Reflexões sobre um café

Há muito tempo, muitíssimo até, tenho acerca do desenvolvimento de nosso País uma impressão a comunicar.

“Desenvolvimento” é um termo tomado aqui num sentido que tem parentesco apenas longínquo com o que habitualmente se entende por tal. Não falo do desenvolvimento econômico-financeiro. Este é o sentido ápice – e não raras vezes até único – que se atribui ao vocábulo em nossos dias empapados de hedonismo burguês e de materialismo comunista.

Na perspectiva em que me coloco, tal forma de desenvolvimento tem seu lugar. Este não é, entretanto, o ápice. Pela simples razão de que o homem não é principalmente estômago. O desenvolvimento-ápice não consiste pois na promoção das coisas do corpo, do “irmão corpo”, segundo a linguagem franciscana. Consiste, isto sim, no desenvolvimento do homem todo, postos na devida hierarquia os vários elementos deste todo. E, assim, a alma em primeiro lugar. Entre as coisas da alma, quero destacar aqui uma das mais nobres, isto é, a aptidão de relacionar as coisas da matéria com as do espírito, e umas e outras com Deus.

Todo o universo foi criado à imagem e semelhança de Deus. De onde existirem analogias entre todas as criaturas. Pois seres análogos a um terceiro são, por isto mesmo, análogos entre si. Daí as coisas materiais terem o poder de exprimir as espirituais. E um dos usos mais nobres que se possa fazer de cada uma, e de todas no conjunto, consiste em lhes conhecer essa expressão espiritual. Através dessa expressão, a inteligência conhece melhor as coisas do espírito. Serventia excelsa que tem a matéria até para os bem-aventurados após a ressurreição, quando entretanto verão Deus face a face.

Uma pessoa penetrada destas grandes verdades, e habituada a fazer do relacionamento matéria-alma-Deus uma atividade-réctrix de seu espírito, pode desta maneira chegar ao ápice de sua personalidade. Ou seja, atingiu o desenvolvimento ordenado e inteiro de seu próprio eu. Seu desenvolvimento-ápice.

Essas verdades, precisamente porque muito abstratas, têm contudo relação com o que há de mais profundo e decisivo na realidade concreta. Assim é fator da grandeza, do bem-estar e da “force de frappe”, de um país o relacionamento íntimo entre os recursos naturais e a paisagem do território, de um lado, com as características do espírito nacional, de outro lado, a ponto de o observador notar afinidades entre a configuração dos montes, o curso e o rumorejar dos rios, as mil cores e formas da vegetação, os perfumes das flores, os sabores da culinária local, as harmonias das músicas e das danças populares, das formas e das cores dos trajes típicos – com o espírito da população, por exemplo com o estilo dos gracejos e das brigas das crianças, dos feitos dos homens maduros e da experimentada sabedoria dos anciãos. Tudo isto forma um emaranhado de elementos que se entrelaçam por mil afinidades indissociáveis. E é a diferença entre estes – mais até do que os limites territoriais – que distingue as nações. Que diferença entre a França e a Alemanha, por exemplo! Salta aos olhos que cada uma dessas nações forma com o respectivo “emaranhado” um só todo. Não se pode conceber uma França habitada só por alemães, nem uma Alemanha habitada só por franceses.

A tradição clássica, e mais tarde a influência profunda da Igreja, ensinou esses homens a “serem” muito mais alma do que corpo, a procurarem nas coisas da matéria analogias e ensinamentos supremos sobre a alma e sobre Deus. Daí essa admirável consonância entre o corpo e a alma dos grandes povos. Assim, tais povos foram conduzidos, numa imensa ação conjunta, a interpretarem o respectivo quadro material, encontrando nele mil afinidades com suas próprias almas. Afinidades com suas próprias almas. Afinidades estas que a cultura acentuou e pôs em relevo.

Tenho a impressão de que, dentro da tormenta contemporânea, a maioria dos homens, descaracterizados, massificados pela civilização moderna, mecânica e cosmopolita, já não sabe sentir os significados espirituais e “divinos” das coisas. Nem perceber os vínculos que os ligam entre si, nem às paisagens em que nasceram. E em países novos como o nosso, a interpretação simbólica dos panoramas, da flora, da fauna, o saboreio ou olfateação dos produtos da terra, a audição de seus ruídos ou dos cânticos da natureza, tudo se reduz, para muitos dentre nós, às vagas recordações de infância que o progresso esmagou já na adolescência por meio do rolo-compressor do “senso prático”.

Essas considerações me vieram ao espírito ao saber de um pitoresco fato que ocorre em Londrina, cidade que há cerca de trinta anos não visito. Mas sinto satisfação em contar o que a tal respeito me narraram amigos residentes na capital do café.

Um homem de espírito e iniciativa instalou ali um café, em quiosque todo de vidro. Não porém um café qualquer. No modo de preparar nossa rubiácea, usou ele de nada menos do que vinte e cinco variedades. Entretido, corro os olhos em diagonal pela lista desses modos. Entre os cafés quentes não podia deixar de estar o “café com chantilly”, seguido entre outros por um enigmático “café escocês”, daquela Escócia que não produz café. Um pomposo “café royal” e um espirituoso “café society”. Os cafés frios vêm comandados, como também é natural, pelo “café vienense”. Mas o batalhão é menor. São seis, ao passo que os quentes são doze. Depois dos frios e dos quentes, figuram sete rotulados como “outros”. Como será o “licor creme de café”? No que se diferenciará dos simples “licor de café”? E como serão os “confeitos de café”? O fato é que tudo isto encantou o povo. E o estabelecimento vive cheio.

A diversificação que um homem de generosa fantasia soube fazer com o café, em que larga medida se poderia fazer com tantas de nossas frutas e, mutatis mutandis, com nossas incontáveis flores? E quantas riquezas de nossa alma assim mais facilmente se explicitariam?

À luz das analogias de um verdadeiro simbolismo católico, num simultâneo e glorioso labor de alma de nosso povo, quanta magnificência diante de nós se desenrolaria!

E se alguém me dissesse que tudo isto não passa de devaneios porque não resolve o problema do combustível, eu responderia com uma boa gargalhada. Pois um Brasil cristãmente desenvolvido não se define principalmente como uma imensa frota de motores, mas como uma imensa família de almas.

Pensamentos sobre o Céu

Vivendo neste “vale de lágrimas”, por vezes levantamos nossos olhos
para o Céu, e a esperança de alcançar a felicidade eterna nos consola
e anima. Entretanto, não raro, uma dúvida nos assalta: como serão essas
alegrias perenes?
Certa feita, diante de um auditório repleto de jovens ouvintes, Dr. Plinio
se dispôs a elucidar essa interessante questão, tecendo ricas e belas
considerações sobre as alegrias celestiais.

Sempre tive uma impressão singular a respeito de certas descrições ou representações do Céu. Pela fé, eu sabia tratar-se de um lugar onde existem todas as delícias, mas quando estas me eram delineadas, tinha a sensação de serem deleitosas para os outros e não para mim.

Uma iconografia incompleta Por exemplo, alguns quadros retratavam o Céu muito azul, com uma nuvem branca em forma de sofá no qual se achava sentado um anjo tocando violino.

Claro, no Céu não há nuvem material, mas essa forma de pintá-lo mostra um símbolo da realidade celeste. Essa não é, entretanto, a realidade inteira: seria necessário acrescentar outros elementos para se ter uma noção completa sobre ele.

Compreendo que aquelas pinturas apresentavam algo de mais agradável
do que este vale de lágrimas.

Mesmo assim, se eu tivesse de passar a eternidade num Céu azul, sentado em uma nuvem branca e tocando violino, confesso que não sentiria esse lugar como sendo a pátria de minha alma.

Também me causava estranheza a idéia pouco feliz de esboçar o Céu imerso numa espécie de imobilidade. Conforme a doutrina católica, no
Paraíso o homem não pode crescer em grau de glória. Ele permanece ali or toda a eternidade como foi premiado após a sua morte, gozando de elicidade plena.

Eu tinha, então, a sensação de que no Céu tudo parou para sempre, e todos os eleitos estão olhando para um Deus igualmente imóvel. Ora, posto que o movimento e a comunicação fazem parte de nosso modo de ser, deparava-me com a dificuldade em compreender a atração de um Céu assim parado.

Essas eram algumas impressões equivocadas as quais, não fossem corrigidas, podiam diminuir minha esperança e interesse pelos bens celestes.

Movimento no Céu pelos acréscimos da felicidade acidental

Passei então a empreender um trabalho de análise do Céu, baseado em comentários de santos, a fim de formar uma verdadeira imagem dele e torná-lo mais apetecível.

Tratemos mais especialmente daquilo que se poderia chamar a imobilidade celeste.

É exato afirmar que, na eterna bem-aventurança, a felicidade de uma alma não é passível de aumento, e por essa razão tudo ali se encontra tão parado quanto se é levado a imaginar? Ou há acréscimos de intensidade dessa alegria?

Em outros termos, haverá no Céu movimento e vida — e até vigorosíssimos
— como não fazemos idéia? Como será isso?

Para construirmos de maneira paulatina uma imagem real do Céu, consideremos que quando um homem pratica determinado ato bom ou mau, mesmo depois de julgado e ter recebido seu prêmio ou castigo, esse ato às vezes continua a produzir repercussões até o fim do mundo.

Um par de asas para rumar a Deus

Uma autêntica formação filosófica faz-nos, ao contrário do que muitos julgam, voar para Deus. Sem dúvida, a consideração das limitações do raciocínio do homem e o anseio dos mais altos valores constituem o estímulo para a vida sobrenatural.

Ao longo da vida, todo homem adquire uma experiência interna de si mesmo, das suas próprias limitações, fraquezas e carências. Entretanto, ao experimentar essa insuficiência, ele sente desabrochar em seu interior um intenso desejo de voltar-se para algo de absoluto e divino, que compreende ser exterior a si. Essa necessidade, que é também uma carência, determina uma apetência e um desejo de ordem instintiva, que jorra possante e plenamente em sua integridade e pureza original, rumo ao Divino, no mais profundo da alma humana.

Esse fenômeno é denominado Instinto do Divino, algo que de si mesmo é inteiramente conforme à natureza.

À procura de Deus

Como fruto do Instinto do Divino, surge um conhecimento ainda anterior ao raciocínio, que é conhecido como Senso do Divino.

Movido pelo Instinto do Divino, o homem tem sua atenção voltada para alguns princípios de ordem filosófica, ainda quando subconscientes, que o fazem excogitar algo a respeito de Deus enquanto ser transcendente. Esses princípios induzem sua alma a aplicar as verdades já conhecidas também a este senso, permitindo-o entrever muito do divino nas coisas, facilitando assim a pesquisa feita pelo raciocínio rumo ao encontro do Divino. Este conhecimento anterior ao raciocínio explícito, capaz de guiá-lo e estimulá-lo, chama-se Senso do Divino.

O Instinto e o Senso do Divino são, portanto, de ordem natural. Porém quando corroborados por uma ação de Deus ou pelos dons do Espírito Santo no sentido de guiá-los e aguçá-los, podem passar facilmente da ordem natural para a ordem sobrenatural. Isso afirmava São Tomás de Aquino, utilizando-se de Aristóteles, acerca da ação do Espírito Santo no Instinto do Divino.

Formação autêntica

Compreende-se, então, como a autêntica formação católica deveria começar, desde suas mais básicas raízes, no estímulo ao Instinto do Divino como também ao Senso do Divino. Caso contrário este instinto atrofia-se, ainda nos anos da infância dos indivíduos, devido a mil circunstâncias desfavoráveis da educação moderna.

Considerando valores mais altos…

À luz destas noções, torna-se possível considerar o conceito de nobreza de espírito.

Para uma pessoa que não possua uma luz primordial1 especificamente metafísica, tanto o Instinto do Divino como o Senso do Divino se fazem sentir através da procura do que há de mais elevado e arquetípico em cada ordem de coisas criadas por Deus. De tal forma que o espírito busca, em tudo, o que é mais nobre. Essa é, então, a verdadeira nobreza de alma. E é na consideração ou procura de valores superiores, que vive o homem de alma nobre.

Essa nobreza constitui uma condição para que o Instinto do Divino obtenha o que anseia, que vem a ser propriamente Deus.

O Instinto do Divino predispõe a alma para receber a Revelação. Além de proporcionar uma docilidade em relação à Doutrina Católica, o que serve posteriormente como prodigioso argumento apologético. Pois o conhecimento da Doutrina Católica sacia de tal modo a alma humana e, em consequência, o Instinto do Divino, que se torna desnecessário um argumento apologético que prove as verdades da Fé.

Obstáculos a vencer

Entretanto, ao longo da vida, inúmeros são os obstáculos que nascem contra o Instinto do Divino. Esses empecilhos caracterizam-se, sobretudo, por um amarfanhamento ou um desuso desse instinto, que são diretamente provenientes do ateísmo e do egoísmo.

Outro obstáculo ocorre pela repressão do senso metafísico e do Instinto do Divino, causando uma “opacidade” de alma no indivíduo. Sua concepção do Divino limita-se, então, ao revelado, e sua posição de alma perante a Revelação torna-se mera recepção indiferente. Não repercute mais a Revelação nele se é de uma de outra forma.

Existe ainda a deformação do indivíduo que racionaliza esse senso. Ao fazer o estudo de Filosofia ou de Teologia, realizam-no de tal forma cartesiana, que julga dever reduzir o Instinto do Divino a tábula rasa, fazendo desse instinto um simples jogo de razão afastado de Deus, e portanto, indiferente às maravilhas das quais poderá tomar conhecimento.

Raciocínio humano

Lembro-me de um professor e filósofo do qual tomei conhecimento, que afirmava algo que me causava profunda estranheza. Porém eu ainda não possuía elementos sólidos para refutá-lo. Dizia ele o seguinte: “A verdade que eu concebo como corolário de meu raciocínio, é a verdade contra tudo e contra todos. Será verdade até contra a Igreja. Contudo creio que a Igreja nunca errará.” Ou seja, sempre concordaria com ele… “Mas a verdade, absolutamente entendida, não abro mão dela.”

Com o passar do tempo tornou-se-me clara a explicação para o problema: qualquer homem sente em si debilidades e fraquezas inumeráveis, por onde se torna inviável que ele mantenha uma confiança plena em seu próprio raciocínio. Por isso, conhecendo razões extrínsecas ao seu pensamento que o levem a duvidar dele, ele tem de fazê-lo. Pois o raciocínio humano não é, de modo algum, inerrante.

O Instinto do Divino indica-nos que toda conclusão a que possamos chegar, que em algo o contrarie, deve ser eliminada e negada, devido a uma verdade superior diretamente conhecida, que é incapaz de se equivocar: Deus.

Quem não toma esta atitude diante de suas convicções, faz do Instinto do Divino uma coisa absurda, transformando a Sabedoria em mera ciência.

E os verdadeiros voos do espírito?

Não será que a utilização dos brinquedos como entretenimento único e normal da criança, não contribui em algo para a eliminação do Instinto do Divino, sobretudo quando os brinquedos não possuem algo de elevado, ou tendente ao sobrenatural?

Todavia, não menor é o erro da formação universitária, quando realizada com o pressuposto de prescindir dos instintos sobrenaturais, proporcionando uma exclusividade científica. De modo que o indivíduo é obrigado a calcar aos pés todas as formas de Instinto do Divino e nobreza de espírito, para colocar-se em um patamar puramente racional, transformando-se, como se diz em latim, em um ente diminutae rationis.

Os verdadeiros voos de espírito ficam excluídos da equivocada formação universitária para dar lugar apenas ao raciocínio que se pode pôr no quadro negro.

 Núcleo da vida sobrenatural

Sendo um elemento reto e ordenado, o Instinto do Divino acompanhado pelo Senso do Divino são o núcleo em torno do qual se estrutura a vida espiritual e mental do homem.

Tal é o auxílio que prestam à alma em busca de Deus, que agem diretamente sobre as virtudes, tanto teologais quanto cardeais, proporcionando temperança, equilíbrio e sensatez àqueles que deles desfrutam.

Não há fortaleza maior do que a do homem que busca energicamente a plenitude do Senso do divino. Não há justiça maior do que a do homem que se põe em face do Senso do Divino e por isso julga com justiça todas as coisas. Não há temperança maior do que a do homem que possui a distância adequada a cada coisa, pelo fato de viver em função do Divino.

Considerados no plano sobrenatural, o Instinto do Divino e o Senso do Divino são os principais elementos para uma adequada vida espiritual. De tal modo que seria mister desempenhar uma formação moral e consequentemente intelectual que proporcionasse um contínuo estímulo a esses sensos, em vez de os amarfanhar.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1972)
Revista Dr Plinio 148 (Julho de 2010

1) Luz primordial: assim Dr. Plinio denominava a virtude ou o conjunto de virtudes que cada alma é especialmente chamada a admirar.

Lutas e vitória pela inocência

Conforme o ensinamento de Dr. Plinio, o valioso discernimento
do homem que conserva ou recobra a inocência batismal, permite-lhe selecionar de modo judicioso a realidade ao seu redor — preterindo
as coisas secundárias em favor das essenciais — e o leva a modelar, assim, uma personalidade rica e universal.

Quando alguém conserva a inocência batismal, o seletivo de que falamos em ocasiões anteriores1 funciona com acerto e lhe proporciona grande argúcia, discernimento, a fim de construir um mundo retamente selecionado para si mesmo.

Uma constante seleção das coisas

Continuamente, as pessoas escolhem o que lhes passa pelos sentidos, embora muitas vezes sem perceber.  Por exemplo, assistindo a essa exposição, alguns ouvintes apreciam ou se sentem concernidos mais com certos trechos do que com outros. E a alternância de doutrinas e fatos concretos faz com que todos descansem um pouco, porque tais episódios falaram a uma parte mais externa e inferior da alma, entediada de não poder se movimentar. Então prestaram atenção nos acontecimentos, e essa zona do espírito emergiu, fazendo com que o meu público “soltasse as rédeas”. Não fosse eu retomá-las afetuosamente, era de se duvidar que voltassem ao tema…

Em última análise, ouvindo as várias partes da conferência estão fazendo seleções. Por causa disso, alguns trechos lhes ficarão mais na memória do que outros, pois aquele não pode conter uma exposição doutrinária inteira.

Imagine-se uma pessoa viajando de automóvel, porém não o dirige. O veículo passa junto a casas, anúncios luminosos, árvores, etc. Terminado o percurso, um companheiro lhe pergunta:

— Você observou alguma coisa no trajeto?

— Não!

Na realidade, a questão é muito mais sutil do que parece à primeira vista. A pessoa aceitou algumas coisas e rejeitou outras. E isso poderia ser atestado por alguém sentado atrás dela no carro. Este notou, por exemplo, que a primeira acompanhou com o olhar certas residências bonitas, e virou o rosto quando se deparou com um prédio notável por sua feiúra. Quer dizer, ela selecionou algo que lhe causou impressão e, de certo modo, permanece em sua memória, embora às vezes de forma muito tênue.

Aquilo que selecionamos nos marca, e continuamente vai nos formando ou deformando. Tudo o que passa por nossos sentidos — digamos, os gestos e expressões fisionômicas de um interlocutor nosso — influencia-nos de uma maneira ou de outra. Portanto, se não nos defendermos contra o que possa haver de mal, em vez de nos aperfeiçoarmos, ficaremos como cachorros sem dono andando pelas ruas.

Sem seletivo, sofremos as más influências

Tomemos um cãozinho pequinês que perambula pelos lugares públicos. Passa o caminhão de lixo e o animal se assusta, adquire um tique nervoso que pode durar até o fim da vida dele. Mais adiante há um lago para o qual ele olha, se lambe, não pensa, só o conhece fisicamente e torna-se um tanto calmo. Mas as coisas cacofônicas predominaram sobre as harmoniosas. Quando volta para a casa da dona, ele ronrona mais agitado porque foi passear na rua, recebeu muitas impressões maléficas e não apenas as do sedoso da almofada e do macio do tapete. Seu sono será conturbado. Por analogia diremos que ele não controlou seu seletivo, e por isso foi prejudicado.

Se isso acontece com um pequinês, quanto mais com um homem, dotado de inteligência!  Se não formos capazes de selecionar, mesmo instintivamente, empurrando de lado as coisas contrárias aos restos de nossa inocência e assimilando as favoráveis, seremos como uma peteca nas mãos dos homens que conhecem e exploram os movimentos desordenados das almas que se abriram para a contradição.

Poder-se-ia conceber a idéia de alguém planejando influenciar maldosamente o hipotético Abel inocente no Paraíso?

Na primeira contradição, este reagiria: “O que é isso?!”. E diante do sussurro mais velado e disfarçado do mal, ele o perceberia: “O que se esconde nessa coisa estranha?”. E, de imediato, uma categórica rejeição. Abel seria o santo vigilante, discernindo entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o pulcro e o feio que se manifestassem ao seu redor.

Com o estado de graça, a harmonia renasce em nós

Se não pecarmos, conservando-nos no estado de graça, procurando em tudo ser lógicos e coerentes, e agirmos de acordo com a Lei de Deus, essa harmonia começa a renascer em nós, e assim nosso seletivo vai aceitando as coisas boas e recusando as más.

Reporto-me ao exemplo dado por nós em outra exposição: uma criança passeia aos braços da mãe e se agrada com o carinho que lhe faz uma bondosa camponesa, mas não gosta dos afagos que lhe dirige uma moça da cidade. Se essa criança, ao completar cinco ou seis anos de idade, perdesse a inocência batismal,  poderia vir a desprezar a mulher do campo e aprovar a jovem citadina, dizendo que esta é cativante, porque estava toda enfeitada e lhe sorriu.  Ora, a camponesa a olhou com bondade; e isso vale mais do que um sorriso comercial  ou qualquer atavio.

Contudo, a criança resolve seguir a moça da cidade para ser depois espancada por ela. Pelo contrário, se conservasse a inocência, ganharia experiência e saberia escolher a melhor dentre as duas pessoas.

Observando as fisionomias de meus ouvintes, percebo que muitos dizem de si para consigo: “Tudo isso é belo, mas também uma imensa complicação. Para se entender bem esse assunto, seria como desejar segurar um monumento de cristal cujas colunas possuem tantos ornatos, detalhes, e dá tantas voltas, que nem se compreende como constituem um só todo. Em certo momento julga-se ter entendido e que se pode pôr em prática; mas em outros, tem-se a impressão de se estar achatado! Isso é magnífico, mas como vou chegar até lá?  Dr. Plinio terá visto como estou longe desse ideal? Não estará me chamando para o alto do Monte Everest, sem saber que não consigo escalá-lo?”

Minha resposta: sem a graça de Deus, a qual só obtemos pela intercessão de Nossa Senhora, não conseguimos conservar nem recuperar a inocência batismal. É doutrina da Igreja que um homem, sem o dom divino — um auxílio vindo do Céu e superior à nossa natureza — é incapaz de praticar duravelmente os Dez Mandamentos.

Inocente completo era o homem no seu estado de integridade nativa, antes do pecado original. Depois deste, nascemos apenas com uma semi-inocência. E embora nossa alma constitua um todo, teoricamente pode-se dizer que metade dela é abalada pelas paixões desordenadas, as quais precisamos regrar. A outra parte é reta, mas só domina a pior através de um verdadeiro milagre. Mesmo para controlar a metade boa, necessitamos da graça do Céu, e devemos pedi-la. Não queiramos ser auto-suficientes, mas humildes, compreendendo que por nossas próprias forças nada conseguiremos. Somos falidos, na bancarrota nascemos, como diz o Salmo: “Eis que minha mãe concebeu-me no pecado” (Sl 50, 7). Há, porém, o reverso da medalha: pela oração alcançaremos as forças necessárias para atingirmos nosso objetivo.

Queiramos ser como o verdadeiro Abel

Peçamos, então, a Nossa Senhora que nos conceda intenso desejo dessa inocência, e uma santa inconformidade com o vaivém, o caos, tumulto e desordem existentes em nós. Não desejemos ter (como dizia o Chanceler alemão Bismarck) duzentas almas, mas apenas uma.

Sejamos como o verdadeiro Abel que, embora concebido no pecado original, continuamente lutava contra seus defeitos, comparáveis a uma cobra. Ele a estrangulava dia a dia, com severidade inflexível e inclemente, impedindo-a de lhe fazer qualquer mal, apesar de não conseguir extingui-la. Mas, agindo dessa forma, no momento de exalar seu último suspiro, Abel desferiu na serpente o mais violento dos seus golpes.

Assim é a vida do homem nessa luta interna contra ­suas próprias desordens.  Se nos conduzirmos dessa maneira, teremos realizado inteiramente o programa de nossa existência, e estaremos preparados para comparecer diante de Maria Santíssima. Ela sorrirá para nós e nos dirá: “Meu filho, és como te desejei, te pedi e te ajudei a ser”.

Essa será para nós a glória das glórias. Caminhemos com passo resoluto nessa direção.

1 ) Cf. “Dr. Plinio” números 86, 87 e 88.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 88 (Julho de 2019)

Santo Afonso Maria de Ligório um modelo de perseverança

Quando contemplamos um céu estrelado, extasiamo-nos com as miríades de astros a cintilarem nas etéreas vastidões. Entretanto, outra constelação há, ainda mais bela e reluzente que a fixada no firmamento: são os Santos da Igreja Católica, fulgurantes exemplos para todos os fiéis . Um desses grandes luminares do cristianismo é Santo Afonso Maria de Ligório, cuja vida edificante e heróica Dr. Plinio aqui faz brilhar aos nossos olhos.

No dia 1º de agosto se comemora a festa de Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo, Confessor e Doutor da Igreja. Fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, é o tratadista por excelência da moral católica, e se destacou por sua profunda devoção a Nossa Senhora, em louvor da qual escreveu uma de suas mais belas obras, as Glórias de Maria. Dele temos essa síntese biográfica, escrita por Dom Guéranger:

Afonso Maria de Ligório nasceu de pais nobres, em Nápoles, a 27 de setembro de 1696. Sua juventude foi piedosa, estudiosa e caritativa. Aos 17 anos ele era doutor em direito civil e canônico. E começava pouco depois uma brilhante carreira de advogado. Mas nem seu sucesso, nem as instâncias de seu pai, que o queria casado, o impediram de deixar o mundo. Diante do altar de Nossa Senhora, fez o voto de se tornar sacerdote. Ordenado padre em 1726, consagrou-se à pregação. Em 1729, uma epidemia permitiu-lhe que se dedicasse aos doentes em Nápoles. Pouco depois retirou-se, com companheiros, a Santa Maria dos Montes, e com eles se preparou para a evangelização dos campos.

Em 1732, estabeleceu a Congregação do Santíssimo Redentor, que lhe deveria acarretar numerosas dificuldades e perseguições. Mas enfim os postulantes afluíram e o instituto se expandiu rapidamente. Em 1762 foi nomeado Bispo de Santa Ágata dos Godos, perto de Nápoles. Empreendeu ato contínuo a visita à sua diocese, pregando em todas as paróquias e reformando o clero. Ele continuava a dirigir seu Instituto e o das religiosas que tinha fundado para servir de apoio, por sua oração contemplativa, a seus filhos missionários.

Em 1765, demitiu-se do ministério episcopal e voltou a viver entre seus filhos. Dentro em pouco uma cisão se produziu no Instituto dos Redentoristas, e Santo Afonso se viu expulso de sua própria família religiosa. A provação foi muito grande, mas ele não perdeu a coragem e predisse mesmo que a unidade se restabeleceria depois de sua morte. Às suas doenças se acrescentaram sofrimentos morais que lhe causaram longas crises de escrúpulos e diversas tentações. Porém, seu amor a Deus não fez senão crescer.

Enfim, no dia 1º de agosto de 1787, entregou sua alma ao Senhor, na hora em que os sinos tocavam o Ângelus. Gregório XVI o inscreveu no catálogo dos Santos em 1839, e Pio IX o declarou Doutor da Igreja.

No meio de uma situação eminente, o túnel escuro

Pela descrição acima, percebe-se que a trajetória terrena de Santo Afonso teve um determinado momento comparável a um túnel escuro, por onde ele foi obrigado a passar. Não se trata de uma provação ou sofrimento, mas de uma espécie de desengano pelo qual tudo quanto ele podia humanamente considerar como dando significado à sua vida, parecia ruir. Ele se tornava privado de qualquer dom, vantagem ou bem que não fosse a pura graça de Deus, atuando de um modo provavelmente insensível no interior de sua alma.

Era um advogado brilhante, dotado de invulgar inteligência, nascido de família nobre, que abandonou uma situação humana auspiciosa e capaz de lhe favorecer a carreira e as ambições, para se dedicar apenas ao sacerdócio. Num passo seguinte, constitui uma congregação religiosa. Esse instituto floresce, e seu fundador se torna um homem bem visto pela Santa Sé. Escreve ótimos livros, difundidos por toda a Europa, e é aclamado como um mestre de grande peso na vida intelectual católica de seu tempo. Pouco depois é elevado ao episcopado.

Sem dúvida, uma situação eminente, com todos os aspectos de uma vocação bem sucedida: como padre, se fez religioso; como religioso, fundador e superior geral; além disso, com a honra do episcopado, percebendo que o bom odor de sua doutrina perfumava a Europa inteira. Dir-se-ia, pois, que os anseios pelos quais se ordenara haviam se realizado, e a sua vida tinha atingido o objetivo desejado pela Providência. Nesse apogeu, ele poderia morrer e dizer a Deus, parafraseando São Paulo: “Combati o bom combate, dai-me agora o prêmio de vossa glória!”

Ora, no momento em que tudo isso parecia alcançado, uma catástrofe. Bispo resignatário, doutor e moralista, superior geral da congregação religiosa que fundara, Santo Afonso é dela expulso por causa de intrigas, mal entendidos e informações erradas. Imagine-se o que representa para um fundador, ser despedido de sua instituição pela Santa Sé, vendo-se de um momento para outro sem recursos e sem meios de subsistência!

Destino das almas amadas pela Providência

Acrescente-se a esse revés outra provação: começam a lhe atormentar as doenças, que o acometeram até fim da vida. Entre elas, uma febre reumática que o paralisou por certo tempo e lhe afetou a posição do pescoço, impedindo o de permanecer ereto. Passou a viver com a cabeça inclinada, atitude esta refletida em alguns retratos que dele fizeram. Além das enfermidades, sobrevieram escrúpulos, tentações fortíssimas, inclusive contra a pureza e contra a Fé. Tudo se acumulando num homem alquebrado dessa forma.

Porém, era este exatamente o prêmio máximo para coroar a sua existência. Era a crucifixão depois de um longo apostolado e uma incansável ação em benefício do próximo.

Assim age, o mais das vezes, a Providência em relação às almas que Ela ama. São certas situações em que todos os infortúnios se congregam e há uma espécie de crepúsculo geral. Depois, a alma purificada, lavada pelo sofrimento, volta a gozar da graça de Deus. Então ela respira, sente-se outra, transformada.

Naturalmente, essa foi a última nota da santificação, o derradeiro esforço que Nosso Senhor exigiu de Santo Afonso de Ligório.

Lutas contra o jansenismo

Cumpre dizer que grande parte das perseguições sofridas por Santo Afonso foram motivadas pelo jansenismo que grassava no seu tempo, e ao qual ele se opunha com zelo e vigor intensos. A corrente jansenista, a pretexto de severidade, acabava inculcando os preceitos morais tão erradamente que a pessoa desanimava de se salvar, pois afinal de contas não podia cumprir aquela moral de fariseus, como eles a apresentavam.

O ponto mais desconcertante defendido pelo jansenismo dizia respeito à doutrina da predestinação. Segundo esta, o homem deveria cumprir aquela moral tremendamente severa, pairando sobre ele o olhar propenso à irritação e à vingança de um Deus, cuja santidade consistia apenas em estar à espera do pecado para infligir o castigo.

De outro lado, entretanto, afirmavam os jansenistas que o Céu e o inferno não são dados aos homens em razão de suas boas ou más obras, porque Deus predestina para este ou aquele quem entende. De maneira que a pessoa pode passar a vida inteira pecando e ir para o Céu, ou praticando bons atos e cair no inferno, conforme o desejo divino.

Ora, sendo assim, fácil é compreender como os homens perdiam completamente o alento para praticar a virtude e também o motivo para não cair no vício. Pois, em última análise, se eu acabo condenado embora passe a vida inteira realizando atos de virtude, em suma não sou livre de fazer ou não fazer algo, porque é Deus quem resolve e não eu. Então, para que me esforçar em levar uma vida santa?

No fundo, era uma pregação da imoralidade. Por causa disso, segundo muitos vislumbres históricos, os jansenistas tinham suas falsidades ocultas. Por exemplo, jejua-vam amiúde, mas eram grandes gastrônomos. E uma das omeletes reputadas por mais saborosas no tempo era chamada de La Janseniste, com a qual eles se regalavam escondidos durante seus “jejuns”.

Não bastassem esses desvios, os jansenistas atacavam ainda as devoções mais elevadas e recomendáveis como, por exemplo, o culto ao Sagrado Coração de Jesus. Conta-se mesmo o caso de certo Bispo de Pistoia, Scipione de’ Ricci, que mandou pintar em sua residência um quadro representando uma devota lançando ao fogo a estampa do Sagrado Coração de Jesus, como se fosse objeto supersticioso, enquanto ele, Ricci, segura a cruz e o cálice com a Eucaristia, símbolos da autêntica piedade (como a entendiam).

Essa recusa se explica pelo fato de a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ser, de algum modo, o antijansenismo. Ela inculca a bondade, a misericórdia, a paciência do Salvador, e demonstra a verdade de que o homem, por meio de suas boas obras, pode agradar a Deus e alcançar a salvação. Manifesta, outrossim, que nosso Deus justo é repleto de amor, e não um tirano arbitrário, um implacável cobrador de impostos em relação à humanidade. Compreende-se, portanto, que em face dessa corrente jansenista Santo Afonso Maria de Ligório tenha tomado uma posição muito enérgica nas suas obras de moral. E que haja sofrido, em conseqüência, toda sorte de ataques e perseguições de seus oponentes, chegando ao auge dos reveses e infortúnios acima mencionados.

Lição de vida para os católicos

Devemos considerar nessa existência de Santo Afonso, laboriosa, semeada de provações mas coroada pelo triunfo da virtude, uma lição de confiança e de perseverança para todos nós. Nos piores momentos das tentações, nas dores e enfermidades, nas rudezas das perseguições, quando os seus mais próximos lhe infligiram cruéis dissabores, ele jamais desanimou, nunca flectiu no seu desejo de alcançar a santidade, crescendo em piedade e devoção à medida que avultavam os sofrimentos.

Vem a propósito recordar aqui um pequeno episódio do fim da vida dele, quando já não podia transitar por si próprio, sendo conduzido em cadeira de rodas por um irmão leigo redentorista. Então passeavam pelo convento, percorrendo os jardins e os pátios internos, enquanto fa-ziam suas orações. Mais de uma vez aconteceu de Santo Afonso perguntar ao seu companheiro:

— Irmão, já rezamos tal Mistério do Rosário?

O bom discípulo, igualmente alquebrado pela idade, não se recordava ao certo, e respondia:

— Sr. Bispo, não me lembro muito bem, mas acredi-to que sim. Em todo o caso, já rezamos tantos terços, que Nossa Senhora não se importará se não tivermos con-templado tal ou tal outro Mistério…

E Santo Afonso replicava:

— Oh! Meu caro Irmão, isso não! Se eu passar um dia sem recitar o Rosário completo, posso perder a minha alma!

Essa é a constância, a coragem, o ânimo perseverante de um Santo sobre o qual se abateram todas as tempestades. Ora, o que se deu com ele, pode suceder na vida de qualquer um de nós. Quantas vezes já não teremos passado por aflições e reveses semelhantes aos que ator-mentaram Santo Afonso?! E, não raro, trazendo consigo a impressão de um desabamento, de algo que ruiu por terra, de um caminho intransponível.

Entretanto, após um período curto ou longo de agruras, surge mais luz, mais amparo, outras vitórias, outras alegrias. E assim, com sucessões de túneis e de estradas largas, Nossa Senhora vai nos conduzindo para realizarmos os desígnios d’Ela e de seu Divino Filho a nosso respeito.

Imitemos, pois, Santo Afonso na sua perseverança, na sua confiança humilde e profunda, compreendendo que em nossa vida espiritual haveremos de nos deparar com túneis escuros, sem termos de nos aterrorizar com eles. Para além dessa escuridão, a Providência nos traça uma via ainda mais luminosa e mais bela que a anterior.

Essas são algumas reflexões que nos sugerem a extraordinária e edificante existência de Santo Afonso de Ligório.

Plinio Corrêa de Oliveira

Um hino a Nossa Senhora

A Catedral de Notre-Dame é tão bela que se pode olhá-la indefinidamente, cheio de enlevo, de veneração e de ternura. Quem a aprecia muito passa a amar a ordem sublime das coisas, que conduz ao amor de Deus.

 

Notre-Dame de Paris. Eis a catedral de uma beleza perfeita, alegria da Terra inteira!

Para sentir o equilíbrio da fachada, notemos que há três partes distintas. Uma vai dos portais de entrada e termina com a galeria enorme de estátuas, as quais dão as costas para um terraço que vou analisar daqui a pouco.

Um resplendor em torno da Santíssima Virgem

Percebe-se ali o corrimão do terraço e se vê, logo atrás, uma imagem de Nossa Senhora sustentando nos braços o Menino Jesus. É a segunda parte do edifício, que vai do terraço até uma série de colunas que separa o terraço da torre. Há uma grande rosácea central, toda feita de vitrais. Nela nota-se uma parte mais central, delimitada por um trabalho de pedra. Dentro há um círculo menor ainda, onde está a cabeça de Nossa Senhora. A ideia que fica insinuada é a seguinte: toda essa rosácea é o resplendor da cabeça de Maria Santíssima. E sendo a rosácea o centro da catedral, a ideia que fica meio confusa, mas realmente verdadeira, é que a catedral é um hino a Nossa Senhora.

Contrastes harmônicos na relação entre os diversos elementos da fachada

Ela tem nos braços o Menino Jesus e, com o mais inefável sorriso de Rainha e de Mãe, olha para seu Divino Filho. A alma fica assim transportada de entusiasmo e com vontade de subir. O que ela encontra em cima? Uma série de colunas, mas que dão para o vazio!

Essas colunas têm uma função que parece um disparate: sendo tão frágeis, elegantes e harmoniosas, parecendo irmãs que se tocam pelas mãos, elas sustentam o peso de duas torres. Porém, ninguém tem a impressão de que as torres vão esmagar a colunata. Parece tão natural, com um contraste tão agradável, que se uma pessoa mais atenta não nos mostrasse, talvez nem notaríamos.

Por detrás, vemos a flecha que se ergue, bem no meio das duas torres. O resto é o céu…

É certo que não foi terminada a construção das torres, as quais teriam uma parte mais alta. Ninguém pode imaginar como seria, nem ousa completar uma coisa que, quando se olha, tem-se a impressão de não pedir complemento. Onde está o talento para completar uma obra admirável como essa? Não foram encontradas as plantas que os arquitetos deviam seguir, ninguém ousou mexer nisso.

Considerem como a relação desses vários elementos dá uma impressão de harmonia. Qual? Embaixo, três portais; o do centro é um pouco maior do que os outros dois. Mas não se percebe bem, pois é discretíssima a diferença. Contudo, se os portais fossem da mesma altura, seriam sem graça.

A ogiva é a nota do andar térreo. O andar de cima começa com a galeria de estátuas e acaba com a colunata. No meio há uma rosácea e duas ogivas, uma de cada lado. Cada ogiva é dividida em duas. E, no ponto em que as duas se encontram, há outra rosácea.

Assim, o redondo é a nota mais saliente nesse andar, contrastando com o pontiagudo de tantas outras partes. Mas observem a harmonia, o bom senso e o equilíbrio de coisas tão diversas e tão bem reunidas. Notem como fica leve, quase como um brinquedinho, a estátua colossal de Nossa Senhora ladeada por duas figuras de Anjos.

Por cima, vê-se a massa enorme das torres, cada uma com duas notáveis ogivas, onde os sinos tocam gravemente nas grandes horas do ano litúrgico e, às vezes, nas grandes horas da História da França, que são as grandes horas da História do mundo.

A galeria dos reis

Essa galeria com estátuas de reis tem sua história. A Revolução Francesa, sempre ela mesma, decapitou todas essas esculturas porque, como os bandidos tinham guilhotinado o rei e a rainha, quiseram “guilhotinar” também todos esses reis do Antigo Testamento.

Recentemente, nos alicerces de um banco próximo a Notre-Dame, quiseram fazer construções e encontraram essas cabeças, que a Revolução Francesa tinha arrancado, enterradas no subsolo do banco. Fizeram-se estudos e verificou-se que foi um homem piedoso, residente nas cercanias, que enterrou essas cabeças ali, porque ele não se conformava com essa decapitação.

Veio o dia em que mãos justiceiras tiraram do subsolo todas essas cabeças e tentaram colocar nos troncos dos reis. Mas, infelizmente, as autoridades decretaram que não ficavam bem, não havia meio de prendê-las. Entretanto, eram belas obras de escultura e foram levadas para o Museu de Cluny, que é o museu de coisas da Idade Média.

Contemplação que conduz ao amor de Deus

Todas essas coisas tão diversas se unem de um modo tão tranquilo, mas tão interessante, que se fica olhando indefinidamente, cheio de enlevo, de veneração e de ternura. Porém, se colocarmos diante desse monumento um frenético, um indivíduo que baila essas danças modernas, nasce uma batalha, porque ou ele, à força de gostar do monumento, perde o frenesi, ou recusa a santa influência do monumento e o abandona. Entretanto, para almas predispostas a aceitar essa tranquilidade, essa estabilidade, a catedral quer dizer enormemente! Quem começa a gostar daquilo, por novato que seja, passa a amar a ordem sublime das coisas que conduz ao amor de Deus.  

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/6/1986)

São Germano de Auxèrre – Apóstolo da Gália, da Itália e Grã Bretanha

Ao comentar alguns significativos episódios da vida de São Germano de Auxèrre, Dr. Plinio analisa os diversos aspectos da manifestação da graça de Deus através dos tempos, como resposta d’Ele a uma receptividade mais generosa da parte dos homens — ontem, hoje e, sobretudo, no Reino de Maria, essa época vindoura que há de ser favorecida por uma especial refulgência dos dons  divinos.

 

A respeito de São Germano de Auxèrre, cuja festa se celebra em 31 de julho, temos a seguinte nota biográfica: “Nascido no século V, foi ele uma das figuras extraordinárias de bispos dos primeiros séculos da conversão da Europa. Antes de receber a vocação episcopal, tinha sido duque de Auxèrre e general das tropas dessa província; estudou letras e jurisprudência nas Gálias (região da qual  fazia parte a atual França) e em Roma. Casou-se com uma jovem tão nobre e tão rica quanto ele.

Santo de majestosa fisionomia

“Entretanto, o Bispo de Auxèrre, pressentindo sua morte, recebeu de Deus a revelação de que Germano deveria ser seu sucessor. Assim, pedindo permissão a seus superiores, convidou Germano  para ir à catedral e ali cortou-lhe os cabelos, revestiu-o com um traje especial que, segundo o costume da época, o distinguia como clérigo. Após algumas acerbas resistências, acabou assumindo o cargo. Como sacerdote e bispo, transformou-se completamente, sendo um exemplo para todos. Em obediência a uma ordem do Papa, partiu para a Grã-Bretanha a fim de combater o  pelagianismo.

Ao passar por Paris, discerniu no meio da multidão Santa Genoveva e profetizou o futuro da jovem.

“Sua vida decorreu em meio a milagres, realizando grandes trabalhos apostólicos. É conhecida  sua intervenção a favor dos bretões, tornando-os vitoriosos numa batalha contra os ingleses. Combateu tenazmente os adeptos de Pelágio. Certa ocasião, dirigindo-se a Ravena (Itália), logo após atravessar os Alpes, vestiu-se pobremente para não ser reconhecido.

Chegando a Milão, entrou na catedral num dia de festa, como anônimo. Porém, um possesso começou a gritar no meio dos fiéis: ‘Germano! Por que viestes nos procurar na Itália?! Contenta-te em  nos expulsar das Gálias e de nos ter vencido com tuas preces!’. Admirado, o povo acabou reconhecendo o Santo, pela majestade de sua fisionomia. “São Germano era muito estimado por São Pedro  Crisólogo e pela Imperatriz Gala Placídia, para a qual, certo dia, enviou um pedaço de pão numa bandeja de madeira. A soberana recebeu o presente cheia de respeito, mandou colocar a bandeja num relicário de ouro e guardou o pão a fim de utilizá-lo como remédio para suas enfermidades. Faleceu São Germano em 448, e o quarto onde seu corpo era velado regurgitava de  grandes personagens, que disputavam suas relíquias.”

Uma revelação e um corte de cabelo…

Por esses dados podemos notar uma constante a ser analisada: a diferença profunda entre o modo como as pessoas daquele tempo consideravam as coisas e como o fazem as de hoje. Havia, então, uma mescla de barbárie e espírito rudimentar com sentimentos, disposições de alma extraordinárias e intervenções sobrenaturais sublimes.

Germano era duque de Auxèrre, província situada na importante Borgonha. Atualmente, o título de duque é apenas honorífico, pelo qual alguém se distingue dos demais por um cartão de visita e  algumas atenções num salão. Mas naquele tempo significava possuir o governo vitalício e hereditário de um grande território, uma pessoa com quem o monarca deveria contar para exercer a realeza. O duque era um pequeno rei no local onde tinha seu ducado.

Ora, o bispo daquele lugar, Amator, prevendo sua morte próxima, recebeu a revelação para designar o duque Germano como seu sucessor. O prelado não duvidou da inspiração da graça divina,  mas sim de que o duque aceitasse.

Mandou então chamá-lo à catedral e ali cortou-lhe o cabelo. Como um homem repleto de senhorio, autoridade e poder permitiu que agissem dessa forma com ele? Importa salientar que naquela época os homens usavam cabelos até os ombros, ou mesmo caindo pelas costas. E a cabeleira longa não era apenas um sinal distintivo dos nobres, mas também um elemento de vaidade masculina. Daí o costume de cortá-lo, chamado de “tonsura”, quando se ingressava nas ordens sacras, simbolizando a renúncia aos hábitos mundanos.

Não sabemos como o bispo convenceu Germano a lhe permitir cortassem os cabelos. Porém, deve ter sido uma espécie de pressão moral: diante de todo o povo reunido, ele explicou qual era a  vontade de Deus. O duque, um tanto constrangido, não teve alternativa senão deixar que os aparassem.

Candura e profunda seriedade

E assim ele se tornou clérigo, o que resultava na sua destituição do ducado. Diante dessa perda de senhorio, Germano se julgou vítima de um golpe de Estado e se levantou em armas na defesa dos  seus direitos. Era um modo de ver as coisas inteiramente diverso do contemporâneo. Havia, então, uma certa candura aliada — e aí se sente os sabores espirituais da Idade Média nascente — a  uma profunda seriedade.

Se acontecesse algo semelhante a um indivíduo de hoje, ou seja, se lhe cortassem os cabelos para torná-lo clérigo, ele sairia da igreja e diria: “Isto é nulo, pois houve coação moral; continuo minha vida como antes e não me importo com as conseqüências. Sr. Bispo, adeus!” Em sentido oposto, o duque Germano se achou lesado de tal sorte, e todo o mundo o considerava tão comprometido por aquela cerimônia, que ele levantou tropas e fez uma revolução. Pode-se ver nisso um pouco de primitivismo, mas, de outro lado, uma intensa seriedade no dar verdadeiro valor ao significado  das coisas.

Esse bispo terá agido bem? Quanto a Germano, creio estava no direito de reagir. Porque se ele foi objeto de  uma coação moral — o corte de cabelo não sendo um sacramento, mas uma coisa delével — parece-me que ele poderia perfeitamente se libertar daquele modo. Porém, tocado pela graça, ele se converteu. Renunciou aos seus direitos de nobre, aceitou o episcopado e começou sua grande carreira de Santo.

Convém apreciar como é interessante o trabalho da graça. O bispo de fato havia recebido essa missão de Deus, mas o Criador quis dar ao duque uma graça fulgurante, de maneira que ele ficasse esmagado pelo convite.

Permitiu-lhe até que oferecesse resistência. Contudo, em certo momento realizou seu desígnio: deu-lhe novas graças e Germano acabou cedendo, tornando-se um herói da Fé. E dessa forma maravilhosa, um dos maiores bispos da história da França deu início ao seu pontificado.

“Onde está Germano?!”

Consideremos outro episódio da vida de São Germano que também traduz de modo eloquente o espírito daquela véspera de Idade Média. Como em todas as épocas, tinha então o demônio permissão de Deus para tentar os homens, embora possamos concebê-lo com uma ação maléfica não tão agressiva quanto seria nos séculos sucessivos, em virtude da decadência da Civilização Cristã. Assim, compreende-se o ocorrido com nosso Santo na Catedral de Milão. Um possesso gritou: “Germano, que fazes aqui? Tu não te contentas de nos ter expulso da Gália, e ainda vens à  Itália nos aborrecer?”

Esses rugidos devem ter induzido ao mal certas pessoas lá presentes. Mas, de outro lado, o demônio tinha licença para tentar alguns sob a condição de dizer coisas que, em última análise,  pudessem abrir os olhos de todos para as grandes qualidades de São Germano. Então, o povo começou a procurá-lo: “Onde está Germano? Onde está Germano?”. Ele, embora pobremente vestido, era o ex-duque de Auxèrre e conservara a fisionomia e porte ducais, aliados à nobreza pastoral. E foi reconhecido pela majestade de sua pessoa, sendo logo objeto de homenagens e reverências.

Matizes diversos na economia da graça

Por fim, constatemos o belo uso feito pela Imperatriz Gala Placídia do presente enviado a ela por São Germano, cujo gesto encerrava provavelmente um sentido simbólico. É notável o espírito de Fé que animava essa soberana. Ela toma o prato de madeira e o coloca num relicário de ouro, porque fora presenteado por um santo. Embora ele ainda não tivesse sido canonizado pela Igreja, a Imperatriz estava convencida da heroicidade de virtudes do bispo. E sendo notórias, sólidas, incontestáveis as provas dessa perfeição espiritual, ela guardou o pão para usá-lo como remédio em  suas doenças. E certamente esse alimento operou muitos milagres!

Tal atitude da parte da soberana indica outra intensidade da Fé, das bênçãos divinas, outro regime da graça de Deus para com os homens naquele período histórico. E nesse ponto cumpre fazer uma insistência. Não se trata de dar aqui à palavra “outro” o mesmo sentido da diferenciação entre o Antigo e o Novo Testamento. Quer isto dizer simplesmente que havia um matiz diverso entre a economia da graça naquele tempo e o existente nos dias de hoje.

Séculos mais tarde, na época medieval, a graça era generosa, abundante, triunfante. Atualmente, por ser tão mal recebida pelos homens, apesar de ser igualmente copiosa, o seu triunfo é mais  difícil… Assim, é-nos dado compreender algo sobre o Reino de Maria, no qual, em sua substância mais íntima e importante, haverá um mais amplo leque de manifestação da graça nas almas.

Quer dizer, após o triunfo do Imaculado Coração de Maria, anunciado em Fátima, Deus perdoará os pecados dos que se arrependerem, e — atendendo aos rogos de sua Mãe Santíssima — dará  início a esse novo tipo de manifestação, ao mesmo tempo em que da parte dos homens, purificados de suas faltas, haverá outra receptividade e reciprocidade para com os dons divinos.

Pedir um  perdão novo e uma nova graça

Portanto, a condição essencial para que venha uma futura e nova Idade Média, é um perdão que deve descer do Céu e mudar todas as coisas. Houve em determinado momento da História um  pecado instigado pelo inferno, que determinou a ruína da cristandade medieval e alterou tudo na Terra. Uma vez perdoado este pecado, começará o Reino de Maria, pelo favor e misericórdia de  Nossa Senhora.

Devemos, pois, por meio de São Germano de Auxèrre, implorar com insistência que nos venha do Céu uma graça nova, um perdão novo, e a Virgem Santíssima se digne de estabelecer com os  homens um teor de relações  baseado numa outra situação. Não se pense que simplesmente com a derrota da Revolução e dos adversários da Igreja Católica estaria tudo resolvido. É preciso esse  perdão, um fato de ordem sobrenatural que será o alicerce do Reino de Maria.

É necessário orar muito, porque os fenômenos sobrenaturais não podem ser produzidos pelo homem. Eles provêm de Deus, pela intercessão de Nossa Senhora. Quanto mais pesar sobre nós a  dureza da época em que vivemos, tanto mais nos cabe pedir a vinda desse perdão e dessa graça inéditos, para mudar cada um de nós e o mundo inteiro.

Seja, portanto, este convite a um espírito de oração mais fervoroso e constante, a conclusão desses comentários à edificante vida de São Germano de Auxèrre.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Afonso Rodrigues – O carisma da boa conversa

A boa conversa é uma forma comunicativa do amor a Deus, à Santa Igreja, a Nossa Senhora, que extravasa do coração para a boca de quem fala.

m 31 de outubro comemora-se a festa de Santo Afonso Rodrigues, confessor. Sobre ele, Schamoni, em seu livro A verdadeira fisionomia dos Santos(1), dá as seguintes notas:

Porteiro de convento durante 45 anos

Santo Afonso Rodrigues nasceu no ano de 1531, em Segóvia. Era filho de um piedoso negociante.

Deve considerar-se como transcendental em sua vida a influência do Bem-aventurado Padre Fábio, que durante algum tempo viveu entre eles, assim como mais tarde o santo religioso Francisco de Vilanova.

Com a morte de seu pai, Santo Afonso passou a cuidar dos negócios familiares, porém a sua pouca habilidade levou os negócios à falência, ao mesmo tempo em que a morte arrebatava a sua esposa, seus filhos e sua mãe.

“Na desgraça — disse o Santo — vi a majestade de Deus e reconheci a maldade de minha vida. Fizera, por causa do mundo, pouco caso de Deus e agora estava na iminência de perder-me eternamente. Ante mim vi a sublime grandeza de Deus, enquanto eu jazia no pó da minha própria miséria. Imaginei ser um segundo Davi, e um comovedor Miserere foi a expressão do meu estado de espírito.”

Dirigiu-se então à Companhia de Jesus e, depois de seis meses de noviciado, mandaram-no para o colégio de Monte Sion, em Palma de Mallorca, de cujo convento foi irmão porteiro durante quarenta e cinco anos.

Doutor de Mallorca

A confiança que sua conduta despertava contribuiu para que muitas pessoas a ele acudissem, pedindo conselhos e ajuda em seus conflitos espirituais. Santo Afonso possuía em especial o dom da conversa espiritual. Seu próprio reitor concordou que nenhum tratado religioso lhe proporcionara tanto bem como o contato com o irmão leigo. Atendia também os pedidos que lhe faziam através de numerosas correspondências. Por isto foi chamado o “Doutor de Mallorca”.

O Santo podia ter dado bons conselhos porque ele mesmo precisou suportar numerosas dificuldades íntimas e materiais e enfrentar duras batalhas.

“Sentia — comentou — cada vez com maior profundidade a grandeza do Senhor, enquanto se aguçava em mim a consciência da debilidade do meu ser. Graças a esta experiência, mergulhava no estado de absoluta inconsciência. Então só sabia amar.”

Três dias antes de sua morte, depois da sua última Comunhão, permaneceu iluminado e em êxtase.

“Que felicidade — escreveu uma testemunha ocular — despertava em nosso espírito ao contemplá-lo! E eram somente algumas migalhas da sua felicidade. Decidimos chamar um pintor para que fizesse um fiel retrato de Afonso.”

O Santo faleceu em 31 de Outubro de 1617.

Sua cadeira de porteiro tornou-se um trono de sabedoria

Esta é uma vida verdadeiramente magnífica porque traz três notas muito importantes.

A primeira delas costuma ser comentada a propósito da vida de Santo Afonso Rodrigues, e é digna de ser recordada: este Santo fez um bem imenso a toda a Espanha, a todo o mundo, e conseguiu realizar este bem num posto humílimo. Ele era porteiro de um convento numa ilha que, naquele tempo, tinha comunicação difícil com o continente, e ficava muito mais isolada do que está hoje. Ali ele consumiu 45 anos de sua existência.

Pois bem, apesar de estar nesse recanto, o bom odor de Jesus Cristo que havia nele espalhou-se por toda a ilha de Palma de Mallorca, depois pela Espanha, e mais tarde pelo mundo, com a figura venerável deste porteiro velho, acolhedor, afável, sempre ao alcance de todo mundo na portaria e, portanto, podendo ser consultado por todos os que quisessem, o que fez de sua cadeira de porteiro um trono da sabedoria. Todos iam lá vê-lo e ouvi-lo.

Vemos o que há de magnífico numa vida mesmo muito humilde como esta, quando é toda integrada e empregada no serviço de Deus Nosso Senhor e da Santa Igreja Católica. Por quê? Porque a santidade, a sabedoria tem uma irradiação própria, que não é comparável a nada. Não é tão importante que o Santo esteja num lugar onde todos veem porque para atrair, quer o afeto, quer a admiração, em qualquer lugar onde ele esteja este afeto e esta admiração confluem. Basta que seja um Santo verdadeiro e autêntico, com uma santidade, como diziam os antigos, victa et non picta, quer dizer, verdadeira e não pintada.

Com essa consideração devemos fazer duas outras, que me parecem bem mais importantes.

Considerar a grandeza divina

O modo pelo qual este Santo foi chamado a contemplar a Deus Nosso Senhor fala muito à minha alma. Considerar a grandeza divina: Deus infinitamente grandioso, majestoso, sábio, transcendente a tudo, excelente, magnífico, sublime, radioso, absoluto em toda a sua essência, misterioso, insondável!

Quando percorremos com o olhar todas as coisas e as analisamos, acabamos descobrindo tal insuficiência, tal debilidade, que chegamos à seguinte conclusão: ou valem porque são um reflexo de Deus, ou não são absolutamente nada.

Chegou a me passar pela mente o que eu faria de minha vida se não cresse em Deus. Sentiria, ao cabo de algum tempo, uma insipidez, uma sensação de vazio… Por exemplo, diante de um belo objeto: Aqui está esta peça de ouro, está bem, mas o que importa? Custa muito? Sim, porém o que me interessa? Satisfaz as minhas necessidades? Suponhamos que sim. E do que me adianta satisfazer minhas necessidades? Prolongar esta vida para quê? Tudo isto não é nada!

Mas se eu tomo em consideração que isso tudo não é senão um véu por detrás do qual está o Ser absoluto, perfeito, eterno, sapientíssimo, sublime, transcendente, então encontro algo que é inteiramente superior a todos os homens, a mim, aos que me rodeiam, e no qual as minhas vistas exaustas e maravilhadas podem repousar. Afinal encontrei algo inteiramente digno de ser visto, amado, e de que a Ele eu me dedique completamente. E isto por causa da grandeza d’Ele. Porque Ele não é uma simples criatura concebida no pecado como eu, mas é o próprio Criador perfeitíssimo!

Agora a vida tomou sentido, a existência é alguma coisa! A grandeza de Deus me ergueu do pó e me deu o desejo das coisas infinitas.

Jesus Cristo concentra todas as formas e matizes de grandeza

Este homem, este Santo, na consideração da grandeza de Deus, subiu alto, e até o fim da vida dele se arrependia dos seus pecados, e desejava ir para o Céu a fim de conhecer essa infinita grandeza.

Confesso, francamente, que me é impossível pensar nisto sem sentir uma grande alegria dentro de minha alma. Muitos morrem com medo de pensar na grandeza de Deus. Eu, pelo contrário, tenho a impressão de que, se Nossa Senhora me ajudar — e não duvido que me ajudará —, na hora da minha morte morrerei radioso, com a ideia de que, afinal de contas, vou encontrar a grandeza de Deus, vou me libertar do cárcere de todas as limitações, de todas as mesquinharias, de todas as pequenezes, de todas as contingências, para encontrar a Deus Nosso Senhor infinitamente grande. Senhor meu, Pai meu, Rei meu, tão grande, que nem sequer, apesar da visão beatífica, poderei dispensar um intermediário junto a Ele.

Então eu terei a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado.

Uma forma de grandeza… quando se fala as palavras Jesus Cristo, todas as formas, todos os sons, todos os matizes de grandeza se concentram ali de um modo superlativo. E logo junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, infinitamente abaixo d’Ele e incomensuravelmente acima de mim, Nossa Senhora, Rainha de uma majestade insondável.

Então, o que sou eu? Uma poeira, um grão de areia perdido no meio disto tudo. Pois bem, me enche a alma a ideia de que não sou senão um grão de areia, uma poeira, mas que existe aquilo, que eu vou para aquilo, que eu me reúno àquilo e aquilo me acolhe, me aceita, me envolve, e eu passo ali a eternidade inteira. Confesso que é nesta consideração que a minha alma se dilata.

Não será talvez assim para outras pessoas. Mas há várias moradas no Céu. Que a misericórdia me receba nessa morada, porque para ela eu sinto uma atração superlativa.

A via do silêncio e a da conversa

Parece-me haver outro aspecto que deve ser muito notado aqui, e é o seguinte:
Muitos autores espirituais falam do perigo das conversas e da vantagem que há em não conversar.

Lembro-me de que, quando o nosso Movimento estava no começo, tínhamos muita dificuldade com certos elementos do clero e do laicato católico que diziam: “Vocês conversam muito. Todas as noites reúnem-se para conversar! Não era muito melhor que vocês tomassem um serviço? Por exemplo, confeccionem envelopes para auxiliar alguma obra de caridade em favor dos mendigos, e que precisa mandar propaganda para milhares de pessoas. Cada um faça, por exemplo, cem envelopes por noite; isso é muito mais abençoado do que essas conversas.”

Eu era moço naquele tempo, não conhecia muitos pontos de doutrina e não sabia defender-me inteiramente; então tentava, laboriosamente, explicar que podia haver maior bem numa conversa do que numa obra de caridade material.

“Cuidado — replicavam eles —, as muitas palavras enredam o homem em vaidades e orgulhos tolos. Mais vale calar do que falar, porque o silêncio é ouro e o falar é prata. Muitos são os homens que nesta hora padecem o Inferno porque não retiveram a sua língua. Quantos estarão no Céu felizes a esta hora porque passaram pela Terra quietos!?”

É uma via para muitos, mas para muitos outros não é. Vemos em Santo Afonso Rodrigues um exemplo desta via de conversas abençoadas.

A conversa pode ser um meio de santificação

Há um eremita que me encanta: o Bem-aventurado Charbel Makhlouf(2). É uma maravilha de silêncio, e aquele silêncio me deslumbra! Mas uns devem falar e outros devem calar. Aparece nesta biografia de Santo Afonso a doutrina de que este homem tinha uma graça especial para conversar.

Portanto, a conversa pode ser uma graça e existe um carisma próprio a ela. E as conversas abençoadas são exatamente aquelas nas quais intervém este fator sobrenatural.

Há, entretanto, um carisma negativo, que não vem do Céu, para a “anticonversa”. Está-se numa roda onde se desenvolve uma conversação muito boa; de repente chega alguém, senta-se e não diz nada… A conversa morre. Creio que vários experimentaram isso, pois é de observação comum.

Qual é a razão deste fenômeno? É a ação de presença de uma pessoa que pensa em si.

Quando o indivíduo entra para uma roda onde a conversa vai alta, mas ele está pensando em si, carregando um ressentimento, uma preocupação, uma ambição, uma preguiça, e procura fazer com que a conversa tome a orientação deste seu pensamento em vez de seguir, ao sopro da graça, o tema dominante — ainda que ele seja tartamudo e diga uma palavra em cada dez minutos —, corta a bênção da conversa.

Qual é o carisma da boa conversa? É uma forma comunicativa do amor a Deus, à Santa Igreja, a Nossa Senhora, que extravasa do coração para a boca de quem fala.

Temos na vida de Santo Afonso, portanto, um ponto de nossa doutrina bem firmado: a conversa pode ser uma graça e, quando assim é, decorre em geral de um carisma que Nossa Senhora dá para fazer do convívio das almas um meio para que elas se santifiquem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1967)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.
2) Canonizado em 9 de outubro de 1977.

Os homens, as nações e a Lei de Deus

A humanidade anda sôfrega à procura da paz. Em número cada vez maior pululam em torno de nós movimentos, associações, campanhas que tentam levar as pessoas a se conscientizar da necessidade de um mundo melhor.

 Os meios propostos para se alcançar esse fim são muito variados, mas traduzem, na sua maioria, o mesmo estado de espírito no qual o homem ocupa o centro e Deus nem sequer é mencionado.

Ora, o que são as obras humanas dissociadas de Deus? Nada mais do que vaidade. Tudo se torna carente de significado quando não é feito em função do ideal primeiro traçado para o homem: amar, glorificar e servir a seu Criador.

Eis a meta que deve nortear a humanidade, como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica:

“Deus, infinitamente perfeito e bem-aventurado em Si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada. Por isso, sempre e em toda parte, Ele está próximo do homem. Chama-o e ajuda-o a procurá-Lo, a conhecê-Lo e a amá-Lo com todas as suas forças” (n. 1).

A propósito desta fundamental doutrina, comentava certa vez Dr. Plinio(1):

A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda alma bem formada, de toda sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.

Todo ser possui um fim próprio e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Por exemplo, uma peça de relógio tem uma finalidade específica, e, por sua forma e composição, é adequada à realização dessa finalidade.

A ordem é a disposição das coisas segundo sua natureza. Portanto, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão dispostas segundo a natureza e a finalidade que lhes são próprias. Assim também se diz que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.

A ordem, por sua vez, engendra a tranquilidade, e a tranquilidade da ordem é a paz.

Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, encontra-se em estado de perfeição.

Logo, o acerto, a fecundidade e o esplendor das ações humanas — quer individuais, quer sociais — também estão na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.

Ora, as regras desta perfeição se encontram na Lei de Deus, que Nosso Senhor Jesus Cristo não veio abolir, mas completar(2), nos preceitos e conselhos evangélicos.

A Lei divina, que depois do pecado original tornou-se um jugo muitas vezes difícil de ser carregado pelos homens, é, na verdade, inerente a seu ser e a mais alta expressão da lei natural(3), formando, por conseguinte, a única e verdadeira bússola para o reto desenvolvimento da humanidade e do progresso da sociedade(4).

O Decálogo — continua Dr. Plinio — não poderia ser contrário à natureza que o próprio Deus criou em nós, pois sendo Ele perfeito, não pode haver contradição em suas obras.

Por isso, os Dez Mandamentos nos impõem ações que a nossa própria razão nos mostra serem conformes com a natureza.

Através da prática dos Dez Mandamentos os homens não só reverenciam, amam e glorificam a Deus, mas também alcançam para a nação a verdadeira paz e ordenação(5), como faz notar Santo Agostinho:

“Imaginemos um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo; governadores, esposos, pais, filhos, mestres, servos, reis, juízes, contribuintes, cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem [os pagãos] ainda dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado, quando fielmente observada.”(6)

Em outros termos — comenta Dr. Plinio —, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição.

Foi esta luminosa realidade, feita de uma ordem e uma perfeição antes sobrenatural e celeste, do que natural e terrestre, que se chamou a Civilização Cristã, produto da cultura cristã, a qual por sua vez é filha da Igreja Católica.

Neste sentido, a cultura católica é o cultivo da inteligência, da vontade e da sensibilidade segundo as normas da Moral ensinada pela Igreja. Já vimos que ela se identifica com a própria perfeição da alma. Se ela existir na generalidade dos membros de uma sociedade humana — embora em graus e modos acomodados à condição social e à idade de cada qual —, ela será um fato social e coletivo, e constituirá o mais importante elemento da própria perfeição social.

De onde decorre com evidência cristalina que não há verdadeira civilização senão como decorrência e fruto da verdadeira Religião.

 

1) Excertos adaptados do artigo “A Cruzada do século XX” publicado em Catolicismo n. 1, janeiro de 1951.

2) Cf. Mt 5, 17.

3) Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2070.

4) Ver nesta edição “A Lei de Deus e a boa ordenação da sociedade – I”, p. 12-17.

5) Ver nesta edição “O tecido social perfeito”, p. 18-23.

6) Epist. CXXXVIII al. 5 ad Marcellinum, cap. II, n. 15, in PL 33, 532.