Sério, altaneiro e intrépido

Pregador da Boa Nova, São Mateus é o modelo de varão sério, altaneiro, intrépido, corajoso, que fala em nome de uma verdade eterna e, por isso, não se sente acanhado nem diminuído diante de ninguém.

Eis a graça que devemos pedir a São Mateus para difundirmos a verdadeira Boa Nova da Religião Católica, Apostólica, Romana, nesta época de tanta decadência religiosa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/9/1965)

Nossa Senhora

Neste exílio, em meio à humanidade corrompida, aparece uma criatura concebida sem pecado original, um lírio de incomparável formosura que deveria alegrar os coros angélicos e a Terra inteira.

Nossa Senhora trazia consigo todas as perfeições naturais que dentro de uma mulher possam caber: uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima. Se a isso tudo juntarmos os tesouros das graças que vinham com Ela — as maiores que Deus Nosso Senhor tenha concedido a alguém, graças verdadeiramente incomensuráveis —, compreenderemos então o que representa o advento de Maria Santíssima ao mundo.

O nascer do Sol é uma realidade pálida em relação à entrada de Nossa Senhora nesta Terra. Os mais grandiosos fenômenos da natureza, mesmo os que representem algo de precioso e inestimável, nada são em comparação com isso; a entrada mais solene que se possa imaginar de um rei ou de uma rainha em seu reino, ainda é nada em confronto com esse advento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

São Mateus, Apóstolo Evangelizador da Etiópia

Varão sobrenatural, nobre, forte e acolhedor. Assim aparece o Apóstolo São Mateus nas páginas da “Legenda Áurea” que relatam a evangelização e o martírio do discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras da Etiópia. Comentários de Dr. Plinio.

 

Em 21 de setembro celebra-se a festa do Apóstolo São Mateus, a respeito do qual lemos na “Legende Dorée”(1) ter sido o evangelizador da Etiópia, onde conseguiu desmascarar e apontar como agentes do demônio os magos que iludiam o rei e o povo.

O lendário reino do Preste João

Cumpre assinalar que, excetuando o Oriente Próximo, na gentilidade asiática e africana a Etiópia possuía uma peculiaridade extraordinária: de todos aqueles mundos, era o único país cristão. As outras nações onde os Apóstolos estiveram, e até deixaram recordações — como a Índia, por exemplo — não se converteram. Durante algum tempo a Etiópia permaneceu católica, mas, infelizmente, acabou cedendo à heresia dos monofisitas(2). Contudo, hoje é ainda uma nação cristã, e cabe-lhe a glória de ter sido evangelizada pelo Apóstolo São Mateus.

É interessante considerar, também, como os medievais tinham certa noção de um reino cristão situado além do Egito, onde, segundo as notícias trazidas pelos navegantes portugueses, vivia o famoso Preste João — Padre João, em português arcaico. Tratar-se-ia, pois, da Etiópia.

Nobre, poderoso, suave

De acordo com a “Legende Dorée”, este país e seu rei estavam desviados do culto do verdadeiro Deus por obra dos mencionados magos. A estes enfrentou e desmascarou São Mateus, provando que eram incapazes de fazer qualquer coisa sem auxílio do maligno.

Somos levados a imaginar esse confronto, com o Apóstolo tendo penetrando na Etiópia através do mar, do deserto ou pelas nascentes do Nilo, e só pela sua presença já causando grande mal-estar nos sequazes do demônio. Os magos logo perceberam naquele homem um poder, uma força de Deus que os contrariava de modo irretorquível.

Provavelmente, esses magos praticavam muitos prodígios e induziam o povo a acreditar que participavam de um poder divino.

São Mateus, operando autênticos milagres, confundiu aqueles impostores diante do mesmo povo, demonstrando a farsa com que a todos iludiam. Quiçá a população, sabendo-se objeto de tamanho ludíbrio, tenha querido punir os feiticeiros, sendo então impedida pelo Apóstolo, que a fez compreender que aquilo seria um crime. Tal houve de ser a influência desse varão sobrenatural, nobre, poderoso, suave, acolhedor, sobre aquela gente admirativa.

Conversão de todo o povo

Pouco depois, conforme a narração do biógrafo, São Mateus ressuscita o filho do rei Egipo, e este, querendo-o adorar como deus, oferta-lhe grande tesouro. Claro, o Apóstolo não permitiu tal veneração e, com o ouro e a prata que haviam levado, construiu uma grande igreja, na qual viveu 33 anos para converter a nação. O rei Egipo, sua mulher e todo o povo se fizeram batizar. Ifigênia, a filha do rei, foi consagrada a Deus e colocada à frente de duzentas virgens num convento.

Não nos é difícil compreender o imenso alcance desse fato. Uma nação imersa durante séculos no paganismo e em toda espécie de vícios, com a simples pregação de um Apóstolo, converte-se, se faz batizar, e duzentas virgens de ébano, ao lado da própria filha do rei, recolhem-se a um convento para se tornarem esposas do Rei por excelência, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Outro detalhe: quão bela deve ter sido a primeira igreja da Etiópia, construída diretamente sob a inspiração de São Mateus, e como essa edificação deve ter alegrado no Céu aos anjos, a Deus e a Nossa Senhora!

Martírio do Apóstolo

Entretanto, o rei Egipo morreu e seu sucessor, Hírtaco, desejou esposar Ifigênia, por considerá-la a única jovem digna dele e de sua posição. O novo monarca pediu a São Mateus que convencesse a princesa em aceitá-lo como marido, e prometeu ao Apóstolo, em caso de sucesso, metade do reino.

Vê-se a vã e frustra tentativa de suborno. Para quem converte um povo inteiro, do que adianta riquezas e poder temporal sobre ele? Incomparavelmente mais do que isso, São Mateus possuía a alma desse povo e a entregara a Deus.

O Apóstolo pediu então ao rei Hírtaco que fosse à igreja no domingo seguinte, quando daria uma solução ao caso. O soberano anuiu e compareceu ao templo, encontrando-o repleto de fiéis que começaram a ouvir dos lábios de São Mateus um maravilhoso sermão sobre os benefícios de um casamento.

Figuremos um Hírtaco de beiços grossos e vermelhos, dentes alvos, sorrindo de contentamento enquanto São Mateus elogiava o matrimônio. Certamente, pensava lá consigo: “Agora não preciso lhe dar metade do meu reino, como prometi, porque me fez o serviço adiantado. A princesa será minha, e depois ele se entenderá comigo”.

O rei estava seguro do assentimento da jovem. Porém, continuando seu sermão, em determinado momento disse o Apóstolo: “Sendo o casamento tão sagrado e inviolável, alguém que quisesse possuir a mulher de seu rei, mereceria um castigo. Assim, Hírtaco, sabendo que Ifigênia é esposa do Rei eterno, como ousas tomar a mulher do infinitamente mais poderoso do que tu?”

Ao ouvir essas palavras, Hírtaco se retirou da igreja, tomado pelo ódio. Terminada a Missa, o rei enviou um carrasco que com a espada atingiu São Mateus, o qual se encontrava orando de pé diante do altar e com os braços estendidos para o céu. O povo, indignado, correu ao palácio real para vingar o crime, mas os outros sacerdotes o detiveram, aconselhando que em lugar disso se unisse numa grande celebração em homenagem ao santo mártir.

Com a fé católica, a semente de todo o bem

Enquanto isso, Hírtaco ordenava que ateassem fogo ao redor do convento de Ifigênia, para fazê-la perecer juntamente com as outras virgens. Mas, São Mateus apareceu e desviou o fogo para o palácio do rei, que foi inteiramente consumido. Somente o soberano e seu filho único escaparam ao incêndio. O príncipe correu imediatamente ao túmulo do Apóstolo para pedir perdão, e o rei, atingido por horrível lepra, suicidou-se. Depois desses episódios, o povo escolheu como soberano o irmão de Ifigênia, o qual reinou durante 60 anos, difundindo o culto de Cristo e construindo igrejas por toda a Etiópia.

Assim termina a narração da vida de São Mateus. Creio que meus ouvintes sentem, como eu, a beleza contida nesse epílogo: o novo rei governou durante seis décadas, edificando igrejas pelo país inteiro. Tem-se a impressão de um reinado sereno, tranqüilo, elevado. Claro, não se pode dizer que basta construir igrejas e tudo estará resolvido. Mas, erguendo-as, e sendo frequentadas por um povo fiel, praticante da religião verdadeira, tudo aquilo que é necessário para a sua prosperidade, virá.

Ou seja, instaurando autenticamente a Fé católica, está colocada a semente de todo o bem. Tal foi a obra do Apóstolo São Mateus na terra por ele evangelizada.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/10/1976)

 

1) “Legenda Áurea”, coletânea de vidas de Santos escrita pelo bem-aventurado Jacopo de Varazze, dominicano e Arcebispo de Gênova (1229-1298).

2) Heresia difundida por Eutiques (378-454), que afirmava haver em Cristo uma só (mono) natureza, a divina.

 

A Idade Média em todo o seu esplendor

Ávila, em Espanha, onde nasceu a grande Santa Teresa de Jesus, é uma maravilhosa cidade medieval.

É muito agradável, ao contemplar a cidade durante a noite, notar o contraste entre a cidade que dorme — lembrando uma vida calma, tranquila, pacata, sem as excitações da vida contemporânea, séria, mas ao mesmo tempo cheia de bonomia — e a muralha magnificamente iluminada, onde se nota a beleza do gótico e do medieval.

A iluminação faz sentir muito a força da muralha e qualquer coisa de épico, de heroico que nela existe. Imaginamos de bom grado essa muralha e os muros que ligam as torres guarnecidos de guerreiros, com couraças, elmos, estandartes, instrumentos de música e que ali estão postados para homenagear algum personagem ilustre que chega, ou para receber na ponta da lança adversários que podem querer tomar Ávila.

Essas muralhas falam de toda a beleza da firmeza de alma, da coerência, da seriedade e da sacralidade. Está tudo representado aí, de um modo verdadeiramente magnífico. Em suma, é a Idade Média.

Em ambos os aspectos há muita harmonia. Temos a guerra e o direito, a legítima defesa de uma população que na guerra é protegida, a quem suas muralhas amparam, e por isso pode tranquilamente dormir. A muralha garante o sono, como o guerreiro garante a ordem, o direito e a paz. É verdadeiramente esplendoroso.

Nessa síntese entre a guerra e a paz, o direito e a luta, o repouso e a batalha, há algo de síntese celeste que nos deixa verdadeiramente maravilhados. É a Idade Média em todo o seu esplendor.

Devemos notar que suas muralhas foram construídas com preocupação exclusivamente estratégica. Quer dizer, o intervalo entre as torres não foi feito com o objetivo de ficarem bonitas, mas calculado para que o adversário atacante pudesse ser atingido de vários lados. Primeiro, pela reação que vem dos defensores do muro. Depois, dos defensores das torres, de maneira que se torna difícil tomar as muralhas.

A torre é muito mais forte do que o muro. Ela se defende por si mesma. E pelo seu feitio redondo, ela de certo modo dispersa o adversário. Por outro lado, o muro, que é mais fraco, fica defendido pela muralha. Tudo foi estritamente calculado de acordo com o necessário e ficou lindo. Ao contrário do que se faria hoje, a forma da muralha é meio indecisa, não retilínea, e abrange como uma cintura o povoado que está dentro.

Tem-se a impressão de que cada torre é uma garra que segura o monte e domina a terra; é uma verdadeira beleza.

Com a solidez de suas portas, a entrada da cidade estava bem protegida. E com que robustez! Tratava-se de duas portas, uma frente à outra, que protegiam a passagem. Quem conseguisse entrar — debaixo de uma saraivada de pedras, de azeite fervente, etc. — esbarrava com a outra porta, onde havia outro passadiço para jogar pedras e flechas sobre os atacantes.

Muitas vezes, quando o adversário passava pela primeira porta, descia uma grade e ele ficava encurralado, porque não podia mais voltar para trás. E aí era pancadaria grossa. Compreendemos o senso de defesa que isso traduzia.

No topo da muralha estão as ameias, tão bonitas! Tudo estritamente técnico. Um homem lançava uma flecha e, quando o assaltante respondia com outra flecha, ele ficava escondido. Percebendo que o inimigo estava mais ou menos desprotegido, dava nova flechada.

Compreende-se o quanto era duro invadir uma cidade assim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/5/1972)

O Coração de Jesus no interior do Coração de Maria

Na época histórica em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, Nossa Senhora apresentava-Se geralmente como a Rainha da Contra-Revolução. A nós foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

 

Nós, seres humanos, estamos colocados na junção entre o mundo material e o mundo espiritual; vemos abaixo de nós o mundo material em várias gamas e sabemos pela Fé da existência do mundo espiritual em muitas outras gamas. Temos ciência de que participamos do grão de areia, como da própria vida divina pela graça. Percorremos com nossa natureza todas as escalas.

Superioridade participada

Se temos um senso do ser inocente, este nos dá uma noção de nossa própria dignidade que nos faz medir, em nós mesmos, a superioridade de nossa alma sobre nosso corpo, e tudo quanto temos de mais digno por possuirmos alma, sem que sintamos vergonha por termos corpo. Mas notamos tudo quanto há de belo em possuirmos uma alma, e como ela é um céu em comparação com nosso corpo.

Nós sentimos a superioridade de nosso corpo sobre os animais, as plantas e os minerais. Percebemos que é uma superioridade participada. Eles e nós temos algo de tudo quanto existe, mas estamos no ápice da matéria, a tal ponto que somos uma montanha no alto da qual arde a chama denominada alma.

Estamos, portanto, num ápice, mas por cima dessa chama há o céu inteiro. Então a montanha é ao mesmo tempo altíssima, porém se medirmos a distância com as estrelas veremos que é um “formigueiro”. Tendo o senso do ser reto a pessoa sente ordenadamente tudo isso em si, todas essas grandezas, como todas essas pequenezes, proporcionando-lhe uma espécie de maravilhamento discreto, interno.

Lembro-me de que isso se deu em mim, por exemplo, quando pela primeira vez comecei a pensar a respeito do olhar humano, o que é o olho humano e tudo quanto confere de dignidade ao corpo o fato de ter olhos.

Acho que realmente a parte mais sensivelmente nobre do corpo humano são os olhos. Não se pode negar. E como o olho é bonito, quanta coisa exprime! É o único traço que o homem tem o qual nunca é feio! Pode existir um olho machucado, doente, mas um olho feio não há! A fisionomia, o porte, o passo e tantas outras coisas são reflexos da alma no corpo; os olhos espelham a alma.

Consideremos os bichos. Deus quer que alguns animais inferiores a nós sejam mais bonitos do que nós; mas são de uma beleza de segunda classe. De beleza de primeira classe somos nós.

O pavão, por exemplo, como ele é distinto, diplomata, se mexe com jeitos! Um certo modo que tem o pavão de jogar para trás a cabeça e o pescoço; os olhos  quase que se dilatam, e ele olha de frente e de cima, com nobreza. Ele de certo modo finge não estar vendo bem as coisas que se encontram diante dele, como se estivessem distantes. Depois ele se volta bem devagarzinho para receber o aplauso das multidões… É muito bonito!

As mais marcantes diferenças existentes entre os homens

Possuindo um senso do ser bem construído, nós sentimos essas hierarquias e compreendemos que umas estão para as outras numa forma de relação que deve encher de admiração as menores, porém de uma admiração grata! Porque sempre que a maior toca na menor não a humilha, mas a beneficia e honra.

Prestando bem atenção, ao considerarmos a relação entre nós e os Anjos, põe-se muito clara a seguinte pergunta: Como é o Anjo em face de quem é superior a ele? Ora, superior a ele, enquanto natureza, só Deus. Como natureza, Nossa Senhora não é superior ao Anjo, e nem sequer a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

As mais marcantes diferenças que há entre os homens são de ordem sobrenatural. É o batizado para o pagão, depois o clérigo para o leigo. São relações como que divinas.

Somos membros do Corpo Místico de Cristo e em nós vive a graça de Deus; somos templos do Espírito Santo, escravos de Maria Santíssima, filhos d’Ela, portanto, a um título e de um modo todo particular.

Nós estamos para um pagão, na ordem da graça, mais ou menos como na ordem da natureza o Anjo está para nós. Somos “anjos” para um pagão. E um pagão que dissesse a um de nós: “Vou dar-lhe uma bofetada porque você é batizado”, ele esbofetearia em nós o sacramento do Batismo conferido indelevelmente. Sobretudo o bispo, que possui a plenitude do sacerdócio, é como que Deus para nós. Ele ensina, governa e santifica. Todos os sacramentos, toda verdade, a direção de nossos passos no rumo da vida eterna vêm por ele. É como que Deus presente entre nós, e algo de divino habita o bispo.

Na ordem natural há algo disso na relação pai-filho. Mas a Doutrina Católica sempre entendeu que honrar pai e mãe é honrar adequadamente todas as autoridades, na medida em que elas tenham um poder análogo à paternidade, por exemplo, o patrão, enfim, todos os superiores devidamente. Porque quando a autoridade é de um certo gênero, ela participa, na ordem natural, de uma superioridade análoga — não idêntica — à superioridade existente nas relações Deus-homem.

É isto que devemos saber reconhecer nos nossos superiores, e tocá-los, inclusive fisicamente, com respeito, porque neles habita isso.

Respeitabilidades amigas, o contrário da luta de classes

Dou um exemplo claro de ver: o professor e o bedel num colégio. O professor, enquanto está dando aula, tem uma superioridade pura e simples sobre o aluno. O bedel possui uma superioridade, mas uma superioridade que até é um título de inferioridade. Ele é um empregado do colégio para tomar conta dos alunos e, portanto, não imita, a não ser de um modo muito indireto, um vislumbre, o poder de Deus. Mas o poder do professor imita o poder de Deus, e um aluno que esbofeteasse seu professor, enquanto este ensina, pecaria contra Deus.

Sirvo-me, agora, de uma metáfora muito familiar: a nata e o leite.

Uma quantidade abundante de leite de alta qualidade posta numa panela, por exemplo, dá origem, por um lento, discreto e nada artificial processo de diferenciação, à nata que fica acima dele e constitui uma camada. Se cada gota de leite pudesse falar, diria para a dona de casa: “Olhe a nata!” E se a dona de casa sorrisse para a nata, esta falaria: “Mas olhe também de que leite eu fui formada!”

Disseram-me — e me parece bem provável — que as qualidades do ar têm algum efeito para a formação da nata. Logo, o céu atmosférico, a seu modo, age sobre o leite para que destile a nata. Portanto, esta não é puro produto do leite, mas do leite “tocado” pelo céu.

E notem: isso ocorre na ordem meramente natural, mas que nos ajuda a ter uma ideia do que significa essa superioridade divina, do que é Deus em relação a nós, e o que é um de nós perto de Deus, para compreendermos todos os abismos onímodos de inferioridade e de hierarquia e, depois, os graus intermediários como são.

Tomemos outro exemplo: o mármore. Dir-se-ia que o mármore é nata da terra, reservada por Deus em blocos e dada aos homens para fazerem suas igrejas, seus monumentos, palácios etc. Por isso eu falo do mármore com respeito.

Esta visão do mundo como uma espécie de jogo de respeitabilidades amigas, que se perdem quase ao infinito, é o contrário da luta de classes.

Respeitabilidades amigas que a mil títulos reluzem aos olhos do homem, fazendo entender tudo quanto vai desde a pequena respeitabilidade do bedel, quando ele transitoriamente dirige a fila, até a autoridade de um reitor de universidade. Há mil aspectos da superioridade que ficam cintilando como estrelas no céu, cada uma com um brilho próprio e, no fundo, cantando a glória do Superior dos superiores que é Deus.

Resolvendo um problema até o fundo

Tive um professor que, em certa ocasião, pôs a seguinte questão, de um modo inteligente e atraente:

“Nós existimos para Deus, mas hoje em dia não se tem uma ideia clara do que significa existir para alguém. Por isso, vou dar-lhes um exemplo. Se uma galinha tivesse inteligência, ela de tal maneira saberia ter sido criada para ser comida por um homem que, enquanto estivesse no galinheiro, ficaria frustrada de ver as outras galinhas irem para a panela e ela não. Agora, qual seria a reação dessa galinha inteligente quando fosse chamada para a panela? Seria uma reação de pavor, porque nenhum ser escapa ao instinto de conservação; ou uma sensação de alegria, porque afinal seria comida por um homem?”

Ele dizia que a galinha, ao se imaginar comida, sentiria ao mesmo tempo o horror e o gáudio da imolação, e desaparecia num sentimento contraditório.

De fato, ele não resolveu o problema até o fundo. O professor imaginava uma hipótese absurda de um ser que, ao mesmo tempo, é inteligente e mero animal. Daí as reações são contraditórias, porque o ser inteligente existe para Deus, mas não para ser comido por Deus. Aquele que é o fim do ser inteligente é tão superior a este que não o mata, mas lhe dá a vida. Isso o professor não soube dizer; donde um certo mal-estar que a pergunta causava.

Entretanto, este ponto me parece que ele viu bem: se a galinha fosse capaz de conhecer o homem, ela reconheceria nele, com encanto, o seu dono.

Quando o homem, por exemplo, agrada um cachorro, o animal toma, muitas vezes, uma atitude deliciosamente submissa, o que é um símile da posição que tomaríamos em relação a um Anjo. Um vegetal que pudesse sentir e compreender faria o mesmo com um animal, e um mineral a mesma coisa com um vegetal. Há uma regra que forma um certo gênero de relação que, conservadas as proporções, é sempre de sentir-se pequeno, mas repleto de honra.

Subindo ao ápice da Criação, vemos isso até nas relações de Nossa Senhora com Deus. Convidada a um título muito especial para ser Filha do Padre Eterno, Mãe do Verbo e Esposa do Espírito Santo, a resposta d’Ela foi: “Ecce ancilla Domini — Eis a escrava do Senhor” (Lc 1, 38). Ela Se sente muito pequena, porque, de fato, diante de Deus ainda que seja Ela, é-se infinitamente pequeno. Então um gesto, uma postura de respeito deliciado é uma atitude de alma que hoje as pessoas quase não sabem mais medir.

O Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes

Ora, o Sagrado Coração de Jesus tem algo que predispõe o espírito em todas as gamas para essa posição.

Evidentemente, as pulsações mais sublimes do Sagrado Coração de Jesus eram quando Ele rezava. As orações d’Ele citadas no Evangelho eu acho tudo quanto há de mais bonito!

Sempre o modo de dizer “Pai” sai com uma grande doçura e, ao mesmo tempo, tão honrado de ser Filho d’Aquele Pai. Ele, como Homem, dizendo “Pai” é quase que rezando para a sua própria natureza divina. É uma coisa tão bonita que prepara a alma para receber essas superioridades genéricas com uma espécie de devoção carinhosa e cheia de veneração.

É interessante notar que no período em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, em suas manifestações Nossa Senhora apresentava-Se menos como Mãe de Misericórdia do que como a Rainha da Contra-Revolução e preparando a batalha. Ela é “castrorum acies ordinata”(1).

Com exceção de duas aparições d’Ela no século XIX — uma enquanto Nossa Senhora das Graças, em Paris, para Santa Catarina Labouré, e outra na Igreja do Miracolo, que é uma reversão, corresponde à mesma devoção, mas são dois milagres diferentes —, essa sensação de misericórdia requintada Maria Santíssima dá menos do que manifestava aos medievais, a São Bernardo, por exemplo.

Mesmo em Lourdes, onde a Santíssima Virgem difunde a misericórdia como sabemos, a nota dominante é a apologética. Diante dos séculos de ateísmo, Ela entra em luta contra este produzindo milagres a jorro e confirmando a Imaculada Conceição.

A nós, porém, foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

Certa ocasião observei uma pintura representando Santa Gertrudes em cujo coração se via o Menino Jesus, o que deveria fazer referência a algum fenômeno místico que se deu com ela.

Se é legítimo apresentar o Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes, a um título muito mais literal, muito mais cogente, com outra ênfase, é legítimo mostrar o Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria. É claro! E nós encontraremos tudo quanto estou dizendo — e muito mais — emoldurando o Sagrado Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria.

De todas as boas imagens de Nossa Senhora que conheço, nenhuma delas me satisfaz inteiramente, porque não visam apresentar Jesus vivendo em Maria, concebendo tanto quanto possível a Santíssima Virgem como parecida com Nosso Senhor, fisicamente, mas de uma semelhança que era apenas uma imagem da similitude espiritual.

Sabe-se que muitos cristãos queriam conhecer São Tiago porque era primo de Jesus e muito parecido com Ele. Ora, se assim ocorria com São Tiago, primo em segundo ou terceiro grau de Nosso Senhor, imagine com Nossa Senhora o que era essa semelhança!

Eu me pergunto se não seria uma graça do Reino de Maria algum artista ou algum místico chegar a imaginar, na perfeição, uma imagem de Nossa Senhora inteiramente “cristiforme”, mas conservando toda a delicadeza da natureza feminina. Porque nós vemos isso pelo Santo Sudário: Ele era Varão, no sentido mais nobre da palavra; Ela, Mãe e Senhora, Dama e Rainha. Saber representar essa variedade em uma versão marial de Nosso Senhor!…

Assim, mesmo cenas da vida de Nosso Senhor se tornam muito mais cheias de vida e muito mais explicáveis. Por exemplo, os dois se abraçando na hora do encontro da Via Sacra, com essa semelhança de corpo e de alma entre ambos. Ele com a face como que d’Ela, desfigurada; e Ela com a face como que d’Ele, íntegra. De maneira que se olhava e percebia-se o contraste. Ela nobremente invadida pelo pranto sem que nada A descompusesse, e Ele aviltado pelas bofetadas e pela dor sem que nada Lhe diminuísse a majestade.

Um ósculo de Nosso Senhor na França

Quando falo com calor de Luís XIV e da devoção que ele deveria ter tido ao Sagrado Coração de Jesus, há pessoas que julgam entrar nisso uma espécie de atitude mundana, ou pelo menos terrena. Mas não é. A razão é que eu vejo nele o lampadário perfeito onde a lamparina do Sagrado Coração de Jesus deveria ter sido acesa.

Se ele fosse o devoto perfeito do Sagrado Coração de Jesus, nós teríamos tido uma figura de homem como não houve na História.

Para compreender o “meu” Luís XIV, a “minha” Versailles e o “meu” Ancien Régime é preciso entendê-los enquanto o Rei-Sol tendo sido fiel. E mais: foi no reinado de Luís XIV que São Luís Grignion de Montfort construiu o calvário dele, pregou aos camponeses e que Marie des Vallées(2) fez a troca de vontades com Nosso Senhor. Isso tudo tenderia a uma só coisa.

Então, era preciso concebê-lo criando uma atmosfera pela devoção ao Coração de Jesus, onde a escravidão a Nossa Senhora tivesse voado como uma águia em céu próprio.

É uma coisa maravilhosa! Não se tem ideia do que a infidelidade de meia dúzia de almas rateou na ocasião… Não se tem ideia da oportunidade perdida!

A partir disso fica compreensível também o meu furor contra a Revolução Francesa.

O Dauphin Luís(3) mandou colocar atrás do altar da capela do palácio uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. Ele não teve a audácia de colocar na frente…

Mas isso significa durante quantas gerações se manteve a ideia de que uma consagração ainda salvaria a França. E a consagração que Luís XVI fez da França ao Sagrado Coração de Jesus, na Torre do Templo, prova que ele ainda levava no espírito essa ideia de que, se correspondesse, poderia ter salvado o país.

Durante todo esse tempo, a Casa Real e o “Ancien Régime” conservaram uma capacidade de receber. Essa receptividade era um ornato, e aquela possibilidade, naquele tempo, um “lumen”.

O grande pranto pela Revolução Francesa era o da esperança que não se realizaria mais, e pela extinção desse “lumen” que acompanhou a Casa Real até o fim.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus ficou com uma ligeira nota francesa, é um ósculo de Nosso Senhor na França.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/9/1980)

 

1) Do latim: exército em ordem de batalha (Ct 6, 10).

2) Mística francesa (*1590 – †1656).

3) Luís Fernando de França, Delfim de França (*1729 – †1765), filho de Luís XV e pai de Luís XVI.

Medianeira da Luz

Mês especialmente caro aos devotos de Maria Santíssima, setembro refulge com as comemorações da Natividade de Nossa Senhora e com a festa do seu santíssimo nome. Para Dr. Plinio, o advento d’Aquela que estava predestinada a ser a Mãe do Salvador, “conferiu particular nobreza ao gênero humano, e surgiu neste mundo como a suave e amena luminosidade da lua. Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do astro-rei. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. Assim a vinda de Nossa Senhora foi, para toda a humanidade, como um magnífico nascer da lua”.

Lua que brilha da luz do Sol da Justiça, Cristo Senhor nosso, e que se compraz em espargi-la sobre a face da Terra, isto é, em distribuir para os homens a superabundância de graças que seu divino Filho depositou nas suas mãos maternais. Ouçamos novamente Dr. Plinio, comentando uma coletânea de textos acerca do papel de Nossa Senhora nos primórdios da Santa Igreja:

“Maria foi o oráculo vivo que São Pedro consultou nas suas principais dificuldades. A estrela para a qual São Paulo não cessou de olhar, para se dirigir em suas numerosas e perigosas navegações.

“Temos, então, esse belo panorama: a Igreja nascente — com todos os lances maravilhosos da história do cristianismo nos seus passos iniciais  — inspirada e dirigida por Nossa Senhora. Sem dúvida, São Pedro era o Papa e detinha o poder sobre a Igreja, que lhe fora conferido por Jesus. Contudo, não deixa de ser igualmente verdade que o Príncipe dos Apóstolos se submetia às disposições de Maria, atendendo-as com devoção e reconhecimento. Por sua vez, São Paulo sempre recorria a Ela, a fim de ser bem orientado nas suas navegações, isto é, no seu apostolado com os gentios.

“É então que Ela preencheu a significação de seu nome simbólico. Pois, diz São Boaventura, o nome de Maria pode traduzir‑se por essas palavras: Maria é a criatura iluminada por cima e que espalha, por todas as direções, a luz que lhe vem do alto. Ela é, verdadeiramente, a medianeira da luz. Toda a sabedoria e toda a luz nos vêm, para todos os homens, através d’Ela.

“Eis, portanto, uma linda interpretação do nome de Nossa Senhora, como sede da sabedoria, como foco da ortodoxia e da boa doutrina. Quem deseja progredir na virtude da sabedoria, deve recorrer a Ela que é, por definição, pelo próprio conteúdo de seu nome, essa fonte de luz celeste que se espalha para a humanidade inteira.

“Se os evangelistas querem recolher os principais fatos da vida de Jesus e seus ensinamentos mais importantes, para transmiti-los nos seus escritos autênticos, eles recorreram a Maria. Foi a Ela que pediram os esclarecimentos necessários sobre a Encarnação, a infância e a juventude do Homem-Deus, assim como sobre o modo perfeito de exprimir os dogmas que Ele trouxe do Céu. Pois, disse o Cardeal Hugo, Ela fez de seu coração o tesouro das palavras e das ações de seu Filho, a fim de os comunicar em seguida aos escritores sagrados.

“Temos, novamente, a figura de Nossa Senhora como o vaso de eleição que recolheu todos os ensinamentos e atitudes de Jesus, para distribuí-los aos Apóstolos, à Igreja nascente e à Igreja de todos os tempos. Foi Ela, não só a informante, mas a inspiradora da mentalidade com que os evangelistas escreveram seus livros sagrados; Ela esteve ao lado de São Pedro, São Paulo, São João Evangelista, deste e daquele, contando-lhes, explicando-lhes, ajudando-os a interpretar as palavras e os atos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela era uma fonte de aroma divino perfumando a Igreja inteira.

“Tal é o esplendor da alma santíssima de Nossa Senhora, apenas vislumbrado por nós e que nos deve levar a amá-La e imitá-La, cada dia mais e mais.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 7/9/1965 e 11/7/1967)

 

Elevação e bondade

Pelas descrições do Evangelho se percebe em Nosso Senhor uma elevação tal que ­suas palavras mais breves, seus gestos mais comezinhos externavam uma perfeição, um significado e uma manifestação do divino, indizíveis.

Por exemplo, ao partir o pão diante dos discípulos de Emaús: pelo modo todo característico e nobre como Jesus o fez, os dois O reconheceram. Quer dizer, uma maneira única e sublime, na qual transparecia toda a excelência d’Ele. Mas, compreendamos: essa elevação era, ao mesmo tempo, repassada de tanta bondade, meiguice e acessibilidade, que Nosso Senhor atraía as almas e as elevava consigo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência em 20/12/1986)

São Mateus, Apóstolo

Quando o Filho de Deus se fez homem e veio a este mundo, tomou o nome de Jesus ou Salvador, porque viera para salvar-nos e não para perder-nos.

O primeiro aos quais fez anunciar pelos anjos a boa nova da sua vinda, foram alguns humildes pastores de Belém. Quando escolheu seus doze apóstolos, ou doze enviados, para espalharem a boa nova a todos os povos da terra, escolheu-os entre os humildes e os pequenos. Primeiramente foram dois irmãos, Pedro e André, que viviam da pesca, assim como dois outros, Tiago e João.

Mais extraordinário ainda é não ter Jesus escolhido seus apóstolos precisamente entre os santos, nem no interior do templo, mas nas praças públicas, entre a classe operária e mesmo entre os empregados da alfândega. Saía da cidade de Cafarnaum e dirigia-se para o mar da Galileia, onde costumava pregar à multidão, quando ao passar, avistou um publicano, Levi, filho de Alfeu, também chamado Mateus, sentado à mesa de cobrança de impostos, e disse-lhe: Segue-me. E aquele, tudo abandonando, levantou-se e seguiu-o. E Levi ofereceu a Jesus um grande banquete em sua casa. Estando este à mesa, chegaram muitos publicanos e pecadores que se sentaram à mesa com ele e com os discípulos, que em grande número o tinham acompanhado.

Mas os fariseus e os escribas, vendo que Jesus comia com os publicanos e os pecadores, murmuraram e disseram aos discípulos: Por que motivo come o vosso Mestre com os publicanos e os pecadores e vós com ele? Malgrado a aparente piedade, de que se jactavam, aqueles homens estavam cheios de desprezo pelos outros. Respondeu-lhes Jesus? Os sãos não tem necessidade de médico, mas sim os enfermos. Ide, e aprendei o que vos digo: quero misericórdia e não sacrifício; porque não vim chamar os justos e sim os pecadores.

Quão grande é a bondade de Jesus Salvador! Quem ainda poderá desesperar, seja por causa de seus pecados, seja por causa de suas más inclinações? Aí está um médico capaz, não apenas de curar os doentes, mas de ressuscitar os mortos; um médico caridoso, que se sobrecarregará com as nossas doenças e as nossas iniquidades; um médico tão bom que se transmuda em remédio para os nossos males.

Mas o publicano Mateus também não merecerá que o amemos e imitemos? Era um homem de negócios e de dinheiro, um burocrata, um financista. Contudo, mal Jesus o chama, levanta-se, tudo abandona e segue-o, testemunha-lhe publicamente a gratidão com um grande banquete. E nós, que talvez nos julguemos muito melhores do que os publicanos, o Senhor chama-nos, o Senhor diz-nos há muito tempo: Vinde e segui-me! E ficamos surdos ao seu apelo. Ah! Roguemos ao bem-aventurado publicano, cuja festa celebramos, que nos seja dado seguir o Senhor, tal como o fez.

De publicano transformado em apóstolo. São Mateus perseverou até o fim. Depois de receber o Espírito Santo com a abundância de suas graças, no dia de Pentecostes, pregou durante vários anos na Judeia às ovelhas perdidas da casa de Israel: em seguida, levou o Evangelho às nações longínquas, Pérsia e à Etiópia, e confirmou com o sangue as verdades que pregava.

Além de um dos doze apóstolos, escolhidos para pregarem o Evangelho por toda a terra, São Mateus também foi um dos homens inspirados para gravá-lo por escrito. Há quatro evangelistas: São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João; assim como há quatro grandes profetas: Isaías, Ezequiel, Jeremias e Daniel; e quatro grandes impérios: Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma e quatro querubins acima dos quais se eleva o trono de Deus, no qual está sentado o Filho do homem.

O conjunto dos quatro querubins com o trono de Deus suspenso acima deles, não tem a sua representação na terra no conjunto dos quatro grandes impérios, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma, a cujas lutos e a cujos destinos vemos outros tantos espíritos celestes presidir; espíritos que serviram de carro do Filho de Deus para que descesse à terra e nela estabelecesse seu império espiritual, e dos quais tirou seus instrumentos de vingança, pois no capítulo X, de Ezequiel, não vemos um dos querubins apanhar os carvões ardentes, que seriam espalhados sobre a criminosa Jerusalém?

Na Igreja Cristã, não viram os Padres os quatro evangelistas? Na face do homem, São Mateus, que inicia seu evangelho pela genealogia de Cristo enquanto homem; na face do leão, São Marcos, que inicia o seu pela voz de deus clamando no deserto; na face do touro, vítima principal dos antigos sacrifícios, São Lucas, que começa pelo sacerdote Zacarias no ato de desempenhar as funções do sacerdócio num templo; na face da águia, São João que. De início, eleva-se como uma águia acima das nuvens até o seio de Deus. São quatro, mas cada um deles é encontrado nos três outros, e os quatro são encontrados em cada um em particular; há quatro evangelhos, e só há um Evangelho. É o mesmo espírito que os inspira, que os alenta, que os inspira, que os alenta, que os dirige. São cheios de olhos; em tudo, até num ponto e vírgula, cintila a verdade. Contém como que um fogo divino de onde saem as fagulhas, as correntes elétricas da graça, que iluminam os espíritos, toam os corações e renovam a face da terra.

No Evangelho de São Mateus há um belo consumo de todo o Evangelho: é o Sermão da Montanha de todo o Evangelho, que reproduz inteiramente, enquanto os outros evangelistas só citam alguns trechos. É o sermão que se inicia com as oito bem-aventuranças.

O único objetivo do homem é a felicidade. Jesus Cristo veio unicamente proporcionar-nos os meios de realizá-lo. Colocar a felicidade onde deve estar é a fonte de todo bem; e a fonte de todo mal é colocá-la onde não deve estar. Digamos, pois: Quero ser feliz. Vejamos, porém, de que maneira; vejamos em que consiste a felicidade; vejamos quais são os meios para alcançá-la.

A felicidade está em cada uma das oito bem-aventuranças; pois, em todas, sob várias designações, é sempre da felicidade eterna que se trata. Na primeira bem-aventurança, como um reino; na segunda, como a terra prometida; na terceira, como a verdadeira e perfeita consolação; na quarta, como a satisfação de todos os nossos desejos; na quinta, como a última misericórdia que suprime todos os males e concede todos os bens; na sexta, sob seu legítimo nome, que é a visão de deus; na sétima, como a perfeição da nossa divina adoração; na oitava, mais uma vez como o reino dos céus. Eis, pois a felicidade em todas; mas há vários meios de alcançá-la e casa bem-aventurança assinala um; juntos, completarão a felicidade do homem.

Se o Sermão da Montanha é o resumo de toda a doutrina cristã, as oito bem-aventuranças são o resumo de todo o Sermão da Montanha.

Se Jesus Cristo ensina que a nossa justiça deve sobrepujar a dos escribas e fariseus, o ensinamento está contido na seguinte sentença: Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça. Pois se a desejarem como único alimento, se dela estiverem verdadeiramente famintos, com que abundância a receberão, pois que de todos os lados se apresentará para saciar-nos? Então também seguiremos os seus mínimos preceitos, como homens famintos que nada deixam, nem mesmo, por assim dizer, uma migalha de pão.
Se vos recomendam não maltratardes com palavras o vosso próximo é por efeito da brandura, do espírito pacífico ao qual foi prometido o reino e qualidade de filho de Deus. Não olhareis uma mulher com más intenções: Bem-aventurados os puros de coração; e o vosso coração só será inteiramente puro, depois que o tiverdes purificado de todos os desejos sensuais. São mais felizes os que passam a vida em lutas e numa tristeza salutar do que no meio de prazeres que embriagam. Não jureis; digais: É verdade, não é verdade. É ainda um efeito da brandura: quem é manso e humilde não se apega excessivamente aos sentidos, o que faz o homem afirmar com muita facilidade; diz simplesmente o que pensa, dentro do espírito de sinceridade e de mansidão. Perdoaremos facilmente todas as ofensas se estivermos possuídos por esse espírito de misericórdia, que atrai para nós numa misericórdia bem mais ampla. Mansos e pacíficos, não resistiremos à violência, deixar-nos-emos mesmo levar além do que prometemos. Amamos nossos amigos e inimigos, não apenas porque somos mansos, misericordiosos, pacíficos, mas também porque somos famintos de justiça e queremos vê-la reinar dentro de nós mesmos, melhor do quo reina no coração dos fariseus e dos gentios. Essa fome de justiça também nos leva a desejá-la por necessidade e não por ostentação.

Amamos o jejum quando encontramos nosso principal alimento na verdade e na justiça. Por meio de jejum, nosso coração se purifica e nos livramos dos desejos dos sentidos, Temos o coração puro quando reservamos para os olhos de Deus o bem que praticamos; quando nos contentamos em ser vistos apenas por ele; e quando não nos servimos da virtude como de uma máscara para iludir o mundo e atrair os olhares e o amor das criaturas. Quando nosso coração é puro, temos o olhar luminoso e a intenção reta. Evitamos a avareza e a busca dos bens, quando somos verdadeiramente pobres de espírito, Não julgamos, quando somos mansos e pacíficos; porque a mansidão expulsa o orgulho. A pureza de coração faz com que nos tornemos dignos da Eucaristia, e que nunca recebamos sem unção o pão celestial.
Quando temos fome e sede de justiça, rezamos, imploramos, suplicamos: pedimos a Deus os verdadeiros bens e confiamos em que nos atenda, quando só aspiramos ao seu reino e à mansão dos vivos. De boa vontade entramos pela porta estreita quando nos consideramos felizes na pobreza, no pranto, nas tribulações que sofremos pela justiça. Quando temos fome de justiça, não nos contentamos de dizer a boca: Senhor, Senhor! Mas nos alimentamos intimamente com a sua verdade. Então edificamos sobre o rochedo e o achamos suficientemente firme para servir de apoio à nossa construção.

As bem-aventuranças constituem, pois o resumo do sermão inteiro, mas um resumo aprazível, porque a recompensa está ligada ao preceito; o reino dos céus, sob vários nomes admiráveis, à justiça; a felicidade, à prática.

No ano de 1080, Santo Alfano, arcebispo de Salerna, lá descobriu as relíquias de São Mateus, apóstolo e evangelista. Apressou-se em comunicar o achado ao Papa Gregório VII, que o felicitou, e com ele a toda a Igreja Católica, numa carta datada do dia 18 de Setembro, na qual recomenda ao bispo as preciosas relíquias sejam dignamente veneradas.

(Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVI, p. 350 à 357)

Meu filho, pare e contemple

Momento precioso é aquele em que, a propósito de algum reflexo criado da incriada beleza divina, a graça nos toca e nos dirige este convite: “Meu filho, pare e contemple! Através dessa maravilha, Deus toma contato com sua alma, lhe diz algo, e é todo um mundo do sobrenatural que se lhe torna sensível. Na consideração e na degustação deste mundo você terá, meu filho, os melhores instantes de sua existência. Viva para essa contemplação, esperando encontrar na eternidade a plenitude dela.

“Do amor a esses esplendores faça suas delícias e seu repouso nesta Terra. Ouça-os, observe-os: eles afirmam verdades que dizem mais do que qualquer palavra; eles brilham de um fulgor que nenhuma luz terrena pode igualar. Junto deles você pode encontrar Deus que o procura, pode escutar a voz de Nossa Senhora que o chama. Pense nisto e se deixe ficar diante dessa maravilha…”

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – III Um nome mais brilhante que o sol

O Amigo da Cruz é um escolhido entre mil, apartado das coisas naturais e entregue à contemplação das sobrenaturais, colocando o seu amor naquilo que todos desprezam: o sofrimento, em união com o Divino Mestre. Dr. Plinio prossegue seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Com seu fervor característico, São Luís Grignion continua a escrever:

Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o nome inequívoco de um cristão.

Exclamações contagiantes

Cumpre considerar que São Luís Grignion escreveu essa obra numa época em que — não tanto como na Idade Média — os títulos ainda tinham muita importância, e por meio deles se definiam as pessoas com o direito de usá-los. Então o Santo utiliza o valor da titulatura, conforme à ordem natural das coisas, para mostrar como o título de amigo da Cruz é elevado. Nesse intuito, registra várias exclamações que traduzem o fogo de sua alma, com possibilidade de um contágio extraordinário.

Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra.

Não se trata de expressões lançadas ao léu. Encantar não é o mesmo que deslumbrar. O encanto assemelha-se à ternura, e o deslumbramento, à admiração. O que me encanta, de certo modo me pertence profundamente. E aquilo que me deslumbra desperta em mim admiração, veneração. Talvez sem intenção de fazê-lo, São Luís Grignion de Montfort aponta aqui os dois elementos característicos do enlevo: a veneração e a ternura.

É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores.

As duas primeiras comparações me parecem muito felizes, e na pena do Santo adquirem um calor, uma força de atração, uma refulgência extraordinários. Como que sentimos a sua alma de insigne teólogo, de inspirado literato, de varão católico, vibrando de emoção diante do título “Amigo da Cruz”.

Ternura e veneração pela Paixão de Cristo

É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

Tal é o valor de ser Amigo da Cruz, que esse título equivale ao nome d’Aquele que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pensamento lindíssimo e acertado, pois ao longo de toda a História a piedade católica elegeu a Cruz como símbolo do próprio Redentor.

Nota-se, ainda, que ele não se refere apenas à cruz como sofrimento, aceito e levado até seu termo em união com os méritos infinitos de Nosso Senhor, mas considera filosoficamente a forma de uma cruz como símbolo que traz consigo algo de santo, pelo vínculo que adquiriu com a Paixão. São Luís deseja nos comunicar, assim, ternura e veneração pelo holocausto redentor de Jesus, bem como pela santa Cruz considerada como tal, conforme, aliás, ensina a teologia. E como o ratifica a mesma piedade popular, ao erguer cruzeiros ou plantar cruzes nos mais variados locais, aonde vão em peregrinações, ou simplesmente depositar um punhado de flores junto a elas, num singelo e sincero testemunho de sua devoção.

Escolhidos entre milhares

Continua São Luís Grignion:

Entretanto, se seu brilho me encanta, seu peso não me espanta menos. Quantas obrigações indispensáveis e difíceis contidas nesse nome, e expressas por estas palavras do Espírito Santo: “sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa e um povo que Deus formou” (1 Pd 2, 9).

Quer dizer, a cada Amigo da Cruz corresponde essa definição: pertence ele a uma raça eleita, possui um sacerdócio real, é filho de uma nação santa e membro de um povo que Deus formou.

Um Amigo da Cruz…

Faço notar que São Luís escreve Amigo da Cruz com “A” e “C” maiúsculos, pois não se refere a todo e qualquer católico, mas especialmente àqueles que se consagraram na associação por ele fundada para propagar o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. A essa fundação ele fará elogios magníficos, por causa dos seus objetivos. Para nós significa algo pleno de ensinamento, pois nos mostra como o valor de nosso movimento provém igualmente do fato de amarmos a Cruz, e esse amor sobrepuja a qualidade individual de seus membros ou a consistência de sua estrutura jurídica.

Um Amigo da Cruz é um homem escolhido por Deus entre dez mil que vivem segundo os sentidos e apenas da razão, para ser unicamente um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentidos por uma vida e uma luz de pura fé e um amor ardente à Cruz.

Então, sentir uma vocação especial para uma vida e uma luz de pura fé, bem como de um ardente amor à Cruz, é graça invulgar que Deus concede a um entre dez mil que “vivem segundo os sentidos e a razão”. Já naquele tempo se estabelecia oposição entre a fé e a razão, esta última entendida no sentido do racionalismo cartesiano(1). Donde, aqueles que vivem de acordo com a pura razão natural, recusando o sobrenatural, só têm luzes proporcionadas por aquela. São os racionalistas — que de fato claudicam também em matéria de razão — e os que vivem de acordo com os sentidos.

Espírito metafísico e amor ao sublime

Um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentidos.

A linguagem de São Luís é frisante: não é contra a razão, mas acima dela. E quanto aos sentidos, refere-se à desordem deles. Está subjacente nessa afirmação a ideia de que o pecado original abalou de modo tão profundo o homem que seus sentidos se tornaram desordenados.

Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói triunfante do demônio, do mundo e da carne em suas três concupiscências. Pelo amor às humilhações, esmaga o orgulho de Satanás; pelo amor à pobreza, triunfa da avareza do mundo; pelo amor à dor, amortece a sensualidade da carne. Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado de todo o visível, cujo coração está acima de tudo quanto é caduco e perecível, e cuja conversa está no Céu (Fl 3, 20); que passa pela Terra como estrangeiro e peregrino; e que, sem lhe dar o coração, a contempla com o olho esquerdo e com indiferença, calcando-a com desprezo aos pés.

Trecho muito bonito, que exprime o amor aos imponderáveis e, de certo modo, ao sublime, ao maravilhoso. Para estar “separado de todo o visível”, ou seja, afastado das coisas materiais e voltado para as invisíveis — mormente as sobrenaturais — importa ter um feitio de espírito contrário ao materialismo, bem como à concepção racionalista e cientificista da existência humana. Para os adeptos dessa mentalidade, apenas o material é atingível pelos sentidos, é confiável e desejável, constituindo a finalidade da vida terrena. Tudo quanto é metafísico, que vai além dos sentidos, deve ser evitado como quimera do espírito e, portanto, inconsistente.

Devido à decadência da civilização, os homens cada vez mais adotaram essa postura de alma, que certas escolas filosóficas do século XIX levaram ao apogeu. São Luís Grignion de Montfort prevenia seus discípulos contra esses desvios. Para ele, o Amigo da Cruz não é apenas o que se enternece com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o que possui alguns pressupostos mentais para esse enternecimento, e um deles é o espírito metafísico, interessado no espiritual.

Em suma, para se compreender o valor do sofrimento, a pessoa deve apreciar os bens do espírito e estar desapegada da matéria, o que envolve um padecimento especial, pois significa disciplinar seu próprio ser. Tal disciplina, que exige certa renúncia — e, portanto, dor — é inerente ao autêntico Amigo da Cruz.

Desejar mais o “beau” que o “joli”

Os franceses fazem uma interessante distinção entre “joli” e “beau”. O primeiro vocábulo significa “bonito” e se aplica a coisas pequenas. Já o segundo quer dizer “belo”, um conceito mais elevado e corresponde à beleza da alma. É preciso ter algo de ascese para se conservar a posição do “beau”; querer exclusivamente o joli importa em escravização à matéria. Então nosso Santo mostra que o Amigo da Cruz deve ter como pressuposto uma forma de mentalidade metafísica visando mais o “beau” do que o joli. Este deve ser apenas pequeno acessório daquele.

Somente uma alma assim é capaz de compreender inteiramente a grandeza do sofrimento, da dor e, portanto, da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.  

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 6/6/1967)

 

 

1) Referência à filosofia do autor francês René Descartes (1596-1650) que, rompendo com a escolástica, coloca como base do pensamento o que ele chama a “dúvida metódica”.  Teve grande influência no racionalismo dos tempos posteriores,  notadamente na França e nos países que ela inspirou culturalmente.