros cordeiros da obediência, mostrando a justaposição das virtudes opostas no autêntico católico, e levadas até o extremo. De um lado, varonis de maneira a se tornarem os maiores guerreiros da Europa e do mundo; de outro lado, humildes a ponto de renunciarem à sua vontade própria.

Isso me faz lembrar de um fato que li em Montalembert(2), que me causou uma impressão profunda e do qual gostei muito.

Um árabe prisioneiro viajava pela Europa e viu aquelas catedrais serem construídas por irmãos leigos de Ordens religiosas . Ele então perguntou a alguém: “Explique-me os segredos dessas almas. Como é que podem construir catedrais tão altivas homens tão humildes?”

Para ter a verdadeira altivez é preciso ser verdadeiramente humilde, e para ser verdadeiramente humilde é necessário ser verdadeiramente altivo.

Eis a alma, não do cavaleiro decadente, herói por razões humanas, mas do verdadeiro cavaleiro segundo os anelos de Nosso Senhor quando se manifestou a Santa Brígida.

Na Idade Média tantas vezes houve exemplos admiráveis de cavaleiros que chegaram à honra dos altares.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1967)

 

 

1- HÉLYOT, Pierre. Histoire des Ordres Monastiques Religieux et Militaires, et des Congregations Seculières. Paris: Nicolas Gosselin, 1715 . v . 4, c . 6, p . 44-45.

2- Charles Forbes René de Montalembert (*1810 †1870) . Escritor, político e polemista francês.

O princípio de subsidiariedade

A sábia organização que o espírito católico tinha dado à estrutura social da Idade Média se baseava no princípio de subsidiariedade, o qual vivificava todas as classes, inclusive o operariado. O próprio Karl Marx afirmou que a era de ouro do operário europeu foi a Idade Média. O liberalismo e o socialismo, obcecados pelos erros da Revolução Francesa, desprezaram esse sapiencial princípio, o que causou graves desgraças.

 

As duas formas mais conhecidas, mais consagradas de democracia são a socialista e a individualista. A democracia individualista, também chamada liberal, considera que o tríplice lema sobre o qual a Revolução Francesa pretendeu construir o mundo moderno – liberdade, igualdade, fraternidade – se executa por meio de um regime em que todo o poder vem do povo, onde, para os homens serem verdadeiramente livres, o Estado tem a menor interferência possível.

Lema da Revolução Francesa: uma contradição

Os socialistas, pelo contrário, julgam que esse lema não se realiza bem no liberalismo porque, uma vez que se dê liberdade, aparece necessariamente a desigualdade. Dado o fato de que os homens, por seus predicados, suas qualidades, são desiguais, cria-se a possibilidade de um enriquecer-se, tornar-se célebre mais do que o outro; depois naturalmente transmitem isso aos filhos por via de hereditariedade, e por esta forma se estabelecem desigualdades também de famílias e de educação.

Então é preciso haver um Estado muito autoritário que intervenha para assegurar a igualdade, obrigando as pessoas a terem mais ou menos o mesmo nível.

Chegar-se-ia, assim, à conclusão de que o lema da Revolução Francesa existe apenas na aparência, havendo uma contradição por onde quem quer realizar a igualdade com a liberdade não consegue, pois uma traz o sacrifício da outra: quem quiser a liberdade prejudica a igualdade, quem desejar a igualdade lesa a liberdade.

Essa situação deu origem, já no século XIX e depois no século XX, a discussões, polêmicas, lutas partidárias e até guerras civis sem fim. É de se perguntar como no século XIX as pessoas não viam os absurdos dessas duas formas de governo.

Antes de entrar, então, na exposição do que seria uma democracia equilibrada, verdadeiramente católica, devo mostrar um pouco qual é o fundamento último dessas duas posições, de maneira a compreendermos como cada uma, levada por uma unilateralidade, pode não ter visto o absurdo da outra posição. Assim entenderemos melhor o que há de sensato, de criterioso na postura católica.

Segundo o liberalismo, o Estado somente deve zelar para que não haja crimes

Para entendermos bem o individualismo precisamos considerar os princípios fundamentais do liberalismo, um dos quais é o seguinte: o homem é naturalmente bom e, portanto, concedendo-lhe a liberdade, ele faz o bem. Aplicado ao nosso País, por exemplo, o bem do Brasil é o bem dos brasileiros. Ora, cada brasileiro entende melhor do que ninguém qual é o seu próprio bem. Logo, se deixarmos a cada brasileiro a liberdade, ele vai providenciar do melhor modo possível seu próprio bem. Conclusão: se dermos toda a liberdade a noventa milhões de brasileiros, o Brasil realizará a sua própria felicidade. Portanto, liberdade é igual a felicidade.

A isso se faz a seguinte ressalva: esse raciocínio está exagerado, pois há conflitos de interesses nos quais a liberdade absoluta pode chegar até ao crime.

Ao que o liberal responde ser verdade, e por isso a função do Estado consiste exclusivamente em assegurar um governo que evite as ações de caráter criminoso, as injustiças. Desde que sejam evitadas as injustiças e os crimes, dê liberdade a todo mundo para tocar para a frente sua vida como quiser. O Estado é principalmente policial e judiciário, faz leis para impedir crimes, tem uma polícia para pegar os criminosos, um aparelho judiciário para julgar, prender, ou matar, conforme a legislação, as pessoas que tenham cometido crimes.

Fora isso, o Estado não deve fazer nada. Então, dirigir o comércio, ter escolas, indústrias, estimular a cultura, as belas artes, é sair de sua tarefa. O Estado precisa exclusivamente evitar o crime o que, na expressão dos liberais, se chamava zelar pela ordem pública e os bons costumes. Assim, evitada qualquer infração à ordem pública e aos bons costumes, o Estado realizou sua tarefa.

Países prósperos, modelos de liberalismo

Para os liberais, a maior prova da eficácia desse sistema é o fato de que as nações onde há uma ampla liberdade alcançam uma grande prosperidade, e argumentavam com os Estados Unidos, os quais, na época em que essas questões se punham, estavam em plena fase de progresso.

Esse exemplo da América do Norte se justificava da seguinte maneira: se o homem é feito para ser livre, então o melhor modo de explorar os recursos naturais deve ser a liberdade, porque a natureza não pode conter uma contradição. E se está na natureza do homem ser livre, deve estar também na natureza da agricultura, da pecuária, do comércio, da indústria que sejam exercidas por homens livres, do contrário haveria um choque na ordem natural.

Então, a essa bondade do homem correspondia uma bondade da ordem da natureza. A ordem natural é boa, o homem trabalhando à vontade não pode causar colisão. Viva os Estados Unidos, essa é a experiência!

Compreende-se facilmente que essa doutrina pode ter provocado no século XIX muita admiração, porque ela também foi praticada pela outra grande potência industrial de então, a Inglaterra. Durante grande parte do século XIX, a Inglaterra foi fundamentalmente liberal e, sendo a rainha dos mares, constituía o maior império financeiro da Terra, de maneira que a vida econômica do mundo se regia muito mais a partir de Londres do que de Washington. As duas nações mais liberais da Terra estavam no ápice da conquista, do liberalismo, do progresso.

Havia outra nação super-liberal também que, embora pequena, funcionava como um relógio: a Suíça. Então, argumentava-se: A Suíça é uma nação liberal, reunindo povos de três línguas diferentes – o alemão, o francês e o italiano – convivendo perfeitamente uns com outros; não há problemas entre eles porque se deu liberdade. A liberdade é a fórmula!

Convulsão social nas relações entre patrões e empregados

Contudo, essa impostação durou apenas algum tempo porque, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, começou-se a constatar que, pela própria pressão do desenvolvimento econômico, a liberdade tão falada estava gerando absurdos. O primeiro deles era na relação entre patrões e operários.

Com efeito, verificou-se da parte dos patrões uma tendência a oprimir os operários, pagando-lhes o menor salário possível. Isso ocasionou na Europa as primeiras crises sociais.

Essa tendência encontrava sua causa no próprio progresso. Quando começaram a ser introduzidas nas fábricas europeias as primeiras grandes máquinas, decorrentes do progresso da metalurgia no século XIX, isso ocasionou a demissão de dezenas e até de centenas de operários, conforme as capacidades e as características da máquina e da indústria. Lançados assim na miséria, esses operários passavam a constituir mão de obra facilmente explorável pelos patrões que, devido à grande quantidade de desempregados, contratavam operários pagando salários muito baixos.

Essa tremenda opressão do patronato sobre o operariado se generalizou por todos os países que possuíam indústrias.

Considerando tão somente esse campo da vida social, já se nota como uma liberdade completa não é possível. E os socialistas tomavam essa impossibilidade – que realmente deu origem a agitações sociais, conflitos graves de toda ordem na Europa e nos Estados Unidos – para tentar impor a igualdade por meio de leis niveladoras.

Por exemplo, diminuindo a diferença entre o salário do trabalhador manual e o do trabalhador intelectual, dirigindo a economia de maneira a fazer com que, nas relações capital-trabalho, a distinção entre patrão e operário tenda a desaparecer também.

Nessa luta entre patrões e operários criaram-se os sindicatos de trabalhadores que passaram a se revelar mais poderosos do que as associações de patrões, pois os operários, fazendo uma greve, o governo socialista os mantém, mas se a empresa ficar parada durante a greve, quem perde é o patrão porque ele é obrigado a manter toda uma estrutura custosa, correndo o risco de ir à falência.

Esses sindicatos começaram a tomar a direção e a impor a proletarização das indústrias e a transformar-se no maior poder no Estado, de maneira que já Pio XII assinalou o perigo de governos se tornarem dominados pela pressão sindical.

Mito comunista à maneira de uma religião fanática

Compreende-se perfeitamente que liberais e socialistas não tenham visto o seu próprio erro durante algum tempo, pois uns e outros estavam obcecados pelas máximas da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Máximas fundamentalmente falsas na perspectiva em que aquela Revolução as tomava. Por outro lado, também porque, antes de pôr em prática essas teorias, tudo parecia bonito; quando se ia aplicá-las, davam num verdadeiro desastre.

Desastre do socialismo, por exemplo, é a queda da produção. Em todos os países socialistas a produção cai porque não há estímulo para o progresso. Imaginem um bom datilógrafo consciente de que, se ele trabalhar muito, será bem remunerado, quiçá promovido, e permanecerá vários anos numa empresa como excelente profissional. Ainda que não passe de um datilógrafo, o ordenado vai subindo, porque ele será disputado por outras empresas e, por causa disso, poderá impor o salário que queira.

Suponhamos um outro datilógrafo ciente de que, por mais que ele trabalhe, não vai ganhar mais do que determinado valor, pois o socialismo nivela os ordenados. Esse homem não vai trabalhar com afinco. Pelo contrário, vai produzir o mínimo possível.

Vemos o resultado dessa política nos países comunistas, onde não há promoção alguma e os salários são todos nivelados. Consequência: as produções decaem, todo mundo faz corpo mole. Daí a pobreza desses países.

Qual a razão pela qual os comunistas, levados pelo mito da igualdade, querem impor a todo custo esse regime ao mundo inteiro, apesar do fracasso? Evidentemente porque eles têm um mito à maneira de uma religião fanática, por onde a igualdade na miséria é melhor do que a desigualdade na prosperidade.

Necessidade da autoridade

Vejamos agora, em linhas gerais, a posição da Doutrina Católica diante desse problema.

O homem foi constituído por Deus de tal maneira que até no Paraíso terrestre haveria necessidade de uma autoridade. Se Adão e Eva não tivessem pecado, seus descendentes continuariam no Paraíso e ali constituiriam a sociedade humana.

Naturalmente seria tudo diferente do que é hoje. Por exemplo, isentos do pecado original, os homens não estariam sujeitos à doença e à morte. Seu trabalho seria um exercício agradável de suas faculdades para atingir objetivos equilibrados de progresso, com o emprego de tempo deleitoso e, portanto, ninguém procuraria sonegar o trabalho. Por outro lado, o homem teria um domínio e um conhecimento extraordinários da natureza. Isso determinaria uma organização da vida completamente diferente do que é hoje. Não obstante, os homens organizariam uma civilização.

Ora, apesar da grande inteligência e da vontade reta de todos os homens no estado de inocência com a graça, a Igreja nos ensina que seria necessária a existência de uma autoridade, não para reprimir os crimes, pois estes não existiriam, mas a fim de mandar. Porque as pessoas têm pontos de vista diferentes e é preciso haver quem olhe para a esfera de ação coletiva, preste atenção não apenas no bem privado, mas diga a cada um como agir em favor do bem comum.

Essa autoridade, portanto, decorre da natureza das coisas. E como Deus é o Autor da natureza, toda autoridade vem de Deus e é preciso respeitá-la. Considerar que a autoridade existe só para a mera repressão do crime é um verdadeiro disparate.

Então, nos perguntamos qual é o limite da autoridade, como podemos limitá-la de maneira que ela não dê nos absurdos do liberalismo nem do socialismo.

No sapientíssimo princípio da subsidiariedade se conciliam a liberdade e a autoridade

Para isso a Doutrina Católica usa um princípio muito empregado na Idade Média e que deu, naquela época, os melhores resultados: o princípio da subsidiariedade.

Com efeito, há diversas situações para as quais o homem, ou mesmo um grupo, não basta a si próprio, necessitando ser auxiliado, subsidiado.

Poderíamos exemplificar com várias famílias morando em torno de uma fábrica ou de uma igreja. Em certo momento, o número de famílias torna-se bastante grande para entenderem a necessidade de um governo que fizesse o que nenhuma família realiza: cuidar das ruas, do calçamento, da iluminação pública e de uma porção de coisas análogas. Como uma família não pode fazer isso, constitui-se um município que dá às famílias o que elas sozinhas não poderiam ter.

O mesmo se poderia dizer dos municípios. Vários municípios de uma mesma zona se congregam para formar um Estado porque, ligados entre si, melhor tratam dos interesses comuns. Cada município é tão livre quanto possível, mas o que ele não pode fazer só, o Estado realiza para vários municípios.

Para dar o exemplo brasileiro, a Federação ou os Estados Unidos do Brasil existem para assegurar ao conjunto dos Estados aquilo que cada um não consegue só por si: exército, marinha, aeronáutica, relações exteriores, uma série de outros recursos que só a federação pode obter em quantidades e proporções suficientes.

O princípio de subsidiariedade se compõe dos seguintes elementos: primeiro, a ideia de que a sociedade é constituída de membros vivos; segundo, cada membro deve tender livremente a se bastar a si próprio; terceiro, essa autossuficiência tem limites; quarto, esses limites conduzem a uma hierarquização que rege os limites da liberdade e da autoridade da seguinte maneira: o que cada um não consiga realizar por si, o grau superior supre. Assim, tanto quanto possível, liberdade na base; tanto quanto necessário, autoridade na cúpula. Por esta forma se conciliam liberdade e autoridade. Este é o sapientíssimo princípio da subsidiariedade que não dá nem em liberalismo nem em socialismo.

Observem como os revolucionários quase não falam disto. Os socialistas e liberais discutem ente si como se o princípio de subsidiariedade não existisse, embora ele venha mencionado nas encíclicas do Magistério da Igreja, pelos bons sociólogos católicos de todos os tempos; foi largamente praticado na Idade Média. Esse princípio não é considerado, nem pelos liberais nem pelos socialistas, porque estraga com a mania dos dois. Quer dizer, ele não dá lugar nem à liberdade completa nem à igualdade total com que sonhava a Revolução Francesa, pois esse princípio estabelece uma hierarquia, limita tanto a autoridade quanto a liberdade, e isso irrita os revolucionários.

Como surgiu o feudalismo

Na Idade Média, esse princípio teve aplicação no feudalismo. Compreende-se bem isso considerando como surgiu a maior parte dos feudos.

Imaginemos as terras lavradas, cultivadas, no tempo de Carlos Magno. Começam a aparecer as invasões dos hunos, normandos, sarracenos, etc. As comunicações entre as várias partes de um país eram muito difíceis por causa das estradas más; aparecem de repente os hunos. O resultado é que todos os trabalhadores tendem a reunir-se em torno da casa maior, mais forte, mais rica, e dali lutar para se defender contra o invasor.

Sendo a casa do patrão de interesse de todos, ela foi se transformando aos poucos em castelo: construíram-se as torres, primeiro de madeira e depois de pedra, para de longe poderem ver se o inimigo vinha. Avistado o inimigo, do alto da torre tocavam o sino ou o olifante para se reunirem todos na casa do patrão, e na torre eles resistiam.

Aos poucos também foram fazendo muralhas cada vez maiores e também com suas torres, os valos de água, tudo construído em comum acordo entre os donos da propriedade e os trabalhadores, para não serem mortos ou aprisionados pelos bárbaros invasores. O castelo nasceu, portanto, da necessidade de todos de se defenderem.

Era necessária uma autoridade para dirigir o castelo e a resistência contra o adversário. Ora, a autoridade é o patrão.

Na época de paz, o patrão acabava servindo de juiz e de prefeito na zona onde o castelo está construído, e se tornava um senhor, ou seja, o agricultor com funções de juiz e delegado no lugar onde morava.

Mas as invasões normandas, hunas, eram muito grandes, e tornava-se conveniente e até necessário estabelecer ligações entre vários donos de castelos. A resistência se põe em torno do mais poderoso e, quando um castelo é ameaçado, levam todas as tropas para defendê-lo. Criava-se, assim, uma hierarquia de senhores feudais, por cima dos quais estava o rei.

Qual é o princípio de um feudo? Um senhor feudal manda em sua terra e faz nela tudo quanto pode. O senhor feudal superior só intervém ali para realizar o que senhor feudal menor não consegue fazer. O rei só intervém na esfera da autoridade do senhor feudal superior pelo mesmo mecanismo.

O feudalismo não foi planejado, não houve um sociólogo que se sentou, começou a desenhar um “f” bonito, escreveu “Feudalismo” e, tendo inventado uma palavra, pensou: “Agora vou inventar uma realidade.” Nasceu naturalmente das invasões e das aplicações do princípio de subsidiariedade.

Aplicação do princípio de subsidiariedade às cidades, universidades e condições de trabalho

Em alguns lugares formaram-se cidades que por esse mesmo mecanismo se fortificaram. Mas como não nasceram da agricultura, essas cidades não tinham nenhum proprietário para seu chefe, e começaram a eleger autoridades. Essa organização eletiva nasceu da ordem natural das coisas, e ia tão longe que, em várias cidades, cada bairro possuía seu governinho, um prefeito para governar o bairro. De tal maneira eles amavam esse princípio de subsidiariedade do poder público pequeno e próximo ao indivíduo que está sendo governado.

Um exemplo disso foram as universidades que eram colossais. Uma universidade ocupava um bairro, no qual o reitor da universidade mandava em tudo. Ele era o prefeito, o delegado de polícia, o juiz, e ninguém mandava dentro da universidade a não ser o reitor.

Essa estrutura se aplicava também para o trabalho. Na Idade Média as condições de trabalho davam muito mais valor ao homem e menos à máquina; a época era pouco mecanizada e as máquinas existentes primitivas, pequenas e em geral de madeira. O operário valia mais do que a máquina e não havia propriamente o capitalista como existe hoje, que entra com o dinheiro para montar uma fábrica. Todos eram artesãos e os operários entravam como aprendizes; o talento deles concorria muito mais para a produção do que a máquina. Os melhores tornavam-se mestres.

A fábrica era, em geral, um quarto ou dois no mesmo prédio onde morava o dono da empresa, e os operários comiam com a família do dono. Aquilo formava uma espécie de família grande em que o mestre mandava porque era o mais competente, e se ele saísse também se retirava a freguesia. Era esta a preeminência, baseada, portanto, no trabalho.

O costume tinha na Idade Média uma importância enorme. Os medievais tomaram o costume de reunir todos os estabelecimentos de um mesmo ofício, o que naquelas cidades pequenas era muito fácil. Assim, quem quisesse comprar uma joia ia à rua dos ourives, quem estivesse à procura de sapatos dirigia-se à rua dos sapateiros, e assim por diante.

Os homens que exerciam uma determinada profissão foram se constituindo em corporação, com direção própria. Assim, tão logo se formasse um todo, esse todo se organizava e reivindicava a sua autonomia. Era o princípio de subsidiariedade.

Um grande hospital como a Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, na Idade Média seria autônomo à maneira de um pequeno município: teria suas próprias leis, autoridades e até polícia, juiz e cadeia.

A família era o modelo da sociedade humana

A célula principal, o fundamento da sociedade era a família, considerada o modelo da sociedade humana. Na França, os juristas empregavam uma expressão muito bonita para definir o que era a família em função do Estado: diziam que o pai era o rei dos filhos, e o rei o pai dos pais. De maneira que o regime era paterno.

Sente-se muito isso em velhas gravuras brasileiras do tempo da colônia, nas quais se veem famílias portuguesas ou luso-brasileiras saindo aos domingos. Em geral, na frente vai o pai, um “portuguesão”, às vezes com um cigarrão, uma bengala, um chapéu de dois bicos e andando como quem não se preocupa com nada. Atrás dele vai a esposa, depois os filhos em ordem de idade, depois dos filhos os escravos. Por onde ia o pai, caminhava a família inteira.

Em geral, o pai de família deixava o patrimônio para o filho mais velho que deveria gerir a propriedade, sem descuidar do indispensável auxílio aos irmãos mais novos. Aqui vemos uma vez mais a aplicação do princípio de subsidiariedade.

Os filhos mais novos do castelão iam tentar a vida em outras terras, mas se lhes advinha o fracasso, a tragédia ou a doença, tinham direito a voltar ao castelo com sua família, encontrando ali uma espécie de instituto de aposentadoria e pensões.

Entretanto, aquele pessoal estava habituado à aventura, tanto mais que a monotonia da vida agrícola os impelia a isso. Então, a maior parte deles fazia um esforço tremendo para progredir, lançando-se na aventura. Daí aquela atmosfera que mais tarde se refletiria em D’Artagnan e os três mosqueteiros – Athos, Porthos e Aramis –, ou Cyrano de Bergerac, filhos mais moços que deixaram a vida monótona do campo na esperança de que, se batalhassem como leões, poderiam galgar altos postos e se tornar, eles mesmos, donos de grandes castelos.

A sede de aventura era assim estimulada pela seguinte ideia: “Se eu for para a cidade, ainda mais apoiado pelo meu maioral, posso fazer uma grande carreira. Que delícia! Se eu ficar no campo, não mando, sou um puro pensionista. Que monotonia! Então vou me arriscar. Mas de outro lado, sei que se eu fracassar tenho onde me refugiar”.

O mesmo se dava, a seu modo, com os trabalhadores manuais. Por vezes estes eram arrendatários hereditários de uma parte das terras do senhor feudal, e trabalhando ali podiam viver bem. Se os seus descendentes ou colaterais viessem morar ali por necessidade, naturalmente se apertavam mais, porém tinham o mesmo direito; correspondia à situação do castelão, em ponto menor.

Mas também entre eles a linhagem não correspondente ao primogênito saía em busca de novas terras a explorar, por vezes recebidas do senhor feudal ou do rei mediante um pagamento que as colheitas deviam proporcionar. Por esta forma a família se espraiava, e em torno dela se constituía esse princípio de subsidiariedade.

Era, novamente, a linha primogênita da família ajudando a não primogênita, mas esta devia dar tudo quanto pudesse. Se fracassasse, a linha primogênita ajudava.

Daí serem contrários à partilha igual do patrimônio, porque então ninguém pode garantir nada para ninguém. Enquanto que, por esse sistema, funcionava um verdadeiro instituto de aposentadoria e pensões, em base pequena e doméstica.

Poder público influenciável pelos indivíduos

Esses princípios existiram na Idade Média e foram praticados com tão grande êxito que o próprio Karl Marx, numa de suas obras, afirmou que a era de ouro do operário europeu foi a Idade Média. Eis a sábia organização que o espírito católico tinha dado à estrutura social. Essa estrutura era baseada no princípio de subsidiariedade.

Trata-se, nessa organização, da formação de inúmeros corpúsculos que dirigem a vida do homem na medida em que ele precise de uma direção, e esses corpúsculos se encaixam constituindo uma verdadeira malha de autoridades.

Um desses “prefeitos” da rua sofre muito mais a influência daqueles em que ele manda do que um prefeito de uma grande cidade, como São Paulo, com milhões de habitantes. A distância é grande demais.

O prefeito da rua mora naquela mesma via pública; e quando algum morador está descontente, sem pedir audiência vai na casa dele e diz: “Fulano, tem sujeira diante de minha casa, porque o Serapião não limpou. Agora você vai mandar o Serapião limpar!” E vão os dois juntos chamar o Serapião. Quer dizer, toda relação é próxima e pessoal. Então se exerce a influência do indivíduo no governo, e ao homem interessa muito mais influenciar a própria rua do que o Estado, porque ele não mora no Estado, e sim naquela via pública.

Também o fabricante ou o industrial. O operário tem um contato direto com sua corporação com dezenas ou centenas de operários ou industriais. Na hora da eleição, o voto dele terá importância, pois o voto de um em cem ou duzentos pesa na balança. O poder público é, assim, muito influenciável pelos indivíduos, e essa é uma forma de democracia.

O costume

Outro aspecto democrático é o costume. Quando se estabelece um costume, cria-se um direito. Por exemplo, numa rua tal certo homem, desde tempos imemoriais, tem o hábito de amarrar o cavalo dele numa determinada argola, que está do lado de fora de seu prédio. Se numa ou duas gerações se fez assim, ninguém mais pode ir contra isso; é um direito adquirido porque foi aprovado por todos e, a menos que se prove que isso começou a ser nocivo para todos, esse costume subsiste. Não são leis gerais feitas para milhões de homens, mas situações individuais que o costume vai criando para este ou aquele. A tal ponto que havia famílias, às vezes da plebe, que por lei o sistema de herança dos bens era diferente do que vigorava nas outras famílias. Provavam a existência do costume, e o juiz o aplicava; por quê? “Porque na nossa família o temperamento, o gosto é assim”.

Havia, por exemplo, numa região da França um costume curioso: quem herdava a fortuna do pai falecido não era o mais velho, e sim o mais moço, por julgarem que este teria melhores condições de levar adiante a fortuna da família. É um ponto de vista que, uma vez constituído o costume, era acatado pela legislação. Assim, a grande maioria das leis era feita de costumes que o rei só anulava quando estes se tornavam injustos.

Não existia a classe dos políticos profissionais

Isso tem como resultado curioso impedir o aparecimento da classe dos políticos profissionais, porque ninguém faz carreira sendo diretor de uma pequena unidade. A pessoa só dirige essa unidade porque os outros pedem. Isso lhe dá um pouco de prestígio, mas é uma atividade colateral.

Mesmo um senhor feudal, que governa toda uma extensa região, não é principalmente governador, mas um agricultor, vive de suas terras que ele tem que fazer valer para ter o prestígio necessário e manter sua família. Ele é secundariamente o governador daquelas terras e, portanto, não é um político profissional.

Esse sistema de governo não tem os defeitos do liberalismo nem do socialismo. Todos possuem uma influência no Estado, mas no âmbito em que entendem, e está no seu campo de ação mais imediato. Há até eleições livres, mas não existe a figura do político profissional. A política como tal está ligada à profissão de cada um, à vida de todos os dias, e todo mundo cuida da sua própria existência.

É profundamente diferente do Estado liberal democrático onde há uma classe de políticos que vive de fazer leis e de ocupar cargos públicos, eleita uma vez a cada quatro anos por uma grande massa pública que quase não se conhece e que, fora da ocasião da eleição, não tem nenhuma ou quase nenhuma influência no panorama político.

A situação anteriormente descrita eu reputo mais democrática, no bom sentido da palavra. Um regime no qual, embora não seja igualitário nem liberal, existem a igualdade e a liberdade legítimas.        v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/1/1975)

Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)

Mãe do Perpétuo Socorro

Como onipotente Soberana de todo o universo, por vontade de Deus, Nossa Senhora tem o poder de nos auxiliar e quer inesgotavelmente nos socorrer em todas as nossas necessidades. Logo, se pedirmos, Ela nos socorrerá.

Para o êxito de nosso apostolado, para o êxito de nossa vida interior, precisamos, a cada passo, da proteção de Nossa Senhora. E Ela a todo momento está disposta a nos conferir os auxílios mais inesperados, mais súbitos, mais espetaculares.

Ela é a Mãe do Perpétuo Socorro. E o perpétuo socorro é um amparo, é um ato de misericórdia, é um ato de piedade perpétuo, quer dizer, ininterrupto, que não se detém nunca, que não cessa nunca, que não se suspende nunca. Nunca significa em nenhum minuto, em nenhum lugar, em nenhum caso: por pior que seja a situação de quem A invoque, a Mãe de misericórdia o socorrerá.

Por isso, quanto mais nossas almas estiverem tentadas,  tanto mais devemos rogar à Santíssima Virgem. Ela é a Rainha de toda a criação e pode, quando queira e onde queira, derrotar fragorosamente o espírito das trevas, impondo a sua própria soberania.

A fim de nos incutir confiança nas horas das tentações, e de nos fazer compreender que a estas pode suceder a qualquer instante uma singular e aprazível consolação, Maria pratica fulgurantes ações em favor das almas, contra Satanás. Assim, estejamos certos de que o demônio mais insistente, mais persistente, mais renitente, nada é para aquele que invoca o incansável auxílio da Mãe do Perpétuo Socorro.

Plinio Corrêa de Oliveira

Sede devotos do meu Imaculado Coração…

Sempre que me refiro a Nossa Senhora, tenho muito em vista a devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Ao adorarmos o Sagrado Coração de Jesus temos em consideração não só a afetividade, a bondade, mas toda a personalidade moral e todo o conjunto de virtudes d’Ele. Assim também o culto de hiperdulia que prestamos ao Coração Imaculado de Maria abarca e exprime seu afeto, sua bondade, sua misericórdia de Mãe, bem como sua pureza e todas as virtudes excelsas que Ela possui num grau inconcebível por nós.

O quadro presente em meu apartamento representa Nossa Senhora no seu resplendor, tendo atrás de Si uma série de luzes fulgurando, como que emanadas principalmente da cabeça, e constituindo uma espécie de auréola. Maria Santíssima está segurando seu Imaculado Coração e o apresenta para os homens, como quem diz: “Ele é vosso, Eu vo-lo dou se Me pedirdes”.

Portanto, é um convite à prece ao Imaculado Coração d’Ela, feito por Ela mesma: “Sede devotos do meu Imaculado Coração e recebereis graças incontáveis”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/2/1992)

Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)

Lírio entre os espinhos

No Pequeno Ofício da Imaculada Conceição há o seguinte responsório: “Como o lírio entre os espinhos, assim é a minha predileta entre os filhos de Adão”.

Estas palavras podem ser aplicadas também a uma porção de coisas boas que, em nossas vidas, restam no meio dos espinhos, os quais temos que aturar para podermos nos deleitar com o perfume de um lírio.

Existe, por detrás, uma verdade enternecedora: Nossa Senhora quer que tenhamos pena daqueles que representam os espinhos em torno do lírio d’Ela. E tendo paciência com eles, sabendo perdoar até o estapafúrdio, sendo inalteravelmente os mesmos, nós transformamos os espinhos em lírio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/2/1988)

Como corresponder com gratidão ao infinito dom da Eucaristia?

Havendo conhecido o célebre livro do Pe. João Pinamonti sobre a Sagrada Eucaristia, com base nos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, Dr. Plinio considerou ter encontrado um tesouro. Damos continuidade aos comentários tecidos por ele a este respeito.

 

Continua  o Pe. Pinamonti:

“Que dirão os anjos do Céu, que conhecem muito bem de um a outro extremo a suma liberalidade de Cristo, e a excessiva estreiteza do teu coração?”

É algo que nos deixa confundidos! Nem os anjos da mais alta hierarquia celeste têm com Nosso Senhor a forma de união que nós homens possuímos, recebendo a Eucaristia. Os anjos não podem comungar, pois não têm corpo. Gozam até da visão bea­tífica, vêem a Deus face a face, estão inundados de dons celestes. Mas, a Sagrada Eucaristia eles não recebem, e nos olham como que “invejando” esta graça.

E nós não haveríamos de recebê-la com maior respeito, meditação, consideração prévia?

Imaginemos uma pequena capela onde um sacerdote dá a algum de nós a Eucaristia. Visíveis apenas o padre, um de nós, e um discozinho de farinha e água. Porém, a fé nos ensina que todos os anjos e santos do Céu adoram cada partícula do Santíssimo Sacramento existente na Terra; e portanto presenciam aquela comunhão, cantando e louvando o Divino Redentor. Nossa Senhora, por sua vez, louva a Nosso Senhor porque Ele está Se dando a nós. De maneira que o Céu inteiro está olhando para aquela cena e pede a Nosso Senhor misericórdia por aquele que está recebendo a Eucaristia.

Pode-se conjecturar algo mais alentador? Quanta alegria e que beleza nessa cena!

Se antes de comungar, pensássemos um pouco nisto, não é verdade que iríamos receber a Eucaristia com mais esperança, mais confiança, mais alegria? É evidente!

Cada comentário  do Pe. Pinamonti ao exercício inaciano é tão denso, que qualquer um deles daria para um sermão. Porém, ele os apresenta esquematicamente. Por isso, não posso deixar de ser também esquemático.

Afirma ele:

“Confunde-te da tua ingratidão: lembra-te que à medida dos benefícios, se abusares deles, serão castigos: propõe de dar tudo a quem te dá tudo sem reserva. Dá graças ao Senhor duma magnificência tão excessiva para contigo e roga-lhe que a tão excessivos benefícios acrescente este de te dar um novo espírito e um novo coração para os estimares e lhes corresponderes quanto deves”.

O pensamento aqui expresso é muito profundo.

Diz ele:

“Confunde-te de tua ingratidão”. O que é “ficar confundido”? É propriamente não saber o que dizer. Entretanto, segundo a doutrina católica a confusão por nossas faltas deve ser cheia de confiança, como quem se ajoelha aos pés do Divino Salvador e diz:

“— Meu Senhor, andei mal e não tenho o que Vos dizer. Mas confio em Vós porque sois a solução de tudo. Vós sois o caminho, a verdade e a vida. Com confiança prostro-me aos Vossos pés, como Santa Maria Madalena. Sei que não me repelireis, nem me abominareis. Vós sois Aquele que a todos emendais e curais. Curai-me e emendai-me a mim também. Estou aqui como o cego, o paralítico ou o leproso do Evangelho: sanai-me das minhas doenças de alma, como sanastes aqueles corpos. Por Vossa Mãe, a quem nunca negastes nada, e a qual nunca recusa de atender ao pecador que a Ela recorre, eu Vos suplico: curai-me!”

Essa é a confusão confiante, cheia de certeza de ser atendido, com a qual se deve comungar.

Inspirado em Santo Inácio, recomenda  o Pe. Pinamonti ainda pedirmos a Deus que mude o nosso espírito. Nosso Senhor pode transformar o espírito de uma pessoa de um momento para outro. A História conhece inúmeros casos de conversões súbitas. Ou aos poucos, gradativamente, convertendo-a ao longo dos anos.

Se em cada comunhão pedirmos a Nosso Senhor que nos converta e nos mude, em determinado dia Ele nos atenderá.

Conta-se que São Francisco de Sales durante trinta anos deu diariamente comunhão a um homem, ao qual precisava ouvir todos os dias em confissão, pois este era muito débil e fraco. O santo o absolvia e lhe ministrava a Eucaristia. Ao cabo desse tempo, o indivíduo se emendou e levou depois vida modelar.

Esse homem recebia a comunhão com confusão confiante. Em cada dia ele ia melhorando e progredindo. Isto porque a Eucaristia é o centro, o foco e a alma de nossa vida espiritual. Assim devemos considerar cada comunhão que recebemos.

Após analisar o dom — que é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo — Pe. Pinamonti comenta o afeto de quem concede.

“Considera o afeto com que Jesus Cristo te dá este soberano dom. Nisto mais propriamente consiste o benefício, por ser o amor a alma dos dons, sendo o que se dá como o corpo de cada um deles. Foi pois, tão excessivo este amor de Cristo em nos dar a divina Eucaristia, que chegou a tocar o último termo.

“E assim como uma fornalha, pelas chamas que lança fora, dá a conhecer os ardores que em si contém, assim a imensa caridade com que Cristo instituiu este Diviníssimo Sacramento, se dá a conhecer pelo tempo e modo de o instituir, e pelas dificuldades que venceu para esta instituição.”

Para explicar o amor com que Nosso Senhor nos concedeu o Sacramento da Eucaristia, ele mostra o tempo, o modo e as dificuldades que teve para instituí-Lo.

  1. a) O tempo em que O instituiu:

“O tempo foi aquele mesmo em que os homens tratavam de Lhe dar uma morte crudelíssima; então é que quis dar aos homens este manjar de vida, achando modo de ficar sempre conosco, quando os seus inimigos, mais do que nunca, tratavam de O tirar deste mundo.”

A reflexão é das mais comovedoras que se possa imaginar!

A Sagrada Eucaristia foi instituída na Quinta-Feira Santa. E autor cita um trecho de uma epístola de São Paulo: “in qua nocte tradebatur, accepit panem” – “Na noite em que foi traído, Ele tomou o pão”. (1 Cor. 11, 23). Quer dizer, enquanto era traído e os judeus planejavam matá-Lo, Ele instituía um modo de ficar com os homens ininterruptamente.

É um fato muito bonito: Nosso Senhor, depois da instituição da Sagrada Eucaristia, não mais deixou de estar na Terra por um instante sequer.

No momento em que os judeus pensavam armar uma cilada para expulsá-Lo da Terra, O Redentor preparava uma sacratíssima rasteira contra eles. Instituiu a Eucaristia e, quando morreu, Ele ficou sob forma eucarística em Nossa Senhora, assim não abandonou o mundo em nenhum momento.

Vemos o amor dele ao gênero humano, através da maravilha que engendrou para estar com os homens o tempo inteiro: quando os Apóstolos puderam celebrar a Santa Missa, a presença eucarística começou a se multiplicar pela Terra.

Tal maneira de proceder denota uma inteligência suma, um grande amor desejo de estar conosco!

  1. b) O modo como foi instituído:

O Padre Pinamonti explica então, o modo pelo qual Nosso Senhor instituiu a Eucaristia:

“O modo com que instituiu este Divino Sacramento é debaixo das espécies de manjar para se unir tanto a nós que, assim como não há arte que possa separar da nossa substância o nutrimento que se tem já distribuído por todo o nosso corpo, assim não haja arte nem força que possa separar-nos do mesmo Cristo.”

É um raciocínio belíssimo! Jesus quis estar conosco sob a forma de alimento. Quando alguém come um pão, este se integra de tal forma ao corpo, que não se pode separar um do outro. Analogamente, através da Eucaristia, o Divino Salvador quis estabelecer uma íntima união conosco.

  1. c) As dificuldades que venceu:

“Mas sobretudo se manifesta a sua caridade nas dificuldades que venceu para nos fazer tanto bem; porque prevendo uma inumerável multidão de irreverências, de desprezos, de sacrilégios dos infiéis para com o seu Santíssimo corpo, e de tantos cristãos, ou tíbios ou malignos, contudo se expôs a tolerar tudo para chegar a unir-se com tua alma; e a esta mesma tolerância acrescentou desejos, e desejos veementíssimos: “Desiderio desideravi” — ‘Com grande desejo desejei comer esta Ceia convosco’(Luc. 22, 15). E ainda que para vir ao mundo e encarnar-se, se tenha feito desejar e esperar por tantos séculos; agora para vir ao teu coração Ele mesmo te solicita a ti com um desejo digno somente do seu Coração Divino.”

É outro pensamento belo como o sol! Para compreendê-lo é necessário colocar-se no estado de espírito de Nosso Senhor, no momento anterior à instituição da Sagrada Eucaristia.

O Redentor conhecia o passado, o presente e o futuro, previa todos os sacrilégios que iriam ser cometidos até o fim do mundo contra o Santíssimo Sacramento.

Pois bem, diz o autor:

“Nem todos esses pecados foram capazes de impedi-Lo de proceder a esta instituição.

“Um número incontável de injúrias, indiferenças e tibiezas foram as dificuldades que Ele quis vencer para te dar, ó católico, o Santíssimo Sacramento nessa hora.”

É um pensamento esplêndido!

Nós desmaiaríamos diante da perspectiva de receber por Nosso Senhor, um centésimo das injúrias que Ele recebeu por nós… Seu amor e sua bondade são tão grandes, que apesar disto, desejou sofrer tudo quanto sofreu, a fim de que o Santíssimo Sacramento viesse até nós. É algo impressionante!

Insisto sobre o respeito e a confiança que isto deve suscitar em nós na hora da comunhão: quanto é poderoso o Deus capaz de tal maravilha, mas também quanto é bom! Devemos pois imaginá-Lo entrando em nossa alma com o afeto correspondente a esta bondade, e não fazendo uma inspeção seca e aborrecida: “Tal defeito, tal falta… Esse tipo não deveria ter-me recebido!…”.

Não! Devemos pensar o contrário.

Quando Jesus entrava na casa dos doentes para curá-los, não tapava o nariz com receio do mau-cheiro; pelo contrário, ia com afeto, vontade de fazer o bem, semblante sereno, ar bondoso, disposto a ouvir. E depois concedia a graça, operando o milagre. Devemos imaginar a Nosso Senhor sempre transbordante dessa bondade.

É impossível não reconhecer a limpidez e o acerto de tais raciocínios.

Então, quando comungarmos, digamos a Nossa Senhora — porque não podemos perdê-La de vista um só instante: “Minha Mãe, estas são razões por demais elevadas para eu compreendê-las inteiramente. Mas Vós, quando comungáveis, as entendíeis plenamente. Vinde espiritualmente à minha alma e tratai a Nosso Senhor como o fazíeis na Terra. Adorai a Deus em meu lugar”.

Assim, com confiança, devemos receber o Redentor alegremente. Se Nossa Senhora O está tratando Ele está sendo esplendidamente recebido em minha alma, e eu estou oferecendo-Lhe uma festa régia.

Por fim, a utilidade:

“Considera a utilidade deste dom da Eucaristia. Por isto se chama comunhão, para significar que faz comuns à alma todos os bens de Jesus Cristo; de sorte que aquele capital imenso de merecimentos, em toda a sua vida e na sua morte, se aplica todo neste Divino Sacramento, no qual pretende o Senhor renovar em cada pessoa particular os efeitos que a sua Santíssima Paixão tem produzido em todo mundo.”

É outro pensamento diante do qual a pessoa não cabe dentro de si.

Imagine-se, cada um de nós, aos seus pés.

Considerando aquele sangue que verte, é uma bonita oração dizer: “Meu Senhor, fazei com que uma gota de Vosso sangue caia sobre mim e me transforme”. No entanto, uma comunhão é muito mais do que isto! Porque através dela, todos os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo são oferecidos por mim para redimir os meus pecados.

Devo, pois, ir confiante à comunhão. O sangue de Cristo pode tudo e, recebendo-O, estou adquirindo o remédio para todos os males e a solução para todos os problemas.

Devo também dizer a Nossa Senhora: “ Oh! Minha Mãe, fazei com que os méritos de Nosso Senhor se apliquem a mim de modo semelhante como se aplicaram a Vós, para que minha alma se entranhe continuamente deles”.

Podemos estar certos de que assim ficaremos “milionários” de méritos, por uma simples comunhão. Se uma pessoa passasse numa gruta a vida inteira sozinha, rezando, e fazendo penitência, ela não adquiriria tanto mérito quanto o obtido em uma só comunhão. Percebemos assim de que dom inapreciável dispomos.

Conclui o Pe. Pinamonti:

“Oh Deus sempre admirável em nos amar e fazer bem! Que coisa te poderá Ele negar, depois de te ter já dado tanto? E tu, que coisa lhe poderás negar a Ele?”

E sugere, que no final da comunhão se faça uma oração a Nosso Senhor Sacramentado. Nós, que somos escravos de Nossa Senhora segundo o método de São Luis Maria Grignion de Montfort, a fazemos por meio d’Ela. Poderia ser uma prece na qual pedíssemos ao Redentor que nos concedesse, dentre Seus inumeráveis dons, mais este: o de darmos tudo a Ele.

 

“Sede perfeitos como o Pai Celeste”

São Cirilo de Alexandria viveu no século V e combateu a heresia de Nestório. Naquela ocasião, estabeleceu-se a clássica distinção entre os ortodoxos, que professavam a divindade da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e a consequente Maternidade Divina de Maria, e os heterodoxos, que afirmavam haver em Cristo duas pessoas, sendo ­Nossa ­Senhora mãe apenas da pessoa humana. Como sói acontecer, entre essas duas correntes havia os tais pseudo-equilibrados, que julgavam ser melhor não discutir, pois irritaria o adversário, tornando mais difícil a possibilidade de conversão. Esses se voltavam contra São Cirilo porque ele combatia os hereges.

Essa raça de almas corresponde ao dito na Escritura: “Se fosses frio ou quente Eu te aceitaria, mas como és morno, estou para vomitar-te de minha boca” (Ap 3, 16). São os que mais atrapalham a causa católica, pois o melhor dispositivo de proteção do erro não está entre aqueles que o professam, mas sim entre os que dizem professar a verdade, mas nas suas táticas protegem o erro.

Essa posição intermediária atrai mais a cólera divina do que a definida posição contrária.

Se devemos ser perfeitos como nosso Pai celeste é perfeito (cf. Mt 5, 48) e se é legítima a jaculatória “Sagrado Coração de Jesus, tornai meu coração semelhante ao vosso”, então devemos também ter náusea e horror daqueles de quem o Pai Celeste e o Coração de Jesus têm náusea e horror.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1966)