Santa Macrina, modelo de educadora

Ao contrário do corre-corre e da dilaceração da existência nos dias de hoje, Santa Macrina cuidava dos afazeres domésticos, levando uma vida recolhida, calma e distendida, com muito espírito de oração. Dentro de sua casa, ela educou seus irmãos menores, que depois se tornaram grandes santos.

 

Tenho em mãos uma síntese biográfica de Santa Macrina, virgem, tirada da obra “Vidas dos Santos”, do Padre Rohrbacher(1).

Quatro irmãos santos

Nascida em Cesareia no ano de 327, Macrina, a Jovem, era filha de Emélia e Basílio, o Antigo, e irmã de Basílio, Bispo de Cesareia, de Gregório, Bispo de Nissa, de Pedro, Bispo de Sebaste.

Macrina era a mais velha, a “mãezinha”, a protetora, a incansável, da qual São Basílio, com emoção, fala que foi educadora perfeita.

A mãe inspirou-se na Escritura santa para formar a filha, buscando na Sabedoria de Salomão luzes para educá-la, ao passo que o Saltério foi o preceptor da jovenzinha.

Aos doze anos, ficou noiva, mas morrendo o pretendente não pensou noutra coisa mais, senão em se consagrar à educação dos irmãos.

Em 373, Emélia faleceu. Os filhos, já formados, de vez em vez vinham visitar a “Grande Macrina”, como a chamavam nos tempos da longínqua infância.

Quando doente, já perto da morte que a levou em 379, Gregório encontrou-a sobre uma tábua, com o cilício. Tomou-a carinhosamente e pô-la no leito, onde a moribunda, evocando o passado, pôs-se a render graças a Deus por tudo aquilo que, bondosamente, dignou-se conceder-lhe:

“Senhor, Tu acabaste com o medo da morte. Por Ti, a verdadeira vida começa quando se acaba a vida atual. Dormimos por uns tempos, depois nos ressuscitarás ao som da trombeta”. Depois: “Tu nos salvaste da maldição e do pecado, vindo por nossos pecados e nossa maldição”.

Com o Crucifixo de ferro, que encerrava uma relíquia da Cruz do Salvador, que sempre trouxera consigo, morreu em paz, sendo enterrada perto do pai e da mãe.

Vemos aqui o que é uma alta genealogia; os pais tiveram quatro filhos santos: São Basílio Magno, que superou o pai; São Gregório de Nissa, também grande santo e Padre da Igreja; São Pedro de Sebaste e Santa Macrina.

Pedagogia inspirada no Livro da Sabedoria e dos Salmos

A mãe inspirou-se na Escritura santa para formar a filha, buscando na Sabedoria de Salomão luzes para educá-la, ao passo que o Saltério foi o preceptor da jovenzinha.

Bons tempos aqueles em que a mãe abria o Livro da Sabedoria para aprender como deveria educar os filhos. Hoje, a maioria das mães não se lembra disso. E se puserem esse Livro nas mãos de algumas delas, não entendem ou não concordam.

Em 373, Emélia faleceu. Os filhos, já formados, de vez em vez vinham visitar a “Grande Macrina”, como a chamavam nos tempos da longínqua infância.

Portanto, eles souberam agradecer a educação que receberam desta irmã.

A ficha colhida parece ser um pouco vazia porque, afinal de contas, narra quem são os pais e os irmãos dela, conta que ela ajudou sua mãe a educar seus irmãos e, depois, diz que ela morreu, e nada mais.

Esse vazio pode ser preenchido com algumas considerações a respeito da vida feminina naquele tempo. Creio que daí virá algo de útil para nós.

O papel da mulher é ser o centro natural da família

Uma verdade elementar, acessível a qualquer pessoa, é que sendo a mulher e o homem pertencentes ao gênero humano, são, contudo, muito diferentes, devendo também caber, a cada um, tarefas diversas nesta vida. E se é próprio ao homem velar pela manutenção da família, é próprio à mulher permanecer dentro de casa e proporcionar ao homem um verdadeiro tesouro: uma casa habitada.

Quer dizer, a mulher deve ter seus filhos e educá-los. Depois de terem completado a sua educação, os filhos se casam. O papel da mulher é de ser o centro natural da família. De maneira que sua residência é o ponto de encontro dos filhos, dos netos. E o normal é que ela passe a maior parte de sua vida dentro de casa. Não quero dizer que a mulher deva sempre ficar em sua residência; mas o sair todos os dias de casa não é próprio a uma mulher com espírito feminino completamente bem formado.

A distração, o entretenimento da mulher, o ambiente onde ela completa a sua personalidade é dentro de sua própria casa e das residências dos parentes muito próximos, os quais ela deve visitar com uma relativa assiduidade, de acordo com as circunstâncias. Mas precisa encontrar a sua satisfação em estar dentro de sua própria casa.

Fazendo o que dentro de casa? Recebendo os seus, tomando conta do lar, rezando, e rezando bastante, e levando uma vida recolhida, calma e distendida. É o que a natureza da mulher pede.

Enquanto a natureza do homem requer que ele saia, exerça alguma atividade, lute, a natureza da mulher pede esse tipo de vida especial, que lhe proporciona as circunstâncias dentro das quais ela verdadeiramente se salva, e pode se santificar.

Eu conheci senhoras para as quais o normal era não sair de casa. Quando saíam, era aos domingos para ir à Missa, e uma vez ou outra a fim de fazer compras ou alguma visita. No período em que as filhas deviam contrair matrimônio, elas tinham que sair um pouco mais. Fora disso estavam dentro de casa, onde levavam sua vida habitual.

Essa vida impregnada de calma, de piedade, podia conduzir, conforme fosse o espírito da mulher, a um alto grau de santidade, ou a uma virtude comum. Mas na maior parte das vezes, era uma virtude sólida que dava um eixo, um sustentáculo moral à vida de família.

Esta foi, sem dúvida, a vida de Santa Macrina.

Cuidar dos afazeres domésticos com espírito sobrenatural

Depois de ter cumprido a sua missão na Terra, educando três santos para a Igreja, e transmitindo-lhes a educação que recebera, ela não entrou para um convento. Poderíamos esperar que, sendo uma santa, tivesse resolvido entrar para um convento, ou então ir para uma Tebaida, um lugar remoto. Não. Ela ficou em sua residência e ali levou a vida de uma dona de casa. Fez o menu, cuidou que as coisas não se deteriorassem, dirigiu as criadas, manteve um certo número de relações que era natural que mantivesse, e consagrou o principal de seu tempo à oração. Fez tudo isto com espírito sobrenatural, tornando-se uma grande santa.

É um modo de santificar-se nas condições normais de uma existência sadia, razoável, e não o corre-corre e a dilaceração da vida nos dias de hoje, tão contrária à natureza da mulher e mesmo do homem. Normalmente, uma mulher virtuosa, vivendo aquela vida e impregnando-a intensamente do sobrenatural, se salva. Compreende-se que, não tendo recebido de Deus uma vocação especial, Santa Macrina permanecesse em casa com seus pais.

E essa sua vida foi coroada, em primeiro lugar, pela presença de um tão grande santo, irmão dela, para assistir à sua morte. Foi coroada também pelas lindas palavras que ela proferiu antes de morrer. Palavras de Fé, de quem sabia que não ia terminar, mas ressuscitaria depois, confiante de que a misericórdia divina a receberia no Céu.

Ela levou até o fim da vida uma cruz de ferro, dentro da qual estava embutido um fragmento da verdadeira Cruz. Podemos notar, através desses dados, que ela morreu como tinha vivido, quer dizer, santamente, e foi objeto da veneração dos três santos por ela formados e que a chamavam a “Grande Macrina”.

O que essa “Grande Macrina” fez? Aparentemente nada. Ela educou três crianças, que depois se tornaram grandes santos. E o que mais? Educou-os em sua casa, magnificamente, rezando e vivendo piedosamente uma existência normal. Com isso ela se santificou, adquiriu uma virtude heroica e está no Céu. A Igreja a canonizou. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 24/7/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Vidas dos Santos. Vol. XIII. São Paulo: Editora das Américas, 1959. p. 178-179.

 

Admiração transformante

A experiência da vida nos confirma o princípio segundo o qual aquilo que admiramos penetra em nossa alma e nos transforma. Exemplo arquetípico dessa verdade encontramos em Nosso Senhor. Percorramos as páginas do Evangelho sob este ângulo e veremos como Ele, durante todo o tempo de sua passagem pelo mundo, procurou despertar admiração.

O povo que O ouvia não cabia em si de tanto admirá-Lo. E como se tal não bastasse, o Divino Mestre ainda se transfigurou no Tabor. Para quê? Para transformá-los, para obter o amor daquela gente, pois o autêntico amor começa pela admiração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/9/1969)

União dos espíritos e dos corações

Um extraordinário poder concedido pela Providência às almas unidas por um verdadeiro amor à Cruz de Cristo. Assim entende Dr. Plinio o valor e a força desse profundo liame espiritual — ressaltado por São Luís Grignion de Montfort em sua Carta Circular aos amigos da Cruz —, capaz de infligir, por sua simples existência, tremendas derrotas ao demônio.

 

Escreve São Luís Grignion:

Uni-vos fortemente pela união dos espíritos e dos corações, infinitamente mais forte e mais temível ao mundo e ao inferno do que o são, para os inimigos do Estado, as forças exteriores de um reino bem unido.

Princípio valioso

Eis um belo trecho, que encerra um abismo de sabedoria e de realidade. União de espírito e de corações significa vínculo de princípios e de vontade, mais poderoso do que o liame no qual se aglomeram os soldados de um exército bem unido.

Cumpre observar que São Luís Grignion de Montfort viveu durante o reinado de Luís XIV e no período da Regência, quando a Europa se achava conturbada por guerras diversas. Assim, a imagem utilizada por ele, de um reino com tropas armadas invadindo outra nação, não era descabida, e ele a empregou para reforçar seu valioso pensamento.

 Aprofundando essa idéia de São Luís, podemos constatar que existe uma espécie de porosidade universal da sociedade humana — semelhante à osmose, que é um fato natural — por onde tudo que se passa em algumas almas acaba atingindo todas as outras, ainda que não se conheçam. Donde a força incalculável dessa união de espíritos.

Sentido profundo da união em torno da Cruz

Contra isso levantar-se-ia a objeção de que é uma fantasia. Respondo: antes da descoberta do rádio, se se afirmasse que através de uma caixinha seria possível ouvir, nos mais diversos idiomas, notícias do mundo inteiro, muitos sorririam e diriam tratar-se de fantasia. Quando surgiu o rádio, ficaram boquiabertos. Porém, diante do fato espiritual, continuam a pensar que dito fenômeno é contra o bom senso…

Se pensarmos na analogia com a osmose, percebemos a veracidade de tal princípio. Algumas almas que se unam de modo fervoroso em torno da Cruz de Nosso Senhor, junto à qual se encontra Nossa Senhora — que nos alcança e nos distribui as graças de Deus —, essas almas assim inteiramente unidas têm o dom de desferir um golpe no demônio mais terrível que as armas de todo um exército.

Foi o que se deu, por exemplo, com Santo Inácio de Loyola e seus primeiros discípulos. Ao se reunirem com o propósito de constituir a Companhia de Jesus, naquele momento tal união de almas repercutiu nas piores falanges de calvinistas e luteranos, infligindo um tremendo golpe no foco essencial do adversário da ortodoxia católica.

Esse é o sentido mais profundo do apostolado dos amigos da Cruz, unidos, com amor e enlevo, em torno do seu ideal, na forma como essa união deve ser organizada. Insisto: ainda que fossem cinco paralíticos num hospital, portanto pouco prestigiados, se tivessem essa união, representariam um fator de alta importância para os desígnios da Igreja.

Admirável poder dado pela Providência

Compreendamos como esse é um admirável poder que a Providência nos concedeu a nós, católicos e amigos da Cruz. Pois mesmo que nos faltassem os recursos materiais, que nos negassem todos os meios de ação, ou fôssemos perseguidos e lançados em cárceres diferentes, mas permanecêssemos unidos nesse vínculo de almas, estaríamos combatendo os adversários da Igreja e da Civilização Cristã de modo extraordinariamente eficaz.

É o que se depreende do pensamento de São Luís em sua Carta Circular. Um pequeno grupo de amigos da Cruz, fortemente unidos, são como um exército em marcha vitoriosa para derrotar o inimigo. Lembra-nos a afirmação de Nosso Senhor no Evangelho: o Reino dos céus está dentro de vós (Lc 17, 21). Embora eu não seja exegeta, creio não me enganar ao considerar que o corolário dessa verdade é: nossa vitória está dentro de nós. Sejamos o que devemos ser, o triunfo será como que automático. Ou seja, mais do que qualquer outra coisa importa procurarmos ser o que devemos ser.

Santa Teresa e suas freiras

Nesse sentido, chama a atenção que todos os historiadores mencionam a reforma do Carmo feita por Santa Teresa, a Grande, como um dos fatos dominantes da Contra-Reforma. Porém, a quase totalidade deles abstrai o fato da comunhão dos santos e consideram apenas os aspectos naturais dessa reforma. Ora, sob o ângulo meramente natural, tendo em vista uma reação, o erro estratégico por excelência consiste em fundar uma ordem contemplativa. Pois tomar um grupo de freiras que podiam estar agindo e pregando pela Espanha contra o protestantimo, trancá-las atrás de grades e obrigá-las ao silêncio, seria prestar um imenso favor ao adversário. Significava inutilizar os melhores instrumentos humanos do bem.

Entretanto, esses mesmos historiadores admitem o alcance concreto das fundações de Santa Teresa para o triunfo da Contra-Reforma. Quer dizer, de um pequeno grupo de freiras, no fundo de um convento, permeia, filtra e voa um dardo vigoroso contra o mal. E quanto maior for o amor a Deus e o ódio ao demônio com que essa união se faça, tanto maior será o golpe desferido no inimigo da Igreja.

Batalha invisível dos amigos da Cruz contra o mal

Em sentido contrário, é preciso considerar, não raro se vê famílias ou instituições desmoronarem moral e até materialmente. São muralhas da velha tradição católica que se desfazem. A causa próxima dessa ruína geralmente é indetectável. Mas o motivo remoto, profundo, é este: nos antros do demônio houve requintes de pecado, enquanto entre os católicos não houve requintes de virtude. E então o pecado também voa em sentido oposto ao bem. Essa é a grande batalha, invisível e superior, dos amigos da Cruz, dos que pertencem à cidade de Deus (para usar a imagem de Santo Agostinho), aqueles que levam o amor do Altíssimo até o esquecimento de si mesmos, contra os amigos da satisfação, do deleite desenfreados, filhos da cidade do demônio que levam o amor de si mesmos até o esquecimento de Deus.

Compreendemos, assim, como Nossa Senhora, os anjos e nossos santos padroeiros nos olham do Céu e nos acompanham em nossa trajetória espiritual, esperando que tenhamos esse impulso ardoroso de alma, capaz de contrariar as ações do demônio e seus sequazes.

Fundamento do apostolado da Contra-Revolução

As palavras seguintes de São Luís confirmam ainda mais tudo o que acima consideramos. Diz ele:

Os demônios se unem para vos perder. Uni-vos para derrotá-los.

Portanto, é a visualização da luta como o confronto entre duas uniões, as quais não significam coligações estratégicas de forças, mas de amores contrários, que definem a vitória ou a derrota, antes de tudo pela sua diferente intensidade. É o lado estático e superior da luta, supereminente em relação a seu aspecto dinâmico.

Os avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e prata; uni vossos trabalhos para conquistar os tesouros da eternidade, encerrados na Cruz.

O avarento recolhe para si, sendo o oposto do que tem amor de Deus: este é o “avarento” das coisas da eternidade, dos tesouros encerrados na Cruz de Cristo.

Os libertinos se unem para se divertir; uni-vos para sofrer.

Eis um empolgante contraste! Se tantos se unem para se divertir, como vencer essa coligação de libertinos? Sofrendo sozinho? Não: sofrendo unidos. Formando dessa maneira o bloco coeso dos bons, desferindo o maior impacto que se pode infligir ao mal.

Creio que essas palavras de São Luís Grignion de Montfort contêm o fundamento do apostolado contra-revolucionário, pois essa união de espírito e de corações é a mais eficiente arma na luta entre a Revolução e a Contra-Revolução.

 

(Continua em próximo artigo.)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1967)

 

Garras na terra, "alma" no céu…

Torres fortes, presas ao solo como garras e sem medir os anos e os séculos, suportam com decisão e arrojo a grandiosa e feérica massa do Castelo de Saumur.

Assim robustas e firmes, erguem-se do chão até as primeiras janelas. À medida que vão se elevando, tornam-se mais leves e lá no alto parecem desaparecer, como que se dividindo num mundo de agulhas, de setas, num bimbalhar de cores e de flechas, todas elas tendendo para as etéreas vastidões do firmamento.

E todas arvoram no topo uma figura simbólica: ora é um galo, representação da França e da Igreja; ora uma flor de lis, emblema da monarquia francesa; ora alguma outra imagem, grande e dourada, de semelhante e pitoresco significado.

Quando sobre esse conjunto magnífico incidem os raios do sol do meio dia, o castelo dá a impressão de que, num supremo arroubo de suas flechas e agulhas, destacar-se-á de suas bases sólidas e voará em direção às nuvens tingidas de ouro como ele.

Poder-se-ia imaginar esse castelo durante a noite, com lindos vitrais de fundo de garrafa coruscantes, fazendo dele um escrínio de pedras preciosas luminosas, acesas na luz indecisa das velas.

Nos dias em que conheceram vida, glória e prosperidade, essas torres eram quase inacessíveis. Tão altas, tão protegidas, que quaisquer adversários, antes de lograrem encostar nelas seus aparatos de guerra, seriam repelidos e postos em derrota. Um castelo assim não se atacava.

O acesso de seus moradores e visitantes era feito por uma rampa e uma ponte levadiça. Sem essa passagem, o que se tinha era um fosso repleto de água, circunjacente a todo o perímetro da imponente construção. Castelo fortíssimo, mas de uma delicadeza maravilhosa, com as garras na terra — portanto, é pão-pão, queijo-queijo — mas a “alma” no  Céu.

Uma esplendorosa imagem de como deve se apresentar o espírito do católico. Nas suas culminâncias, cumpre ser sutil, pronto a se mover inspirado pela graça, impulsionado pelo serviço de Deus; elevado e tendendo para o Céu como a chama de uma vela. Porém, no que se diz de prático, é firme, decidido, agarra, pega, faz e ordena!

Dessa fabulosa jóia da arquitetura medieval e cristã, dessas torres de força admirável e de requintada beleza, restam apenas algumas partes cobertas de gloriosas reminiscências e evocações.

O castelo de Saumur, como no-lo faz conceber e imaginar as iluminuras e desenhos de outras épocas, não existe mais…

Santo Elias

Santo Elias constituiu a primeira ordem religiosa que houve na História, antes mesmo do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seus membros, que moravam nas encostas e no alto do Monte Carmelo, foram os precursores da Ordem do Carmo.

Foi ele um príncipe entre profetas, verdadeiro condutor do povo de Deus. Lutou contra os erros do seu tempo, num momento em que a nação eleita estava muito deteriorada, e salvou-a da ruína.

Escolhido para dirigir o povo de Deus num momento de hecatombe, ele concentrou em si todo o espírito que o Criador queria dar à nação judia a ser ressurgida. Nesse espírito derivado da Providência Divina foi formada uma rede de eleitos, sendo o mais famoso deles Eliseu, que pediu o duplo espírito de Elias, e o obteve.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20-7-67)

O esplêndido palácio da coerência

Movida por seu ódio a Deus e à Igreja, a Revolução Francesa supliciou grande número de eclesiásticos e religiosos, além de uma quantidade incontável de leigos. Entre suas vítimas, encontram-se as carmelitas de Compiègne que foram guilhotinadas, única e exclusivamente, porque amavam ardorosamente a Religião Católica.

 

Em 17 de julho comemora-se o martírio das 16 carmelitas de Compiègne(1), guilhotinadas nesse dia, em 1794. Com frequência, a Igreja celebra a festa dos mártires no dia de sua morte, porque foi o mais glorioso dia de suas vidas, e também porque nasceram para a vida eterna.

Firmeza heroica diante do tribunal revolucionário

A respeito de uma delas, Irmã Marie Henriette de la Providence, que contava com 34 anos por ocasião do martírio, escreveu a Irmã Marie de L’Incarnation, biógrafa das santas mártires:

Quando as religiosas entraram no tribunal, Irmã Henriette distinguiu-se sem pretensão por uma atitude de firmeza verdadeiramente heroica; tendo ouvido o acusador público tratá-las de fanáticas, interpelou-o deliberadamente:

 “Queira, cidadão, dizer-nos: o que entende por essa palavra ‘fanática’?”

O juiz, irritado, respondeu-lhe com uma torrente de injúrias que vomitou contra ela e suas companheiras.

Nossa Santa, nem um pouco desconcertada, disse-lhe com um tom de dignidade e firmeza:

— Cidadão, vosso dever é honrar o direito a uma pergunta de uma condenada. Eu vos peço, portanto, que nos responda e nos diga o que entendeis pela palavra “fanática”.

— Eu entendo — respondeu Fouquier-Tinville — o vosso apego por vossas tolas práticas de religião.

Irmã Henriette, depois de haver agradecido, voltou-se para a Madre Priora e disse:

“Minha querida Madre, minhas irmãs, vós acabais de ouvir o acusador declarar que é por nosso apego a nossa santa Religião que vamos ser mortas. Todas nós desejávamos esse testemunho e nós o veneramos. Graças imortais sejam dadas Àquele que, em primeiro lugar, nos abriu o caminho do Calvário. Oh! que felicidade morrer por nosso Deus!”

Segundo outra versão, Fouquier-Tinville teria respondido:

— Pelo que quereis conhecer, saibais que é por vosso apego à vossa religião e ao rei.

Ao que Irmã Hentiette teria dito:

— Agradeço, cidadão, essa feliz explicação.

 E, voltando-se para as companheiras, teria declarado:

“Minha querida Madre, minhas irmãs, exultemos e regozijemo-nos na alegria do Senhor, porque morremos por causa de nossa santa Religião, nossa Fé, nossa confiança na Santa Igreja Católica, Romana”.

Irmã Henriette foi a última a morrer, antes da Priora, e até o fim exortou suas companheiras à coragem.

Quando uma pessoa caridosa ofereceu água a uma das religiosas, como esta ia aceitar, Irmã Henriette impediu-a, dizendo: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós tomaremos longos tragos”.

Caracterizado o martírio

Para que ficasse constando, “ad perpetuam rei memoriam”(2), serem elas mártires, era preciso que o acusador público declarasse o motivo da condenação. Ficava, assim, caracterizado o martírio. Isso foi um consolo na resistência delas. Eis a razão da pergunta, à qual se seguiu a resposta. De fato, elas eram mártires porque estavam sendo condenadas por causa da Igreja Católica.

Como vimos, há duas versões desse fato. Uma diz que Fouquier-Tinville não teria falado do rei, mas somente de religião. A outra afirma que ele declarou estarem elas morrendo por causa do rei também. Esta segunda versão parece-me muito mais provável porque, uma vez que ele matava todo mundo por causa da fidelidade a Deus e ao rei, o normal é que ele tenha se referido também ao monarca.

Mas o essencial era Deus, Nosso Senhor. E quando souberam disso, todas se alegraram, e a Irmã Henriette acompanhou-as até à morte.

Depois, veio o belo episódio do copo d’água. Por certo, era uma religiosa que estava com muita sede, abalada, naturalmente, do ponto de vista emocional, pelo trauma de quem está se sentindo às portas da morte, e uma morte trágica, violenta. Essa religiosa quis aceitar um copo d’água que alguém lhe oferecia.

A Irmã Henriette pensou: “Esse pequeno sacrifício vai ser uma pérola a mais para a glória de Deus. Para que beber água? Para que ter esse pequeno consolo na hora em que se pode oferecer mais um pouco de sacrifício?”

Então ela teve essa expressão magnífica: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós beberemos grandes tragos”.

É claro, porque ali estão as fontes de água viva, Nosso Senhor Jesus Cristo, a contemplação de Deus face a face e, portanto, a felicidade perpétua.

A outra religiosa atendeu e, ao receber a coroa do martírio, tinha uma estrela a mais nessa coroa, por toda a eternidade, por causa desse pequeno sacrifício.

Diversidade das escolas de vida espiritual

Podemos estabelecer um contraste entre essa narração da Irmã Marie de L’Incarnation e aquela famosa figura da peça teatral(3) de Bernanos, Irmã Blanche de la Force, carmelita que, pelo simples fato de ouvir falar da morte, ficava apavorada, e, dominada por uma espécie de complexo, acabou fugindo do convento. Ao saber que suas irmãs do Carmelo estavam indo para o patíbulo, quis assistir à execução.

Quando as últimas religiosas, que subiam ao cadafalso entoando o Veni Creator Spiritus, se encaminhavam à guilhotina, a Irmã Blanche saiu do meio da multidão e, cantando também, entrou na fila, galgou o patíbulo e morreu.

Outra comparação caberia também entre esta personagem e sua Superiora, que representava uma escola espiritual oposta à psicologia da Irmã Blanche.

La Force é o nome da família francesa dos Duques de la Force, e significa “a força”. Ela chamava-se, portanto, Branca da Força. Ora, essa Blanche de la Force, segundo o “Diálogo das Carmelitas”, era uma pessoa com uma espécie de psicose de medo, possuindo verdadeiro pavor de morrer.

A Superiora, ao contrário, era como a mulher forte da Escritura: coerente, varonil, de grande personalidade, dessas que veem aproximar-se a morte de longe, e que vão de encontro a ela, passo a passo, em holocausto. E, no momento da dor e da imolação, cumprem um ato de vontade ponderado e maturado antes, profundamente, durante anos inteiros. Portanto, o esplendor da coerência e da grande escola clássica de vida espiritual.

Essa Superiora poderia morrer tendo nos lábios aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça que me dará o Senhor, justo Juiz…”(4)

Em contraposição a ela está a Irmã Blanche de la Force: fraca, frágil, suscetível a pânicos, muito desejosa de ser fiel, mas tendo até a miséria de, por psicose, fugir do convento para escapar da guilhotina. Mas, depois — triunfo da fidelidade dos fracos —, subindo ao cadafalso, na última hora, e deixando-se matar juntamente com as outras.

A oposição das duas escolas insinua a possibilidade — que existe mesmo — de uma alma ter essa estrutura e, entretanto, ser muito bem intencionada e fiel.

O perigo está no fato de isso poder ser legítimo, mas ao mesmo tempo muito parecido com o contrário da virtude, com a covardia, a incongruência. E, por essa razão, a divulgação de uma coisa dessas, muito legítima, tanto pode fazer muito bem, em alguns casos, como muito mal em outros, pois de um lado contribui para animar as pessoas fracas chamadas a uma grande santidade, mas pode também servir de pretexto à fraqueza de almas sem generosidade.

O caso dessas carmelitas de Compiègne é bem o contrário disso.

Pulcritudes da Santa Igreja

Li o parecer de um Delegado Apostólico que esteve com elas, alguns anos antes da Revolução Francesa, e que dizia ter feito uma visita longa, pormenorizada, severa, e as achou, em tudo e por tudo, de tal maneira perfeitas que ele nem sequer sabia como lhes aconselhar para melhorarem.

Não se pode fazer um elogio mais magnífico do que este. Percebe-se que a visita, para ele, redundou em embaraçosa porque, provavelmente, elas diziam: “Padre, nós estamos descontentes conosco, queremos melhorar, indique-nos novas virtudes!” E elas estavam num tal ápice, que ele não sabia o que lhes aconselhar para terem uma virtude ainda maior.

Então elas foram colhidas como fruto maduro, quer dizer, a virtude nelas tinha alcançado seu apogeu, quando chegou a Revolução, a qual foi de encontro a elas, o que significava também a morte. Mas com a morte, era o Esposo que vinha de encontro às virgens. E elas eram as virgens fiéis, cujas lâmpadas se encontravam repletas de azeite, e cujas chamas cintilavam com o maior brilho. De maneira que, chegando o Esposo, realmente elas estavam prontas para o martírio.

Foi lindíssima a morte dessas religiosas! Todas elas, antes de subirem ao patíbulo, passavam diante da Superiora e pediam licença para morrer; a Superiora concedia, dava-lhes a bênção, e elas iam para a guilhotina. Saíam, assim, diretamente das mãos do carrasco para as mãos imaculadas de Nossa Senhora.

Essas coisas são de uma beleza angélica, supra terrena!

É uma trajetória em linha reta, toda feita de força, de coerência, que consola, anima e estimula a quem, como em nossa época, é obrigado aos zigue-zagues das incoerências, das exceções, dos conformes.

Ali, não! É como o voo da águia; não tem incoerências nem transigências. Vai direto da torre ao mais alto rochedo, olhando para o Sol numa linha reta que verdadeiramente nos entusiasma!

O que devemos deduzir disso?

Há almas fracas a quem esses exemplos enregelam e paralisam. Entretanto, não os recordo para causar-lhes terror, mas a fim de que compreendam e amem todas as vias dentro da Igreja Católica. Há moradas para todos; e cada um deve amar sua morada e também as moradas dos outros. Porque é o conjunto dessas moradas que constitui, na Terra, a Igreja militante, e no Céu formará a Igreja triunfante.

E reconheçamos que a morada dessas carmelitas é esplêndida, um verdadeiro palácio. É o palácio da coerência, da previsão e do grande estilo da vida espiritual.

São as vias diferentes da Providência Divina para as almas, e as várias maravilhas que Deus opera nas pessoas que Ele escolhe. A algumas, por exemplo, Ele chama por meio desse ato da Irmã Henriette, que é o contrário da Irmã Blanche de la Force. Vê a morte de longe, encara-a, enfrenta com alegria o acusador, fá-lo declarar o martírio para todas, ajuda-as a aceitar a morte, e só não morre depois da Priora porque a ordem hierárquica pedia que esta morresse por último.

É um caminho de Deus, um modo de guiar as almas e de modelá-las. Mas Ele é infinitamente belo na unidade e na variedade desse caminho. Exatamente por serem os santos tão diversos e haver escolas espirituais distintas dentro da Santa Igreja Católica, cada uma delas refletindo uma beleza de Deus, compreendemos algo da pulcritude da Igreja.

Assim, temos uma ideia do que pode ser a beleza no Céu, onde não só vemos Deus face a face, mas O contemplamos pela formosura incomensurável de cada uma das almas que ali se encontram; cada Anjo, cada Santo e, sobretudo, Aquela que compendia em Si e supera indizivelmente a beleza espiritual de todos os Anjos e todos os Santos: Maria Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 23/6/1965, 23/7/1969 e 1/8/1972)

 

1) Cidade próxima a Paris.

2) Do latim: para a perpétua memória do fato.

3) “Diálogo das Carmelitas” (título original: Dialogue des Carmelites), de Georges Bernanos (*1888 – †1948).

4) 2Tm 4, 7-8.

Bem-aventurado Inácio de Azevedo

Com as aventuras além-mar empreendidas pelos portugueses e espanhóis, a Fé Católica expandia-se dia a dia. Entusiasmado pela conquista de novas almas, Inácio de Azevedo empenhou-se na conversão dos indígenas brasileiros. Porém, mais do que seu labor de evangelização, Deus queria dele um sacrifício total: o derramamento de seu sangue em favor da nação que viria a ter a maior população católica da Terra.

 

Baseando-me no livro “Inácio de Azevedo, o homem e sua época”, de Gonçalves Costa(1), farei comentários sobre alguns aspectos puramente sociológicos, e outros hagiográficos, que dizem respeito ao Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Nome tão belo quanto a prataria portuguesa

Ele era membro de uma família muito distinta. E, em todos os lugares onde há certa estratificação social, os nomes das famílias mais tradicionais acabam tomando uma certa sonoridade, em que se tem a impressão de ver a pessoa portadora de um desses nomes, com o estilo da nação a que pertence.

Este é o caso do Bem-aventurado Inácio. Ele se chamava Inácio de Azevedo de Atayde de Abreu e Malafaia. É um nome tradicional, bonito e muito português; sua sonoridade é linda, e dá a impressão da prataria portuguesa, cujos objetos são tendentes ao nobremente bojudo e seguro de si. De fato, esse nome é um pouco de prataria.

Sociedade impregnada pela Igreja

Ingressou na Companhia de Jesus em 1548, sendo anotado a seu respeito no livro da Ordem os seguintes dizeres: “Tem pais vivos. O pai possui benefícios eclesiásticos e suficiência de bens. A mãe é freira num convento do Porto”.

Estamos no século XVI; a Renascença já arrebentou, a Revolução está em curso. Mas como a Igreja ainda estava entranhada na sociedade! É uma família nobre, não de grande nobreza: o pai vivia de rendas eclesiásticas e tinha dado licença à sua esposa para ser freira, e o filho fez-se membro da Companhia de Jesus, a qual, naquele tempo, era a ponta de lança da Contra-Revolução; e tornou-se Bem-aventurado, hoje um dos padroeiros do Brasil.

Como é bonito ver a impregnação da vida eclesiástica na sociedade dessa época.

Desejo de ser herói

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo havia sido pajem do Rei D. João III; e, pelo lado materno, descendia de Santa Isabel, Rainha de Portugal.

É bonito haver nele a descendência de Santa Isabel, Rainha de Portugal. Sendo pajem do Rei, ele frequentou o que a corte tinha de melhor.

Em carta ao Padre Geral, Inácio pediu para ser enviado a pontos remotos, pois não queria ficar no mesmo ambiente onde viviam seus pais.

Esse homem foi mandado da corte do Rei de Portugal – naquele tempo marcadamente um potentado, pelo tamanho do império colonial português – para o Brasil, onde havia índios com argolas atravessadas no nariz, canibais, com hálito cheirando a álcool mascado de cana fermentada, uma coisa horrorosa. Podemos imaginar a diferença! Era o que ele queria. Vemos o heroísmo que está presente em seu pedido.

Zelo da Companhia de Jesus pelos novos missionários

Do Brasil chegavam cartas dos Padres Nóbrega e Anchieta, relatando as esperanças e as dificuldades das missões. Dois noviços jesuítas haviam sido repatriados para Portugal, por não se adaptarem às novas terras.

Vê-se como era duro aguentar…

São Francisco de Borja, recém-eleito Geral da Companhia, conhecia as especiais virtudes do Padre Inácio e o indicou para visitador apostólico nas terras do Brasil.

Quão cuidadosa era a Companhia de Jesus. Mesmo sendo poucos os jesuítas no Brasil, mandava-se um visitador apostólico incumbido de visitar a nascente Igreja daquelas terras. Percebemos o rigor da ortodoxia, da disciplina e do método.

Por outro lado, vemos como os santos se encontram nessa história: São Francisco de Borja – Geral da Companhia de Jesus, portanto, o homem que tem nas mãos o leme da Contra-Revolução – escolhe um futuro mártir para vir ao Brasil, o qual, por sua vez, descende da Rainha Santa Isabel. Que beleza! 

Ao percorrer o litoral do País, acompanhou a expulsão dos calvinistas do Rio de Janeiro

Em julho de 1566, o colégio jesuíta de Salvador na Bahia, tendo à frente o Padre José de Anchieta e o Padre Manoel da Nóbrega, recebeu festivamente o emissário de São Francisco de Borja, numa visita que se estenderia por dois anos, e ao longo da qual o Bem-aventurado Inácio de Azevedo percorreria as principais vilas nascentes do litoral brasileiro.

Dois anos visitando o Brasil! É preciso dizer que as distâncias enormes se percorriam devagar.

Em 1567, acompanhou no Rio de Janeiro a expulsão dos calvinistas.

Que bonita nota deveria ser acrescentada nas narrações dessas nossas Histórias do Brasil, nesses manuaizinhos, quando tratam da expulsão dos franceses: Nesta verdadeira vitória de Cruzada, esteve presente, com seu ardor, um futuro mártir, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo. Daria outro conteúdo à narração.

Pelas mãos dos jesuítas o Brasil vai sendo modelado

Em carta que dirigiu de Salvador ao Geral da Companhia, ele pondera: “Também servirão, além dos padres solicitados, os irmãos oficiais, como pedreiros e todos os demais, porque há na terra muita falta deles, e custa muito fazer as coisas. Por esse motivo, em todas as partes onde residem os homens, ouço dizer que há falta de edifícios e abundância de materiais com que se pode construí-los.”

É dessas frases do Português antigo que tem um especial sabor: “há falta de edifícios, mas abundância de material”. Quase dá para ver as pequeninas cidades implorando que as florestas e as pedras sejam utilizadas para serem transformadas em edifícios. É uma coisa épica.

“Muito me consolo nestas partes, e consolar-me-ia nelas toda a minha vida, ainda que importasse ir a Portugal para ajudá-la mais, trazendo gente e oficiais”.

Ir a Portugal buscar gente e oficiais, eis o plano do Padre Inácio de Azevedo.

Quer dizer, ele esteve no Brasil e viu que era preciso trazer para cá padres, irmãos coadjutores, pedreiros, carpinteiros, etc.

É muito bonito ver a Igreja Católica, por mãos dos jesuítas, tomando a primeira argamassa da sociedade temporal e modelando-a. Quase como Deus que fez primeiro o boneco de barro, para depois criar o homem.

Assim, para poder fundar aqui uma realidade eclesiástica grande, a Igreja ia modelando a realidade civil na qual ela deveria ser insuflada. Ou seja, cuidando das construções e do progresso temporal, a Igreja empreenderia também o progresso espiritual.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo não sabia disso, mas trabalhava com ânimo.

A fim de recrutar novos missionários, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo volta a Portugal

Ele então viajou para Portugal a fim de pedir, pessoalmente, que fossem mandados jesuítas para o Brasil.

Compreende-se bem sua atitude. Certamente todos tinham medo de vir ao Brasil, tão distante, remoto, vago e ameaçador. Afinal, deixar o aconchegado, bonito e saboroso Portugal, a duras penas conquistado aos árabes, e vir para o Brasil misterioso… Que diferença!

Ademais, sabe-se como o temperamento português é cauto. Ele é capaz de dar passos arriscados, mas depois de saber bem como são as coisas. Por isso eles queriam conversar com a pessoa que vinha do lugar, para depois resolver se viajariam ou não.

Então se entende o passo do Padre Inácio de Azevedo, chegando a Portugal e procurando pessoas a fim de convidá-las para vir ao Brasil.

O encontro com o Rei

De volta a Portugal, em 1568, Padre Inácio dirigiu-se para Almeirim, a fim de encontrar-se com o Rei D. Sebastião. Este ouviu com interesse as notícias que o missionário trazia do Brasil, dando todo o apoio à campanha de recrutamento proposta.

Vemos que ele ia direto ao ponto fundamental. Foi falar com o Rei porque de um impulso do monarca dependia o andamento das coisas.

Por sua vez, os reis eram muito desejosos de receberem notícias diretas das pessoas que tinham estado nas terras recém-descobertas, porque não havia os meios de comunicação que existem hoje.

O Padre Inácio deu logo início à empresa, através de sermões e visitas, exímio como era na arte de conversar.

Aqui fica consignado um traço curioso. Eu o imagino procurando as pessoas e dizendo:

– Homem, fui eu que estive lá, é assim…

– Mas deveras, estivestes lá? Contai-me…

Padre Inácio fazia a narração e pegava a ganchos os que deveriam vir. Parece-me que tudo isso faz sentir a respiração da antiga História do Brasil, de um modo pitoresco e muito honroso para a Igreja.

Dois personagens tecem a grandeza de Portugal

Seu contemporâneo, Padre Maurício Cerpe, contou a esse respeito: “Tanto que chegou a este reino, foi coisa para dar graças a Deus ver quanta gente se mover para ir ao Brasil. Não falo já de nós da Companhia, porque esses todos queriam ir com ele, mas os de fora. Onde quer que chegasse, logo se moviam de maneira que se alvoroçava a terra e uns se moviam a ir com ele, outros falavam isso como grande novidade muito para ser desejada”.

Quer dizer, ele produzia um alvoroço geral. Vejamos o que custa a grandeza de um povo. Dom Sebastião e o Bem-aventurado Inácio de Azevedo conversam; o futuro de um era morrer no mistério e na tragédia da África, e do outro, morrer na tragédia e no martírio em pleno mar. Conversando, os dois estão tecendo a grandeza de Portugal.

Mas com que homens essa grandeza se tece! Eles tinham conhecimento dos riscos que a vida quotidiana traz. Eram membros de uma nação que estava no seu apogeu.

São Pio V abençoa o apostolado no Brasil

De Portugal seguiu para Roma, a fim de pedir ao Papa São Pio V sua bênção para a empresa do Brasil. O Pontífice quis ouvir uma descrição minuciosa desse novo mundo, onde a Fé cristã começava a iluminar a noite indefinida do paganismo. E, além dos privilégios pontifícios para o Brasil, e mão livre para arregimentar pessoal seleto, o santo Pontífice concedeu indulgência plenária a todos os que acompanhassem, e muitas relíquias, terços, Agnus Dei, e outros objetos devotos.

Não consta que ele tenha ido visitar banqueiros; visitou o Pontífice e o Rei. Não consta que tenha trazido dinheiro; trouxe Agnus Dei, bênçãos, relíquias, e com isso esperava fazer o seu caminho.

Trajetória de preparativos para a viagem

São Francisco de Borja, entrementes, desejava agradecer a Dona Catarina, Rainha de Portugal, a valiosa ajuda que ela concedera ao Colégio Romano, e quis enviar-lhe uma reprodução da célebre imagem de Nossa Senhora, conhecida como pintada por São Lucas, venerada na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, e incumbiu o Padre Inácio de ser o portador do quadro.

Como Geral da Companhia, São Francisco de Borja morava em Roma. Sabendo que o Bem-aventurado Inácio ia para Portugal, quis que este fosse portador do quadro.

A partir de então, a devoção ao quadro de Nossa Senhora, de São Lucas, ficaria intimamente associada ao missionário.

Em julho de 1569, o Padre Inácio partiu para Portugal, passando por Madri. Em Madri, João de Mayorca foi um dos primeiros espanhóis a aderir. E, como era pintor, esse novo missionário aproveitou para fazer várias reproduções do quadro da Virgem, destinando um deles ao Colégio da Bahia.

Quer dizer, esse pintor tirou várias cópias do quadro que era para a Rainha. E uma dessas cópias vai ter importante papel na vida do Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Afonso Fernandes Cançado associou-se à empresa em Portugal, e fez questão de substituir o sobrenome, pois, segundo explicava, para tal tarefa o nome Cançado não lhe caía bem.

Francisco Perez de Godói, canonista formado em Salamanca, também se juntou ao Padre Inácio. Perez de Godói era primo de Santa Teresa de Jesus que, ao tomar conhecimento de sua adesão, ficou muito alegre.

Santa Teresa, a Grande, soube, portanto, que havia um Brasil! E que um primo dela vinha para esse país, tendo ficado muito alegre com isso. Veremos daqui a pouco o papel de Santa Teresa nessa história.

Ferreiros, marceneiros, pedreiros e tecelões também acertavam detalhes para sua viagem ao Brasil. No total, entre religiosos e artesãos, haviam sido reunidos noventa elementos, que foram conduzidos para uma chácara da Companhia no Vale do Rosal a fim de aguardar a partida dos navios para a América. Porém, foram cinco meses de espera.

É preciso recordar que não havia ainda companhia de navegação regular para o Brasil. Isso apareceu apenas no século XIX. De vez em quando havia um navio que vinha para o Brasil: o Rei, a Companhia das Índias mandavam levar alguma coisa; mas era raro. Por isso transcorreram cinco meses de espera.

Durante esse período, é claro que foi feito um vasto simpósio, à la Companhia de Jesus, preparando a ida para o Brasil: direção espiritual, trabalhos, enfim, uma adaptação completa, muito bem feita!

Tendo sido o navio assaltado por calvinistas, o Bem-aventurado Inácio cai no mar agarrado ao quadro de Nossa Senhora

Em maio de 1570, partiram os religiosos na esquadra do Governador Geral, D. Luiz de Vasconcelos. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, com mais 39 companheiros, viajava na nau Santiago. Fizeram escala na Ilha da Madeira, onde o Governador, muito vagaroso, quis prolongar a estadia, enquanto o Comandante da nau Santiago trazia a bordo mercadorias, cuja entrega nas ilhas de Las Palmas era urgente.

Esse homem tem responsabilidade no martírio que se seguiu, porque foi por causa desse atraso que eles cruzaram no caminho com a nau calvinista francesa, que agrediu o navio português e causou as mortes.

Sujeitando-se ao risco de ficar à mercê dos ataques dos piratas, esta nau poderia partir sozinha até Las Palmas, aguardando ali o restante da esquadra. A proposta foi levada a D. Luiz, tendo a ela dado seu assentimento o Padre Inácio de Azevedo.

A nau Santiago seguia avante. Em 15 de julho, já próxima da ilha de Las Palmas, defrontou-se com navio dos terríveis calvinistas franceses.

Efetivamente, esses abalroaram a nau Santiago com forte impacto. Os atacantes atingem a corveia, há tinir de espadas, brados de fidelidade a Cristo e à Igreja, mesclados aos berros e blasfêmias dos hereges; as primeiras gotas de sangue começam a tingir o chão.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, que se encontrava junto ao mastro central, segurando nas mãos o quadro da Virgem de São Lucas, recebeu na cabeça o primeiro golpe, sendo jogado no mar, agonizante e segurando o quadro que ninguém lhe conseguira tirar das mãos.

Por isso ele é representado, habitualmente, flutuando já meio agonizante nas águas, mas segurando o quadro. É muito digno de nota que, estando agonizante e com a gesticulação de quem naufraga e procura mover os braços para não afundar, já não tendo provavelmente consciência de si, apesar disso ele segurasse o quadro.

É claro que a quem de tal maneira segura uma imagem de Maria Santíssima, Nossa Senhora, do Céu, está segurando a alma dele.

O sangue dos mártires foi derramado para que o Brasil viesse a ser católico

O olhar marcado dos tripulantes portugueses continuava a fixar-se nos vultos, e eles foram em seguida jogados também ao mar, entre os quais, sobressaía a figura imóvel de Azevedo.

Na Espanha, Santa Teresa de Jesus teve revelação do fato, e afirmou que vira os quarenta mártires, de coroas na cabeça, subindo triunfantes ao Céu.

Vemos que lindo fato da História do Brasil. É evidente que esse sangue foi derramado para que o Brasil fosse católico; era a razão pela qual eles estavam dando as suas vidas.

Somente o irmão João Sanchez não foi morto pelos piratas. Era cozinheiro, e esses resolveram tirar proveito de seus serviços. Foi ele que, retornando depois à Espanha, contou com pormenores todo o ocorrido. Infelizmente, abandonou a Companhia de Jesus.

Essa é a criatura humana! Esse homem tinha obrigação de ser bem-aventurado também. Depois se desligou da Companhia de Jesus e voltou ao estado original.

O culto dos quarenta mártires foi autorizado em 1854, pelo Papa Pio IX.

Na atual Catedral de Salvador, na Bahia, conserva-se um quadro pintado, que se diz ter sido do Beato Inácio.

Não há nenhuma prova de que o quadro tenha escapado das mãos do Bem-aventurado Inácio de Azevedo e chegado à Bahia. Se houvesse, eu piamente creria, e teria um gosto enorme de que isto tivesse ocorrido.

Mas o não ter sido assim, não tolda em nada o verdadeiramente essencial. Na previsão do muito batalhar a favor da ortodoxia, que haveria numa nação a qual, em certo momento da História da Igreja, seria a de maior população católica do mundo, logo no início, para irrigar isso, a Providência dispôs que houvesse quarenta mártires que nem conseguiram chegar até o Brasil – Inácio de Azevedo esteve durante dois anos aqui. O sangue deles não foi vertido no Brasil, o mar dispersou; mas foi derramado com a intenção de servir à causa católica no Brasil.

Esse sangue subiu ao Céu como suave odor, e eles rezam continuamente por nós. No Brasil ficava o Bem-aventurado Anchieta, esperando, rezando e realizando seus feitos para que algum dia o Brasil fosse uma grande nação católica.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1981)

 

1) Costa, Manuel Gonçalvez da. Inácio de Azevedo, o homem e sua época. Braga: Livraria Cruz, 1957.

 

Os pequenos defeitos: obstáculos para a santidade…

Todo homem deve almejar a santidade; porém, concebidos no pecado original e débeis de vontade, temos enorme dificuldade em atingi-la… Como fazer para alcançar meta tão ousada?

 

O que poderíamos aconselhar a uma pessoa, não muito generosa, que se encontre encalhada na vida espiritual e dominada por uma porção de hábitos que lhe prejudicam o desenvolvimento e o progresso sobrenatural?

Imaginemos uma situação hipotética, de alguém que dissesse o seguinte: “Eu tenho o hábito de comer demais. Não quero mudar esse hábito, porque acho que é extremamente desagradável e penoso o sacrifício que eu faria para alterá-lo. De outro lado, porém, quero de algum modo progredir. Como fazer, numa situação em que eu, ao mesmo tempo, sinto que não quero progredir e quereria progredir? O que fazer para que o pobre barco de minha vida espiritual desencalhe?”

A esta pergunta que se pode fazer no nível da vida espiritual de alguém que, de certo modo, procura manter-se em estado de graça, responde-se, entretanto, muito melhor se imaginássemos um nível mais baixo, ou seja, de uma pessoa que vive habitualmente no estado de pecado mortal. Como ela deveria proceder perante seu próprio pecado mortal?

Assim, poderemos compreender melhor como uma pessoa deveria viver em face de hábitos ou de defeitos que, sem constituírem pecados mortais, entretanto podem retardar singularmente a santificação da alma, para que, de fato, ela atinja aquele alto nível de perfeição.

Como sair do vício da embriaguez?

Vou começar a tratar da questão de como deveria ser no nível de pecado mortal, para depois me transpor ao plano que é próprio, normal e natural aos membros de nosso Movimento.

Imaginem que um diretor espiritual conhecesse um homem que tivesse, por exemplo, o hábito da bebedeira e se embriagasse sete vezes por semana, e de uma embriaguez profunda.

Esse homem procura o diretor espiritual e diz-lhe: “Padre, eu lamento ter esse vício. Mas o deixar a bebida para mim é abandonar um prazer ao qual estou ligadíssimo; significa fazer um sacrifício que não sinto vontade de realizar”.

O indivíduo poderia acrescentar: “Fiz uma porção de esforços para largar a bebedeira e o máximo que consegui foi de parar de beber três vezes por semana. Achei tão horrível que, na semana seguinte, bebi mais ainda; embriaguei-me duas vezes por dia. De maneira que estou inteiramente sem saída. Não vejo em mim recursos para parar com o vício da embriaguez”.

É claro que é uma situação horrível, não própria a um membro de nosso Movimento, mas estou imaginando um caso muito pior para depois supor um muito melhor, para fazer a aplicação da analogia de um para outro.

Evitar um inferno horrorosíssimo

Um sacerdote sensato precisaria começar por explicar-lhe o seguinte: “Meu filho, você precisa tomar em consideração que a embriaguez, sendo um pecado mortal, é própria a levar a pessoa para o inferno. E, portanto, deve fazer o seguinte raciocínio: se você está na perspectiva de ir para aquele lugar de tormentos, procure ir para um inferno menos horroroso”.

No inferno há vários graus de tormento e de infelicidade. E também entre os próprios demônios. Certos demônios estão no inferno porque foram chefes da rebelião no Céu. Outros ainda não foram mandados para lá porque não chefiaram a revolta, mas foram sequazes que se deixaram arrastar e ficam vagueando pelos ares, fazendo mal para todo mundo, completa e perpetuamente infelizes, porém não com a desdita horrorosíssima que, desde já, têm os demônios precipitados no inferno.

Então o padre poderia aconselhar ao viciado em bebedeira: “Você procure pelo menos diminuir a sua pena eterna. Ora, há um ponto que não custa nada, ou custa muito pouco, para a maior parte dos pecadores, e isto você pode descontar do seu inferno. Eu, como sacerdote, estou disposto a ajudá-lo nesse passo para sair das perspectivas de um inferno mais profundo. É um modo muito modesto de caminhar rumo ao Céu, mas tudo aquilo que orienta para o Paraíso é bom. De maneira que vamos dar esse primeiro passo”.

Reconhecer o que a embriaguez tem de mau

Explicando melhor, o padre continuaria: “Você, pelo menos, reconheça claramente tudo quanto sua embriaguez tem de ruim. Faça uma análise, caia em si, e diga de si para consigo, com toda a sinceridade, de um modo o mais positivo e o mais firme: ‘A minha bebedeira é má por tais e tais razões. Eu, quando estou bêbado, sinto o horror de minha própria degradação e me lamento de ficar nesse estado’.”  

É uma coisa que não custa nada, porque não quer dizer que o bêbado vai deixar de beber; ele apenas dá um passo, reconhecendo o mal de sua embriaguez. Mas, entre dois pecadores, um que reconhece o mal de seu pecado e outro que nem o reconhece, este último vai para um inferno muito mais profundo. O pecador que não lamenta o seu pecado dá uma adesão da inteligência ao mal, está empedernido e comete uma forma de pecado péssimo, pior do que aquele que, pelo menos, reconhece o mal de seu pecado e quereria não praticá-lo.

Dever-se-ia, então, pedir ao bêbado que ele tivesse a franqueza de reconhecer de modo taxativo, explícito, tudo quanto sua embriaguez tem de ruim. Em primeiro lugar, o desequilíbrio do espírito que ela produz e como é degradante para um homem ficar voluntariamente nesse desequilíbrio; o mal pelo fato de que a inteligência, sendo tão nobre, se degrade por vontade própria; depois, o papel de palhaço que o indivíduo faz quando está bêbado, a risada de todo mundo ao vê-lo; a desordem de um embriagado, as mil manifestações degradantes que dá de si: ele vomita, faz coisas horrorosas, torna-se parecido com um porco. Depois, num nível menor, mas que tem sua importância, o comprometimento da saúde, a degradação do corpo, além da degradação do espírito.

Que o bêbado ponha claramente isso diante dos olhos, seja pelo menos um embriagado franco e humilde em relação à sua própria bebedeira.

Admirar aqueles que não têm esse vício

Depois que esse bêbado estivesse habituado a reconhecer o mal de sua própria bebedeira, o padre poderia convidá-lo para dar mais um passo: “Aprecie os que não são bêbados e veja como é bonito não se embriagar. Fique na rua e preste atenção num homem que vai para casa com sua família: ele passou por uma porção de botequins e nem teve vontade de beber. Guardou dinheiro e, por exemplo, comprou roupas para as crianças dele. Compare com seus filhos, que andam malvestidos e sujos porque você bebe. Admire os homens sóbrios, que fazem o contrário do que você faz. Procure amar esses homens porque eles têm uma qualidade que é oposta ao seu defeito. Não estou lhe pedindo que você deixe de beber uma gota; quero apenas que você admire quem não bebe uma gota, ou bebe moderadamente, equilibradamente, sadiamente. Mas admire com toda a sua alma. Veja como isso é bonito e humilhe-se.”

Fazer apostolado para evitar que outros caiam na embriaguez

Depois disso, o padre deveria pedir ao bêbado que desse um terceiro passo: “Por que você não faz apostolado junto aos que são bêbados? Quando você vir, nesses ambientes miseráveis em que se bebe, um jovem que está começando a se embriagar, procure-o e diga-lhe: ‘Fulano, como é triste ser bêbado! Não entre no caminho em que estou!’ Procure orientar outros para não caírem no vício que você tem”.

Se conseguisse isso de um viciado em bebida, sem que este tivesse deixado seu vício, o sacerdote o teria transformado, de algum modo, de bêbado miserável, naquele bom publicano de que Nosso Senhor fala no Evangelho, que entrava no Templo, batia no peito, mas nem ousava chegar perto do altar. E dizia: “Senhor, eu não sou digno de estar em vossa casa, de que Vós sequer olheis para mim, mas dizei uma palavra; dai-me essa graça para que eu sare do mal no qual estou”.

Quer dizer, embora sem arrancar uma gota de álcool de dentro dos maus hábitos desse indivíduo, o padre tê-lo-ia preparado para, não só na hora da morte ter a contrição, mas desde já começar a pedir com empenho que uma graça do alto do Céu o modificasse. Dessa forma, teria sido feito um trabalho prévio precioso, pois, de algum modo, começou a transformar esse homem. E isso sem lhe custar nenhum sacrifício, porque ele não teria, por enquanto, renunciado a nenhuma gota de álcool.

Depois se iniciaria a regeneração. Somente assim estariam criadas as condições para esse homem se resolver a fazer um sacrifício. Enquanto ele não visse todo o mal da bebedeira e toda a beleza que há em não ficar embriagado; enquanto não tivesse admiração pelos que não são bêbados e nojo dos que o são, a começar por si mesmo; enquanto esse estado de alma não fosse criado nele, seria mais ou menos inútil procurar arrancar dele os grandes esforços que conduzem à regeneração.

Fazer sacrifícios para deixar de beber

Mas, a partir do momento em que o bêbado se encontrasse nesse estado de alma, estavam criados nele, se não a virtude da humildade inteira, pelo menos os pressupostos, os primeiros elementos dessa virtude, por onde o homem agrada a Deus. Esses elementos são: reconhecer e detestar o seu próprio defeito, amar a virtude dos outros e trabalhar para que as pessoas não tenham esse defeito.

Garanto que uma alma assim estaria preparada para começar a orar. E, a partir do momento em que ela iniciasse a rezar, e rezar para Nossa Senhora, com humildade e empenho, estariam criadas as condições para ela iniciar a fazer os sacrifícios por onde se deixa de beber.

Então, o viciado poderia fazer a resolução de beber apenas seis dias por semana. Aos domingos, por exemplo, dia de Deus, ele se absterá; depois, nas sextas-feiras, em homenagem à Paixão de Nosso Senhor; em seguida, aos sábados, em louvor da Santíssima Virgem.

E assim, aos poucos, ele iria se curando de sua bebedeira. O mais empedernido dos bêbados poderia deixar esse defeito, desde que um diretor espiritual tivesse tomado o cuidado de preparar na alma dele os pressupostos da conversão.

O ponto de partida não consiste em exigir imediatamente o sacrifício, mas em criar as condições de alma propícias para o sacrifício, para que depois este seja praticável, factível.

Essa é a conversão em câmara lenta de um pecador em estado de pecado mortal; tal preparação se aplica também à conversão das nações.

Como a Igreja combateu o excesso de espírito guerreiro dos bárbaros

Quando analisamos a luta da Igreja contra o excesso de espírito guerreiro dos bárbaros que haviam invadido o Império Romano do Ocidente, vemos que a Esposa de Cristo fez exatamente assim.

A Igreja incutiu nesses bárbaros, ou em seus descendentes, a ideia de que o assassínio era um mal; e de que a guerra injusta era, portanto, um mal muito maior porque uma espécie de assassínio em larga escala. Depois, a Igreja foi dulcificando a guerra. Em primeiro lugar, criando leis de honra da guerra, pelas quais não só não se matava um inimigo ferido, mas ele deveria ser conduzido a um hospital onde se lhe proporcionava um padre para ajudá-lo a se emendar; leis ordenando que em certos dias do ano não se combatia, em louvor da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; depois as leis segundo as quais o homem plebeu não era obrigado a guerrear, a não ser dentro de certo perímetro em torno de sua própria cidade.

Posteriormente, a Igreja, por um consenso geral, obteve que não houvesse combate nos domingos porque era o dia de Deus. Depois, nas sextas-feiras, em memória da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; e aos sábados, dia de Nossa Senhora. Assim, de dia em dia, acabaram as guerras privadas.

Aquelas guerras particulares de indivíduos contra indivíduos, famílias contra famílias, foram desaparecendo em todo o Ocidente, pouco a pouco, tendo realizado a Igreja com o conjunto das almas aquilo que um bom diretor espiritual deveria fazer com um pecador empedernido.

Método aplicável para lutar contra os pecados veniais

Isso que se aplica às regiões sombrias, negras, tristes, do hábito do pecado mortal, aplica-se também para o pecado venial e aos defeitos de alma que, mesmo sem levar o indivíduo ao pecado mortal, às vezes, estão radicadíssimos. Por exemplo, o hábito da “megalice”(1), ou seja, de querer ser o primeiro, mandar em todo mundo, ser saliente; ou o hábito da agressividade, de a todo propósito agredir os outros; o hábito da preguiça. De todos esses, creio que a preguiça é o mais difícil de extirpar. Como uma pessoa que tem um desses hábitos deve combatê-lo?

Como o pecado original ferve e ruge em nós, comentar qualquer um desses hábitos tem sua atualidade.

A “megalice” não é um defeito tão alheio a nós que se possa dizer que o exemplo seja tirado do mundo da lua… De maneira que vou tratar desse hábito.

Seria interessante chegar junto a um mega(2) e dizer-lhe: “Reconheça que é mega; em que ponto e até que ponto é mega”.  

É muito fácil o indivíduo afirmar que é mega. Pode até ser uma forma de “megalice”… Ele declara numa roda de pessoas: “Bem, eu, mega…” Outro comenta: “Coitado, como ele é humilde!”

Se um diretor espiritual lhe pergunta: “Fulano, você tem de si uma muito boa opinião, não tem?”, ele responderá: “Sim, padre, sei que tenho tal defeito”.

Ele pensa que está fazendo um ato de humildade. Continuando a falar, ele indicará um décimo dos defeitos que possui e as qualidades que se atribui, mas de fato não tem. A coisa mais dura para se apontar a um homem não são os seus defeitos; porque às vezes eles saltam aos olhos. O mais duro é dizer-lhe de frente: “Você pensa que tem tais qualidades? As que você possui são menores do que imagina, e tais outras, as quais julga ter, você não possui. E tem até o defeito oposto”.  

Recebendo as confidências de um mega

Fazer isso é de uma dureza extrema, porque o apego que o indivíduo tem a certas qualidades é incrível.

Lembro-me de uma pessoa, na qual eu tinha notado uma insuficiência de inteligência realmente fora do comum. Considerem que o comum é bem pouco inteligente… Ela sentou-se diante de mim e, com um ar modesto, depois de esfregar um pouco os olhos — e eu pensando o que sairia dali —, olhou para mim, como que para me sustentar diante do que era obrigada a dizer, e afirmou: “Bem, Dr. Plinio, para começar, o senhor não leve a mal que eu ponha o dedo no ponto… mas a dificuldade que me causa, do ponto de vista da “megalice”, é isto que o senhor já deve ter notado: a minha excepcional inteligência”.

Era uma pessoa notavelmente inferior à média. E, supondo que eu tinha alguma percepção psicológica, ela estava certa de que eu ficara extasiado diante de sua penetração intelectual. E foi preciso ter paciência para tocar o assunto nessa base. Eu me perguntava: Como ser mega da inteligência que ela não tem, e nem mesmo possui qualquer coisa que se pareça com o que ela imagina?

Como esse, há imensidades de horrores!

Se reconhecesse sua “megalice”, diminuiria seu purgatório

Seria conveniente que cada um procurasse fazer esse exame bem claro, aos pés de Nossa Senhora: Que qualidades eu tenho? Que qualidades não possuo? Quais os reais tamanhos de minhas supostas qualidades?

Procurar ter uma ideia exata a respeito disso diminuiria enormemente o purgatório do mega. Ele foi mega, é verdade, mas ao menos reconheceu sua própria “megalice”. Não se trata absolutamente de fazer o sacrifício de não ser mega, mas sim reconhecer no que a pessoa é mega. Ter a coragem de, em determinado momento, ouvir alguém lhe dizer todas as verdades.

Depois de reconhecer no que não deveria ser mega, como é bonito que a pessoa tenha uma ideia certa do mal que há na “megalice”.  

Para se ter um pouco a noção do que pode haver de mal na “megalice”, imaginemos o que seria a vida financeira de um homem que se supõe cinquenta vezes mais rico do que é. Então ele funda indústrias, bancos, com base em um dinheiro que não tem. Haveria desastres, um em cima do outro.

Geralmente o indivíduo é mega imaginando qualidades que não possui

Muita gente fracassa na vida por ter tido uma ideia exagerada de si mesmo. Conheço casos de pessoas que se metem em estudos e se percebe que aquilo não é para elas. Não têm êxito, e o caminho da Providência fica à espera delas.

É quase a regra geral que o indivíduo é mega imaginando qualidades que não tem, e não é mega das qualidades que possui. Se ele aproveitasse estas últimas, as quais às vezes são maiores do que as qualidades que ele imagina ter e de fato não possui, ele daria mais. Mas não: devido à “megalice” ele começa a sacar sem fundo. Resultado: sua vida é um desastre.

Muitas pessoas afirmam que não se encaixam em nenhum serviço. A cada uma fico com vontade de dizer: “Você não será um pouco mega? Você já fez bem seu balanço para verificar qual é seu ‘capital’? Quem sabe se você dá para mais do que pensa? Mas você quer menos… Busque um pouco o papel da “megalice” dentro disso, que você encontrará. Veja em torno de si os que são humildes e procure admirá-los, observe como a Providência os protege e como as coisas dão certo para eles; quando não dão certo, é para o bem deles; e nesse caso dão certíssimo, porque lhes fazem bem espiritual.

“Procurando ver de frente a sua “megalice”, o mal que ela lhe traz e, de outro lado, admirando quem não é mega, mas admirando sinceramente, com toda a alma, estará criada a condição para começar a pedir a Nossa Senhora, de um modo mais vivo, para libertá-lo da “megalice”. Então faça isso: aos sábados, em louvor de Maria Santíssima, não seja mega. Depois o resto o anjo da guarda lhe dirá”.

“Peccatum meum contra me est semper”

Feito com suavidade, não de maneira bruta, esse é o modo de se curar da “megalice” e de tantos outros defeitos: um reconhecimento confiante na bondade, na misericórdia e no auxílio de Nossa Senhora.

No Magnificat está dito: “Depôs de seu trono os poderosos e levantou aqueles que são humildes”. O poderoso é o mega, e o humilde aquele que não é mega. Poderoso é o fariseu e humilde o que bate no peito e reconhece o seu próprio defeito.

Aqui estaria um modo de tornarmos curáveis defeitos em nossas almas, que, à primeira vista, parecem incuráveis: caminharmos pouco a pouco.

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, eu não sou assim. Curei-me de tal defeito maravilhosamente, de um momento para outro”.

Respondo: “É verdade, eu conheço casos semelhantes, dou graças a Nossa Senhora, admiro e me alegro muito com isso.” Entretanto, essa não é a regra geral. Enquanto Maria Santíssima não nos conceder exceção, vamos andando pelas vias da regra geral. Nada nos prepara mais para sermos tratados no caminho da exceção do que nossa fidelidade à regra geral. Caminhamos devagarzinho, nos colocando ao pé da montanha e dizendo: “Aqui está o meu defeito, Senhor, e eu Vos peço perdão por ele”.

Gosto muito dos Salmos de David. Ele via claramente os seus próprios defeitos e reconhecia que eram graves. Sobretudo aprecio aquela frase dele: “Quia peccatum meum contra me est semper”(3). Como quem dissesse: “Vós estáveis na minha presença quando eu pequei. Portanto, tudo se passou como se no universo só houvesse Vós e eu. Diante de Vós pequei, e o meu pecado está continuamente diante de mim, me acusando. Eu reconheço o tamanho do meu pecado, bato no peito por ele, quero me emendar”.

Peçamos que Nossa Senhora faça com que estas palavras tenham alguma penetração em nossos espíritos, e que saibamos aplicar isso para a mudança de nossas almas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1969)

 

1) Termo cunhado por Dr. Plinio para designar o defeito de quem exagera as próprias qualidades ou imagina qualidades que não possui.

2) Assim Dr. Plinio designava a pessoa que tem o defeito da megalice.

3) Sl 50.

A Belle Époque

À semelhança de um teatro onde todos os expectadores fazem parte da peça, a vida era “representada” com profundidade pelas pessoas durante o período da Belle Époque. Com efeito, naquele tempo as atitudes tomadas eram proporcionadas à essência dos fatos.

 

A Bela Época, ou Belle Époque na linguagem francesa, é o período que vai, mais ou menos, de 1870 a 1914. Foi uma época festiva, alegre e brilhante da vida europeia, que terminou com a Primeira Guerra Mundial. Esta marcou uma diferença nas atitudes, nos trajes, na decoração, nos estilos de vida e, portanto, na mentalidade dos personagens; tais coisas valem em si mesmas, mas sobretudo enquanto expressões de uma mentalidade; quando tudo isto muda é porque a mentalidade mudou.

O que caracterizava a mentalidade anterior à Guerra era a persuasão de que a vida não existe só para o seu sentido prático, para que a pessoa se cuide e prolongue a própria existência, evite as doenças incômodas e ganhe dinheiro para divertir-se. A vida não existe apenas para o prazer, mas é um universo; e o existir do homem dentro desse universo coloca-o mais ou menos como se ele estivesse num teatro para ver uma grande peça.

Um teatro onde todos os expectadores fazem parte da peça

Imaginemos um teatro enorme, onde os que estão presentes, de vez em quando, entram na cena, representam um papel mais apagado ou menos, depois saem e continuam a assistir à peça. Quer dizer, todos são artistas da grande peça, ainda que façam parte, como atores anônimos, de uma multidão que aplaude, ou vaia, ou boceja; qualquer que seja a situação, todos em algo condicionam a cena.

Então, o indivíduo posto nessa situação hipotética é levado a ter a preocupação com o papel passageiro que deve exercer, e só poderá desempenhá-lo bem se entender a peça de teatro que está sendo representada; ele é obrigado a fazer da peça o seu principal foco de atenção.

Na grande peça teatral da vida, ou somos atores ou espectadores

A vida foi entendida desse modo até o fim da Belle Époque — é claro que o foi muito mais na Idade Média; foi assim desde que houve no mundo almas verdadeiramente cristãs; foi assim para os que receberam a Revelação do Antigo Testamento e eram os justos de acordo com a Lei de Deus.

Na realidade, essa concepção da vida existiu desde o momento em que o homem começou a viver sobre a Terra, e existirá até o fim do mundo. Por sua própria natureza, a vida é um cenário imenso, colocado num panorama imenso, onde a pessoa contempla uma imensa peça. Esta — que se vai desenvolvendo sob as mais diversas formas — é de uma grande clareza quando se presta atenção e se quer entendê-la; confusa e com aspectos até de caos, quando não se deseja entendê-la. E nessa peça a pessoa é espectador ou ator, mas tudo gira em torno da peça.

Terminada a Belle Époque, começa outra concepção da vida. O indivíduo, que está no teatro, de vez em quando entra na cena para representar um papel; entretanto, já não se preocupa com a peça, mas consigo: “Minha cadeira está bem cômoda? Estou com fome? Eu não posso mandar vir um menino que está vendendo bala, bombom, chocolate, para comer alguma coisa? Esse vizinho não está pondo o cotovelo no lado do braço da poltrona que é o meu? Não estarei querendo dormir? Quem sabe se eu me espicho agora e tiro uma soneca? Ou, então, me levanto e dou um passeio? Será que vou viver muito nessa cadeira ou morrerei logo? Ai, ai! Não quero morrer, estou sentindo uma dor e vou mandar vir um remédio para mim.”

O indivíduo passa a ser o centro do teatro, e a peça para ele é uma coisa secundária. Os próprios momentos em que entra para participar da representação, são para ele fugazes e sem importância.

Daí apareceu o Homo economicus, o Homo medicalis, o homem financeiro, o homem preocupado com assuntos médicos. Ou seja, a era de Bios, na qual o homem se preocupa em viver gostosamente, longamente, e a serviço de Mamon, julgando que, se tiver dinheiro, ele faz o que quer. Esse foi outro aspecto da vida que se inaugurou, de modo estrepitoso, espalhafatoso, depois da Segunda Guerra Mundial; e estendeu-se pelo mundo inteiro.

As grandezas de Deus são refletidas nessa enorme peça de teatro que é a Criação

Essa peça tem uma grandeza que nos faz pensar no seu Autor.

O próprio enredo, o próprio cenário nos fala de seu Autor; os atores — imagens e semelhanças do Autor — têm seu papel e até todo o seu ser planejado, intencionado, pelo Autor. A peça nos fala de Deus; e cada coisa que se vê no cenário, nos homens e no desenvolvimento do enredo — ou seja, no desenrolar da História —, bem interpretada, nos fala de Deus.

Deus enquanto vitorioso, resplandecente; enquanto punido e perseguido: o Filho de Deus bradando do alto da Cruz Eli, Eli, lamma sabactani; enquanto puniente: as catástrofes estrepitosas; enquanto reconstituinte: as auroras das grandes épocas históricas em que Ele foi servido; Deus vingando toda a História em torno de seu eixo: a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.

Essa é a visão que a metáfora nos dá. E é evidente que fazer abstração da peça, no fundo, significa abstrair de Deus; é um modo de ser do ateísmo prático. O indivíduo vive e sente à maneira de ateu, ainda quando reze todas as noites. É um ateísmo efetivo, concreto, mais ou menos subconsciente, mas que vai corroendo o senso sobrenatural, a Fé, até o momento em que o indivíduo fica de fato ateu.

Os ateus não têm vontade de intervir na peça, não são anti nada, são pró eles. Enquanto nós transbordamos do desejo de intervir, para realizar os desígnios do Divino Autor, eles, pelo contrário, procuram tirar o corpo.

As atitudes tomadas eram proporcionadas à essência dos fatos

Até a Belle Époque se tomava diante dos fatos da História uma atitude que era proporcionada à essência de cada um deles. Quando se passavam fatos muito graves, as pessoas tomavam atitudes graves diante da respeitabilidade dos fatos: da investidura e da coroação de um papa, a sagração de um bispo, a ordenação de um sacerdote, ou mesma a Primeira Comunhão de uma criança!

Tudo isto era sumamente grave e pedia esplendor, nobreza, pompa, luxo; pedia, sobretudo, compenetração da gravidade do que estava acontecendo. Terminada a Primeira Guerra Mundial, veio a onda da americanização. Na aparência, a França e a Inglaterra venceram a Alemanha; no fundo, a América do Norte “psy-esmagou” a Europa.

O resultado é que tudo isso decai; a pessoa está na cena pensando em si. Por exemplo, uma Missa de sétimo dia: o indivíduo é levado a pensar não no Santo Sacrifício, nem na alma do morto, nem no augusto e trágico da morte, mas quanto tempo durará, se o padre não vai atrasar, se não vai perder o metrô, o ônibus, o avião, a hora marcada em tal banco onde ele tem que tratar tal negócio; ele não conseguiu uma cadeira para se sentar, está com os pés doendo, inclina o corpo de um lado e do outro, porque a Missa está demorando muito; depois fura a fileira dos pêsames para conseguir sair mais depressa. Ele, ele, ele…

Por que essa atitude? Porque os fatos perderam seu significado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 21/11/1980)

Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)

 

O perigo e a glória

Como é bonito ver um navio navegar pelo mar tranquilo e refulgente que espelha o Sol, com belas ondas que apenas o fazem balouçar e brincam com ele sem ter vontade de tragá-lo. Entretanto, quão mais gloriosa é a condição do navio após atravessar os perigos da tempestade e continuar sua trajetória.

 

O beleza de um navio transparece inteiramente quando ele demarra do cais e navega longe do porto, afastado de qualquer golfo, em circunstâncias onde não se vê a terra firme. Pois é nesta circunstância que ele se apresenta em seu isolamento grandioso.

Imaginemo-lo num mar onde, de todos os lados, os confins do horizonte se fecham em torno dele. Aí sim, se percebe como o navio é pequeno diante do mar que ele singra, e, ao mesmo tempo, como é grande porque ousa singrá-lo. Que vitória singrar o mar!

O homem não cessa de se encantar e de se surpreender com a navegação. A arte procura exprimi-lo reproduzindo navios em toda espécie de mares.

Muitos pintores se têm esmerado em representar navios na tempestade, quando o infortúnio se abate sobre ele; ele resiste, ameaça soçobrar, mas continua até lhe sobrevir a tragédia… Até o soçobro do navio é belo, a agonia e a morte dele são bonitas, de tal maneira é bela a navegação.

Na realidade, todo o infortúnio da navegação faz ver aspectos da vida náutica que dão a glória do navio até nos dias de bonança. Porque se não houvesse o perigo do soçobro, ninguém acharia tão bonito o navio atravessando o mar. E a beleza da travessia que o navio faz está no perigo do soçobro e na vitória sobre o risco.

Realmente, o perigo é a condição da glória do navio. Por assim dizer, o perigo espreme o navio e ele deita o melhor de sua beleza neste suco da dor.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 20/3/1982)

Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)