Os homens providenciais

Incumbidos por Deus de uma missão especial para benefício da sociedade, os homens providenciais têm uma compreensão de sua vocação que ultrapassa as capacidades humanas.

 

Pediram-me que comentasse uma ficha de Léon Gautier, muito bom historiador da Idade Média, a respeito do papel dos homens providenciais na História1. Escreve ele:

Alguns espíritos apoucados de nosso tempo se comprazem em escarnecer dessas almas vastas e elevadas existentes entre nós, que ainda acreditam nos homens providenciais. Entretanto, nada é mais natural, quando se crê na ação de Deus sobre os homens e os povos, do que admitir a missão de certas pessoas na História e que, a este título, ficam consagradas.

Deus, que poderia governar o mundo diretamente sem intermediários, Se digna fazer-nos participar da administração de seu imenso império. Para conduzir homens feitos de espírito e de carne, Ele se serve de homens feitos de espírito e de carne. Ele os envia na hora devida, os modela desde toda a eternidade e, sem nada lhes tirar do seu livre arbítrio, deles Se serve utilizando suas virtudes para agir sobre toda uma nação, toda uma raça e todo o mundo.

Homens incumbidos por Deus de uma missão especial para benefício da sociedade

Acho que a ficha, embora não contenha tudo, com uma precisão acadêmica ao gosto do século XIX, diz muito do essencial a respeito dos homens providenciais.

Em sentido amplo, todos os homens são providenciais, pois foram suscitados por Deus para alguma coisa. Mas há um sentido mais especial. Existem homens que Deus não incumbe apenas de levar uma vida comum, para servirem a si próprios, mas que são marcados para realizar uma missão em benefício da sociedade, seja ela temporal ou espiritual.

A missão providencial sempre é maior do que o homem

O que caracteriza um homem providencial?

Ele deve, em primeiro lugar, desempenhar uma tarefa muito maior do que si próprio. Não há homem providencial cuja estatura esteja à altura daquilo que ele precisa realizar, pois o que Deus exige do homem providencial, em geral, é uma coisa tão grande, que não cabe em termos de capacidade humana.

Em segundo lugar, essa ação providencial tem sempre um aspecto sobrenatural, que é a operação da graça sobre as almas para a qual o homem pode ser um canal, mas não autor. E aquilo que a graça faz, nenhum homem pode realizar, de maneira tal que a ação é sempre muito maior do que o homem.

Há grandes homens providenciais. Deus toma pessoas de grandes capacidades e Se serve delas para realizar tarefas ainda maiores do que elas. Entretanto, Ele pode escolher também almas que não sejam grandes, mas até pequenas, das quais tira o fruto para algo de providencial; a escola de Santa Teresinha do Menino Jesus, da infância espiritual, tem algo neste último sentido.

Santa Teresinha não foi propriamente, no sentido humano, uma grande pessoa. Mas ela foi grande no que teve de aparentemente pequeno, e daí saiu a doutrina espiritual da pequena via, que é uma imensa realização na história da espiritualidade, e, portanto, daquilo que há de mais central na História do mundo, que é a História da Igreja.

Compreensão, apetência e sensibilidade do homem providencial para com sua missão

Outra característica do homem providencial é a seguinte: ele tem uma compreensão, uma apetência e uma sensibilidade para a sua missão que os outros não possuem. Ele tem a percepção da coisa, de seu sentido, de sua importância, de como ela deve ser, dos fins que é preciso alcançar, dos meios para coligar as pessoas para os realizarem; possui as táticas, os golpes, os jeitos para conseguir aquilo.

Na vida de Carlos Magno, por exemplo, vemos isso de um modo esplêndido. Ele era o imperador possante, o patriarca magnífico, que entusiasmava; era o guerreiro que metia medo em todos os adversários da Igreja.

Ele intervinha nos concílios, discutia com os bispos, sem ser tido por anticlerical, e muitas vezes era a opinião dele que prevalecia, embora nunca tivesse estudado Teologia. Eram concílios regionais de bispos da Gália, onde ele aparecia para exigir que a coisa andasse bem.

Por outro lado, Carlos Magno era ao mesmo tempo um guerreiro formidável; não apenas um guerreiro individual, um general, mas chefe de uma família de almas dentro de seu exército. Ele coligou em torno de si os seus famosos pares, que eram outras tantas reproduções dele; e esses pares, por sua vez, coligavam em torno deles todo o exército. E seu exército era para ele quase como uma Ordem religiosa para o seu superior, que caminhava rezando e cantando de encontro ao inimigo, com Carlos Magno à frente brandindo a espada, expondo-se a todos os riscos, e sempre pela Igreja Católica e pela Civilização Cristã.

Ao contrário do que pensa a mentalidade moderna, o homem providencial sempre passa por reveses

Há outra caraterística do homem providencial, que é muito diferente da mentalidade moderna. Muitos têm ideia de que o homem providencial é um herói de histórias em quadrinhos; tudo o que ele faz dá certo, tem um olho mágico, e é semelhante a um drácula que, não tendo por onde escapar, fica em apuro, mas com um dedo sobe num teto e resolve o problema de cima. E, no fim, tudo dá certo, ele nunca tem revés.

Ora, o homem providencial é o contrário disso. Ele passa sempre por apuros horrorosos, onde, de fato, muitas coisas correm o risco de não darem certo, se não se esforçar e, sobretudo, se não rezar muito, e se não depuser em Nossa Senhora toda a sua confiança. E esses apuros, em que as coisas quase arrebentam, fazem dele muitas vezes um homem humilhado, perseguido, desprezado e até com todas as aparências de um derrotado. Ele não é sempre um homem vitorioso, que transformou a cabeça dos outros no solo sobre o qual ele anda, mas muitas vezes sua cabeça é o solo para os outros andarem.

Mas ele confia na Providência e Esta o assiste, o ampara, o reergue, o anima e acaba fazendo com que a obra dele dê certo. Uma exigência, à qual o homem providencial está absolutamente sujeito, é que a desproporção entre a sua tarefa e ele aparece claramente aos olhos dos outros, e ele se encontra muitas vezes em tais situações nas quais se torna inteiramente claro que, se não fosse a graça, ele não conseguiria nada. E que se não fosse sua fidelidade, ele estava arrasado.

As margens da História estão cheias de homens providenciais que não cumpriram sua missão

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, não sei se isso é bem verdade, porque vejo todos os homens providenciais na História darem sempre certo.”

Isto porque a História só apresenta os homens providenciais que deram certo. De quantos homens providenciais as margens da História estão cheias! Homens que fraquejaram, se venderam, amoleceram, se deterioraram de qualquer maneira e por isso se arrebentaram.

A pessoa poderá acrescentar: “Entretanto, há alguns tão favorecidos pela Providência que eles não podiam dar errado.”

É verdade! Os Apóstolos, por exemplo. Mas, como isto é raro! E de quantos homens providenciais, volto a dizer, estão cheias as estradas!… Numa dessas estradas há uma figueira, na qual está um enforcado. E esse enforcado era um homem providencial, que se chamava Judas Iscariotes…

A missão do homem providencial aparece aos olhos de todos, às vezes desde o berço

Poder-se-ia dizer que há uma característica imponderável no homem providencial. Em geral, ele tem uma certa aura, e as pessoas que tratam com ele, desde os seus primórdios, percebem nele uma espécie de predestinação, um fator invulgar, que o coloca meio separado e diferente dos outros.

Assim, aparece algo de imponderável no homem providencial, fazendo com que a sua missão se mostre aos olhos de todos, tocada pela Providência às vezes desde o berço.

Entretanto, devemos tomar cuidado com o orgulho, porque o orgulhoso pensa que desde o berço foi preparado para qualquer coisa, e tem a tendência de bancar para si mesmo o homem providencial, e de fabricar as características da aura.

O que diferencia o orgulhoso do homem providencial? É algo que poucos veem, mas é uma coisa segura. O orgulhoso é todo feito de vontade de aparecer, e a causa para ele é uma bandeirola que ele agita diante dos outros para impressionar bem. O homem providencial, por mais fraco que seja, às vezes até por mais miserável que seja, vê e entende que tem alguma missão da Providência, a qual ele ama de fato; são o entender e o ver do amor.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/12/1965)

Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)

 

1) Não possuímos referência a respeito da ficha utilizada por Dr. Plinio nesta ocasião.

 

O Carmo: do Antigo Testamento ao triunfo do Imaculado Coração de Maria

Ao entrar certo dia na Basílica do Carmo, Dr. Plinio pousou acidentalmente o olhar sobre uma parede na qual nunca antes tinha prestado atenção. E ali, inscritas, se lhe depararam estas palavras do Profeta Elias: “Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum” (“Eu me consumo de um zelo incendiado pelo senhor Deus dos exércitos” — III Reis 19,10).

Sentindo de imediato consonância com essa fogosa declaração, Dr. Plinio refletiu: “Eis aí! Quem se torne zeloso, mas de um zelo ardente, por Aquele que é o Senhor Deus  dos exércitos, este preencherá por inteiro as exigências do amor de Deus”. E cresceu-lhe no espírito sua afinidade de longa data com a Ordem do Carmo, que pode ser  considerada a Ordem profética por excelência, da qual Santo Elias é aclamado como Fundador. Dela, aliás, Dr. Plinio fazia parte efetivamente, pois era membro de sua Ordem Terceira — o ramo dos leigos vinculados ao Carmo. Foi, inclusive, diversas vezes o Prior e Mestre de noviços do Sodalício Virgo Flos Carmeli. Além disso, Dr. Plinio  exerceu, por 20 anos, a função de advogado da Província Carmelitana Fluminense, que englobava São Paulo. Todos esses são dados significativos a se ter em vista, na leitura  de seus comentários abaixo transcritos, sobre Aquela que é a “Flos Carmeli”, a Flor do Carmelo, cuja festa se celebra em 16 de julho.

 

Na sua última aparição em Fátima, durante o chamado milagre do sol, a Santíssima Virgem fez ver à multidão ali reunida uma seqüência de quadros representando os  Mistérios do Rosário. A cada nova cena desenrolada no céu, mostrava-se Ela sob algum título com que os fiéis habitualmente A invocam. E foi assim que, na visão dos  Mistérios Gloriosos, Ela surgiu como Nossa Senhora do Carmo, cuja festa a Igreja celebra no dia 16 de julho.

Como tudo o que Maria Santíssima realiza tem sua razão de ser, haverá sem dúvida um nexo entre essa manifestação de Nossa Senhora do Carmo, os Mistérios Gloriosos e a mensagem de Fátima que Ela, naquela ocasião, revelava. Parece-me de grande interesse, portanto, procurarmos aprofundar essa relação, considerando também a especial beleza que ela encerra.

O termo Carmo corresponde ao Monte Carmelo, no Oriente. Ali, segundo uma tradição muito respeitável — e há todos os motivos para admiti-la como verdadeira —, o  Profeta Elias reuniu um grupo de discípulos e com eles constituiu a Ordem do Carmo, em louvor da Virgem Mãe que deveria vir, e na espera d’Ela.

Portanto, o primeiro filão de devoção a Nossa Senhora, séculos antes de Ela nascer, foi formado pelos filhos do Profeta Elias que A aguardavam. E Santo Elias representa o  extremo dessa devoção, porque, como é doutrina comum na Igreja, ele deverá lutar no fim do mundo contra o Anticristo, o último inimigo de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Elias constitui, portanto, uma espécie de ponte entre o início e o fim da devoção a Nossa Senhora na história da humanidade.

É de se supor que, nos seus primórdios, essa devoção se desenvolveu e perseverou em meio a toda espécie de dificuldades e objeções. Pois surgiu no tempo em que o povo eleito cada vez mais se fechava à sua própria missão, ao seu próprio espírito, e, por isso, haveria de ter repulsa a esse veio carmelita que prenunciava a Virgem Mãe, assim como depois os hereges de todos os tempos tiveram ódio à devoção a Nossa Senhora.

Provavelmente, os eremitas do Monte Carmelo, representantes das primícias do amor à Santa Mãe de Deus, foram perseguidos, malvistos, caluniados e silenciados. Apesar disso, e na humildade de sua situação, previam o advento de Nossa Senhora.

E eles tinham razão, pois Ela veio. E não só veio, mas recebeu a maior glorificação que poderia ser tributada a uma mera criatura: tornou-se a Esposa do Divino Espírito Santo, encarnando-se n’Ela o Verbo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Ao término de sua sublime existência terrena, Maria teve uma morte extremamente suave: uma separação da alma e do corpo efetiva e completa, mas de tal maneira delicada que a Igreja, na sua linguagem incomparável, dá ao passamento de Nossa Senhora o nome de “dormição”.

Pouco depois, por desígnio e obra de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Virgem ressuscitou e foi levada aos Céus em corpo e alma. Assim recebeu Nossa Senhora outra  glorificação: uma ressurreição à maneira da de Jesus, e uma Assunção também comparável à Ascensão d’Ele. Aliás, na linguagem de outrora, Nossa Senhora da Assunção é igualmente chamada de Nossa Senhora da Glória, para significar o incomparável brilho de que se revestiu o seu ingresso no Paraíso celeste.

Esse desfecho da vida terrena de Nossa Senhora pode ser tomado como o término da história do Carmo do Antigo Testamento (embora já se estivesse, rigorosamente falando, no Novo Testamento). Aqueles carmelitas tiveram a alegria e a insigne honra de cultuar a Santíssima Virgem em carne e osso, e não através de imagens.

Nada impede presumirmos que Nossa Senhora subiu ao Monte Carmelo e ali se colocou à frente de seus filhos e devotos, em horas de inefável convívio. As hipóteses  piedosas, inteiramente razoáveis, que a esse respeito se podem fazer, são inúmeras.

Com a Assunção de Nossa Senhora e sua glorificação no Céu, essa etapa da existência da Ordem carmelitana findou-se de modo magnífico, esplendoroso. Fica estabelecida uma relação entre o Carmo e a glória: a devoção perseguida, fiel, profética, luta até o momento em que é confirmada por Deus, e passa a reluzir no mais alto do Céu, na  pessoa da Virgem Mãe.

Depois, recomeça a história do Carmo. A Ordem, existente apenas no Oriente Próximo, desenvolveu-se um tanto, mas tem-se a impressão de que os cristãos daquela região, nos primeiros séculos, não lhe deram grande importância, privando-se dos benefícios que ela poderia lhes trazer. Esta atitude para com o Carmo foi uma entre tantas infidelidades da Cristandade oriental, que terminou castigada pelas invasões sarracenas, as quais, entre outras calamidades, provocaram a fuga dos carmelitas para o Ocidente.

A Europa, toda católica, cheia de fé, empreendia as Cruzadas para a libertação dos Lugares Santos. Nesse continente os frades do Carmo começaram a vaguear, como membros de uma Ordem quase desconhecida, mal-admirada e à beira do desaparecimento. A família religiosa de Elias parecia um tronco seco e velho, fadado a se  desmanchar em pó.

Era o instante esperado por Nossa Senhora para fazer florescer, no alto da ressecada vara, uma flor: São Simão Stock. Esse inglês de reconhecida virtude havia sido eleito para o cargo de Geral da Ordem. Todavia, não exercia uma autoridade efetiva sobre seus súditos, pois o Carmo ainda não possuía uma estrutura jurídica coesa e uniforme, capaz de conservar um espírito, promovê-lo e transmiti-lo à posteridade. [Situação que se prolongava depois de o Papa Inocêncio IV ter aprovado a regra dos “Irmãos de  Nossa Senhora do Monte Carmelo”, em 1245.]

A virtude compensava, porém, a falta de autoridade.

Rezando a Nossa Senhora com muito fervor, São Simão implorou-Lhe não permitisse o desaparecimento da Ordem do Carmo. Em meio a essa aflitiva situação, a Virgem Santíssima apareceu a seu bom servo [em 1251] e lhe entregou o escapulário, para se usar sobre a roupa.

Naquela época os servos usavam uma túnica como traje civil. Sobre ela punham uma túnica menor, que indicava, pela cor e por características peculiares, a identidade de seu senhor. O escapulário do Carmo era semelhante a essa pequena túnica. Nossa Senhora, portanto, entregava a São Simão Stock uma libré própria aos servos d’Ela, para ser usada por todos os carmelitas, e prometia: “Aqueles que morrerem revestidos dele, não sofrerão o fogo do inferno”. Quem usa piedosamente o escapulário do Carmo, receberá a graça da perseverança final e será libertado do purgatório no primeiro sábado após a morte. [Esta promessa abrange também os fiéis que usarem o pequeno  escapulário, recebido em singela cerimônia das mãos de um padre carmelita ou de outro sacerdote que tenha a faculdade de o impor. Para se beneficiar do privilégio  sabatino, o fiel deve cumprir uma condição — como a recitação diária de um terço —, a critério do sacerdote.]

A partir dessa misericordiosa intervenção da Mãe de Deus, a Ordem carmelitana refloresceu e conheceu outros períodos de glórias, acentuando por toda a Igreja Católica a devoção à Santíssima Virgem. No suceder de esplendores iniciado então, nasceram três sóis, para não citar senão eles, que hão de reluzir por todo o sempre no firmamento da Igreja: Santa Teresa, a Grande, São João da Cruz e Santa Teresinha do Menino Jesus.

Retenhamos, então, a grandiosidade da história do Carmo: uma alternância de glórias e infortúnios conducentes a um adelgaçamento que faz prever o desaparecimento. Mas contece uma intervenção de Nossa Senhora, que salva e dá incomparavelmente mais do que se tinha antes. A prosperidade no Ocidente será muito maior do que a verificada na Ásia.

A par de sua insondável bondade, Nossa Senhora, ao intervir, mostrava também a confiança que se deve ter n’Ela, bem como seu papel central na obras que ama de modo especial. Ainda que estas cheguem ao ponto de tudo parecer perdido, devem esperar o momento que Ela se reserva para agir. Como dizia certo pensador católico, as grandes intervenções da Providência são precedidas de situações dramáticas, de modo a tornar clara a inutilidade de qualquer socorro humano. Uma vez provado o fracasso dos homens, e na própria hora da desolação e do caos, Deus intervém, e Nossa Senhora se faz presente.

Lição de confiança ainda mais necessária em vista do que ocorreu depois: enquanto a Ordem fundada por Santo Elias conhecia novos brilhos e novas glórias, a Cristandade que a acolhera tornava-se presa de um inexorável processo de ruína, que se acelerava no decorrer dos séculos. Até que, em 1917, numa colina de Fátima, Nossa Senhora  censurou a decadência, recriminou o mundo pela torrente de pecados em que estava imerso, e anunciou os castigos que haveriam de cair sobre a humanidade, caso esta não se arrependesse e se emendasse de suas faltas. Depois, exprimindo-se com as famosas palavras que guardamos em nossas almas, fez a promessa do Reinado d’Ela: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”

E aqui voltamos à consideração daquele vínculo ao qual nos referíamos no início deste artigo: no ápice das aparições em que Nossa Senhora proclama a efetivação de sua  realeza, sob a forma do triunfo do seu Coração Imaculado, Ela aparece revestida do traje de sua mais antiga devoção — a do Carmo. E, desse modo, realiza uma síntese entre o historicamente mais remoto, o mais recente — o culto ao Imaculado Coração de Maria — e o futuro glorioso, que é a vitória e o reinado desse mesmo Coração.

Eis várias das razões pelas quais a festa de Nossa Senhora do Carmo nos é muito grata a todos os filhos e devotos da Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira

Convívio entre as almas no Céu empíreo – II

Além dos Anjos e da Santíssima Virgem, no Céu empíreo os bem-aventurados terão a presença do próprio Nosso Senhor ressurreto. Comentando a respeito do convívio das almas, Dr. Plinio trata sobre o idioma em que se exprimirão; julga que cada um falará sua própria língua levada ao apogeu, e todos entenderão, por um dom de Deus.

 

Padre Cornélio a Lápide, descrevendo o Paraíso em seus vários degraus, fala d’Aquela que é o suprassumo de tudo: Nossa Senhora.

Continuamente em presença de Nossa Senhora

O Evangelho diz: “Maria via todas essas coisas e sobre elas cogitava”(1).

A cogitação de Nossa Senhora, como seria? Quando o Anjo A saudou, Ela ficou perturbada e pensava “qualis esset ista salutatio(2)— qual seria o significado dessa saudação.”

Muito mais do que em São Tomás — nem tem comparação! — era a elevação do pensamento de Maria Santíssima. Podemos imaginar que agora, no Céu, enquanto conversamos sobre isso, Nossa Senhora tem conhecimento de que estamos juntos rememorando com veneração essa cogitação d’Ela. E é possível que, neste momento, vários bem-aventurados sejam favorecidos por Ela com um “lumen” especial, por onde A vejam especialmente enquanto cogitativa!

Não digo que isso seja certo, mas é possível. Compreendemos assim a beleza que o inter-relacionamento dessa natureza pode oferecer, e o que será no Céu estar continuamente na presença da Virgem Maria.

Os pés divinos de Nosso Senhor tocam o solo do Céu empíreo

Mas Cornélio a Lápide faz uma consideração ainda mais alta. 

A humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, unida hipostaticamente à sua natureza divina, está presente no Céu empíreo, porque Ele tem corpo, o qual se encontra junto com os outros bem-aventurados. No Céu empíreo, também estarão os Anjos, mas de um modo diferente; sendo puros espíritos, eles têm presença, quer dizer, atuam ali. Tal será que não esteja no Céu empíreo Nosso Senhor Jesus Cristo, o Rei do Céu e da Terra!

Porém, afirma Cornélio, Nosso Senhor, na sua humanidade santíssima, é supereminente em relação a todas as criaturas e apenas toca, com os pés divinos, o chão empíreo, pois Ele — nunca ouvi dizer isso — enche com a sua presença os espaços vazios.

Quer dizer, Cornélio a Lápide imagina, provavelmente, um ser esférico ou plano, sobre o qual Nosso Senhor está, e além do qual há outras coisas e depois, digamos, o nada; mas, sendo Ele a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, isto faz com que Deus esteja presente por toda parte.

Compreendemos a grandeza augusta disso! E a planta divina desses pés, só em pousar sobre o Céu empíreo, lhe dá mais alegria do que todas as coisas que lá estão. Sem comparação com nada! Podemos imaginar esses pés, tão machucados durante a Paixão e, por fim, atravessados por um prego atrocíssimo; segundo a melhor versão, parece que um prego transpôs os tornozelos, que estavam cruzados um sobre o outro, e esse mesmo prego teria perfurado os pés divinos, os quais irradiam de glória, de um modo magnífico. E nós, nesta luz, vendo o melhor da luz que em coisas físicas se pode ver.

E ele faz uma comparação: Nosso Senhor Jesus Cristo é a lâmpada de Israel; é a luz por onde se vê a Criação. Mas que a humanidade d’Ele está para sua divindade como uma lâmpada para o Sol. E a Pessoa divina de Nosso Senhor, em união com a Santíssima Trindade, ali está irradiando a luz.

Uma orquestra deslumbrante que toca uma partitura improvisada a cada instante

Eu deveria falar alguma coisa a respeito do convívio dos Anjos, que é outro modo de nos aproximarmos de uma ideia sobre o convívio com o Altíssimo, do que seja a visão de Deus face a face. Os Anjos conhecem perfeitamente as almas dos bem-aventurados. E como estas conhecem o que se passa nas outras almas, elas conhecem os Anjos. E nessa cognição veem toda a perfeição de cada Anjo.

Sucede que o Anjo, como ser espiritual, é simplicíssimo e tem uma nota dominante que o define. Então poderíamos dizer que há um Anjo da pureza; outro da coragem, da fortaleza; outro da sabedoria; outro da temperança; e daí para adiante. E imaginar as várias virtudes em suas mil modalidades possíveis, e os milhões de Anjos refletindo de Deus uma determinada virtude, de um modo acentuadíssimo.

De maneira que, considerando o conjunto dos Anjos, ter-se-ia um panorama do conjunto de todas as virtudes. E, cogitando sobre os Anjos enquanto se relacionam entre si, não esquematicamente, mas pelos movimentos do que acontece no Céu, teríamos um quadro de conjunto de uma orquestra assombrosa, que toca uma partitura improvisada a todo momento, dizendo uma coisa que não se esperava e é magnífica a seu modo.

Assim, as várias virtudes se entrelaçam, se desenlaçam, se agrupam e se reagrupam, mas com uma força de personalidade, de afirmação e uma plenitude da qual nós, simples criaturas terrenas, absolutamente não podemos ter ideia. Um Anjo só já nos deixaria deslumbrados. E para termos uma ideia disso, basta dizer que, se conversássemos com um só Anjo durante um milhão de anos, teríamos a sensação de que ele tem algo de novo para nos contar.

Os Anjos são muito mais numerosos do que os homens; nós devemos preencher lugares deixados pelos anjos malditos, quando caíram. Na natureza angélica devem ser contados, portanto, os bons e os maus.

 Podemos assim vislumbrar o que será essa convivência durável e admirável com essa quantidade incontável de Anjos; e será preciso a memória que se terá no Céu, para não confundirmos uns com os outros e ficarmos conhecendo a todos. É um mar de deleites.

Contato das almas no Paraíso

Suponhamos que pudéssemos viajar para terras distantes. O mais agradável, com certeza, é conhecer diversos lugares, com ambientes geográficos e panoramas vários, onde há homens variados com os quais nos entendemos, todos bons, mas, sobretudo, apresentando formas diferentes de beleza e de bondade. De maneira que com todos temos harmonia. Esta variedade somada, dos homens e das coisas, constitui o maior prazer.

Mas imaginemos que alguém dissesse a um de nós: “Você só pode fazer duas formas de turismo: uma é visitar os vários lugares do mundo, vazios e sem homens; outra é estar num lugar onde, a todo momento, lhe aparecem homens das várias partes do mundo com suas diferenças, mas perfeitíssimos, boníssimos, com seus trajes regionais, seu espírito, sua linguagem, e cada um deles tem com você uma prosa excelente.”

O que preferiríamos? Os lugares vazios ou os homens? Os homens, a perder de vista! Porque, por mais que os panoramas sejam excelentes, a parte mais importante do homem é a alma, e “similis simili gaudet ” — o que é semelhante se regozija com o que lhe é semelhante —, e a alma se alegra no contato com outra alma. Evidentemente!

Isso posto, o convívio das almas no Paraíso é mais precioso e mais valioso do que o contato com a matéria do Céu empíreo, com sua magnificência e com todas as outras maravilhas que descrevi; tudo isso é pouco em relação à conversa e harmonia incomparável que nós teremos no Céu.

Que idioma falam os bem-aventurados?

A esse respeito lembro-me de um ponto curioso que Cornélio a Lápide levanta. Ele pergunta o seguinte: No Céu, as pessoas entenderão apenas vendo, ou falando também? Quer dizer, será uma espécie de telepatia permanente ou uma pessoa fala à outra? E responde: falam!

E depois apresenta outra questão: que língua falam?

Cornélio dá três soluções possíveis. A primeira é surpreendente: falam hebraico. E ele afirma, pura e simplesmente, que Adão — não sei com que fundamento, pois não li sua obra, mas apenas um resumo —, no Paraíso, falava hebraico. E que todos os povos, até a confusão das línguas, falavam hebraico, o qual depois continuou no povo eleito. De maneira que todos os santos do Antigo Testamento falaram o hebraico; portanto, este é o idioma que se deve falar no Céu.

A outra opinião é a seguinte: como os bem-aventurados terão o carisma das línguas, cada um falará o seu idioma próprio no respectivo apogeu, e todos entenderão a língua de todos.

Há uma terceira hipótese: Deus concede ao homem um novo idioma para se exprimir.

Eu acho essa terceira hipótese a mais razoável, mas a minha simpatia vai para a segunda. E a primeira me parece a menos provável, porém não a excluo.

Por que motivo julgo mais razoável a terceira hipótese?

No Céu, o homem verá coisas que não viu na Terra. Como pode a língua terrena bastar para designá-las adequadamente?  Há tanta coisa para dizer, que a língua terrena só conseguirá exprimir um pouquinho das coisas celestes.

Seria arquitetônico que empregassem o idioma através do qual lutaram e rezaram

Além dos neologismos, haveria uma solução que teria sua beleza: para muitas coisas, conforme a entonação dada, a mesma palavra no vocabulário humano é empregada para significar uma coisa e para designar algo de semelhante. E no Céu empíreo existiria algo de específico nos eleitos, nos Anjos, em Nossa Senhora e na humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, e depois em Deus. De maneira que, conforme a entonação, se saberia, pelo jogo da semelhança, o que vai sendo falado. Essa solução deporia a favor da segunda hipótese, mas é um pouco árdua, imaginosa.

Então, me parece mais razoável a terceira hipótese. Ou seja, para exprimir as coisas magníficas que faz ver ao homem, Deus lhe dá um idioma mais perfeito.

E aqui surge outra questão. Os idiomas atuais nasceram da confusão das línguas, e não vejo como é que no Céu possam permanecer os restos dessa confusão. Entretanto, minha simpatia vai para a segunda hipótese. Por quê?

Porque se o homem viveu, lutou e rezou num idioma, não parece inteiramente arquitetônico que ele relegue isto de modo total!

Os amigos do meio-termo diriam: poder-se-ia acrescer um idioma novo à língua já falada. Então cada pessoa seria bilíngue: o que não exprime na língua antiga, exprime na língua nova.

É postiço. Entretanto, é possível que Deus, o Qual pode e sabe tudo, queira fazer assim, de maneira a nos deixar deslumbrados, mas não parece.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1981)

Revista Dr Plinio 184 (Julho de 2013)

 

 

1) Lc 2, 51.

2) Lc 1, 29.

Guardas pontifícias

A honra, a nobreza e a alegria em dedicar-se ao Papado estão refletidas no esplendor dos uniformes e nos símbolos das Guardas do Vaticano.

A Guarda Suíça é um dos organismos existentes no Vaticano, responsáveis pela defesa. É recrutada entre suíços desde o século XV(1), e seu uniforme foi desenhado por Michelangelo.

As Guardas Suíça, Nobre e a Gendarmeria

Aqui encontramo-la em grande aparato(2). Todos os soldados estão de couraça e com uma espécie de gola feita de um tule frisado, que se usava muito no tempo em que essa farda foi desenhada.

Em outra foto os guardas suíços estão em cortejo, portando alabardas e uma bandeira, provavelmente da corporação deles, atravessando um lugar muito bonito. Notam-se algumas colunas e um pedaço de muro completamente trabalhado; talvez seja aquele portão que fica ao lado direito de quem entra no Vaticano, na colunata de Bernini.

Na cena da Guarda pontifícia prestando juramento veem-se dois magníficos estandartes, um deles com as armas papais e o outro com as cores da Guarda, e um dos militares que faz o juramento.

Podemos observar os guardas com seus tambores. Que bonitos tambores!

O Papa tem outro destacamento, que é a Guarda Nobre, composta exclusivamente de nobres com categoria de oficiais, cujo traje é naturalmente muito mais próprio ao nobre.

Existe também a Gendarmeria pontifícia, cujos soldados portam trajes do tempo de Napoleão: um gorro de pele bem alto, com um ornato vermelho na parte de cima, e calças brancas colantes; o paletó tem vagamente a forma de um fraque; as botas sobem muito alto. É um muito bonito uniforme. Em geral, escolhem para essa Guarda pessoas com alguma relação com a Santa Sé, não diretamente nobres, mas que voluntariamente prestam esse serviço. Por exemplo, em 1950, quando estive na Europa, um sobrinho de São Pio X pertencia a essa Guarda.

Numa das fotografias, vemos um destacamento da Guarda Suíça marchando.

Eu me entusiasmei com os elmos da Guarda Suíça — que são lindíssimos! — e fiz o possível e o impossível para trazer um para a Sede de nosso Movimento.

Júbilo em dedicar-se ao Papa

Podemos ver em outra fotografia dois uniformes: da Guarda Suíça e da Gendarmeria. Trata-se de uniformes com três séculos de diferença; um é do século XVI, o outro do século XIX.

O uniforme do século XVI é, como todas as coisas antigas, muito mais vistoso, alegre e brilhante do que o uniforme do século XIX. No do século XVI, observem o elmo com um ornato de pluma vermelha, e a beleza da couraça, que traz uma reminiscência medieval, e as luvas, as quais têm ainda a manga de couro vermelho. Eles não usam propriamente botas, mas meias muito aderentes à perna e presas ao joelho por uma liga dourada, com um laço.

Tudo isso lembra melhor o esplendor das antigas cortes, a alegria e a doçura de viver. Mas a Revolução é feita de tristeza. E sempre que ela se introduz, vai obscurecendo as cores, os risos, entristecendo a vida. O próprio da Revolução é procurar concentrar toda a alegria da vida na concupiscência, de maneira que a existência não tenha outros gáudios.

A farda da Guarda Suíça possui muitos valores católicos. Qual é a alegria que exprime essa farda? É um gáudio que não tem nada de sensual; é o júbilo de ser soldado, de combater, de ser dedicado ao Papa.

A Religião tem o direito e o dever de se servir da força, em determinadas circunstâncias, para realizar os seus fins. De maneira que essa Guarda não foi feita apenas para custodiar os tesouros do Vaticano; eram as tropas dos Estados Pontifícios no tempo em que o Papa tinha um dos Estados mais importantes da península itálica. Quando os Estados Pontifícios foram ocupados, em 1870, por Garibaldi e pela Casa de Saboia, algumas dessas tropas foram aproveitadas para guarnecer o Vaticano, que era um resto de território soberano, o qual o adversário não ousou invadir. Porém, na realidade, trata-se de tropas de combate, com um tipo de uniforme — com maior ou menor diferença — usado pelos soldados dos príncipes soberanos daquele tempo. Temos aqui, portanto, um tipo e um ideal militar, em que muito da graça da vida de corte e da leveza da cavalaria antiga estavam associadas.

Dragonas: símbolo da honra militar

O uniforme da Gendarmeria é caracteristicamente napoleônico. Se compararmos com os uniformes de nossos dias, que diferença! Quanto adorno ainda existe! A farda é mais triste do que a da Guarda Suíça, de uma cor escura, mas esse escuro é quebrado de quando em quando por algo. Nota-se uma pluma vermelha, que dá impressão de uma última nota de alegria, em comparação com a abundante pluma vermelha usada pela Guarda Suíça. É o último penacho de alegria que ainda resta. E para quebrar o que esse gorro de pele tem de muito pesado, foram postos dois cordões brancos com uma borla.

Nota-se nessas fardas algo que está desaparecendo ou desapareceu do ornamento militar moderno: as dragonas, utilizadas para dar uma bonita forma ao corpo. Modelam o ombro e realçam muito o uniforme. Por vezes, são douradas como as da Guarda Nobre vaticana. Antigamente, e até o momento em que deixaram de ser usadas, as dragonas eram, junto com a espada, o símbolo da honra militar. Conspurcar as dragonas de um soldado ou de um oficial era o mesmo que esbofeteá-lo.

Vemos na gola da farda da Guarda Nobre um ornamento claro, mais abaixo uma faixa e os botões dourados que combinam com um cinturão também dourado e muito bonito, de boa qualidade.

Considerem a beleza da espada, as bonitas borlas que acompanham a bainha, e algo de análogo na copa. As mangas da casaca têm um retroussé(3) bonito; observem as luvas brancas, a alvura imaculada das calças e, depois, as botas.

Comparado com os uniformes modernos, este é de um esplendor tal, que tenho impressão de que se mandássemos, em nossos dias, um regimento desfilar assim pelas ruas, o povo bateria palmas e sairia correndo atrás.

Podemos imaginar, por exemplo, o sucesso que faria a Guarda Suíça, desfilando e tocando músicas características nas ruas de diversas cidades do Brasil. Que beleza seria! Verdadeiramente uma maravilha!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/1/1970)

1) Embora o recrutamento de mercenários suíços para tropas tenha começado no século XV, a Guarda Suíça do Vaticano foi formada no início do século XVI (1506), por solicitação do Papa Júlio II.

2) As fotos que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.

3) Do francês: arregaçado.

AS VIRTUDES DE MARIA, remédio para nossa alma

Tesoureira das dádivas do Senhor e Mãe de Misericórdia, Nossa Senhora pode obter para nós a graça da santificação, apesar de todas as nossas carências e debilidades. Ao  comentar uma bela oração escrita por São Luís Grignion de Montfort, dirigida a Maria, Dr. Plinio evidencia uma importante realidade: a devoção à Santíssima Virgem como  meio necessário para a nossa salvação.

Atendendo o filial pedido que me fazem, passo a comentar um trecho da prece composta por São Luís Grignion de Montfort, “Oração a Maria para seus fiéis escravos”:

Ó Maria, minha querida Mãe, (…) dou-me a vós todo inteiro na qualidade de escravo perpétuo, sem nada reservar para mim ou para outrem. Se vedes em mim qualquer coisa que não Vos pertença, eu Vos suplico de tirá-la agora e de Vos tornar Senhora absoluta de tudo o que possuo; de destruir e desarraigar e aniquilar em mim tudo o que desagrada a Deus; de implantar, promover e operar tudo o que Vos agrada. Que a luz de vossa fé dissipe as trevas de meu espírito; que vossa humildade profunda tome o lugar de meu orgulho; que vossa contemplação sublime suste as distrações de minha imaginação vadia; que a vossa vista contínua de Deus encha minha memória de sua presença; que o incêndio de vosso Coração dilate e abrase a tibieza e a frieza do meu; que vossas virtudes substituam meus pecados; que vossos méritos sejam meu ornamento e suplemento perante Deus.

Enfim, mui querida e bem-aventurada Mãe, fazei, se for possível, que não tenha outro espírito senão o vosso para conhecer Jesus Cristo e suas divinas vontades; que não tenha outra alma senão a vossa para louvar e glorificar o Senhor; que não tenha outro coração senão o vosso para amar a Deus com um amor puro e ardente como Vós.

Foco de virtudes que sanam nossos defeitos

Nesse trecho transparece a unção e o fogo dos melhores textos de São Luís Grignion. Ele se apresenta e fala como se fosse uma alma pecadora, contendo em si inúmeros defeitos que deseja corrigir, e cuja solução se apóia no seguinte princípio: Sendo Nossa Senhora, por disposição divina, o receptáculo de todas as virtudes que possam reluzir numa criatura humana, Ela é o canal dessas excelências a serem distribuídas pelo universo. Dessa sorte, cada perfeição de Maria produz como que um efeito medicinal sobre a nossa lacuna moral oposta: sua pureza é dotada de uma capacidade de extinguir nossa impureza; sua humildade, de extirpar nosso orgulho; sua piedade, de erradicar nossa falta de devoção; seu recolhimento, de eliminar nossa dissipação.

Portanto, Nossa Senhora se assemelha a um foco do qual se difundem graças invulgares e dons especiais, próprios a vencerem nossas mazelas. Então, é legítimo dirigirmos uma oração a Ela pedindo-Lhe infunda em nós suas virtudes, para que estas nos transformem.

Como as curas do Divino Mestre no Evangelho

Revela-se-nos aqui o princípio da atuação intensa e sanativa da graça nas almas.

De fato, obedecendo aos desígnios de Deus, a graça pode descer sobre uma alma e num minuto modificá-la por completo, assim como, na expressão da Escritura, uma pedra é capaz de se tornar outro filho de Abraão. Quer dizer, pode tomar a pessoa mais radicada num defeito, mais tíbia, mais entregue a um vício, na situação mais aflitiva e miserável, e num momento livrá-la de todos esses males, desde que peça e seja ouvida por Nossa Senhora.

Assim, desejosa de se corrigir, mas acovardada diante da imensidade de suas imperfeições, contra as quais se verificam vãos todos os seus esforços, ela se volta para Maria Santíssima, rogando o socorro de graças superabundantes e necessárias para a sua conversão.

Daí São Luís Grignion formular essa prece pela qual o homem fraco, tíbio, pecador, em cujo fundo de alma lateja o anseio das mais altas virtudes, pode realmente resolver seu problema e encontrar os meios para galgar a elevada montanha da santidade.

Devemos, pois, pedir a Nossa Senhora uma atuação d’Ela em nosso coração, como eram as de Nosso Senhor no Evangelho ao curar os doentes. Na verdade, cada milagre daqueles significava uma ação divina sobre um organismo que apresentava um defeito, uma disfunção ou algo do gênero, remediando-o num instante. E quando os evangelistas narram tais curas, deixam ver que Nosso Senhor, restabelecendo os corpos, fazia entender que Ele podia sanar as almas, sendo cada uma daquelas debilidades físicas o símbolo de uma carência moral.

O socorro de Nossa Senhora, quando menos se espera

Exemplo magnífico dessa influência do sobrenatural numa alma temos no fato da conversão de São Paulo Apóstolo. Ferrenho perseguidor da Igreja nascente, em determinado momento, na estrada de Damasco, é ofuscado por uma luz, cai ao chão e, recompondo-se, a primeira pergunta que brota de seus lábios é: “Senhor, que quereis que eu faça?”. Quer dizer, ele se pôs inteiramente às ordens da graça para operar de acordo com a vontade dela.

Como este, inúmeros exemplos há na Igreja de pessoas que se convertem e mudam radicalmente, por uma ação fulminante da graça. Ouviram uma palavra, perceberam um gesto, tiveram um pensamento que as tocou e transformou por inteiro.

Então, se confiarmos na oração, se compreendermos a sua necessidade e sua eficácia, temos a possibilidade de obter os frutos espirituais mais inesperados e magníficos. Sobretudo se nos compenetrarmos de que essa prece é dirigida a Deus por meio de Maria, nossa Mãe de misericórdia e nossa vida. Sem Ela não haveria valor, nem doçura nem esperança em nossa existência. Com Ela, nossa vida é plena de vida, nossas doçuras são repletas de doçura e nós, em qualquer situação na qual nos achemos, devemos ter esperanças superabundantes e imensas. Nossa Senhora se compadece de nós e nos atende, pois é nossa Mãe. Em dado momento, nos tomará pelos braços e nos conduzirá à santidade a que somos chamados.

Cumpre considerar, entretanto, que o modo de Nossa Senhora exercer sua bondade para conosco é insondável. Assim, não raro as almas que recebem graças fulminantes são as mais provadas, depois de caminharem de provação em provação até um ponto onde não entendem mais o que se passa com elas, encontrando-se numa espécie de beco-sem-saída da perplexidade e do sofrimento. Nessas horas se dão as ações admiráveis de Maria em nosso favor.

Quantas vezes tenho visto almas nessas encruzilhadas da vida espiritual, tão aflitas e atormentadas que chegam a chorar. Observando-as, sinto o desejo de dizer a cada um: “Meu caro, espere, Nossa Senhora virá quando você menos imagina e vai socorrê-lo”. E com freqüência, no momento em que se tem a impressão de não haver saída para mais nada, a pessoa recebe uma graça magnífica e tudo se resolve pelas mãos de Maria, de um modo mais esplêndido do que jamais se poderia esperar.

Sacrossanta importunidade

É necessário, pois, tomar em consideração essa preciosa verdade: podendo rezar e possuindo uma Mãe como Nossa Senhora, nunca, nunca, nunca se deve ter desespero nem sequer a menor dúvida a respeito do auxílio do Céu. A quem bate, se abrirá; a quem pede, se dará. A nós de sermos insistentes na oração.

Lembremo-nos da célebre parábola do Evangelho, onde um homem se achava deitado na cama com seus filhos e aparece um vizinho importuno a lhe bater à porta, pedindo pão. O que já havia se recolhido não queria atender. Porém, o pedinte tanto insistiu que o pai de família se levantou, abriu a porta e lhe deu o pão. Comentário de Nosso Senhor: “Se esse homem não fosse importuno, não teria sido atendido”.

Portanto, a virtude aconselhável ante essas palavras é a da sacrossanta importunidade. Precisamos fazer violência ao Céu: pedir, pedir, pedir; bater, bater, bater. Seremos ouvidos, por maiores que sejam nossas dificuldades.

Pedir as graças próprias à nossa vocação

E o seremos, de maneira especial, no tocante ao nosso desejo de corresponder à vocação de perfeitos servos de Nossa Senhora.

Nesse sentido, poder-se-ia perguntar se caberia algum pequeno aditamento, repassado de enlevo, veneração e ternura, a essa prece de São Luís Grignion. Parece-me que sim, entendido nos seguintes termos.

Em uma instituição ou movimento católico semelhante ao nosso, o conjunto apresenta mais virtudes do que a soma das qualidades morais de seus membros. Compreende-se, pois ele recebeu uma série de graças que costumam estar em nosso ambiente, pairar em  nosso meio, como patrimônio do grupo. Elas são o tesouro do qual vivemos, e não significam outra coisa senão a própria projeção da misericórdia de Maria Santíssima entre nós, comunicando-nos suas virtudes e nos convidando continuamente a pedir essas graças.

Então, se Nossa Senhora nos chama para pertencer ao movimento, é natural que supliquemos a Ela nos obtenha os dons e dádivas celestiais específicos para o cumprimento dessa missão à qual fomos destinados. Dádivas e dons estes de que seu Coração Imaculado está repleto, aguardando nossa prece feita, como disse, com ternura, veneração e enlevo profundos.

Essa seria, a meu ver, uma forma magnífica de completar essa linda oração de São Luís, de maneira a alcançarmos as graças para sermos conformes a Jesus Cristo e a Nossa Senhora, atingindo o auge da perfeição em fazer a sua sacrossanta vontade enquanto seus filhos e servos amorosos.

Santo Henrique, Imperador

Comentando Santo Henrique, Dr. Plinio procura mostrar o contraste entre a figura deturpada que se formou da santidade,  e a personalidade varonil, sagaz, guerreira, humilde e combativa deste santo imperador.

 

Em geral, as pessoas têm a respeito da santidade uma ideia unilateral. Pensam que a santidade consiste apenas em sorrir, em estar de acordo com tudo e a tudo perdoar. Porém, muitos não têm ideia do vulto completo e da fisionomia geral da santidade.

Isso se deve, em parte, às imagens que se produziram nos últimos vinte anos, ou nos últimos trinta anos, em que apresentam os santos com umas carinhas lisinhas e um olharzinho meigo, quando, na realidade, se trata de santos que tiveram uma extraordinária personalidade, a ponto de marcar a sua época.

A verdadeira face da santidade

Quando eu estive na Itália, em Pádua, há alguns anos atrás, fui visitar o famoso santuário de Santo Antônio, onde se encontra o corpo do santo. Lá eu vi uma obra de um grande pintor, quase contemporâneo deste santo, chamado Giotto.

É a imagem mais próxima da fisionomia de Santo Antônio que se conhece: homem alto, possante, com fisionomia severa e com uma atitude hercúlea.

Eu comprei uma fotografia desse quadro e depois fui para a sacristia. Na sacristia vendiam ao povo santinhos representando Santo Antônio: um rapaz sem nada de varonil, imberbe, coradinho, dando a impressão que tinha usado carmim, sua fisionomia era a de quem diz: “Eu estou com medo”…

Quer dizer, apresenta-se o santo sem personalidade, um ente sem arrojo e privado do conjunto das virtudes, sem as quais ninguém é santo. O santo é declarado herói nas três virtudes teologais e nas quatro virtudes cardeais. Virtudes teologais: fé, esperança, caridade. Virtudes cardeais: justiça, fortaleza, temperança, prudência. Uma das virtudes sem a qual ninguém é santo é, portanto, a virtude da fortaleza.

No que consiste a virtude da fortaleza? Consiste em ser capaz de empregar toda a força necessária nas lutas que neste mundo devemos travar contra nós mesmos, contra os inimigos da fé e contra os inimigos da Igreja.

É preciso restaurar, aos olhos das pessoas, a verdadeira fisionomia da santidade, que inclui exatamente essa coragem. E por essa razão escolhi, para comentar na reunião de hoje, um modelo de coragem masculina: Santo Henrique, Imperador do Sacro Império Romano Alemão.

Vida repleta de fatos memoráveis

Santo Henrique colocou seu exército sob as bênçãos especiais de Deus, valendo-se da proteção dos grandes santos preferidos do seu povo. Elegeu dentre eles Santo Adriano, oficial mártir, cuja espada se guardava ciosamente, como relíquia, desde antigos tempos, em Valbach.

 Assim armado, organizou um exército para reprimir as invasões bárbaras dos povos do Norte, vencendo-os na Polônia e na Boêmia. Quando defrontaram os eslavônios, muito superiores em força, Santo Henrique determinou preces coletivas e a comunhão geral do exército. Ao se apresentarem as primeiras tropas para o combate, verificou-se pânico súbito entre os inimigos que, desorganizados, fugiam em debandada. Os anjos combateram e derrotaram os eslavônios. Os inimigos se submeteram, ficando Boêmia, Morávia e Polônia tributárias do Sacro Império.

Promoveu, a seguir, uma reunião de bispos em Frankfurt, com o objetivo de fomentar a disciplina eclesiástica nos seus estados.

Por duas vezes teve que subjugar os lombardos, que ameaçavam os Estados Pontifícios. Na primeira vez, após submetê-los, foi coroado, em Pavia, Rei da Lombardia, cingindo a célebre coroa de ferro desse reino. Numa segunda vez, sua atuação foi além da pacificação dos lombardos, pois graves problemas afligiam a Igreja: o antipapa Gregório movia disputa contra o legítimo Papa Bento VIII. Por esses dias do ano de 1014, em plena Idade Média, portanto, recebeu ele e a Imperatriz uma das maiores homenagens de suas vidas: visitando o Papa, foram solenemente coroados Imperadores dos Romanos.

O Pontífice presenteou o santo com um globo de ouro cravejado de pérolas, encimado de uma cruz, emblema de dignidade imperial. O monarca, dignificado por tantas honras e para perpetuar a lembrança dessas homenagens, transferiu o globo e a coroa às mãos de Santo Odilon para dotar o célebre mosteiro de Cluny, do qual este era abade.

Outra oportunidade teve ainda o monarca de concorrer para o bem da Cristandade. Aproximou-se de Estevão, Rei da Hungria, príncipe ainda pagão e que carecia vir com seu povo ao grêmio das nações cristãs. Santo Henrique ofereceu-lhe aliança e sua piedosa irmã, Gisela, por esposa. Ganhou ele um Santo Estêvão, cuja conversão foi maravilhosa, um grande rei para a Igreja e um santo para o Céu.

Teve de empenhar-se novamente em campanhas na Itália. Enquanto consolidava os estados no interior, e assegurava a paz com os vizinhos de Leste, os lombardos, associados aos gregos e normandos, assolavam as províncias da Itália. O monarca preparou-se para castigá-los. Derrotou-os em várias batalhas, repelindo uns e subjugando outros. Reintegrou a Igreja na posse das terras invadidas, ocupou Nápoles, Salerno e Benevento e restabeleceu a paz na península.

Ao voltar para a Alemanha, teve com Ricardo, o Bom, Rei dos franceses, a célebre entrevista do rio Mosa na qual se entenderam amistosamente os dois príncipes acerca dos grandes problemas cristãos e políticos da Europa. Dispunha o cerimonial que o encontro se desse no meio do rio, cada um em seu barco. Santo Henrique, em atenção às virtudes do príncipe francês, resolveu quebrar os rigores do protocolo: atravessou o Mosa com seu séquito e foi saudar o Rei da França na margem oposta(1).

Invasão dos bárbaros e início da Idade Média

A ficha é um pouco longa, pois a vida desse santo é tão cheia de atos memoráveis, que dela não se poderia ter uma ideia sem que vários elementos de sua biografia fossem mencionados. Para compreendermos bem o conjunto desses fatos, é preciso situá-los em seu contexto histórico: plena Idade Média, no ano de 1014.

Como é sabido, a Idade Média se iniciou com a queda do Império Romano do Ocidente. O Império Romano foi invadido por uma quantidade incalculável de bárbaros, completamente selvagens, os quais, estabelecendo-se no território do Império, sujeitaram os romanos ao seu domínio.

Aos poucos, toda a antiga população romana foi caindo na barbárie também. Então, as estradas não tinham mais quem delas cuidasse; os aquedutos que levavam água às cidades se rompiam; as cidades afundavam na sujeira; os palácios eram agora habitados por bárbaros selvagens que se degradavam completamente; as obras de arte eram quebradas nas ruas. Em suma, tudo o que pudesse representar civilização e cultura era miseravelmente liquidado.

Aos poucos, sob o bafejo da Igreja — a única organização que continuou a existir depois que tudo se dissolveu —, a Europa foi sendo reconduzida ao estado de civilização. Os bárbaros se converteram e, então, foram progredindo, à semelhança de uma tribo selvagem aonde chega um missionário.

Desta maneira — por mais que ainda estivesse abaixo do que ela estaria duzentos ou trezentos anos depois —, por volta do ano 1000 a civilização já se encontrava bastante adiantada no que diz respeito ao estado originário dos bárbaros. Ou seja, trata-se de um estado semibárbaro.

Ademais, alguns povos eram mais civilizados do que outros, havendo, portanto, dentro do continente europeu, ilhas de Cristandade, ilhas de Civilização Católica incipiente no meio de conglomerados de povos que, sendo bárbaros pagãos, estavam sempre atacando e lutando de maneira a tornar a vida dos católicos dificílima.

Formação do Sacro Império Romano Alemão

O povo germânico, que ocupava mais ou menos o território onde hoje se situa a Alemanha, a Áustria, parte da Checoslováquia e a Suíça, foi um dos primeiros a se converter. Após se civilizarem, os germanos constituíram uma entidade política chamada o Sacro Império Romano Alemão.

No fundo, tratava-se de uma liga dos povos cristãos contra a barbárie. E, como essa liga abrangia uma extensão grande de território, chamavam-na Império; Romano, por ser uma reminiscência do antigo Império Romano, que tinha abrangido toda a Terra; e, por fim, Alemão, pois o núcleo do Império eram as nações alemãs. Porém, acima de tudo, era um Sacro Império, pois sua principal finalidade consistia em defender a Religião Católica contra a agressão dos pagãos.

Deus é quem dá a vitória

Santo Henrique foi eleito Imperador do Sacro Império Romano Alemão, sendo colocado numa situação onde nem sempre a hagiografia popular mostra os santos. Ele estava à testa de toda a organização política da Europa de seu tempo, era o homem mais poderoso do continente. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha a obrigação de ser o melhor político e o melhor filho da Igreja.

Ele era, por excelência, o filho da Igreja, aquele que devia protegê-la em suas necessidades contra a barbárie. E como acontece sempre com os santos, ele desempenhou magnificamente suas funções.

Havendo hordas bárbaras que continuamente agrediam o seu povo, o santo monarca armou-se de força, constituiu um exército e o conduziu à guerra. Porém, por ser um herói católico, um homem de fé, ele sabia que não bastava lutar fazendo uso das forças humanas e naturais, mas era preciso contar com os recursos sobrenaturais. Por isso, ele pedia a Deus que lhe desse a força necessária para vencer.

Então, para mostrar ao santo quanto suas orações Lhe eram gratas, em certa ocasião, Deus fez um grande milagre: no momento em que as tropas dos eslavônios, mais numerosas do que as germânicas, estavam prontas para o combate e os exércitos postos frente a frente, vê-se que os pagãos começam a fugir em debandada: os anjos haviam lhes aparecido, incutindo-lhes terror.

Desse modo, Deus dava a entender como Ele considerava a oração: pela prece de Santo Henrique, Deus dispensou seus heróis do combate. Assim, a pressão pagã foi quebrada e uma das garras do paganismo, contra os católicos, liquidada.

Reconhecimento pontifício dos serviços prestados

Entre os inimigos da fé, havia também os lombardos, os quais tinham sua capital na cidade de Milão, hoje Itália, onde formavam um reino de hereges. Eles não eram propriamente pagãos, mas sim hereges arianos.

Santo Henrique desceu, então, pela Lombardia, atacou os lombardos, quebrou-lhes o poder e foi depois até Roma, a fim de visitar o Papa. Foi nessa ocasião que o Romano Pontífice coroou-o, junto com sua esposa, Imperador do Sacro Império Romano Alemão, numa cerimônia realizada com grande esplendor. Deu-lhe também de presente uma esfera de ouro, cravejada de pérolas, representando seu poder sobre toda a Terra.

Mas, para provar seu amor à Igreja, Santo Henrique não ficou com o tesouro: deu-o a Santo Odilon, Abade de Cluny, chefe da maior Ordem Religiosa da Europa naquele tempo.

Voltando para a Alemanha, Santo Henrique derrotou novamente os lombardos, quebrando definitivamente seu poder.

Insigne ato de apostolado e esplêndida manobra política

Sendo um tão grande batalhador, Santo Henrique mostrou-se também um hábil político.

Na Hungria, havia um rei que, apesar de ser pagão, era famoso por sua virtude. Compreendendo que, por demonstrar ser virtuoso, tal rei poderia ser atraído para a Religião Católica, ao invés de atacá-lo, Santo Henrique mandou pedir uma entrevista com ele, e ofereceu em casamento sua irmã, Gisela, de grande formosura e muito virtuosa.

O Rei da Hungria, chamado Estêvão, aceitou. Gisela cumpriu a tal ponto sua missão de converter o rei que este se tornou um santo da Igreja Católica, o qual converteu toda a Hungria.

Com isso, por uma manobra diplomática inteligente e muito bem sucedida, o Imperador estendeu os limites da Cristandade até além do Danúbio, conquistando um amigo onde ele tinha anteriormente apenas inimigos.

Grande por ser católico

Já naquele tempo havia uma secular rivalidade entre alemães e franceses: povos com índole e temperamento diferentes, e com questões de fronteira complicadas de resolver.

Mas, nesse tempo, a França era governada por um muito bom rei, e o Sacro Império Romano Alemão por um santo imperador. Pelo que, um acordo entre ambos não foi difícil. Santo Henrique, muito bom diplomata, quis ter um encontro com esse rei para ajustarem todos os problemas políticos da Europa, porque os dois principais países da Europa cristã eram a Alemanha e a França. Então, foram encontrar-se junto ao rio Mosa.

O protocolo mandava que, por serem dois soberanos importantes, nenhum fosse à terra do outro, pois aquele que fosse à terra do outro, por assim dizer, prestava homenagem à importância do outro. Então, deveria ser feito um encontro no meio do rio, em duas barcas. Trata-se de um rio de curso de água tranquilo, onde esse encontro comodamente podia ser feito. Preparou-se a barca do Imperador, assim como a do Rei da França.

O Imperador, sendo mais importante que o Rei da França, embora esse fosse muito importante também, podia pretender que o rei fosse ao seu território. Mas sendo um homem cheio de espírito católico, e bom diplomata, Santo Henrique fez o contrário: entrou na barca e preparou uma surpresa ao Rei da França, atravessou o rio e desembarcou. Quer dizer, o que era mais foi prestar homenagem ao que era menos, fazendo sentir pela sua atitude cordial que ele estava cheio de boas disposições, de boas intenções. De fato, realizaram-se então conversações muito cordiais, que concorreram para a paz dos dois países e para regular todos os problemas da Europa daquele tempo.

Essa é a história de Santo Henrique: Um grande católico e um grande santo, que por ser católico, foi grande rei, grande militar, grande guerreiro, grande diplomata, grande político, morrendo aureolado de toda espécie de êxitos e sucessos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/1/1970)

 

1) Não possuímos referência da ficha comentada por Dr. Plinio nessa ocasião.

Errata: Por um erro na transcrição da conferência feita por Dr. Plinio em 25/6/1976, no artigo desta seção do mês passado (junho), registrou-se, nas páginas 10 e 11, o termo “hermetismo” ao invés de “eremismo”, o qual representa um neologismo criado por Dr. Plinio para significar a vida enclausurada, religiosa, eremítica.

 

São Francisco Solano, um apóstolo exímio!

Para agradar o povo, São Francisco Solano costumava andar pela cidade tocando violino e cantando canções populares. Vendo-o, as crianças se interessavam e logo o seguiam. Ele, então, parava e ministrava-lhes um curso de Religião.

Ora, como acorriam inúmeras crianças para esse gracioso catecismo, os mais velhos ficavam curiosos e também passavam a comparecer.

Quando percebia que também os pais estavam bastante empenhados em assistir ao curso ministrado para os filhos, ele transformava a aula em sermão e increpava os maus hábitos renascentistas que se espalhavam em seu tempo, incutindo naquelas pessoas o desejo de praticar a virtude.

Ou seja, pela candura dos inocentes ele formava uma roda de pessoas e fazia um apostolado exímio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/8/1974)

O temperamento medieval

Pode-se falar em temperamento ideal, modelo para o homem contemporâneo? Partindo da descrição do ambiente de um castelo medieval, Dr. Plinio responde a esta pergunta ao expor o temperamento que caracterizava o homem e a sociedade durante a Idade Média, mostrando o que nele há de perene e válido para os povos de todos os tempos.

 

Em primeiro lugar, devemos procurar definir o que entendemos por temperamento nesta exposição.

Os diversos tipos de temperamento

Sabemos que as espécies animais têm um temperamento coletivo, ou seja, próprio a toda a espécie.

Chamamos de temperamento a uma certa nota fundamental que comanda e marca todas as manifestações de vida do animal. Assim nós podemos dizer que a águia tem um temperamento que não é o da pomba. O leão tem um temperamento que não é o do cordeiro. São entes irracionais nos quais o comportamento não decorre de nenhum modo de um pensamento, de uma reflexão, de uma doutrina, mas de algo que existe espontaneamente dentro deles.

E toda espécie — os leões, por exemplo — tem um temperamento.

Podemos dizer que o leão é feroz, majestoso e seguro. Não podemos afirmar, no mesmo sentido da palavra, que um gato é feroz, mas sim que ele tem sua ferocidade, suas seguranças, suas distinções; mas o gato é variável e tem um temperamento diferente do temperamento do leão.

Podemos dizer que dentro de uma mesma espécie os indivíduos têm temperamentos diferentes. Assim, de águia para águia, de cordeiro para cordeiro, de pombo para pombo, de leão para leão, de gato para gato há diferenças temperamentais também.

Transpondo isso para a escala humana, veremos que no homem o temperamento é algo ligado à biologia, ao corpo, à vida animal do ser humano, e que influencia, impregna, marca tudo aquilo que o homem faz. De maneira que todos os primeiros movimentos, as primeiras ações, as primeiras reações, os primeiros impulsos e, às vezes, muito mais do que os primeiros, são influenciados pelo que esse temperamento tem ou por aquilo que lhe falta, isto é, pelas carências desse temperamento também.

Nesse sentido, podemos afirmar existir também temperamentos de países. Há países com temperamentos diferentes uns dos outros.

Por exemplo, um prussiano e um italiano têm um temperamento marcadamente diverso. Muito menos diversos — porque na América do Sul as diferenças são menores —, mas também muito característicos, são os temperamentos do brasileiro, do argentino e do chileno.

Se quiséssemos aprofundar, poderíamos dizer que há diversidade temperamental de região a região, de cidade a cidade, e de indivíduo a indivíduo.

Tudo isso é conhecido, mas estou apenas lembrando para facilitar o desenvolvimento do que passarei a expor. 

Assim como as nações, também as épocas históricas têm o que se poderia chamar “temperamento coletivo”.

Quando vemos, por exemplo, fotografias de pessoas da “Belle Époque”(1), isto é, dos anos que se estendem mais ou menos das últimas décadas do século XIX até o começo da Primeira Guerra Mundial, notamos todos os homens com o peito erguido e posto para a frente, colarinhos e gravatas grandes, bigodões e umas fisionomias imponentes.

Aquilo não é mera representação, mas entra muito do estilo de vitalidade que o ocidental tinha naquele tempo, e que é uma vitalidade um pouco à Kaiser.

Se consultarmos um livro de gravuras do século XVIII, anterior à Revolução Francesa, compararmos com o período da Revolução Francesa, e depois com os anos de 1850, portanto, bem antes da “Belle Époque”, notaremos uma diversidade enorme de temperamento, que corresponde até a uma diferença de estrutura física.

Essas notas temperamentais, no homem, não ficam reduzidas puramente ao animal. Os reflexos da alma são condicionados pelo corpo, mas a ação dos princípios, das condições, dos hábitos modela, por sua vez, o físico. Há, portanto, o que se chama uma interação, uma ação recíproca alma-corpo, corpo-alma, que faz com que as coisas se componham e o temperamento de uma determinada época seja a resultante de determinadas condições biológicas e fisiológicas, mas também de um certo estilo de vida e de pensamento, de um certo gênero de atividades que as circunstâncias da época impõem. Assim, são muitos os elementos que modelam o temperamento da época.

Se explicitarmos estas ideias, chegaremos à conclusão de que há um temperamento pró-revolucionário e outro contrarrevolucionário.

O temperamento contrarrevolucionário é o do homem medieval, quando a Idade Média chegou à sua plena expressão.

O temperamento que é pró-revolucionário ou, se preferirem, o temperamento revolucionário é o que foi entrando no modo de ser do homem a partir do momento em que a Revolução começou.

Quando vemos gravuras, iluminuras, vitrais, castelos, tapeçarias, armas da Idade Média, somos introduzidos pelo espírito para um ambiente que forma um temperamento muito diferente do que se constituiu nas épocas posteriores da Renascença, do protestantismo, do “Ancien Régime”(2) ou de nossos dias.

Haveria, para o homem contemporâneo, um modelo de temperamento segundo o qual ele se deve adequar?

O temperamento medieval

A meu ver, esse modelo se encontra — não ponto por ponto, para ser copiado exatamente, mas ao menos nas suas linhas gerais — na Idade Média.

Vou tentar descrever o temperamento medieval para depois mostrar que consonância isso tem com a Doutrina Católica. Por esta forma compreenderemos o que há de perene nisso, válido para todos os povos de todos os tempos.

Creio que poderíamos ter um pouco a ideia disso fazendo o seguinte trabalho interior, de ordem psicológica.

Tomemos qualquer castelo medieval e imaginemos que devêssemos viver, não trancados nele, mas envoltos em sua atmosfera a vida inteira.

Torres altas, portas com ponte levadiça suspensa, fosso do lado de fora. Quando entramos no castelo, aparece um guarda no alto da torre, olha e, conforme for, baixa a ponte. Atravessamos uma espécie de corredor entre duas portas, formado por duas torres enormes, sombrias. Olhamos para cima e vemos buracos feitos para descerem barras de ferro em caso de batalhas, e impedir o inimigo de entrar.

Transpondo esse longo corredor, temos a sensação de estar calcando aos pés a base do castelo, na qual nós sabemos que há armazéns, depósitos e também prisões sombrias onde se encontram homens acorrentados, às vezes acorrentados junto à parede, e que recebem a luz do dia por uma réstia de sol vinda através de uma seteira.

No pátio do castelo tem um poço, e a presença do poço nos sugere uma profundidade enorme da qual a água é tirada. Em alguns desses poços joga-se uma pedrinha, e até a pedrinha bater na água e fazer barulho, pode-se acompanhar no relógio, tal é o percurso que a pedra tem a fazer.

Não há água encanada nos quartos nem todas as comodidades daí decorrentes.

Olhamos para cima, muralhas altas. De repente detemos a atenção sobre a estrutura de ferro que encima o poço, com a roldana e o balde, e é uma peça graciosíssima, um ferro delicado terminando em cima por uma flor de lis sobre a qual está um passarinho se sacudindo, todo alegre.

Um pouco mais à frente está uma capela. Do lado de fora do pórtico, uma Madona risonha com o Menino Jesus no colo. Entramos na capela, é uma joia: vitrais, santos austeros no alto dos altares, candelabros grossos com velas grossas, bancos de carvalho, o assento do senhor feudal colocado junto a um trono; tudo leva a uma espécie de recolhimento, de sacralidade.

Fazemos uma oração diante do Santíssimo Sacramento presente na capela, saímos e olhamos para a casa do senhor feudal.

Na pracinha pública interna do castelo ouvem-se vários ruídos: é o ferreiro trabalhando, outro que trabalha em couro, o carpinteiro que, cantando, está fazendo um móvel. Sente-se um cheiro de comida que sai da cozinha da habitação do senhor feudal.

Do lado de fora do terraço de sua residência, o senhor feudal sentado num trono de pedra e, a seus pés, pessoas discutindo. Ele está julgando causas, por vezes triviais, de súditos em litígio: é a propriedade de um boi, quando não de um porco… E a coisa é discutida, às vezes, calorosamente, de camponês a camponês.

O senhor feudal, que é um guerreiro, mas também um camponesão, ordena: “Cale a boca!” E, dirigindo-se ao outro súdito, diz: “Agora é você quem fala”. Se o sujeito não obedece, ele chama um alabardeiro. Este vem portando na cabeça um capacete de ferro, revestido de uma cota de malhas, cingindo uma espada e, com uma alabarda, ameaça o rebelde que, por fim, fica quieto.

Se entrarmos na casa do senhor feudal, encontraremos um ambiente bonito, tapeçarias vindas do Oriente, novamente vitrais majestosos, lindos móveis de carvalho, ouve-se uma voz melodiosa, e é a castelã que canta acompanhada de um alaúde, e a castelã tem cabelos louros e que estão trançados com pérolas ou com pedras vindas de não sei onde, seda vinda de não sei onde, e os filhos do senhor feudal estão num outro quarto aprendendo a ler e a escrever. É a vida cotidiana do castelo.

Imaginemo-nos chamados a viver um ano nesse ambiente pomposo, enorme, forte, onde os aspectos mais graciosos, mais mimosos contrastam com os aspectos mais guerreiros e sombrios.

Quem de nós garante que, ao cabo de um ano, não estaria com saudades da respectiva capital onde mora? E de onde vem a incerteza de que conseguiríamos viver no castelo?

Estou certo de que, ao transpormos os umbrais do castelo, ficaríamos encantados. Não se trata, portanto, de uma objeção doutrinária, mas de uma falta de integridade na adesão temperamental.

Nisso vemos bem um choque entre o temperamento medieval e o nosso. E enquanto não conhecermos a razão desse choque e não tratarmos de tender para esse temperamento, não estaremos modelando nosso temperamento segundo a sã doutrina, e haverá um conflito entre nossos princípios, que são conformes àquilo, e nosso temperamento, contrário àquilo. Isso provoca uma ruptura interna.

O que parece contrariar o homem contemporâneo

Caberia aqui descrever quais são os traços do temperamento medieval, e no que esses traços me parecem contrariar o homem contemporâneo, dando-lhe uma sensação de claustrofobia. Esses traços são próprios a qualquer civilização cristã, pois defluem da Doutrina Católica.

O fundo do temperamento medieval é uma certa estabilidade, por onde o medieval é animado pela noção de que tudo aquilo quanto ele faz é destinado a uma longa duração, porque o normal é que todas as coisas durem muito, e até indefinidamente. E que as coisas novas não sejam o contrário, mas sejam um desdobramento harmônico das antigas.

Tomemos uma catedral medieval como Notre-Dame, por exemplo. Quem a construiu teve a intenção de edificar uma igreja que devia durar até o fim do mundo. Assim, o intuito de quem fez aqueles castelos, muralhas, mosteiros, etc., era o de realizar obras perenes.

Em cada século medieval há uma modificação na arte, mas sempre seguindo uma certa continuidade, por onde a enorme estabilidade não prejudica a mobilidade, porque esta se faz na linha do que já foi feito. É uma linha reta, coerente com o passado, e que se desenvolve indefinidamente.

Isso tem uma repercussão no modo de ser das pessoas. Como o medieval é no que ele constrói, assim também é ele na direção de sua própria vida. Em geral um casal que se constitui na Idade Média, se muda de casa uma vez na vida é muito. Ele é mais pobre no começo da vida, a certa altura está mais rico e faz uma casa nova. Nesta casa ele fica até o fim de seus dias. Se a casa é grande, os filhos vão viver nela, e uma família inteira vai passar séculos naquela residência, considerando a hipótese de uma mudança como a coisa mais absurda.

Se possui uma propriedade rural, a família se fixa ali. Eventualmente, pode até adquirir outra, mas não deixa aquela, e sempre haverá membros daquela família morando naquela propriedade rural, séculos e séculos. Naquele campo plantarão árvores que deverão tomar seu tamanho normal dali a cem anos, para os descendentes se beneficiarem, porque estão certos de que a família nunca sairá de lá. Tudo o que se faz é estável, sólido, durável.

Também os hábitos familiares tendem a ser estáveis. As gerações de sucedem e vão se fixando no modo de ser da família que tende a ficar definitivo. É uma prodigiosa tendência ao estável, porém não ao imóvel.

Notamos essa tendência nos gestos do homem medieval representados nas iluminuras. Se não está combatendo — única cena em que o homem da Idade Média avança com velocidade —, o medieval nunca aparece correndo. Ao vermos aquelas iluminuras, não temos a sensação da pressa.

As pessoas pintadas num vitral, se estão em pé, dir-se-ia que criaram raízes no chão. Quando sentadas, tem-se a impressão de fazerem um só todo com a cadeira. As pessoas que estão trabalhando executam seu trabalho sem pressa e sem relaxamento, com normalidade e continuidade. E se estão se divertindo, são representadas com um aspecto mais leve e gracioso do que o da vida de todos os dias, e com uma nota de parêntesis de diversão em meio ao trabalho e à luta, convictas de estarem fazendo algo que é bom, na medida em que não seja feito sempre.

Estabilidade, sabedoria, lógica e sublimidade

A razão profunda dessa estabilidade é a virtude da sabedoria.

Como a natureza humana é uma só, enquanto um todo, mas dotada de peculiaridades, conforme os povos, é razoável que as nações sejam organizadas de um determinado modo, as casas dispostas de um determinado jeito, a arte realizada de uma determinada forma e o progresso siga uma determinada linha. A razão iluminada pela Fé encontrou a fórmula. Trata-se de seguir nessa fórmula até o fim. Isto é um dos traços do espírito medieval.

Esse traço tem o seguinte corolário.

O homem medieval é amigo de levar todas as coisas sem afobação, sem ímpetos temperamentais, sem explosões. A explosão, o ímpeto, é um vício. Ele é legítimo na guerra, e explicável na diversão; fora disso, é considerado uma desordem.

Por isso, na mentalidade, no espírito do medievo não há lugar para a contradição. Tudo se faz segundo imensas concatenações de raciocínios, imensos desdobramentos de ideias, fazendo com que no seu procedimento tudo seja uníssono e seu temperamento seja apetente de coerência, de harmonia, de uniformidade, de lógica.

Essa apetência da lógica é um dos traços mais marcantes do temperamento medieval. Mais uma vez, a virtude da sabedoria, mas no que ela tem de mais alto.

Pelo fato de ser lógico assim, o medieval tem uma alma profundamente feita para ser modelada pela Igreja, fonte da verdade e de toda a lógica. E por ser modelado pela Igreja, ele é movido por uma certa noção de que a linha-mestra do pensamento humano, o fim da contemplação e da apetência humana é o maravilhoso, o sublime, o elevado.

Em qualquer coisa que o medieval faça, por pequena que seja, pode-se notar a presença de algo de sublime. O vulgar, se existe, é contrariamente ao espírito medieval. É como o crime ou a sujeira numa cidade: não estão de acordo com as regras da cidade; antes, são o contrário do que ela deve ser.

Encontramos, então, mesmo no ambiente da vida medieval mais miúda, uma nota de seriedade, uma apetência de sublimidade que ladeia e coroa essa coerência, e faz com que tudo na Idade Média tenha um aspecto cerimonioso, protocolar, religioso, sacral, do qual o mundo de hoje está completamente despido.

A vida familiar de um trabalhador manual

Para exemplificar, não falarei das cortes dos reis, mas sim da vida e da família de um trabalhador manual.

Na vida familiar de um trabalhador manual, o pai é um rei. Ele é tratado pela esposa com veneração, e pelos filhos com arqui-veneração. A sua palavra faz lei e o ambiente que o cerca é de verdadeiro respeito religioso. Este respeito se estende aos filhos maiores de idade, aos filhos casados, aos netos e aos netos casados, e ninguém ousaria tomar profissão, casar-se ou mudar de vida sem ouvir o parecer do patriarca e, em geral, sem pedir seu consentimento, pois sua vontade é absolutamente lei.

Vemos, então, a vida medieval organizada em torno de homens respeitáveis, sólidos, sérios, que encontram uma espécie de glória em atingir a idade madura e até a sabedoria da velhice; que não têm, como o homem moderno, a preocupação de estar continuamente bancando o mais moço; nimbados pela experiência da vida, pelos grandes sacrifícios feitos, pelas lutas, pelas incertezas que tiveram ao longo da vida, e cujas palavras são recebidas como oráculo que afina sempre com a Doutrina Católica, suprema lei do pensamento e suma regra do procedimento humano.

A chave de cúpula do temperamento medieval

Naturalmente, subindo de classe social iremos encontrando isso mais requintado. Compreendemos, então, que tudo na Idade Média visava o sublime, o maravilhoso, visava o celeste, o angélico.

A meu ver, esta é a verdadeira chave de cúpula do temperamento medieval. Esse horror ao vulgar, esse desejo do maravilhoso de maneira tal que na alma medieval há uma apetência de encontrar algo que nesta vida não se encontra. A arte medieval tende mais a pintar o Céu do que a Terra, colocando nossas almas diante de panoramas mais celestes do que terrestres.

Um vitral banhado de luz, por exemplo, é muito mais um pedaço do Céu do que uma representação terrena.

A atmosfera que banha os personagens de Fra Angélico é uma atmosfera celeste. A pompa de que se cerca um rei não é uma pompa grã-fina, não é uma exibição de dinheiro nem de força brutal. É a ostentação de uma finura sacral e de uma grandeza celeste. Quer dizer, o medieval está continuamente tendendo para o mais alto, para o mais sublime, para o celeste.

Havia um equilíbrio extraordinário dentro disso. Não se trata do pomposo meio engomado do século XIX, no qual se tinha a impressão de que aquelas pessoas, se sorrissem, desmanchar-se-iam inteiras.

O medieval não era assim. Ele compreendia e praticava o sorriso. Sorria com as coisas da natureza próprias a provocar o sorriso. Por exemplo, em catedrais medievais, em uma daquelas nobilíssimas colunas que se elevam até o começo de ogivas que vão até o teto, veem-se, de repente, um, dois, três esquilos de pedra “correndo” um atrás do outro. É uma brincadeira que o próprio escultor pôs naquela coluna tão séria. É um sorriso para esse lado risonho e aprazível da vida.

Ou então, em um vitral, a figura de um santo ou de um rei sentado no seu trono, e junto dele um cachorrinho. O que faz ali esse cachorrinho? É o sorriso do artista. Tornou-se célebre o fato de tal duque, que esteve nas Cruzadas e realizou tal feito heroico, ter tido um cachorrinho. Então, na hora de pintar um vitral representando o duque como benfeitor da igreja, ou como senhor feudal do lugar, põe-se o cachorrinho ao lado do duque. É uma forma de seriedade, porém não engomada, como a do século XIX. É uma seriedade angélica, que vê o gracioso, o pequeno e se encanta, numa ascensão contínua para o angélico.

Esse contínuo remeter para o celeste, para o religioso, repito, é a chave de cúpula da atmosfera da Idade Média; está presente em tudo e sem isso a Idade Média não se explicaria.

Essa coerência medieval é feita de exclusões, de rejeições e de certezas. Tanta força de fé, tanta estabilidade, tanta coerência, fá-la capaz de grandes movimentos de alma.  Sai de dentro dessa grande estabilidade um grande “não” como um grande “sim”. Por isso, nessa época, a meditação da Via Sacra, por exemplo, tem por correlato o espírito guerreiro do medieval que vai para o combate libertar o Santo Sepulcro. Isso nasce da força do seu ato de Fé. Isso explica também como o medievo, tão estável, se deslocava, paradoxalmente, para imensas peregrinações a pé, de ponta a ponta da Europa.

Tudo o que vimos como característica da Idade Média, na Religião Católica, constitui um matiz. E, a meu ver, Nosso Senhor Jesus Cristo foi assim, como também os Apóstolos. Na Europa medieval isso refulgiu com uma intensidade particular, tomando tal plenitude, a partir de Cluny(3), de maneira a conquistar o mundo inteiro. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/2/1971)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.

2) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Abadia beneditina francesa que deu início a um importante movimento de reforma espiritual e cultural da Europa.

Equilíbrio, força e obediência

Além de precisas, lógicas e claras, as exposições de Dr. Plinio frequentemente eram ricas em reversibilidades. Comentando um belo salto realizado por um cavaleiro em Andaluzia, ele analisa o céu, o campo, o cavalo, o cavaleiro, comparando este com o marinheiro e o aeronauta. E afirma que as qualidades do animal equino, transpostas para a natureza humana, definem o autêntico membro do Movimento por ele fundado.

 

A figura que vamos comentar caracteriza uma pessoa dando um salto a cavalo. É uma das mais belas, fiéis e expressivas manifestações da coragem humana, naquilo que ela tem de mais bonito, que é a capacidade de ousar e de avançar.

Sempre mais cristãos atrevimentos

O ápice da posição da alma humana consiste em crer, não em qualquer religião, mas na única Religião verdadeira que é a pregada pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Quando o homem acredita nas verdades ensinadas pela Igreja, elas projetam uma luz sobre sua alma que o ilumina e o torna capaz, por amor àquelas verdades, de empreendimentos extraordinários. É aquilo que o nosso grande Camões chamava “cristãos atrevimentos”(1).

No tempo desse autor português, as esquadras de Portugal cobriam os mares que levavam até a Índia, Japão e China, ou chegavam a pontos ainda ignorados do Brasil. Essas naus eram impulsionadas, em parte, pelo desejo de lucro dos mercadores, que fretavam e organizavam as esquadras; mas eram movidas principalmente pelo anseio de expandir a Fé Católica.

Então, Camões desejava que as naus navegassem para sempre mais “cristãos atrevimentos”.

Quando se está em Portugal, é uma beleza contemplar a Torre de Belém, de onde partiam as esquadras, e os reis iam ver, na foz do Tejo, os navios prontos se encherem das respectivas tripulações e partirem para lugares, por vezes inteiramente ignotos, para sempre mais cristãos atrevimentos.

É bonito ver o espírito humano posto nesta impostação da Fé, diante do tremendo desconhecido que era o mar naquele tempo, utilizando uns barquinhos que eram umas cascas de noz, em comparação com os navios mercantes de nossos dias. É belo contemplar o homem neste arrojo, no momento em que ele ousa, empreende e parte.

O cavaleiro, o marinheiro e o aeronauta

Nota-se muito menos essa beleza do espírito, na aeronáutica. Por quê? Porque na aeronáutica, com a parte material do avião e da técnica, devido a certo determinismo que há na máquina, mede-se perfeitamente e limita-se o grau de risco, que passa a ser muito menor do que o dos barquinhos de Colombo ou de Pedro Álvares Cabral.

No barco, é uma beleza ver o homem flutuar sobre as incertezas dos mares e rumar para um alto ponto distante. E esta também é a pulcritude do cavaleiro, quando dá um grande salto a cavalo.

Mas o cavaleiro tem uma vantagem sobre o marinheiro: aquele orienta uma coisa viva, mutável, cuja vitalidade e mutabilidade são governadas por ele. A vitalidade do cavalo depende de uma espécie de domínio, que eu chamaria de psicológico, do cavaleiro sobre o cavalo.

O cavaleiro muito ousado dá ousadia ao cavalo; ele pesa sobre o cavalo, mas ajuda-o a carregar o peso. O cavaleiro e o cavalo formam, por assim dizer, uma só ousadia, uma só força, e participam de um só voo.

Nessa fotografia, vemos o que é este voo do cavalo e, por cima dele, o voo do cavaleiro, de onde vem a impressão de que quase tudo ali é a alma do cavaleiro.

O cavalo constitui uma massa viva maior do que o cavaleiro, mas este, porque tem vida humana, possui mais domínio do que o cavalo. Também o corpo do cavaleiro ocupa uma matéria viva maior do que sua cabeça, mas esta tem a direção e, por causa disso, vale mais do que o corpo. Assim, a parte menor, onde cintila a inteligência, tem a responsabilidade e a glória pelo todo.

Duas ascensões simultâneas

Faço notar alguns pormenores realmente admiráveis.

Temos três elementos: dois que constituem o cenário, e um representado pelo cavalo e cavaleiro. Poder-se-ia dizer que são o contexto e o texto.

O céu da Andaluzia(2) é exatamente assim. Não há, portanto, embelezamento por meio de efeitos fotográficos. Se devêssemos imaginar o céu da eternidade, uma das ideias mais próximas seria essa.

Considerem o campo, a terra. É curioso, mas todas as coisas têm uma adequação própria. Sou entusiasta da grama inglesa, cor de esmeralda. Realmente é uma coisa admirável! Entretanto, se aqui houvesse essa grama, não daria certo. Essa vegetaçãozinha tem exatamente a altura que deveria ter; não deveria ser um chão raso, mas também não poderia ser uma grande vegetação. Precisava ser assim, para que, entre este solo e este céu azul, se realizasse este grande feito, fruto da força de alma.

Analisemos o cavalo. Ele está numa posição em que a luz bate nele com uma beleza perfeita, e o ilumina como talvez um artista não pudesse ter imaginado a iluminação. Notem como as formas do animal ficam evidenciadas, a musculatura, toda a força de corpo que faz dele uma espécie de avião de vida, posto nos ares.

À vista dessa luz, pergunta-se: este é um céu matutino ou vespertino? A indagação tem certo interesse, porque em função da resposta pode-se interpretar melhor a cena. Esta fica mais bonita imaginada de manhã ou à tarde?

Tenho a impressão de que é o céu da manhã. Há uma vitalidade matutina, uma alegria da natureza toda que desperta, causando a impressão de existir qualquer coisa de um desígnio de Deus realizado, no momento em que o Sol acaba de nascer, as luzes enxotaram as trevas da noite e o dia começa a dominar tudo. Então o Sol sobe, o cavalo e o cavaleiro sobem também. Há, portanto, duas ascensões simultâneas. Dir-se-ia que o cavaleiro está radiante nessa subida de todas as coisas, e de ser o rei da natureza, elevando-se no meio dessa ascensão. É uma coisa bonita.

Alegria de vencer o risco

Outro aspecto a considerar é o risco, porque o salto pode dar errado, e o cavaleiro quebrar a espinha, tornando-se um homem liquidado. Mas ele não está pensando no erro nem no risco. Vê-se que ele previu tudo e sabe perfeitamente o que precisa fazer com o cavalo; possui a alegria de vencer o perigo para o qual já tem a vitória assegurada. Por isso, não tem o medo do risco, mas a embriaguez da vitória.

O cavaleiro tem amarrado ao pescoço um lenço que o vento movimenta. Observem a forma heroica que o lenço toma. A ideia da confrontação com o vento que, por sua vez, faz levantar o lenço como o homem faz erguer o cavalo, o lenço tremulando atrás do cavaleiro; tudo isso dá a impressão do heroísmo, da vitória, da palpitação da glória.

O chapelão dele indica que é um de homem disposto a qualquer aventura.

Observem, agora, a crina do cavalo. Dir-se-ia que ela está tomada por um incêndio frio; a crina suspensa pelo vento parece uma labareda.

Os olhos do cavalo, um pouco arregalados diante do perigo, por ter menos segurança do que aquele que o dirige — o animal só tem o instinto —, entretanto como que está devorando o perigo. Sua boca está meio aberta. Dir-se-ia que ele está com fome de mastigar o risco. Vejam o movimento delicado das patas dianteiras! Ele todo está voando.

Distância psíquica

Em certo sentido, essa foto emoldurada constituiria um quadro que se poderia chamar: “Distância psíquica”(3).

Uma pessoa entendida em equitação disse-me que para o cavalo estar em condições de realizar este salto, exige-se dele equilíbrio, boa musculatura e flexibilidade.

Em termos humanos, flexibilidade quer dizer obediência, ou seja, fazer o que o cavaleiro manda. Equilíbrio poder-se-ia traduzir por equilíbrio nervoso; e musculatura por força. Equilíbrio, força e obediência é a definição do perfeito membro de nosso Movimento.

O cavalo obstinado, com “vontade própria” e que encrenca, é de pouco valor, empurra-se de lado; o de categoria é o que “sabe” obedecer. O cavalo nervoso, agitado, incapaz de fazer o que o seu dono manda não vale nada; mas o que executa as ordens do seu dono, porque tem equilíbrio nervoso e força, este é o cavalo autêntico.

São símbolos que Deus põe na natureza para a formação do homem. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/11/1990)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Cf. Lusíadas, VII, 14.

2) Região situada no Sul da Espanha.

3) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

A mais nobre e elevada das alegrias

Estamos numa época em que existe apenas contentamento pelas coisas do mundo. Quase ninguém tem a alegria da virtude. São Francisco Solano foi chamado por Deus para comunicar essa alegria, que não consiste em contar piadas, fazer brincadeiras, ser palhaço, mas em ter seriedade e procurar em tudo servir a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A ficha que vamos comentar refere-se à biografia de um Santo espanhol, São Francisco Solano, que foi apóstolo da América do Sul. Os dados dessa ficha são tirados de um livro escrito por um franciscano do Peru(1).

Nobreza de sangue e de virtude

São Francisco Solano foi uma figura suscitada pela Providência para fazer parte da Contra-Reforma espanhola. Ele nasceu em Montilla, na Andaluzia, em 1549, de família nobre. Seu pai foi duas vezes governador de Montilla, capital do marquesado de Priemo. Sua mãe, tanto pela nobreza do sangue quanto pela nobreza da virtude, era conhecida como “a nobre” no lugar.

Esta conjugação da nobreza de sangue e da nobreza de virtude nos leva a evocar certo tipo de senhoras extraordinariamente virtuosas e dignas ao mesmo tempo, que houve no passado, em quem havia uma aliança maravilhosa entre a elevação de alma e a de maneiras. De forma que a elevação de maneiras não aparecia simplesmente como um adorno externo quase mecânico dos gestos e das atitudes, mas era a própria expressão da nobreza de alma da pessoa. E é grato ao homem encontrar formas exteriores elevadas que correspondam às interiores.

Vemos, assim, a mãe de São Francisco Solano ser chamada “a nobre” por excelência, pela nobreza conjugada da virtude, do sangue e das maneiras. Esta era aquela a quem a Providência deu a missão de formar quem? O missionário dos índios mais botocudos da América do Sul.

Esses são os contrastes dos desígnios da Providência. Quantas vezes ele teria se lembrado da “nobre”, atravessando as ruas da capital do pequeno marquesado de Priemo? Tudo isso tem a sua beleza e o seu sentido, e vale a pena registrar de passagem.

Quando ela esperava o futuro Santo, o consagrou a São Francisco de Assis, donde o seu nome. São Francisco Solano recebeu uma formação sumamente cristã dos pais e a completou no colégio dos padres jesuítas de sua cidade. Ele mesmo era uma pessoa de bom porte, agradável conversação, bela voz e um raro senso musical.

Como veremos, esses dotes foram todos previstos pela Providência para o esplendor de seu apostolado.

Comunicar a alegria pelas coisas santas 

Por influência do rei católico, para compensar o dano que a Religião sofria pela apostasia de muitos povos, houve um verdadeiro renascimento religioso na Espanha. Pelo seu zelo, brilhava entre as figuras desse renascimento religioso, na Ordem de São Francisco de Assis, o grande São Pedro de Alcântara. São Francisco Solano, atraído pelo exemplo e pelo prestígio de São Pedro de Alcântara e da Ordem Franciscana, saiu do colégio dos jesuítas e tomou o burel franciscano. Pelas suas virtudes e capacidades foi ele sendo designado logo para cargos diretivos. Caracterizou-se a virtude dele por uma nota: não tolerar que ninguém manifestasse em torno dele tristeza por estar servindo a Deus.

Nada de caras compridas, aborrecidas, porque é dura a vida, pensando como sofre um pobre religioso… Quando a pessoa começa a ter pena de si mesma e ficar com cara comprida, entra num caminho em cujo fim está a apostasia. Então, é preciso dar a alegria do serviço de Deus, comunicar o júbilo das coisas santas.

São Francisco Solano recebeu essa graça, quão rara e quão preciosa em nossos dias, de comunicar o gosto, a alegria pelas coisas santas. Hoje estamos numa época em que existe apenas contentamento pelas coisas do mundo. Quase ninguém tem a alegria da virtude, de estar servindo a Nosso Senhor. São Francisco Solano foi chamado por Deus para comunicar essa alegria. Não se trata de uma alegria tonta, de piada, de brincadeira, própria de um palhaço.

Trata-se de ter a alegria da seriedade, que é a mais nobre e elevada das alegrias. Veremos São Francisco Solano dar o exemplo disso por toda parte, e fazer este apostolado da alegria na luta, na seriedade, no sofrimento.

Movimento rítmico de grande candura, nobreza, elevação e pureza

Ele tomou o hábito de, quando viajasse, incluir em sua minúscula bagagem, junto com o cilício e disciplinas, um violino, que era o seu grande instrumento de apostolado.

Exatamente essa justaposição me parece querer dizer bem tudo: o violino sem o cilício é o caminho aberto para a apostasia. O cilício sem o violino perde algumas de suas expressões; porque o normal do cilício bem usado é dar alegria. Mais ou menos como o soldado que vai para a luta, ele parte alegre. Um soldado que vai chorando e pensando: “Ó pátria, como me dói deixar-te… Ó família querida, que mágoa… Ó pobres membros que as balas podem estraçalhar…” Ele recua, não vale dois caracóis.

O bonito é o soldado que avança por cima do perigo e até da morte, alegre no sacrifício e na dor. Assim também o religioso. É a alegria de carregar as obrigações, de arcar eventualmente com os votos, de pertencer inteiramente a Nossa Senhora, de não ter nada de próprio e de, por causa disso, ter tudo. Violino e cilícios. A fórmula parece-me tão magnífica que se poderia fazer dela um motivo de decoração, numa capela, lembrando esse apóstolo do continente onde existe o Brasil.

A alegria de São Francisco Solano era tão singular que quando ele estava diante do Santíssimo Sacramento, ou via uma imagem do Menino Jesus nos braços de Nossa Senhora, tinha tanta alegria que muitas vezes ia para o interior do convento e chamava os padres: “Padre venha ver, o senhor não se alegrou ainda? Olhe aqui como o Menino Jesus está tão bem aqui com Nossa Senhora nessa imagem! Assim vivamos na Terra; vamos nos alegrar!” E quando ele se tomava de muito entusiasmo, puxava o violino, tocava, cantava e dançava diante da imagem ou do Santíssimo Sacramento.

Era um movimento rítmico de grande candura, nobreza, elevação e pureza, evidentemente. Os sentimentos da alma podem se exprimir pelos ritmos da música e também pelos do corpo.

Aliás, antigamente havia danças diante do Santíssimo Sacramento. Eu acho isso um encanto. Imaginem qual seria nossa sensação entrando numa igreja e encontrando um Santo em êxtase, tocando violino diante do Santíssimo Sacramento ou de uma imagem de Nossa Senhora, cantando e dançando. Ficaríamos extasiadíssimos!

São Francisco Solano era muito zeloso da sagrada Liturgia. Por isso tinha um empenho enorme em que os frades aprendessem bem as rubricas e o cantochão, para dar todo o esplendor possível aos santos mistérios.

Exprobava os maus hábitos renascentistas 

Esses contrastes harmônicos me maravilham. Ele cantava e tocava canções religiosas populares para agradar ao povo, mas era um espírito elevadíssimo que compreendia a superior beleza da Liturgia, com todo o pensamento teológico, toda a piedade, todo o sobrenatural que há na Liturgia, portanto, também na arte, na música litúrgica, e que exigem esse esplendor. Quer dizer, o esplendor enorme abarca os dois extremos. Eu gosto de ver almas assim: largas, abertas, capazes de se entusiasmar pelos opostos, não contraditórios, mas extremos. Isso é categoria; assim era São Francisco Solano.

Muitas vezes acontecia que ele andava pelas ruas da Espanha tocando o violino e a criançada saía correndo atrás dele para ver, porque se interessava. Aí ele parava e dava um cursinho de Religião para os meninos.

Pode-se imaginar que curso gracioso, interessante. Como o curso atraía muitas crianças, os mais velhos iam assistir também. Quando percebia que os mais velhos estavam bem empenhados, ele transformava o curso de catecismo em sermão, e exprobava, increpava nos mais velhos os maus costumes e incutia a virtude. Os mais velhos estavam cativados pela candura dos inocentes e formavam uma roda. O menino ia ver o frade, o adulto ia olhar o menino, o frade falava para o adulto. Era um circuito perfeito. E aí ele caía em cima dos maus hábitos renascentistas espalhados em seu tempo. Um apóstolo exímio.

Como São Francisco Solano estava se tornando muito célebre na Espanha, seus superiores resolveram mandá-lo, a pedido dele, para a América. Então ele começou a percorrer a América espanhola a pé, estando no Panamá, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Imaginem percorrer tudo isso a pé, nas estradas daquele tempo – quando as havia –, numa topografia torturada pelos Andes, subindo e descendo, escorregando… Depois, navegar por aqueles rios nas embarcações daquele tempo! Pois bem, ele foi até o Paraguai, chegou a descer à Argentina e fazer apostolado em Tucumán. O trajeto Panamá-Tucumán é próprio de um bandeirante!

Se fosse um bandeirante leigo, com certeza se falaria muito dele. Aqui está um que fez isso por amor a Nosso Senhor; provavelmente se fala menos dele do que dos bandeirantes…

Música acompanhando o gorjeio dos passarinhos e o murmúrio das águas

Ele se fixou uma boa parte da vida dele em Lima, então chamada Cidade dos Santos Reis, onde florescia a Ordem Franciscana, com 180 membros, naquele tempo tão ilustres pela sua virtude, que tornavam Lima famosa nos ambientes franciscanos da Europa, por causa da santidade que florescia lá. No tempo em que ele morou naquela cidade, era Arcebispo de Lima São Turíbio de Mongrovejo, e começava a sua carreira de santidade Santa Rosa de Lima.

Vemos, por esses dados, o que a América do Sul poderia ter sido. Porque quando esse é o ponto de partida, qual deveria ser o ponto de chegada?!

Depois de uma estadia em Lima, onde suas virtudes foram granjeando estima e cargos, ele mais uma vez fugiu.

São Bernardo dizia que a glória é como a sombra: quando fugimos dela, ela corre atrás; quando corremos atrás dela, ela foge.

Na região de Tucumán, ele procurou aproximação com os índios mais temíveis. Certo dia, ele estava já cansado, andando em plena floresta e sentindo-se vigiado de longe.

Os índios faziam muito isso: quando desconfiavam de uma pessoa, seguiam-na de longe, vigiando-a para ver onde ia; em certo momento, matavam-na.

Embora se sentisse observado, como estava muito cansado de andar e com sede, parou perto de uma fonte e curvou-se para beber.

A cena é linda, daria para uma iluminura medieval. Uma floresta virgem, um frade franciscano com aquele burel, que para junto a uma fonte borbulhante, se persigna e bebe aquela água. Depois sentou-se e descansou um pouco. Enquanto ele descansava, ouviu o cântico dos passarinhos, em grande número na floresta, e o murmúrio da água. E como ele tinha um gênio altamente musical, resolveu acompanhar com o violino o murmúrio das águas e o cântico dos passarinhos. Quer dizer, ele compôs. Notem a tranquilidade de consciência! Ele sabia que podia morrer durante aquela composição. Mas compreendia também que iria para o Céu tocando música, e os Anjos se encantariam com isso.

Quem de nós não teria um empenho enorme em conhecer a música com que ele acompanhou o gorjeio dos passarinhos e o murmúrio das águas?

Enquanto tocava, São Francisco sentiu uma seta passar perto de sua orelha e cravar-se numa árvore. Ele continuou. De repente, viu um carão emergir do meio da vegetação: era o cacique da tribo de índios ferozes que o Santo procurava. Ele deixou o violino e, todo irradiante de amor de Deus, dirigiu-se ao índio para o abraçar.

O cacique se comoveu, deixou-se tocar, levou-o para a tribo, e São Francisco Solano começou a evangelização dessa nação índia.

São Francisco de Assis, com que termos cantaria o irmão Francisco como ele, que converteu assim uma nação infiel!

Mas restava conversar. Como falar com aqueles índios? Ele começou a falar castelhano e se deu conta de que o dom das línguas tinha entrado nele, e os índios entendiam o castelhano com toda a simplicidade. Assim se faz apostolado!

Castidade: a única virtude que não se esconde

Durante treze anos ele esteve nessa região, empregando todos os recursos para apaziguar brancos e índios, resolver dissensões, cativar uns e outros para a Religião. São Francisco Solano, êmulo de São Francisco Xavier, ressuscitou mortos, curou doenças mortais, amansou feras bravias, fez surgir fontes em lugares áridos, de tal maneira que era veneradíssimo pelos brancos e índios com quem tinha contato.

É um fundador de uma nação! Homem que ressuscita mortos, fala em sua própria língua e os outros entendem nos seus respectivos idiomas! Assim se funda uma nação. Quantas coisas bonitas haveria para contar de Anchieta também, nesse sentido, o fundador do Brasil!

Certa vez, quando uma nuvem de gafanhotos devastava uma plantação dos índios, o Santo ordenou-lhes que se dirigissem para uma floresta vizinha.

Assim com essa facilidade: “Vão embora para a floresta!” E eles foram.

Então os colonos perguntaram por que ele de uma vez não exterminava os gafanhotos. E ele deu duas razões: primeira, porque gafanhotos daquela espécie tinham servido de alimento a São João Batista, no deserto.

Portanto, por amor a São João Batista, ele não mandava exterminar os gafanhotos.

Em segundo lugar, porque também os índios comiam gafanhotos e era bom que os irmãos índios não ficassem privados de sua alimentação.

Acho isso um encanto!

Esse homem tão extraordinariamente suave era imensamente austero.

Eu falei dos violinos, deixem-me dizer algo sobre os cilícios.

Ele não só era casto, mas era a única virtude que ele timbrava que o vissem possuir.

O que é altamente bem pensado, porque é a única virtude que não se esconde. Tem-se que mostrar.

E, por causa disso, ele nunca permitiu que mulher alguma chegasse a cem passos de distância de sua moradia, em todo o círculo em volta.

Será que compreendemos a responsabilidade individual de cada um de nós? De que história somos a continuação? Que promessas estão nas nossas mãos? E também que desilusões podem cair sob nossa responsabilidade, se não correspondermos à graça?

Aqui é uma tarefa individual, porque do bom procedimento e da dedicação de cada um de nós pode decorrer uma notável melhora ou piora em todo o conjunto.

Entregou sua alma a Deus, enquanto se cantava o Credo

Quando podia, mandava construir uma choupana ao lado do coro, na igreja, para ter sempre a presença do Santíssimo. Quando não conseguia, levava ao coro uma esteira e deitava-se no próprio coro, onde, depois de alguns momentos de descanso, inflamava-se de amor de Deus que traduzia nos famosos cantos e danças, acompanhados de violino.

Estando para morrer, no último momento, para traduzir seu amor e reconhecimento para com a Santíssima Virgem, pediu que lhe cantassem o Magnificat.

É sempre a alegria.

Lembrando-se em seguida de que era missionário, isto é, propagador da Fé, pediu que lhe cantassem também o Credo. E às palavras “Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine”, expirou precisamente naquele instante, quando os sinos do convento anunciavam o momento da elevação na Missa conventual.

Tudo ao mesmo tempo. Não pode ser mais bonito. Quer dizer, no convento, quando havia a elevação do cálice durante a Missa, se tocava o sino. Na cela dele, cantavam o Credo. Ao entoarem as palavras que acabo de citar, por coincidência fazia-se a elevação, os sinos tocavam e a santa alma de São Francisco Solano subiu ao Céu.

Isso é morrer! Ou, por outra, isso é nascer.

Depois de morto, tendo procurado certificar-se do rejuvenescimento que apresentava seu corpo, tão maltratado durante a vida pelos jejuns e penitências, um médico primeiro apalpou-lhe os pés e as mãos. Quando tentou apalpar-lhe uma das pernas, o Santo encolheu-a, dobrando o joelho. E é assim que é representado no retrato que foi feito dele no dia seguinte ao de seu enterro.

Quer dizer foi mais um milagre que ele fez. Para mostrar a presença de Deus pela sua graça, ele encolheu a perna a fim de manifestar quanto a Providência o tinha amado em vida e dava-lhe a possibilidade de fazer esse prodígio. Ele não se auto ressuscitou, mas o cadáver se moveu. Aquele que tinha ressuscitado tanta gente dava essa manifestação de vida.

O Vice-Rei, estando ausente da cidade, mandou que se adiasse o enterro para poder estar presente. E tanto o Arcebispo quanto o Vice-Rei entraram no cortejo para oscular humildemente os pés do Santo. Tendo o Vice-Rei visto que a almofada que sustentava a cabeça do Santo, no caixão, era de um tecido muito ordinário, ou pelo menos alegando isso, fê-la trocar pela de veludo bordado a ouro que tinha consigo. A outra, levou-a como relíquia.

São Francisco Solano foi beatificado em 1675 e canonizado em 1726. Mesmo antes de sua beatificação, já fora escolhido como patrono pelas cidades de Lima, Buenos Aires, Cartagena da Colômbia, Panamá e Santiago do Chile.

Com isto está apresentada a vida de São Francisco Solano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1974)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos.