Inigualável papel da cruz na vida humana

Festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada pela Igreja no dia 14 de setembro, sempre despertou em Dr. Plinio profundos sentimentos de adoração ao Santíssimo Redentor que, ao se deixar imolar no alto do madeiro, resgatou o gênero humano e nos legou para sempre seu consolador exemplo de perfeita aceitação do sofrimento.

 

Certa feita, assim se expandiu Dr. Plinio, ao considerar a sublime importância do holocausto de Nosso Senhor no alto da Cruz: “O Evangelho nos faz ver com a maior evidência quanto a misericórdia de nosso Divino Salvador se compadece de nossas dores da alma e do corpo. Basta atentar para os milagres assombrosos de sua onipotência, praticados tantas vezes para as mitigar.

Entretanto, não imaginemos que esse combate à dor tenha sido o maior benefício por Ele feito aos homens, nesta vida terrena. Não compreenderia a missão de Cristo ante os homens quem fechasse os olhos para o fato central de que Ele é nosso Redentor, e de que quis padecer dores crudelíssimas para nos remir. Até na culminância de sua Paixão, Nosso Senhor poderia ter feito cessar instantaneamente todas essas dores, por um mero ato de sua vontade divina. Desde o primeiro instante de sua Paixão até o último, Ele poderia ter ordenado que suas chagas se fechassem, seu sangue precioso deixasse de correr, os golpes por Ele recebidos deixassem de manter cicatrizes no seu corpo divino e, por fim, uma vitória brilhante e jubilosa cortasse o passo, bruscamente, à perseguição que O ia arrastando até a morte.

Porém, Ele não o quis. Pelo contrário, Ele quis deixar-se arrastar pela via dolorosa até o alto do Gólgota, quis ver sua Mãe Santíssima entregue ao auge da dor e, por fim, quis bradar, de maneira a que O ouvissem até o fim dos séculos, as palavras lancinantes: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46). Nesses fatos compreendemos que, dando-nos a graça de sermos chamados com Ele para padecermos cada qual um quinhão da sua Paixão, Ele tornava claro o papel inigualável da cruz na vida dos homens, na História do mundo e na sua glorificação. Não pensemos que, convidando-nos a padecer as dores da vida presente, Ele tenha querido dispensar-nos de pronunciar, cada qual, no transe da morte, o seu ‘consummatum est’ (cfr. Jo 19,30).

Sem a compreensão da cruz, sem o amor à cruz, sem ter passado cada qual por sua “via crucis”, não teremos cumprido a nosso respeito os desígnios da Providência. (…) Com tal amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo tudo conseguiremos, ainda que nos pese o fardo sagrado da pureza e de outras virtudes, os ataques e os escárnios incessantes dos inimigos da Fé, as traições dos falsos amigos.

O grande alicerce, o máximo alicerce da Civilização Cristã está em que todos os homens exercitem generosamente o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que a tanto nos ajude Maria, e teremos reconquistado para o Divino Filho d’Ela o Reino de Deus, hoje tão bruxuleante no coração dos homens.”

  • * *

Há 10 anos, precisamente no dia 1º de setembro de 1995, Dr. Plinio era internado no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. Ao longo daquele mês, esse insigne varão católico provaria o seu edificante amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, encetando com resignação — e inteira confiança na misericórdia da Santíssima Virgem — os derradeiros passos de sua própria “via crucis”.

Façamos nossa, a prece que Dr. Plinio costumava recitar diante de um Crucifixo:

“Nós vos adoramos, ó Cristo, e vos bendizemos, porque por vossa santa Cruz redimistes o mundo. Mãe Dolorosa, rogai por nós. Vós, que tivestes pena de vosso Filho no alto da Cruz, tende compaixão de cada um de nós, nos fundos vales de nossa existência cotidiana. Amém.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A beleza da luta – I

Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, precisam compreender a beleza da luta.

 

Devemos fazer algumas considerações à vista de ilustrações representando cenas de batalhas medievais, desenhadas pelo famoso desenhista francês do século XIX, Gustavo Doré.

Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente o assunto.

A paz é a tranquilidade da ordem

Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.

São desenhos da escola romântica, com os defeitos desta escola, mas também com algumas qualidades que existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais para o sentimento. Doré procura impressionar a fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa levar apenas pela impressão.

De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar, elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É o que acontece com as batalhas medievais.

Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando aquilo em que o homem da Idade Média era muito sensível, que era o “pulchrum” do combate. Como o combate é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos estados de alma do católico, em que a virtude católica se faz sentir de um modo excelente.

Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea, essencialmente pacifista, mas pacifista de um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um conceito errado de paz.

Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem, reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia é a paz.

Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz, mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo, numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá: “Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela desordem não proporciona a verdadeira paz.

A tranquilidade da desordem é o contrário da verdadeira paz

Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é, a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem. Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade da desordem é nojenta, porque é o contrário da paz verdadeira e incute desprezo.

Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975. Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas. Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes das portas do estabelecimento, para atrair mais os clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.

Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11 horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns caminhões com o que havia de mais jovem no exército comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando ordens superiores.

Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada: “Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida vai continuar na mesma.”

Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina gritou para o “barman”: “Traga-me uma “champagne!” O “garçon” trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a quem bebia a “champagne”:

— Mas o senhor está festejando o quê?

Ele respondeu:

— Eu estou festejando minha última “champagne”. Os comunistas vão entrar, não vou ter mais “champagne”. Não sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber minha última “champagne” na paz!

Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.

Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem que amamos, porque amamos o Altíssimo.

Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos, mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca, chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação de uma desordem: marido e mulher estão brigados, quando deveriam estar unidos.

O verdadeiro heroísmo é um dos garbos da Idade Média

Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes luta-se de modo terrível para conseguir a paz!

Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa, que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!

Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora um esteja errado e outro não.

Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro depende da interpretação de tratados que, por vezes, são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro não está de acordo. Então se combatem.

Há um modo nobre de combater de ambos os lados que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles que lutam. Aquele que combate admite que o outro esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está de boa-fé.

Portanto, não é como quem avança em cima de um bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro, ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas não tem remédio: vão para a guerra!

E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo, é a varonilidade de um que se choca com a do outro.

Mas como do choque de duas pedras muito duras parte uma centelha, assim, do choque de dois homens muito duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a manifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado, nobre é um dos garbos da Idade Média.

Gustavo Doré soube representar a beleza do heroísmo

Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.

É muito importante que os contrarrevolucionários, os que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, compreendam seriamente a beleza da luta.

Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos de Gustavo Doré.

Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha. Na primeira fileira se discernem mais facilmente os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes, espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos que mostrassem por que eles lutavam.

Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele combatente; e que esse exército deu um primeiro choque, reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e está avançando sobre cadáveres.

O campo de batalha é representando num dia bonito e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim, uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem. Daí não resulta choradeira, e sim a glória.

A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro é o da “bataille rangée”, e depois, da “bataille mellée”. A “bataille rangée” era em filas. Antes de começar a luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes, um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito. Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor, o ataque de cavalaria de lado a lado.

Episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados

Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo movimento. Ali está um homem que quis atentar contra o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro, com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.

Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto principal do quadro. O aspecto principal da cena é a admiração, portanto a coragem, a glória.

Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para outro e, em certo momento, encostavam na muralha e saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada na mão, está lutando e descendo magnificamente.

No lance aqui representado, os maometanos que dominavam Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados. Mas houve um determinado momento onde, por disposição da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente, os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram. Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em primeiro lugar.

Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros. Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para lá, e eles ficam sentados, numa tenda.

Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos. E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita de ouro.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1988)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)

Misericórdia que chega aos extremos de nossa fraqueza

A sensualidade é, com o orgulho, uma das molas propulsoras da Revolução. Em sentido oposto, Nossa Senhora, Rainha e arquétipo dos contrarrevolucionários, praticou as virtudes da humildade e da castidade em grau inimaginável.

O que dizer da pureza d’Aquela que foi imaculada desde o primeiro instante de seu ser? D’Ela brota para toda a humanidade, como de uma fonte inexaurível, a virtude da castidade. E porque incomparavelmente pura, Maria é, mais do que ninguém, a protetora dos fracos, o socorro dos que se debatem nas tentações da carne.

Engano seria pensar que, por ser castíssima, Nossa Senhora tem invencível horror aos impuros. Ela possui, sem dúvida, aversão ao pecado de impureza, mas Se compadece daquele que o comete, e deseja a emenda e a salvação desse infeliz.

A Santíssima Virgem está pronta a Se inclinar sobre o mais miserável dos homens e lhe dizer: “Meu filho, em que pântano caíste?! Entretanto, continuo sendo tua Mãe, e por isso Me curvo até ti, por mais baixo que tenhas caído. Até aos extremos de tua fraqueza chega minha misericórdia, disposta a te salvar”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/5/1972, 25/9/1990 e 12/7/1991)
Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

Um grande ato de Fé

Ao comentar a cerimônia de coroação do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, realizada na Basílica de São Pedro e narrada em tom declamatório, Dr. Plinio faz reviver um passado tão amado por ele.

 

Diz-se que o tempo irreparável foge, e é verdade. Mas nas páginas da História, debaixo de certo ponto de vista, ele para.

O passado não morre

Embora, na aparência, o passado seja objeto dos esquecimentos mais monumentais, ainda que ele possa parecer morto, enterrado e sepultado completamente pela avalanche dos fatos novos que vêm, há em certos aspectos do passado qualquer coisa que lhe assegura a perenidade e faz com que, por exemplo, no tempo em que a cerimônia aqui descrita se realizava, neste lugar onde nos encontramos — talvez sede de uma taba de índios ou um matagal, não se sabe que espécies de onças, tatus, insetos, serpentes rondavam e rastejavam por aqui —, ninguém haveria de imaginar que, passados tantos episódios, ocorridas tantas revoluções, de tal maneira convulsionado o curso da História, no ano de 1984 a cerimônia renasceria lindamente declamada para uma juventude que ouve entusiasmada!

Passou o tempo para esta cerimônia? Sim e não. Ela não se realiza mais, está nos arquivos e, de algum modo, misturada com a poeira do passado. Sobre ela poder-se-ia dizer, meneando a cabeça: “fugit irreparabile tempus…” Mas, de outro lado, “non fugit”! Ficou uma nostalgia, uma saudade, a afirmação de algo de perene que existe nesta cerimônia.

Assim, quando ouvi, narrado há pouco, o cerimonial da coroação do Imperador do Sacro Império, e evocadas, com uma saudade cheia de apetência, as cerimônias das repúblicas aristocráticas ou burguesas e corporativas da Idade Média, pensei: “O passado não dorme, não morre! Ele é como um rio que, às vezes, afunda na terra, como se desaparecesse, mas renasce mais adiante!”

Todas essas recordações reaparecem, não é possível estancá-las, pela graça de Deus. Uma das riquezas do passado está nisto: a declamação. Paulo VI disse que estávamos na civilização da imagem, e para tal civilização esta declamação poderia parecer uma coisa envelhecida, pois todo mundo quer ver, ninguém deseja ouvir.

Entretanto, é feita aqui a declamação segundo os cânones antigos, para descrever uma cerimônia antiga, e todos prestam mais atenção do que se presenciassem um espetáculo de televisão. Quem ousa dizer que todo o passado morre, que para tudo foge o tempo, e que não há valores perenes na História dos homens? Ó ilusão! “Non fugit irreparabile tempus!”

Feitas essas considerações, passo ao comentário que me pediram.

Vivacidade do povo italiano

Roma, a cidade dos Papas, gozava de certa autonomia municipal em relação ao Sumo Pontífice. Por isso, sob certo ponto de vista, poderia ser comparada a uma república municipal. Iam, portanto, de encontro ao Imperador do Sacro Império os dignatários do que poderíamos chamar, para simplificar, de república municipal romana.

Consideremos os pormenores do cerimonial.

“Em breve, o longo e lento cortejo cruzará as muralhas da cidade de Roma. Cerca de duas ou três horas antes do momento marcado para o encontro com o Imperador, já o cortejo está organizado dentro da cidade.”

A Itália sempre vivaz, alegre e cheia de meninos dispostos a exclamar, a bater palmas, a vaiar, enfim, a se manifestar. No meu modo de sentir, as velhas loquazes e os meninos manifestativos marcam especialmente a vivacidade italiana.

E enquanto tudo se organiza dentro da seriedade, com as pessoas vestidas em trajes próprios às suas funções, perfilando-se e alinhando-se, podemos imaginar no meio disso o pitoresco da vivacidade romana:

Uma menina que grita para o pai:

— Não deixe de pedir ao Papa tal coisa!

Ele, solene, faz um sinal para não perturbar a cerimônia…

Ela, correndo, leva uma florinha a um senhor e diz:

— Leve para o Imperador de minha parte.

O homem sorri, e guarda a flor no bolso.

Mais adiante, um indivíduo cobra uma dívida de outro que está montado a cavalo. Pouco mais à frente, antes de iniciar-se o cortejo, está um, por via das dúvidas, acabando de comer um pedaço de pão com queijo.

Afinal, os sinos começam a tocar e o cortejo lentamente se põe em marcha através da cidade. As velhas portas se abrem — sérias, solenes, veneráveis — e o cortejo penetra no campo.

Juramentos prestados pelo Imperador

“Do Monte Mário partiu o Imperador, acompanhado dos seus guerreiros germanos, bem como seus prelados, abades e bispos. Os dois cortejos se encontram a certa altura do trajeto. Do lado da municipalidade de Roma, todos apeiam. O próprio Imperador desce do cavalo para saudar o povo romano que veio a seu encontro.”

São gentilezas: o Imperador não apeia do cavalo para saudar algumas pessoas, mas para saudar o povo romano que vai hospedá-lo!

Os representantes da cidade de Roma tiram seus grandes chapéus de veludo, bordados a ouro, com pedras preciosas e fazem uma profunda reverência. O Imperador os recebe com uma bondade monumental!

Na continuação da cerimônia, o Imperador deverá entrar com suas tropas na cidade de Roma. Ora, nem sempre a recordação das tropas imperiais é muito pacífica… A nação alemã é valente, intrépida e muito empreendedora. Tropas armadas, numa cidade desarmada, podem levantar interrogações…

“A municipalidade, na pessoa de seus representantes, avança com uma linda almofada sobre a qual está um belo ritual, contendo um juramento que o Imperador deve prestar antes de transpor os umbrais das portas de Roma.”

É o juramento de respeitar as liberdades da cidade de Roma, ou seja, não empregar a força e permitir que Roma continue a se reger de acordo com os seus privilégios.

O Imperador sabe que isso é uma formalidade, pois ele entra em Roma sem qualquer intenção de atacá-la. Durante séculos seus antecessores foram obrigados a prestar este juramento, no tempo em que ele era indispensável. Criou-se, assim, um hábito, e pela força do costume, com o passar do tempo, os imperadores já não podiam sequer pensar em violar esses privilégios. A tradição amarrava o braço forte do maior monarca da Terra!

Vamos supor que ele não jurasse. O cortejo voltaria e as portas de Roma se fechariam. E era preciso começar a guerra. Mas, se houvesse guerra, não haveria coroação. E, se não houvesse coroação, os seus vassalos não lhe prestariam obediência. Ele tinha, portanto, interesse fundamental em prestar o juramento.

O Imperador transpunha aquelas portas e provavelmente a cidade inteira o recebia cantando “viva o Imperador!” etc., até chegarem à ponte do Castelo de Sant’Angelo, antigo sepulcro do Imperador Adriano. Atrás daquela fortaleza, o Papa recebia o Imperador que, de joelhos, prestava outro juramento de fidelidade.

O Imperador é elevado à condição de subdiácono

Depois, o cortejo seguia para a Basílica de São Pedro e começava a cerimônia, que tinha por eixo o Santo Sacrifício da Missa. Nada é mais razoável, nada está mais de acordo com a Doutrina Católica do que isto. Por ocasião da posse, da investidura do Imperador, como em todas as grandes ocasiões da vida, uma Missa.

Daí o costume de, por exemplo, celebrar-se o Matrimônio durante uma Missa; Missa para Bodas de Prata, Bodas de Ouro, para solenidades, como uma formatura, e outras semelhantes. Algo desta tradição permanece até hoje: alguma coisa é grande, liga-se à Missa. Porque a Missa, sendo a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, tem papel central, é o ato mais importante em todo o culto católico.

Então, a Missa é celebrada, mas não sem algumas cerimônias iniciais. Em certo momento dá-se um fato muito importante: O Imperador é elevado à condição de clérigo.

Quer dizer, tinha-se em tão alta consideração o clero que, para honrar o Imperador e lhe assegurar a invulnerabilidade, ele — o maior hierarca da sociedade temporal — era honrado ao receber um lugarzinho nos degraus da hierarquia eclesiástica, ocupando o posto de subdiácono. É uma pequena participação, mas honra o Imperador. Vestido de clérigo, ele entra na Basílica para, então, ser coroado Imperador. Vemos como o clero é colocado num píncaro que indica bem o caráter sacral dessa civilização.

Solenidade e grandeza

Um indivíduo “modernizado” poderia objetar: “Por que isso não se fez depressa? Por que não se ganhou tempo? Não se poderia fazer com que ele, ao mesmo tempo em que recebesse a condição de clérigo, fosse coroado ato contínuo? Dispensasse os cânticos, a entrada lenta em cortejo, a capela onde ele punha aquela roupa pomposíssima?”

A resposta é muito simples. Essas diversas fases da cerimônia devem se realizar em atos separados, lentamente e com solenidade.

A solenidade é um modo de fazer as coisas, por onde a grandeza delas aparece por inteiro. Por exemplo, uma Missa solene é um modo de cantar ou de rezá-la pelo qual a grandeza intrínseca dela transparece de modo sensível. A posse solene de um chefe de Estado, a coroação de um rei ou de um imperador é solene porque faz aparecer, aos olhos do povo, a grandeza da condição que aquele homem vai assumir naquele momento.

Poderia nascer outra pergunta: Para que revelar a grandeza intrínseca das coisas?

A resposta, ainda mais uma vez, é muito simples. Deus quis que sua glória fosse revelada aos homens de inúmeros modos sensíveis. “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”, diz a Escritura(1). Portanto, o Criador quer que suas criaturas conheçam a grandeza d’Ele; e para que esta grandeza seja conhecida, é preciso que ela se manifeste.

A solenidade, por sua vez, tem que ser séria, compenetrada, vivida por almas ávidas de grandeza e contentes por ver a grandeza reluzir em quem é mais do que elas e vê-la reluzir, participativamente, nos menores.

Não há o que não tenha grandeza, em grau maior ou menor. Um lixeiro, um sapateiro: suas tarefas têm grandeza. E é preciso que essa grandeza reluza aos olhos dos homens. Então, daí a solenidade.

Por que a lentidão? Porque nada que se faça com grandeza pode ser executado depressa. A pressa é inimiga da grandeza.

Assim, é preciso que os vários atos de que consta a coroação sejam separados uns dos outros, e que se sinta, se manifeste a grandeza própria do fato de o Imperador tornar-se clérigo. O império cresce e a Igreja manifesta o seu esplendor. Por isso é mister haver uma cerimônia específica para esse ato.

União entre a Fé e o poder

É necessária outra cerimônia para o momento em que o Imperador se reveste das suas insígnias, quando se manifesta a beleza da ordem temporal e não mais a da ordem espiritual. Pulcritude menor em relação à beleza espiritual, mas uma grande beleza, pois Deus é Autor também da ordem temporal.

Depois, o hierarca temporal, em solene cortejo dentro da Basílica, vai até o trono do Papa. A grandeza das grandezas está lá: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”(2). Magnífico!

Assim, o povo vai olhando e compreendendo cerimônia por cerimônia. O canto, o órgão espalham suas harmonias pela Basílica, as velas brilham, o incenso se faz sentir, os sinos tocam; é um mundo de harmonias dentro do qual o povo contempla a grandeza do Papado, a grandeza da Igreja, a grandeza do Império.

O Imperador avança e chega junto ao trono do Papa. Primeira coisa: ajoelha-se. Aquele César, cercado de tropas, se curva reverente!

O Papa lhe dá um anel, símbolo da Fé e do poder. Que linda conjugação: a Fé e o poder! Como fica bonito o poder a serviço da Fé! Como fica faltando alguma coisa a todo o bem-estar da Fé, quando o poder não está a serviço dela! Que coisa bruta e ameaçadora o poder nas mãos do homem que não tem Fé! A Fé e o poder se unem; começa a Missa…

O Rei da França canta a Epístola, o Rei da Alemanha canta o Evangelho. França e Alemanha junto ao altar de São Pedro, unidas pela participação comum dos respectivos chefes de Estado numa cerimônia incomparável!

Esta cerimônia, ápice de todas as cerimônias, é a Santa Missa. Se esse símbolo tivesse sido tomado a sério, e se os dois monarcas depois se amassem como deveriam se amar; se ao longo da História a França tivesse sabido ser sempre a irmã da Alemanha, e a Alemanha a irmã da França, como o curso da História teria sido diferente! E como a civilização humana estaria mais alta!

Magnífica afirmação da solidariedade, da complementaridade destas duas nações, que em determinado momento histórico representavam o verso e o reverso da medalha, o lado direito e o lado esquerdo da fisionomia humana.

Eloquente sinal de unidade

Mas algo de muito mais augusto estava para se passar ainda nessa cerimônia. Era a união entre a Igreja e o Estado, que é simbolizada deste modo estupendo: o Santo Padre fragmenta a Hóstia em duas partes iguais. Comunga uma, e dá a outra ao Imperador para comungar. Eu não conheço um sinal mais tocante de unidade do que este.

A cerimônia chegou ao auge; e tudo quanto chega ao auge, termina. É a tristeza das coisas desta vida. Os sinos da Cidade Eterna começam a tocar, o Papa retira-se antes, carregado na sua Sede Gestatória porque ele vale mais do que o Imperador, acompanhado pelo amor de todos os que ali se encontram, deixando no meio do povo os maiores potentados da Terra: o Rei da França e o Imperador do Sacro Império; fecha-se com Deus em seus aposentos e se entrega a seus trabalhos e a suas cogitações, para governar a Santa Igreja.

Os séquitos dos dois monarcas, por sua vez, saem da Basílica, separam-se e se dirigem pomposamente para as residências deles na cidade de Roma. Aos poucos o povo escoa. Na Basílica fica apenas uma ou outra luz acesa, uma ou outra pessoa rezando — alguma mãe de família, algum oficial, algum clérigo, alguma freira —, com a alma cheia daquilo que viu.

Aos poucos esses também saem, e se fecham as portas da Basílica. É noite sobre a cidade de Roma… Nos conventos de oração perpétua ainda se reza; nos outros, todos dormem. Sobre a urbe vela apenas o Anjo de Roma.

Mas nas almas de todos reluzem mil policromias, cantam mil polifonias, mil harmonias, sobretudo canta um grande ato de Fé! Está coroado o Imperador do Sacro Império Romano Alemão! v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/11/1984)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)

 

1) Sl 19, 1.

2) Mt 16, 18.

Senhorio, patriarcado e profetismo

Muitos afirmam que o quarto Mandamento se aplica tão somente aos filhos em relação aos pais. Entretanto, ele se refere também a toda autoridade legítima, a qual deve ter algo de paterno e precisa ser honrada; a tintura-mãe de todas as autoridades é o patriarcado.

 

Pediram-me que falasse sobre o senhorio do ponto de vista sobrenatural, e depois profético.

A ser dada uma definição filosófica do senhorio, provavelmente se diria o seguinte:

Senhorio e tendência para o mais elevado

Todo ser, para sustentar-se na própria existência, tende à consideração de um outro ser mais elevado, que é mais plenamente ele, e representa aquilo que ele deveria ser.

E na constatação de que encontrou um mais pleno, o indivíduo que está abaixo recebe uma espécie de corroboração de todo o seu ser e, melhor dizendo, de todas as suas profundidades. Ele, por assim dizer, floresce e frutifica com mais riqueza, mais abundância, etc., por causa desse contato. E, com isso, é levado naturalmente ao respeito e à obediência. Porque o menos que encontra a plenitude é levado ao respeito desta. Respeito se define como sendo a atitude, a disposição de alma daquele que é menos em relação àquele que é mais.

E aquilo que quem é mais possui não ficou amaldiçoadamente ingurgitado dentro de si, mas ele soube dar de acordo com a ordem que é interna nele, como ele de outrem recebeu. Aquilo que recebeu, ele entende que deve dar, que, na ordem do ser, ele deve fazer isto.

De maneira que, falando de um modo inteiramente teórico, isso chega até ao trabalho manual, onde o homem, que é senhor da natureza, acaba fazendo a esta o bem que recebeu de um que, na ordem das relações humanas, é superior a ele. E, no tapete da natureza, podemos deixar essas relações paradas; de fato, elas não morrem, mas, para nossa análise no momento, como que morrem.

O patriarca e a primogenitura

Consideremos o patriarca, que deve ser em tese o ponto de partida genealógico da tribo. Aí ele é patriarca no sentido pleno da palavra. E num sentido menos pleno, mas real, digno, autêntico, quando ele é primogênito de uma série de primogênitos.

Qual é a razão pela qual o patriarca deve ser a plenitude dos que dele descendem? Pelo fato de ele ser a origem genealógica. Além de outras superioridades, ele deu a transmissão da vida, a qual é uma ação que tem semelhança com a criação e, portanto, enquanto tal, é análoga, semelhante a Deus de um modo esplêndido.

Naturalmente, o patriarca tem por isso uma plenitude a um título especial. Mas, acho que há um carisma ou uma graça especial no patriarca, por onde ele fica com uma plenitude maior do que todos os outros, pelo fato de ser fundador daquela família. Há algo que parte dele e se distribui aos outros pelos desígnios da Providência, e que não é apenas na hereditariedade física, mas também nas relações das almas, por onde ele é a pessoa por excelência da raça que ele fundou. E na qual os outros se miram como na sua plenitude, ainda na ordem natural, mas de um matiz vivo muito especial.

Sente-se bem isso considerando a questão dos primogênitos.

O primogênito é o elemento mais nobre da família porque, com a primogenitura, entra uma participação mais nobre no patriarca, e há uma espécie de herança patriarcal que, de fato, é uma fonte de plenitude e de nobreza maiores por essa razão.

No episódio narrado no “Êxodo”, aquilo que o Egito tinha de mais nobre, inclusive os primogênitos dos escravos, foi dizimado. E para mostrar como existe algo de físico nisso, até os primogênitos dos animais foram exterminados. Quer dizer, há uma certa excelência na primogenitura até enquanto animal, que coexiste no homem com outras excelências. Isso torna o patriarca especialmente sagrado, do sagrado natural.

Toda autoridade deve ter algo de paterno

A autoridade do patriarca não encontra na autoridade do rei senão a plena expressão de si própria, como o Estado e a sociedade humana são expressões inteiras da tribo primitiva. Mas, todas as autoridades têm alguma coisa de paterno. A autoridade que não tenha algo de paterno não é verdadeira autoridade.

Neste sentido é que honrar pai e mãe significa honrar toda autoridade. Segundo o que corre por aí, honrar pai e mãe só se aplica aos pais, de maneira que quem tratar, por exemplo, o prefeito, o delegado ou o diretor do colégio como se trata um colega, não pecou contra o quarto Mandamento. Essa é a interpretação miserável, a versão simplista que se propaga.

Mas de tal maneira o princípio “princeps” está no patriarcado, que a tintura-mãe de todas as autoridades está no patriarcado. E toda autoridade é, por si, paterna.

O sobrenatural é um reflexo do esplendor de Deus

Podemos agora passar para o plano sobrenatural.

O sobrenatural é uma participação na vida divina, que nos foi obtida mediante a Redenção feita por Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta participação eleva o homem a um grau de vida que ele não tem, mais ou menos como se um animal tivesse participação na inteligência do homem.

Não é um grau de vida a mais, como a participação da condição angélica, mas é participação na vida de Deus, que tem uma perfeição maior do que qualquer outra; é a suma perfeição. Nosso Senhor disse: “Eu vim para que tenham a vida, e para que a tenham abundantemente”(1). Então, o sobrenatural confere ao homem um esplendor de vida, uma irradiação, uma força que o comum não tem, e que é um reflexo do esplendor de Deus.

Originariamente falando, o patriarcado teria dois sentidos: o patriarcado de Pedro, o qual, por razões óbvias, tem o poder das chaves e está na regulação de toda economia que diz respeito à salvação dos homens, através da Igreja. Depois o do bispo, do vigário, da Hierarquia Eclesiástica.

Assim como a ordem sobrenatural é lesada por qualquer violação da ordem natural, ela é propícia a toda observância da lei natural. E as obrigações naturais entre o patriarca católico e o membro de sua grei, também católico, passam, portanto, a ter um caráter sobrenatural porque são operações que a graça favorece; a má ordenação dessas operações pode determinar a cessação do estado de graça, e sua boa ordenação pode ocasionar o incremento da graça. E, portanto, isso se envolve completamente com a graça e tem algo de participativo na graça, como toda ação moral do homem é um elemento de sua moralidade. E isso transparece nas relações.

O patriarca católico de uma tribo católica

Então, tomando, por exemplo, um patriarca antigo que, em virtude dos meros princípios da revelação primitiva e da lei natural, é um patriarca, ele pode ser muito venerável, mas não é um patriarca naquela plenitude em que o é um patriarca católico de uma tribo católica. É completamente diferente.

Esse poder patriarcal como que deixa transluzir, aparecer, a graça em tudo, mais ou menos como muitas vezes se nota numa igreja a presença do Santíssimo. Assim também é essa graça nas relações patriarcais.

Depois, por transposição, tudo isso se diz de todas as outras autoridades. Daí a unção do rei — a qual é um sacramental ­­— ou de quem governa o Estado em outras formas de governo; este último não é ungido, mas poderia ser se ele fosse pelo menos vitalício. Aliás, certos sacramentais não são vitalícios. Daí o caráter patriarcal e nobre de todas as relações superior-súdito dentro da Cristandade.

O Fundador de uma família de almas

O que é Cristandade?

É uma sociedade na qual as relações sociais têm essa infusão do sobrenatural e reluzem com esse esplendor sobrenatural a um título especial. Aqui entra a questão da chave de prata, e tudo que consta do livro sobre a Cristandade(2). E a um outro título é patriarca quem funda uma família de almas. É até mais nobre do que ser patriarca, no sentido genealógico da palavra.

Eu acabo de fazer os maiores elogios do patriarcado, no sentido genealógico. Mas ser ocasião para que se forme uma família de almas e atrair essas almas para esta família, é muito superior. Basta ver as cartas dos jesuítas do tempo de Santo Inácio — São Francisco Xavier, por exemplo —, a seu Fundador, para se compreender bem o que representava e o que representa o patriarca de uma família espiritual.

A respeitabilidade suma de São Bento…

Qual é o papel do senhorio dentro disso? É o mesmo sobre o qual falei no começo; a irradiação dessa plenitude, desse vínculo patriarcal, leva ao respeito e à obediência. É por excelência o senhorio.

Profetismo

Profeta não é apenas, nem principalmente, aquele que prevê o futuro, mas quem abre uma via pela qual os povos devem seguir, porque ele recebe de Deus uma missão para isso. Neste sentido, ele prevê o futuro, quer dizer, intui, discerne, ainda que passo a passo, o que tem que ser feito no momento em que cada parcela do futuro vai se tornando presente; ele sabe qual é o passo que deve ser dado.

Profetismo, no que diz respeito à salvação, é um carisma sobrenatural. É, digamos, a plenitude do patriarcado espiritual quando o patriarca é profeta também. Porque nesse caso ele abre as vias, na ordem espiritual, muito mais do que o simples patriarca. E o profetismo tem, evidentemente, a tal título, um senhorio ainda maior do que a paternidade espiritual, quando ela não é acompanhada do profetismo.

No profeta, ainda que seja um homem não bom, mas se tem o carisma profético, nele, enquanto profeta, reluz algo especial de Deus. Portanto, daquela plenitude venerável, que é senhorial e ocasiona o senhorio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/2/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)

 

 

1) Jo 10, 10.

2) Cristandade, a chave de prata. Obra cuja redação foi iniciada por Dr. Plinio em 1950. Ver Revista “Dr. Plinio” n. 18, p. 18-21; n. 32, p. 5; n. 45, p. 23-26; n. 46, p. 19-24.

Oração para pedir o sofrimento restaurador

Ó Mãe do Bom Conselho, tende compaixão de mim nos desacertos e nas perplexidades em que minha alma culpada se encontra. No meio de todas as minhas misérias, vossa graça me dá a convicção de que é melhor qualquer sofrimento a continuar como estou. E se, portanto, a condição para deixar este infeliz estado é me fazerdes sofrer, com os joelhos dobrados em terra e com as mãos postas, de toda a alma, ó minha Mãe, peço-Vos que me deis o sofrimento que seja necessário para eu ser inteiramente vosso e, ao mesmo tempo, a força para suportá-lo.

Nesse sentido suplico-Vos que, se for possível, eu me una inteiramente a Vós sem ser necessário esse sofrimento, e que afasteis de mim esse cálice. Mas se não for possível, a exemplo de vosso Divino Filho, digo: Faça-se em mim a vossa vontade e não a minha. A “vossa vontade”, Mãe de misericórdia, pois Vós sois o canal necessário, por desígnio de Deus, para subirmos a Ele e para que as graças venham até nós.

Mãe do Bom Conselho, mais uma vez eu Vos peço: tende piedade de mim!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Si fieri potest…

Nossa Senhora das Dores, Vós sofrestes por mim. Que o mérito de vossas lágrimas afaste tanta dor que ameaça cair, a justo e a lindo título, sobre mim, porque não me sinto capaz de carregá-la. Sei que em algo a afastareis, mas compreendo que vossa oração pode encontrar a barreira que vosso Divino Filho encontrou, quando Ele disse: “Si fieri potest…” Então, se em algo não puder ser, dai-me forças! Tanto quanto possível, me refugio da merecida cólera de Deus junto aos vossos braços de Mãe. Contudo, se esses braços tiverem que me entregar, e eu sofrer esse holocausto por outros ou por mim, adoro essa cólera! Dai-me forças, e a suportarei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/9/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)

A Cruz, glorioso símbolo da vitória

As  festas litúrgicas, sabiamente instituídas pela Santa Igreja, nunca carecem de profundo significado e inestimável riqueza. Dessa forma, a doutrina católica explica que mais valem as cerimônias do que até mesmo os documentos pontifícios, alegando serem elas mais marcantes e benéficas às almas que nelas tomam parte.

Entre tais cerimônias, distingue-se a da Exaltação da Santa Cruz. A cruz, na qual morriam os condenados por graves delitos, era por esse motivo símbolo de ignomínia e repulsa por parte dos antigos, como bem expressou São Paulo em sua carta aos Coríntios: “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cf. Cor. 1,23). Foi esse o instrumento pelo qual o Redentor abriu ao gênero humano as portas do Céu, transformando-a em sinal de nossa Fé.

Vejamos o significado e a riqueza dessa festa, como explica Dr. Plinio a seguir:

“Hoje, 14 de setembro, comemora-se uma das mais bonitas festas como título e significado: a Exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Exaltar quer dizer tornar alto. E neste dia a Igreja proclama e lembra ao mundo que Ela levanta acima de todas as coisas, pondo na maior de todas as alturas possíveis, a Cruz de Nosso Senhor.

“A Cruz é o símbolo da Paixão de Cristo, de todo sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em união com o Redentor, as portas dos Céus.

“Colocar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo no ponto mais alto foi uma constante preocupação da Civilização Cristã. Antigamente, os edifícios mais elevados de uma cidade eram as igrejas, em cujas torres colocava-se a cruz; o mesmo se fazia no alto das coroas dos reis. Quando se queria elaborar um documento muito importante, em seu início se inscrevia a cruz. Enfim, em tudo aquilo que o homem concebia de mais elevado, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual trazia consigo a ideia de que a missão d’Ele, não se esgotando na Cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central; e entre todas as coisas que o Divino Salvador tinha feito, o mais admirável e adorável era ter sofrido e morrido na Cruz.

“A aceitação do sofrimento é uma imolação e representa um ato de fidelidade do homem à sua própria vocação, em função da qual ele enfrenta as lutas, os tormentos e as dificuldades.

“Nosso Senhor Jesus Cristo, para redimir o gênero humano, aceitou a morte. Manteve a luta no Horto das Oliveiras, depois caminhou até o alto do Calvário e foi crucificado, para realizar a sua missão. E a Cruz é a afirmação de que nós, católicos, aceitamos ser humilhados, odiados, combatidos, isolados, escarnecidos, perseguidos de todos os modos, não como um armazém de pancadas, mas caminhando de encontro ao sofrimento como um cruzado.

“A verdadeira alegria da vida não consiste em ter prazeres, mas sim na sensação de limpeza da alma que temos quando olhamos nossa cruz de frente, e dizemos “sim” para ela. Fazemos, assim, como Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual não apenas permitiu que o tormento caísse sobre Ele, mas caminhou em direção ao tormento. O Redentor previu, entregou-se porque quis e, com passo valoroso, levou sua Cruz até o alto do Calvário e ali se deixou crucificar.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/9/1964)

A exaltação da Santa Cruz

Em todos os episódios da Paixão, nota-se o desejo de humilhar Nosso Senhor. A Cruz, de modo especial, representa as humilhações que Ele sofreu. Ela é a primeira das humilhações que, até o fim do mundo, todos os católicos haverão de sofrer por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por esta razão, a Cruz foi tomada como sinal de honra de tudo quanto há de mais sagrado e de mais santo, pois a honra não consiste em não sermos humilhados, mas, isto sim, em receber a humilhação com ufania.

Ter presente a contínua exaltação da Cruz é a graça que devemos pedir na festa da Exaltação da Santa Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 14/9/1965)

Perfeição do universo: unidade e variedade

Apresentando diversos e significativos exemplos, Dr. Plinio mostra que há duas formas de beleza: uma proveniente da unidade e outra da variedade. Deus, tendo feito a Criação, quis que alguns seres representassem sua unidade, e outros, pela variedade, exprimissem sua beleza. Por isto, a unidade e a variedade são muito bonitas, sobretudo quando se harmonizam entre si.

 

A hierarquia angélica não é formada apenas de uma série de seres distintos, mas esses seres constituem uma escala de poderes, mantendo uma relação de mando entre si. Portanto, tendo criado tantos seres desiguais, Deus os relacionou entre si em uma escala admiravelmente organizada.

Contudo, surgem as seguintes perguntas: Não seria mais perfeito se Deus criasse um único ser? Uma vez que Ele criou vários, não seria melhor tê-los feito iguais?

Nos seres existentes podem-se considerar duas formas de excelência, de beleza ou de perfeição. Há alguns dotados de um “pulchrum” inerente a eles e que reside propriamente na unidade. Existem outros nos quais a beleza não está na unidade, mas na variedade.

Unidade e simplicidade, uma forma característica e inconfundível de “pulchrum”

Por exemplo, um monólito como aquele obelisco localizado no centro da Praça de São Pedro. Ele possui uma forma elegante, mas sua beleza não está apenas na elegância. Imaginem que aquilo fosse constituído de quatro ou cinco pedras cortadas e colocadas uma sobre a outra de maneira a dar aquela configuração. Não perderia o mérito? A excelência do obelisco está em ser uma só pedra daquele tamanho. Logo, o elemento principal de sua beleza é a unidade.

Em Campos dos Goytacazes fui visitar um velho solar, hoje transformado em asilo. O assoalho da sala de jantar, de grandes dimensões, era constituído de tábuas enormes que percorriam a sala quase de ponta a ponta. Cada tábua media cerca de meio metro de largura por quase dez de comprimento. Sem dúvida, isso conferia uma beleza peculiar àquele chão. Se aquelas tábuas inteiriças fossem substituídas por tacos, a majestade daquela unidade ficaria destruída.

Outro exemplo do “pulchrum” inerente à unidade é o Lago Léman, na Suíça. São águas muito paradas, tranquilas, que nunca sofrem agitação, de um azul delicado e permanente, uma placidez absoluta. Aquela uniformidade e invariável serenidade da superfície constitui a beleza específica daquela paisagem.

Nota-se também esse tipo de beleza em panoramas como o de Copacabana ou da Praia Grande – próxima a Santos –, onde a linha do horizonte apresenta uma unidade muito grande. Não se vê o espigão de uma ilha quebrando aquilo. Em certos pontos nem mesmo se divisa a ponta de uma montanha que avance no mar e rompa o paralelismo daquelas linhas. Aliás, o “pulchrum” do Saara está nisto: um areal que não acaba mais.

Na pérola, a formosura está exatamente em sua uniformidade. Se ela tiver algum caroço ou mancha, não será bonita. Ela deve ser de uma esfericidade e brancura invariáveis e perfeitas em todos os seus pontos.

A unidade tem uma beleza característica que pode até ser superada, mas que qualquer enfeite ou modificação prejudica ou elimina.

Imaginemos que alguém quisesse fazer do já referido obelisco da Praça de São Pedro uma coisa feérica e recamasse todo ele com pedras preciosas. Ficaria coruscante de cores, talvez como uma árvore de Natal sem galhos e com bonitos efeitos de luz; mas a majestade própria ao monumento desapareceria. A seu modo, também no Asilo do Carmo, de Campos, se resolvessem serrar aquelas tábuas e substituí-las por um “parquet” lindo, formando desenhos, quiçá ficasse mais bonito e ornamental; porém, perder-se-ia o belo característico da unicidade.

Não estou comparando estilos de beleza, mas mostrando haver na unidade e simplicidade uma forma característica e inconfundível de “pulchrum”. Assim, encontramos certos seres que precisam de uma apresentação muito cuidadosa e simples.

Suponhamos que um joalheiro tenha um lindo brilhante para expor na vitrine. Como deveria apresentá-lo? Ficaria bem colocá-lo numa caixa de brocado todo trabalhado, ou em meio a uma multidão feérica de joias? Para fazer sobressair a simplicidade do brilhante seria melhor arranjar um bonito veludo de fundo sobre o qual se pusesse uma caixa muito simples, e expô-lo sozinho na vitrine. Esta apresentação realçaria a beleza desse diamante único, toda feita de simplicidade. A unidade acentua muito a grandeza, põe em evidência a homogeneidade da substância, regularidade da forma e formosura do aspecto.

Beleza específica da variedade

Outra forma de beleza é a inerente à variedade. Por exemplo, o chão da capela de Versailles para mim é um dos mais bonitos que existem no mundo. É um mosaico de várias cores e formas que dá uma impressão maravilhosa. Alguém poderia sugerir que aquilo fosse substituído por uma imensa uniformidade de mármore branco. Ali não serviria porque a beleza específica do lugar é a da variedade.

No tocante a paisagens, opondo-se à uniformidade de Copacabana, poder-se-ia citar o Flamengo, com sua variedade de montanhas, ilhas, etc.

Já no mundo das pedras, a ágata é avermelhada, cheia de veios, estrias, e o bonito está na diversidade de cores que se confundem e interpenetram. Muito característica também é a diferença entre a opala e a pérola. Esta é toda branca, enquanto aquela é multicolor. A beleza da opala encontra-se na variedade.

Estamos, assim, colocados diante de duas formas de beleza: uma proveniente da unidade e outra da variedade. Alguém poderia levantar o problema sobre qual delas é a mais excelente, e chegar a uma das seguintes conclusões. Se a beleza derivada da variedade é superior, a arte deve tender a extinguir as manifestações provindas da unidade e estabelecer, por toda parte, a variedade. Mas se é verdade que a unidade é a forma de beleza mais perfeita, então se deve perseguir a variedade e estabelecer a unidade.

Encontramos essa dicotomia na arte contemporânea, com a tendência cada vez mais frequente de impor a unidade como a beleza suprema. Não quero dizer que seja esta a tendência de todos os artistas modernos, porque há também algumas variedades desordenadas em certas manifestações da arte moderna. Mas quero afirmar que muito frequentemente esta posição se demonstra. Podemos dizer, portanto, que certos artistas e certo espírito moderno aceitaram esse problema tomando posição frente a ele e afirmando ser a unidade intrinsecamente superior à variedade.

A Criação precisa ter unidade e variedade

Isso se liga à primeira questão posta inicialmente, pois se a unidade é o supremo bem e na variedade existe algum mal, então Deus deveria ter feito uma só criatura ao invés de várias.

São Tomás de Aquino analisa três argumentos a favor da unidade. Parece que Deus deveria ter feito um só ser na Criação:

1) Todo efeito tem as qualidades inerentes à causa. Ora, Deus é uno; logo, o efeito de Deus, que é a Criação, deveria ser uno também. A Criação ser variada enquanto Deus é uno corresponde a fazer com que a ela não seja um reflexo do Criador. Logo, a variedade de seres é um mal.

2) Deus é uno; ora, se o mundo é a imagem de Deus, o mundo deveria ser uno também; se o mundo não é uno, é diferente de Deus. Tudo que é diferente de Deus é ruim; logo, o mundo é ruim.

3) O fim de todas as coisas que existem é Deus. Ora, Deus é uno; logo, todas as coisas deveriam tender para a unidade; se não tendem, elas são más e, portanto, a diversidade não deveria existir porque afasta de Deus.

A estes argumentos São Tomás responde: Deus, de fato, criou o universo para comunicar às criaturas sua bondade e representar-Se nelas. Mas nenhuma criatura, por mais excelente que seja, pode representar em si todas as bondades de Deus. Portanto, por mais que Ele fizesse perfeita uma criatura, criando mais outra além dessa primeira, haveria a possibilidade de a Criação ser mais perfeita, porque teria uma semelhança ainda maior com o Criador.

Digamos que Deus houvesse criado só Nossa Senhora, que é o mais alto de todos os seres na ordem moral; ou então um único Anjo, o qual na ordem ontológica é a mais elevada criatura. Por mais perfeita que fosse a representação de Deus contida nesse ser, ele seria uma mera criatura; assim, caberia sempre uma representação de Deus em outro ser. Portanto, dois seres representam melhor o Criador do que um; três O representam melhor do que dois; quatro, melhor do que três e mil representam melhor do que novecentos e noventa e nove. A variedade, portanto, tem uma representação de Deus melhor do que a unidade; a variedade é um bem.

É certo, diz ele, que a bondade em Deus é simples e uniforme. Mas acontece que Deus é um Ser supremo, perfeitíssimo, n’Ele a bondade pode ser simples e uniforme. Não é o que acontece nas criaturas, que não têm a mesma perfeição de Deus. Por isto, elas não podem ter uma bondade simples e uniforme. Nelas a bondade tem que ser variada. De maneira que, embora a unidade, em si, seja mais perfeita, para as criaturas ela não é assim. É preciso que elas, de fato, tenham a variedade.

Chegamos, então, à conclusão de que a alternativa unidade-variedade é mal posta. Deve haver seres que por sua esplêndida unidade sejam um reflexo da unidade divina; mas também seres que por sua variedade reflitam melhor a Deus do que pela unidade. E propriamente o que a Criação precisa ter é unidade e variedade.

Cores, música e a fachada de Notre-Dame

Todos os modernos que procuram a unidade em tudo andam mal, como andariam mal os que só buscassem a variedade. É preciso que ambas existam, seres excelentes por sua unidade e por sua variedade. É por esta forma que podemos compreender a perfeição do universo.

Isto se torna mais claro quando tomamos certas formas de arte, por exemplo, a pintura. Ticiano(1) pintava quadros de cores maravilhosas. Eu vejo uma beleza dos quadros de Ticiano, se tomar cada cor e analisar. É claro que cada cor é muito bonita. Mas ao lado da beleza de cada cor eu noto que é mais bonito ter várias cores do que uma só. E há uma terceira forma de beleza que não consiste na variedade das cores, mas no contraste e na harmonia entre elas.

Então, temos três formas de beleza: a de uma cor, a pulcritude especial que vem da existência várias cores, e outra proveniente da combinação das cores entre si. Ora, essas formas de beleza vêm da variedade.

A música, por exemplo. O universo musical tem uma particular beleza que corresponde a cada nota. Contudo, é mais bonito que haja sete notas do que uma só; e é mais belo ainda que se possa fazer uma música e um jogo entre essas sete notas. Temos assim três gamas de beleza, que fazem a pulcritude do universo musical.

Deus, tendo feito a Criação, quis que alguns seres representassem sua unidade, e que a variedade de outros significasse sua beleza. Por isto, a unidade e a variedade são muito bonitas, sobretudo quando se harmonizam entre si. Temos assim seres com grande variedade e, ao mesmo tempo, com grande unidade.

É característica disso, por exemplo, a fachada de Notre-Dame: formigando de pequenos desenhos, mas com uma linda unidade nas linhas essenciais. Prova-se por aí que Deus, para fazer o universo com o grau de perfeição que Ele quis, teria que fazer um universo variegado. Não teria atingido esse grau de perfeição se houvesse feito um só ser.

A questão seguinte seria: tendo Deus estabelecido a variedade, deveria estabelecer, necessariamente, a desigualdade? Mas esta é matéria para uma próxima conferência.         v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1957)

Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

 

1) Ticiano Vecelli (*1488 – †1576). Pintor renascentista veneziano.