Misericórdia infindável

Enquanto dormimos, Maria Santíssima continua a velar por nós, rogando a seu Divino Filho que nos auxilie e nos olhe favoravelmente.

Quando acordamos para um novo dia, e temos a infelicidade de começar a ofender a Deus, Nossa Senhora passa também a nos perdoar e a nos incentivar em atos de virtude. Se A ouvimos, Ela nos sorri e redobra sua solicitude, seu encorajamento maternal. Se, apesar de tudo, caímos, Ela está pronta a nos socorrer sem demora, a nos dirigir sorriso ainda mais terno e consolador, a novamente nos perdoar e reerguer.

Na verdade, a misericórdia de Nossa Senhora não conhece fim.

Plinio Corrêa de Oliveira

Peregrinando dentro de uma oração cantada

No canto gregoriano não há dramaticidade, mas uma serenidade plena de reflexão. É recitado por pessoas que, encontrando-se à margem dos acontecimentos, entoam hinos os quais muitas vezes tratam da vida dos homens e das nações, sempre elevando nossas mentes até Deus, e tirando conclusões que são verdadeiros princípios de História.

 

O  Ofício Parvo de Nossa Senhora foi cantado há pouco magnificamente, segundo os melhores princípios da música sacra. Princípios estes estudados pela Igreja, através de especialistas, durante séculos. Aprimorados, destilados, postos no ponto exato até chegarem, por exemplo, ao que todos nós ouvimos.

Em nossos dias, o bulício contagiou todos os ambientes

Nesta matéria, como em todas as outras, há uma porção de escolas, e a Igreja, sempre sábia, sempre mãe, naquilo que não está ligado à Revelação deixa uma liberdade de opinião e de pensamento àqueles que são filhos dela. Assim, essas várias escolas musicais têm cidadania dentro da Igreja.

Sempre que ouvia o Ofício bem rezado, tinha uma impressão curiosa que eu descreveria empregando o título de um artigo que certa vez escrevi: “Peregrinando dentro de um olhar”(1); eu, então, diria: “Peregrinando dentro de uma oração cantada”.

Como é minha peregrinação pessoal dentro dessa oração cantada? Ao responder a esta pergunta tenho em vista, evidentemente, ajudá-los a explicitarem as suas próprias impressões; explicitando-as, conhecerem-nas melhor; conhecendo-as melhor, saborearem melhor o cantochão, compreenderem melhor o canto da Igreja e o amarem mais.

O bulício de nossos dias contagiou todos os ambientes pela imposição das circunstâncias. Se tudo corre, tudo se agita; ou corremos também ou perdemos o avião, o trem, o bonde… Então, é preciso absolutamente correr.

Hoje em dia, levo uma vida como antigamente se ouvia falar, no cinema, que levava um banqueiro riquíssimo: tomava o elevador com um secretário, com quem ele despachava alguma coisa; no trajeto entre o elevador e o automóvel ainda atendia alguma pessoa, sentava-se dentro do automóvel, tinha ali outro secretário para tomar nota de diversos assuntos. E assim conduzia a vida dele, até durante as refeições. De maneira que ele dormia o menos possível e, quando conciliava o sono, ainda sonhava com despachos!

Todo o meu temperamento é o contrário disso que representa para mim um pesadelo. Desse pesadelo, eu só não tenho duas coisas: o dinheiro do banqueiro e, graças a Deus, o sonho com negócios. Ainda os mais sagrados “negócios” de apostolado, não sonho com eles. Na hora de dormir, tomo um livro para ler, penso em outras coisas, mas não em despachar assuntos concretos.

Quando acordo de manhã, já recebo as primeiras notícias do dia e começa a roldana. De maneira que, contra a minha vontade, como um prisioneiro que está amarrado a uma máquina e é obrigado a correr com ela, levo essa vida que eu não quereria levar.

Calma, tranquilidade, distância psíquica que defluem do cantochão

Por isso posso medir bem a transição entre essa vida corrida e o momento em que, de repente, começa-se a ouvir o canto sacro. No primeiro instante, é uma sensação subconsciente, nada violenta, nada desagradável, de defasagem. Quando se está começando a pensar como fazer para corrigir o que está defasado, a ação do canto sacro — ainda quando não se entendam as palavras — vai penetrando na alma e abrindo nela certos “compartimentos” que estavam fechados.

Vai pondo em evidência e colocando em condições de vibratilidade certas possibilidades de sentir que estavam colocadas de lado, e nas quais não se prestava muita atenção. E começa a emergir, de dentro da agitação, uma calma, uma tranquilidade, uma distância psíquica(2), que fazem as coisas fluírem como flui o som do cantochão.

Para quem não tem sensibilidade, esse canto é uma contínua repetição, mas na realidade não é. Aquilo, a cada vez que se repete, diz algo de novo para a alma capaz de saborear. Depende da alma.

O sabor de uma inflexão de voz não é bem o da outra, aquilo diz uma coisa nova a cada inflexão que, de um lado, é parecidíssima com a anterior, e de outro lado fala uma coisa completamente diferente da anterior.

É preciso que o cantochão tenha entrado muito nos nossos ouvidos para nos familiarizarmos com a linguagem dele. Ele tem todo um timbre de voz e toda uma linguagem discretíssimos. Tal linguagem discretíssima supõe que alguém esteja nos falando numa certa clave, e que vai nos induzindo a nos pormos nessa mesma clave para ouvirmos e respondermos. Dessa forma é um diálogo que se abre, mas de um abrir que é um afetuoso impor.

Isso é assim, mesmo quando não se compreendem as palavras; se estas são entendidas, tomam um outro sabor.

Compreendendo o fundo dos acontecimentos, mas recusando-se a vibrar com eles

Há pouco, por exemplo, foi cantado o Salmo cujos dizeres eram:

“Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigiam as sentinelas.”(3)

Em arte declamatória, essas palavras poderiam ser recitadas legitimamente em tom de aviso, contendo uma ameaça, como quem dissesse: “Enquanto o Senhor não defender a cidade, inútil vos é defendê-la! Pedi, então, a Deus que a defenda, e vencereis! Do contrário, cairá sobre vós a mão do Altíssimo cujo auxílio não pedistes!”

Isso que estou imaginando, dito como uma advertência de alguém que vê uma cidade defendida por outros que não rezam por ela, no cantochão não tem essa dramaticidade. É recitado à maneira de uma reflexão feita por quem, encontrando-se à margem dos acontecimentos ­­— e tendo ouvido falar da ruína de muitas cidades pelas quais os defensores não oraram —, conclui um grande princípio geral da História. São desses princípios em que as torres da História entram pelas nuvens sagradas da Teologia.

São reflexões que se sucedem, feitas por homens que estão no silêncio, muito atentos ao que se passa na Terra, mas já com os ouvidos postos no Céu. Pessoas que ponderam dentro de um estado de espírito todo especial, sem as agitações terrenas, mas às quais chegam todos os ecos da vida. E que, portanto, dentro de um silêncio sacral e celeste, redestilam toda a Terra e toda a vida, com muita força de alma, pois compreendem o fundo dos acontecimentos, tomam-lhes inteiramente o sabor, recusando-se a vibrar com eles.

Uma batalha entre dois exércitos que combatem em campo raso

Imaginemos uma batalha travada em terra plana, cujos exércitos opositores são comandados por dois generais postados, cada um, no alto de uma colina. Embora esses generais não se vejam, eles estão atracados inteiramente um ao outro. Apesar de que estejam retirados e, aparentemente, não participarem da luta, o suco do combate se dá ali. Porque, como a direção da batalha vem desses generais, é ali que tudo repercute. E é essa repercussão que impede a batalha de se transformar numa brigaria individual.

A guerra é, portanto, uma realidade que exige estar um pouco fora dela para se penetrar inteiramente nela.

Suponhamos, agora, que numa colina mais elevada especialistas de guerra assistem à batalha. Eles não torcem por nenhum dos dois lados, mas estão estudando a arte militar pelo modo daqueles dois exércitos combaterem.

O tom no Estado-Maior das duas primeiras colinas deve ser tranquilo, atuante e rápido. Na colina mais alta, o tom é ainda mais tranquilo, mais distante dos acontecimentos, entretanto o suco dos acontecimentos sobe até lá com maior força. Porque ali não se resolve uma batalha, mas são os conhecimentos do gênero humano sobre a arte de guerrear que progridem. Se aquela batalha for bem observada, a História da Guerra pode mudar de direção.

Esses especialistas conversam entre si com uma cordialidade normal, observam, nunca levantam a voz, dialogam, concluem. Eles estão muito mais alto, e acima deles há apenas um “teto” chamado “teoria”. Eles viram e mexem, sobem ao mirante da teoria, depois voltam para uma prática observada de longe, chegam a uma alta consideração sobre a guerra.

Seja qual for o exército vencedor, quem tirou a melhor lição da guerra foram os que estiveram na clave humana mais elevada.

Com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus

Essas orações do saltério referem-se continuamente a acontecimentos humanos passados, mas perenes, porque em algo a História sempre repete aqueles episódios. E os Salmos nos mostram atitudes dos homens perante esses acontecimentos, regras gerais de sabedoria sobre o modo de proceder, a conduta de Deus, para aprendermos como Ele é, como devemos agir com Ele, e como Deus agirá conosco. O píncaro é propriamente saber agir com o Criador na hora da aflição.

Então, o cantochão deve ser visto como homens que se colocam intencionalmente nesse píncaro do pensamento, com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus.

Esta posição supõe uma atitude de alma preparatória para a ação, porque é um estudo da ação. Antes de tudo, ação de Deus, depois nossa ação com o Criador e com os homens, e de como o Altíssimo toma esta nossa ação com os homens.

Ora é alguém que pecou, cometeu tal crime e pede perdão, mas sente que Deus está demorando em concedê-lo. Então, invoca de um modo, alega outra coisa… Ora, pelo contrário, é um hino de ação de graças porque Deus concedeu um favor qualquer, e sentimos o sabor do dom quando nele ainda se encontra o calor da mão divina.

Trata-se, portanto, de uma espécie de oração a propósito do acontecer interno humano, da vida interior, da vida externa individual e das nações e, em face daquilo, a atitude de Deus. O coro sereno salmodia e, com as próprias palavras da Escritura, aprende a louvar a Deus.

Exercícios de voo de alma

Qual é o resultado disso na hora da ação?

O espírito sai tranquilizado, serenado e muito mais capaz de subir. São verdadeiros exercícios de voo de alma contidos não só no que o texto diz, mas, além do texto, há algo da posição temperamental do homem que pensa e reflexivamente sente, alegra-se, se entristece, chegando às vezes aos extremos da alegria ou da dor, porém sem sair daquela serenidade da reflexão, de quem está à margem e acima dos fatos.

Por vezes as pessoas formam a ideia errada de que na torcida encontra-se o próprio sabor da vida. Na verdade, encontramos o sabor da vida quando mandamos embora a torcida e olhamos de cima.

Certa ocasião, vi um homem conhecedor de vinhos que provava um vinho muito bom oferecido a ele. Ele disse que o vinho era muito saboroso, mas a análise do mesmo não se limitava em bebê-lo, era preciso também saber sentir seu aroma. Ele, então, parava de tomar e cheirava um pouco o vinho.

No cheirar há uma tomada de distância psíquica em relação ao beber, porque se analisa um pouco mais do que quando se tem a bebida meramente sobre a língua. Na língua se associam outras sensações, e logo depois se engole. O cheirar é uma análise mais intelectiva.

Saber sentir o perfume do “bouquet”(4) da vida é não torcer. É adquirir essa serenidade que constitui a própria clave da existência.

Temos, assim, algumas ideias gerais sobre o conteúdo dos Salmos e a clave em que eles nos põem, por meio do cantochão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/4/1983)

 

 

1) Publicado na Folha de São Paulo, em 12/11/1976.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Sl 126, 1.

4) Do francês: conjunto de elementos.

Prece a São Miguel Arcanjo

São Miguel Arcanjo, vede o quanto há, em nossos dias, uma presença preternatural especialíssima. Quebrai o poder e a eficácia dessa presença pela ação de vossa força.

Vós, que arrastastes na luta contra os espíritos revolucionários as coortes vencedoras dos Anjos contrarrevolucionários, aumentai em nós a Fé, a retidão da inteligência, a firmeza de princípios e a combatividade heroica, de maneira a discernirmos cada ardil do demônio, formando em nossa alma uma execração perfeita que esmague, inutilize e expulse os dragões infernais. Amém

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 2/12/1973)

Maria Santíssima, nossa âncora nas nuvens

Favorecido pela Providência com o dom de se expressar  de modo muito claro e com beleza literária, Dr. Plinio utilizou largamente esse predicado  para fazer o bem ao próximo. Nesse apostolado, um dos recursos mais atraentes de que se valia era o uso das  metáforas, por meio das quais ilustrava seus ensinamentos e os tornava de fácil compreensão. A seguir, inaugurando esta nova seção,  recordamos a imagem concebida por Dr. Plinio para salientar o indispensável auxílio da Mãe de Deus em nossa vida espiritual.

 

Ao longo dos nossos anos de apostolado, analisando a ação da graça nessa e naquela alma, dir-se-ia que, para um católico dos dias de hoje — e, de maneira especial, para um membro do nosso movimento — a fidelidade à vocação consiste em desejar um retorno dos melhores frutos da Civilização Cristã que foram sendo destruídos pela incorrespondência dos homens.

A confiança de um navegante em situação desesperadora

Tal anelo, parece-me, seria compreensível e justificável noutra época. Porém, após tanto tempo de dita incorrespondência e, por conseguinte, de pecados e ofensas cometidos contra a bondade divina, a fidelidade se nos apresenta de modo diverso: exige-se de nós que sonhemos, no sentido mais nobre da palavra, com uma ordem de coisas na linha do que teria sido aquela anterior se não tivesse sido destruída e, mais ainda, que a supere totalmente.

Como sonhar? Como confiar nessa superação?

Creio que a única solução para quem se encontra em situação semelhante a essa em que estamos, e na qual provavelmente estaremos cada vez mais imersos, é lançar uma âncora. Contudo, fazê-lo à maneira de um navegante que se acha numa circunstância tão desesperadora que, ao invés de deitar a âncora no fundo do mar, arroja-a em direção às nuvens, esperando que o Céu a segure por ele. Ou seja, é preciso chegar até essa ousadia de confiança.

Quanto mais generosa a alma, mais ela acredita no socorro de Maria

 E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, seria uma atitude racional. Com efeito, sendo a voragem da água tal que o próprio fundo do mar se descobre aos olhos do navegante, ele não tem outro recurso senão lançar a sua âncora para o Céu. E é tanto mais provável que o Céu atenda seu apelo, quanto mais terá sido sua confiança na hora de jogar a âncora.

Noutras palavras, quanto mais a alma for própria a dar‑se, quanto mais for generosa em dedicar-se ao serviço de Deus e de Maria Santíssima, tanto mais ela acreditará, no momento da provação e da angústia, que Nossa Senhora fará por ela o inconcebível em matéria de socorro, de amparo, de solicitude.

Nossa Senhora segura a âncora no Céu

Alguém poderia me perguntar, muito a propósito: como se joga uma âncora para o Céu?

Responderia eu que há determinadas circunstâncias nas quais percebemos claramente que uma ação nossa corresponde ao plano da Providência para conosco, mas, ao mesmo tempo, de acordo com as disposições humanas, tal realização é por inteiro improvável. Ora, nós nos engajamos nessa obra porque percebemos tratar-se do desígnio da Providência, e só por isso, pois do contrário seria uma temeridade e uma loucura. A âncora foi jogada para o Céu.

Importa notar o seguinte aspecto: não é tanto algo que resolvemos fazer, mas uma situação que aceitamos com confiança, por discernirmos que Nossa Senhora colocou por nós a  âncora nas nuvens.

Por exemplo, aqueles que me acompanham há mais tempo em nosso apostolado nunca me viram traçar um plano com este estado de espírito: “Tal lance é uma loucura, mas vamos fazê-lo porque a Providência quer”. Porém, ouviram incontáveis vezes eu dizer: “Tal situação está perdida, mas vou me manter em paz porque a Providência nos ajudará”.

Essa, repito, é a âncora nas nuvens. Nossa Senhora a colocou ali por nós. Percebemos que o navio desapareceu, o mar corre por debaixo dos nossos pés, estamos pendurados numa corda, presa não sabemos onde. Olhamos para cima: está numa nuvem e com uma âncora na ponta. E o mais extraordinário: está ventando de tal maneira que o vento pode levar a nuvem a qualquer hora… Entretanto, Nossa Senhora quer que permaneçamos tranquilos, pendurados na âncora como se estivéssemos com o chão sob nossos pés.

Sei que não é uma atitude fácil de ser adotada. Mas, pela minha própria experiência, posso afirmar que ela é, ao mesmo tempo, terrível e altamente deleitável.

Confiança na gloriosa mediação da Virgem

Cumpre, pois, que nos formemos nessa generosidade de alma e, quando for preciso, lancemos a âncora para o Céu com toda a segurança. Preparemo-nos para jogá-la às nuvens, pedindo a Nossa Senhora que nos alcance uma virtude da confiança semelhante à d’Ela.

A abundância da misericórdia de Maria sobrepuja tudo quanto qualquer um de nós possa excogitar. Deixemos nossas apreensões inteiramente nas mãos de Nossa Senhora e Ela tudo resolverá. Essa certeza não é gratuita: baseia-se na mediação onipotente da Mãe de Deus em nosso favor. Mediação, aliás, belamente assinalada na oração final da Ladainha Lauretana, que me apraz muito recitar: “Pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria”.

Ou seja, de tal modo uma súplica de Nossa Senhora é atendida por seu divino Filho que seus pedidos podem ser qualificados de gloriosos. Isso deve nos entusiasmar e cumular de confiança n’Aquela que incansavelmente está disposta a nos socorrer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 1 e 2/3/1980)

“Meu filho…”

Ao tecer enlevados comentários a uma passagem do livro do Eclesiástico, Dr. Plinio nos mostra a Sabedoria divina ensinando aos filhos de Deus — verdadeiro Pai e protetor dos que O amam — a paciência, a humildade e a confiança, especialmente nos momentos de infelicidade e provação nos quais a alma se edifica e se modela, conformando-se aos desígnios que lhe reserva a Providência.

 

Inspirados pelo Divino Espírito Santo, os livros da Bíblia estão permeados de uma riqueza de ensinamentos, aliada a uma beleza literária e poética, que nunca cansamos de admirar e haurir para o engrandecimento de nossa alma.

A título de exemplo, consideremos os seguintes versículos do Eclesiástico (2, 1-6;11-12):

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Inefável timbre da Escritura

A Escritura como que possui um timbre de voz próprio, em virtude do qual quando diz “meu filho”, sente-se realmente o desvelo materno ou paterno para com seu filho. Quase nos tomamos de remorso ao ler tais palavras em voz alta, acrescentando nosso verbo ao inefável, mas verdadeiro, que os livros sagrados expressam.

Nota-se, aliás, um reflexo desse predicado na frase que São Bento escreveu na introdução de sua regra: “Escuta, filho meu,  os preceitos do mestre, e inclina o ouvido do teu coração. Recebe de bom grado o conselho de um bom pai, e cumpre-o eficazmente, para que, pelo trabalho da obediência, voltes Àquele de quem te havias afastado” (Regra de São Bento, Prólogo).

Dever-se-ia aprender a exprimir frases semelhantes, não se fazendo a pergunta: “Qual o melhor efeito que posso tirar de minha voz pronunciando essas palavras?”, mas formulando outra indagação: “Qual o timbre com que a Escritura afirma tal coisa? De que modo posso obrigar minha laringe a emitir os acentos dessa voz inspirada por Deus?”

Esta última seria a disposição correta para se saborear a beleza do texto do Eclesiástico acima citado.

Humildade e paciência

Então diz o autor sagrado:

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação.

Ou seja, na prática das virtudes e no temor de Deus, preparamos nossa alma para o momento da tentação. É um esplêndido conselho! “Começastes a amar o Criador? Atenção: prepara-te, pois a provação virá.”

E prossegue:

Humilha teu coração, espera com paciência…

É interessante notar a correlação estabelecida pela Escritura entre humildade e paciência. O homem humilde espera com paciência; o orgulhoso se exaspera com a demora.

Dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade.

Ou seja, no tempo difícil, não tenha pressa em sair dele. É o que a sabedoria sussurra em nosso espírito. Trata-se de outro ensinamento admirável.

Suportar a demora com heroísmo

Sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

“Sofre” aqui significa aturar, suportar. Pelo que se depreende do texto, a vitória é concedida a quem sofreu com paciência. Paciência esta que não é indolência, mas a virtude forte por onde se aguenta a dor da espera. E ai do homem para o qual a demora não representa uma dor! Ai daquele, portanto, que não suporta pacientemente o sofrimento da espera!  Deve fazê-lo como um herói. Nisto se acha a beleza desse conselho do Eclesiástico, numa íntima conexão com aquele da humildade.

O homem reto poderia pensar: “Minha paciência me dá o direito de presenciar em vida a realização de tudo que desejo, o triunfo da Igreja no Reino de Maria”. É verdade… Porém, por humildade, devo compreender que Deus faz de mim o que quiser. Posso, inclusive, ser posto de lado em seus divinos planos. Resultado, essa provação me granjeará riquezas no fim de minha existência: “…no derradeiro momento tua vida se enriqueça”.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência.

Em outros termos, sinta a dor, sofra, porque é terrível o que te acontece. Não sejas um inerte e tolo que, à força de apanhar, não tens mais dor. Não. Suporta teu sofrimento, por amor a Deus. Adiante!”

Não se trata de uma atitude simples de ser tomada, mas é profundamente formativa.

Deus prova aquele a quem ama

Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Quer dizer, a quem Deus ama, fá-lo passar pela humilhação. Como diz o Salmista, “de torrente in via bibet” (Sl 109, 7) — “beberei da torrente do caminho”, isto é, sofrerá grandes abatimentos, depois dos quais poderá chegar aos píncaros. Tais humilhações hão de estar no seu caminho nesta ou naquela ocasião, ou durante a vida inteira, conforme os desígnios do Altíssimo, que por isso aconselha: Sê paciente e caminha!

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Outra bela expressão do autor sagrado, indicando que devemos, até o fim dos nossos dias, cultivar não apenas nossa confiança no socorro divino, como também o temor filial e reverencial a Deus.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Para dizer tudo numa palavra, esses versículos se compaginam de modo maravilhoso com a tocante súplica dirigida por São Bernardo a Nossa Senhora, no Lembrai-Vos: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenham recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado…”

Guiados pela sabedoria, ao encontro da Santa Igreja

Para concluir esses comentários, recordo outra linda passagem da Escritura, desta feita do Livro da Sabedoria (6, 12-17):

Resplandecente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente. Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam. Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta. Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado. Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos, porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

Desdobrando o luminoso pensamento contido nesse trecho, pode-se deduzir que se um homem, ao longo de sua existência, encontrou o que deveria procurar, no fim de seus dias poderá dizer: “Eu vivi!”. Do contrário, lamentar-se-á: “Andei pelas ruas como um cão sem dono, comi nas latas de lixo, bebi nas sarjetas, dormi na garoa, na chuva e ao sol, porém não vivi. Porque não encontrei a mão amiga que me agradasse, o dono que me afagasse. O cachorro foi criado para ser fiel e eu, para servir. Mas, não achei senhor. Tive uma via vazia e morro de modo desprezível”.

E se a pessoa, em qualquer etapa de sua existência — infância, juventude, idade madura, ancianidade — procura realmente o que deve, ela encontra, na proporção de seu entendimento em cada uma dessas etapas, a sabedoria. Esta se acha à nossa porta, esperando-nos despertar. Ao acordarmos, ela, com seu esplendor de rainha, suas carícias de mãe e iluminações incomparáveis, convida-nos a segui-la.

E, deixando-nos guiar pela sabedoria, encontraremos os esplendores ainda maiores da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

Protetores e advogados do homem

Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Pacífico, uma vítima expiatória

A pequena quantidade de água colocada no cálice, durante a celebração da santa Missa, simboliza o sofrimento do homem que, de certa forma, completa os padecimentos de Cristo. Ilustram de  modo marcante essa verdade os sofrimentos atrozes de São Pacífico, suportados com toda a paciência, calma e cordura, por amor ao Redentor.

No dia 24 de setembro celebra-se a memória de São Pacífico de São Severino, confessor. Temos os seguintes dados biográficos a respeito dele(1):

Apostolado do sofrimento

Em São Severino, nas Marcas de Ancona, nasceu São Pacífico, no dia 1º de março de 1653, de uma família empobrecida, de nome Divini, na qual havia treze filhos.

Aos quatro anos, perdeu o pai e a mãe, e junto com outros de seus irmãos foi para a casa de um seu tio eclesiástico, homem duro, cujas duas criadas maltratavam e escravizavam os meninos.

Pacífico havia recebido precocemente, de sua mãe, uma boa formação religiosa, que o ajudou a não se sentir desesperado naquele lar sem carinho e a seguir a vocação religiosa que o atraía.

Aos 17 anos, ingressou no Convento dos Franciscanos Reformados de Forano, recebendo Ordens Sacras e passou a ser professor de Filosofia no convento.

A parábola do Senhor, segundo a qual a messe é grande e poucos os operários, não se afastava de sua mente, e ele concluiu que o mundo não precisava de doutores, mas de apóstolos. Falou disso a seu Provincial, que o dedicou, em 1683, a tarefas missionárias.

Assim, durante cinco ou seis anos, pregou ativamente. Seu ideal era converter os infiéis e sofrer o martírio. Mas Deus havia reservado a esse caçador de almas outro apostolado: o do sofrimento.

Os pés se lhe incharam e cobriram-se de chagas, e essa doença não o deixou até a morte. Em seus períodos de melhora, foi guardião no Convento de São Severino e pôde dedicar-se muitas horas à Confissão.

Entretanto, ficou totalmente surdo, de tal forma que não mais conseguia comunicar-se com os que o rodeavam. Mas com isso intensificou sua união com Deus.

A perda desse sentido não foi o bastante. Pacífico ficou também cego. Durante os últimos anos de sua vida, não pôde mais ir ao coro nem celebrar a Santa Missa.

A essas dores físicas somaram-se outras de ordem psíquica. A vida eclesiástica converteu-se para ele numa caminhada pelo deserto, em meio ao maior abandono e angustiado por uma ardente sede de Deus.

E, como os piores inimigos do homem são os seus semelhantes, São Pacífico encontrou algumas pessoas de seu convento — como o sacristão e o enfermeiro — que o maltratavam por palavras e ações, com que o santo, com sua inesgotável e firme paciência, tornou-se um modelo de quantos carregavam esta cruz.

Faleceu a 24 de setembro de 1721.

Hóstia pura, santa, imaculada para expiar pelos pecadores

Estamos aqui diante de uma das mais belas vocações que existem na Santa Igreja: a de vítima expiatória. Porém ninguém deve oferecer-se como vítima expiatória, sem licença de seu confessor.

Como vimos, trata-se de um santo que primeiro estudou e foi aproveitado para ser professor. Mas depois, levado pelo zelo e entendendo que deveria haver na Igreja mais missionários do que doutores, quis se entregar à pregação. E por essa forma ele fez certo bem, durante alguns anos. Entretanto a Providência o chamava para um superior apostolado, que é o dolorosíssimo apostolado da Cruz.

Ele foi levado pelo trajeto comum da via das vítimas expiatórias. É como um círculo que vai se apertando, desventuras que o vão cercando cada vez mais, até lhe criarem, em determinado momento, uma situação paroxística, dentro da qual ele morre.

E assim como Nosso Senhor, na sua Alma e no seu Corpo santíssimos, foi recebendo tormentos e mais tormentos até chegar à crucifixão, e dentro desta a um extremo de dor que O levou à morte, também essas almas vão sendo assediadas de sofrimentos múltiplos até o momento em que, a bem dizer, elas morrem de dor. E entregam sua vida como uma hóstia pura, uma hóstia santa, uma hóstia imaculada, para expiar pelos pecadores. Foi o que se deu com São Pacífico.

Sofrimentos causados por chagas nos pés, surdez…

Primeiro, foi atingido por uma doença que provavelmente o condenou à imobilidade: chagas nos pés. Certamente por causa disso ele se dedicou, sobretudo, ao confessionário: porque é uma forma de ministério na qual o padre pode ficar parado e ouvindo confissões; enfim, fazendo por essa forma algum bem às almas.

Entretanto, isso não bastou e ele se tornou surdo, e de uma forma de surdez devido à qual ficou completamente excluído do convívio humano. Hoje, com esses aparelhos de audição que há, e essas operações etc., as pessoas talvez não tenham ideia da exclusão em que fica o surdo. É claro que é possível fazer-lhe entender alguma coisa, mas ele se torna o cacete, o insuportável, o difícil de carregar. Porque todo mundo está conversando e, de repente, vem o surdo: “O que é?” Somos obrigados a dar-lhe um resuminho, que nos obriga a sair do fluxo da conversa para entrar no poço de silêncio dele. Depois o surdo faz uma outra pergunta, fazemos sinal de que lhe explicaremos posteriormente e voltamos para a conversa, e ele fica com o tostão que lhe jogaram.

Eu tive um parente surdo, e vi bem como era essa situação dele. Há uma pessoa surda em minha família, e noto qual é a tentação permanente dos que tratam com surdos: empurrá-los de lado e não ter paciência com eles. O surdo quer explicações do que todos já entenderam, e nos tira da linha de nossa atenção e de nosso interesse, para nos preocuparmos com ele.

Então, São Pacífico ficou paralítico ou, digamos, pelo menos com a locomoção muito difícil, padecendo a dor que chagas devem fazer sofrer e, ao mesmo tempo, tornado surdo. Dir-se-ia que o martírio dele chegou ao auge. Mas era preciso uma coisa ainda pior.

…cegueira e maus tratos

Ele sofreu as duas limitações conjugadas que mais afastam o homem do convívio humano: a surdez completada pela cegueira. Como o surdo recebe alguma notícia de fora? É pela vista. Mas se ele também não vê, o único modo que possui para se comunicar com os outros é o tato. E este é uma forma de comunicação que só pode servir para os avisos mais sumários: quatro batidas significa que é para sentar-se; cinco, para tomar água…

Podemos imaginar até que ponto o surdo-cego fica dependendo de seu enfermeiro, o qual é um canal que o liga ao mundo dos vivos. Ele, de fato, é um enterrado-vivo. Não há muita diferença entre um surdo-cego e um homem que está na sepultura.

E a Providência permitiu que um agravamento se produzisse e a maldade humana se exercesse contra esse coitado — entretanto um santo —, na pessoa de seu próprio enfermeiro. Quer dizer, desse canal que o ligava para alguma comunicação com a vida lhe vinham maus tratos e sofrimentos. Além disso, havia um outro que o perseguia.

Compreendemos qual é a baixeza existente em uma pessoa que persegue alguém assim. Quando a caridade católica mandaria ser todo atenção, todo gentileza, todo paciência, todo requinte de humildade para com uma pobre pessoa nessa situação, pelo contrário sucede esse sofrimento complementar.

A biografia até passa um véu para não se saber o que foi feito contra o santo. Mas, à força de se esconder, desconfia-se que entraram coisas das piores, talvez até violências físicas. E ele, com toda paciência, calma, cordura, sem guardar na alma um pingo de ódio; foi assim que esse homem terminou o seu martírio nesta Terra.

E ele acabou sofrendo tudo quanto uma pessoa, nessa ordem de coisas, pode sofrer: isolamento, abandono, tédio. E, naturalmente, as angústias interiores desse estado, ao lado das quais podemos imaginar as tentações do demônio e a impossibilidade de se comunicar sequer com um confessor, porque ele podia falar, mas não ouvir as respostas do confessor. Entendemos, assim, o que foram as últimas jornadas dessa pobre alma na Terra.

Quando morreu, São Pacífico foi ao Céu e certamente as primeiras palavras que ouviu de Nossa Senhora foram que ele estava como Nosso Senhor, no Qual, do alto da cabeça até a planta dos pés, não havia nada que fosse são. Também nesse coitado, na sua alma e no seu corpo, não havia mais nada que fosse são.

A água que se mistura com o vinho no sagrado cálice

Qual é a razão dessa misteriosa vocação? Por que sofrer tanto assim? Evidentemente, para expiar pelos pecadores. Nosso Senhor Jesus Cristo poderia ter remido o gênero humano com uma só gota de seu Sangue infinitamente precioso. Mas Ele quis derramar todo o Sangue — e até a água misturada com Sangue que havia em seu Corpo sagrado — por amor de nós. E, por um desígnio admirável, Ele quis que seus padecimentos fossem como que completados pelos sofrimentos dos outros homens. O Salvador desejou que houvesse almas as quais se associassem à Paixão d’Ele, para o efeito de pagar inteiramente os pecados dos homens. Redentor, só o Sangue d’Ele; expiatório, entretanto, o sangue dos outros homens, misturados com o d’Ele.

Na Liturgia da Missa, há um fato muitíssimo bonito e que faz pensar nisso: em determinado momento, o sacerdote toma uma colherzinha com água e coloca esta dentro do sagrado cálice. Aquela água se mistura com o vinho que vai se transubstanciar no Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; e isso indica o sofrimento humano, que entra como uma gota na imensidade do sofrimento divino para se oferecer, se misturar e, por assim dizer, se divinizar com o padecimento de Nosso Senhor, para expiação dos pecados dos homens.

Os que sofrem prestam o mais eminente serviço à Santa Igreja Católica

De outro lado, há um papel muito importante: o de nos apresentar o espetáculo da dor, para fazer-nos admirá-la, amá-la, compreender que o grande fim da vida humana é servir a Nosso Senhor, e um dos melhores meios de servi-Lo é sofrer as dores que Ele nos manda.

Se alguém perguntasse quem, no século dele, fez carreira, poder-se-ia dizer que foi esse santo. Porque ele arcou com todos os sofrimentos que a Providência queria que suportasse. E por isso ele fez a admirável carreira do miserável sofredor, da vítima expiatória, que carregou a cruz até o fim, confortada pelos méritos de Nosso Senhor, pelas orações de Nossa Senhora, e que pôde chegar até o Calvário, como o Redentor.

Isto é a suprema glória, o exemplo magnífico. Para trabalhar há muitos, para rezar e lutar há poucos, para sofrer, quase ninguém. E, portanto, aqueles que sofrem prestam o mais eminente serviço à Santa Igreja Católica. Essa biografia é uma verdadeira ilustração do livro de São Luís Grignion, publicado décadas depois, o “Tratado dos Amigos da Cruz”.

Esse sacrifício desinteressado foi feito apenas por amor de Deus e de Nossa Senhora, uma imolação completa para dar glória a Eles, pelo desejo de se destruir a fim de louvá-Los, e pela ciência de que com isso se resgatava um número incontável de grandes almas pecadoras, que iriam brilhar no Céu, como sóis, por toda a eternidade, por causa dos sofrimentos desse homem.

Os sofrimentos são os melhores presentes que Nossa Senhora nós dá

Se ele não tivesse tido Fé, não tivesse tido, em última análise, a convicção da utilidade de seu sofrimento, não teria aguentado. Porque essas situações quase ninguém suporta. Ele aguentou, com certeza, com essa ideia de que seu exemplo, suas orações, seus sofrimentos fariam bem para inúmeras almas.

Nesse tempo — século XVII —, o Brasil era um país de selvagens, com índios fabulosos, esquisitos, etc. São Pacífico poderia imaginar que, em 1966, o exemplo dele faria bem para muitas almas, incitando-as a amar a Cruz, a dor? Ele não imaginava.

Mas do Céu ele está vendo. E o que se passa aqui neste auditório aumenta a glória dele; e faz com que os ouvidos moucos e os olhos cegos dele — que estão esperando a ressurreição —, no fim dos tempos, brilhem com um fulgor todo especial, inclusive por causa dessa glória que a ele está sendo dada neste momento.

Nós não temos, pelo menos de um modo geral, a vocação de vítimas expiatórias; mas sim sofrimentos, os quais é preciso amar muito, e não procurar desfazer-se deles com horror. Devemos compreender que os sofrimentos são os melhores presentes que Nossa Senhora nos dá, são pedaços da Cruz de Cristo que Ela quer implantar em nós; precisamos suportá-los com ânimo, com dedicação, com verdadeira decisão e alegria. E compreendendo que quanto mais Maria Santíssima se dignar de nos fazer sofrer, tanto mais Ela nos prova seu amor e prepara para nós méritos no Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1966)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da ficha lida por Dr. Plinio nessa ocasião.

 

Força e doçura

Objeto de nosso enlevo e admiração, a extraordinária figura do Imperador Carlos Magno se destaca na história da Cristandade, por ser ele o grande protetor da Igreja no seu tempo, e um dos fundadores da Europa católica. Já tive ocasião de externar o quanto seu exemplo se fez valioso em minha formação, desde aqueles remotos dias em que o “encontrei” pela primeira vez, numa revista comprada na estação ferroviária de São Paulo(1).

Entre outras inestimáveis marcas deixadas por ele na cultura e na arte da Civilização Cristã, temos o legado de sua presença em Aix-la-Chapelle (a atual cidade alemã de Aachen), aonde fazia tratamento com águas minerais e ali residia num palácio do qual restam lindos vestígios. Foi igualmente de sua iniciativa a construção da esplendorosa catedral da cidade.

Como se sabe, a escultura foi uma das manifestações artísticas mais desenvolvidas pela Idade Média, de modo especial cultivando e desenvolvendo o estilo gótico. Na Catedral de Aachen, assim como em outros importantes templos medievais, percebemos isto de curioso: nas imagens que adornam os pórticos e as fachadas há sempre uma junção de paz e serenidade profundas. Sobretudo em se tratando de personagens masculinos, temos homens grandes, fortes, vigorosos, dando-nos a impressão de serem netos ou bisnetos de um bárbaro. Ou serão protagonistas de cenas bíblicas, patriarcas veneráveis, de barba possante e a coragem de guerreiros.

Entretanto, neles transparece a doçura e a tranqüilidade. É a nota componente da Idade Média, um tanto esquecida no mundo contemporâneo: a ligação harmoniosa entre a fortaleza e a doçura. Homens fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos bárbaros — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E dão origem a esse ambiente de suavidade, nascido de um passado repleto de lutas e sofrimentos, mas também pleno de oração, de piedade, de obras de caridade e misericórdia. Foi na Idade Média que se construíram os primeiros hospitais no mundo.

Tudo isso se eternizou nas pedras e nas recordações históricas, como as da Catedral de Aachen. No seu interior, ela nos mostra altas arcadas, com dois andares de colunas, atrás das quais reluzem bonitos vitrais, e o majestoso lustre, acrescentado no século XII pelo Imperador Frederico I, como símbolo da Jerusalém celeste, pendendo do teto adornado de mosaicos com cenas sacras.

Na catedral se conservam dois objetos de imenso valor. Um, a mais bonita peça de ourivesaria por mim conhecida, é o relicário contendo os restos mortais de Carlos Magno.

O desenho é de uma basílica, toda lavorada com aplicações de prata dourada, verniz, filigranas com pedras preciosas e esmalte. Circundam-na as imagens de oito reis do Sacro-Império, sucessores do grande Carlos, desde Luís o Piedoso até Frederico II. Na parte da frente, sobre a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo triunfante, vê-se o Imperador no seu trono. Na face posterior aparecem a Santíssima Virgem com o Menino. Além disso, os relevos do teto representam cenas da vida de Carlos Magno. O conjunto desta peça impressiona pela proporção e a harmonia perfeitas dos seus vários elementos.

O outro objeto de que falamos é uma gloriosa reminiscência do Sacro-Império: o famoso trono de Carlos Magno, sobre o qual, a partir de meados do décimo século, os reis medievais recebiam a dignidade de soberanos.

Do ponto de vista estritamente artístico, é mais rústico e, portanto, menos bonito que o relicário. Porém, a preocupação de se produzir algo belo e nobre está presente na quantidade de mármores de que é feito. Como esse gênero de pedra não era achado na região de Aachen, era preciso importá-lo de outros territórios, transportando-o a dorso de mulas por estradas difíceis, escoltadas por grupos armados, enfrentando-se o perigo de saques e de acidentes provocados pelas intempéries e precipícios.

Depois dos longos trajetos, o mármore afinal chegava e vinha enriquecer o trono do magno Imperador. Uma vez terminado, Carlos o mandou instalar no andar superior da catedral, num ponto de onde ele, assentado, podia ver o altar e assistir à Missa. Então, posto nessa conveniente eminência, o monarca acompanhava o Santo Sacrifício que se celebrava.

E nós nos comprazemos em imaginar o que seria essa linda catedral repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando cânticos religiosos, ou aguardando num silêncio meditativo a hora da Consagração. E o grande Carlos sentado em seu trono, resplandecendo de piedade e de glória…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

¹ ) Cf. “Dr. Plinio” número 8.

Meiguice e bondade extremas

Um fato ungido pelo perfume dos antigos tempos em que a Fé predominava nas almas, tocou-me de modo especial, e merece ser por nós comentado. O episódio milagroso ocorreu em Prato, na Toscana, em 1484, e dele originou-se a expressiva invocação de Nossa Senhora das Prisões.

Numa certa manhã daquele ano, um menino sentiu-se atraído por uma cigarra e correu atrás dela, até se deter diante do muro da prisão de Prato, no qual se achava estampado lindo quadro da Santíssima Virgem.

Esta é, aliás, uma das belas coisas a se admirar na Itália: as pinturas e imagens da Madonna, expostas um pouco por toda parte, em Roma e noutras cidades italianas. Nos ângulos externos das casas, sobre as portas ou no centro das fachadas, de repente o transeunte se surpreende com um oratório desses, ornado de flores, sob as refulgências de pitoresco lampadário, etc. É algo deveras estupendo.

No quadro em questão, a Virgem trazia em seus braços o Menino Jesus, que, por sua vez, segurava nas mãos uma flor e um passarinho. Subitamente, para o maravilhamento da criança que a contemplava, a imagem começa a tomar vida, a animar-se. Nossa Senhora desce do muro, deposita no chão seu Filho e este se põe a brincar com o passarinho, diante do olhar atônito do pequeno italiano. Aquela cena extraordinária é então tocada por um raio de sol que abre uma passagem para o interior da prisão. Seguindo-o, entram a Santíssima Virgem, o Divino Infante e o bambino.

Nossa Senhora percorre várias celas obscuras e as ilumina à sua passagem.

Terminada essa indescritível visita, Mãe e Filho, sempre acompanhados pelo menino, deixam o recinto do cárcere e retomam sua imobilidade original no quadro suspenso ao muro.

Esse milagroso espetáculo se renovou diversas vezes, diante de uma multidão de fiéis que viram assim confirmada sua devoção à Rainha do Céu e da Terra. Consta que o fato foi relatado pelo bispo local ao Príncipe Lourenço de Médici, quem fez construir em Prato magnífica igreja, um dos mais belos monumentos italianos do século XV.

O episódio é em extremo gracioso, e nos fala, de modo ímpar, da benignidade e da bondade de Nossa Senhora. A cena inicial já nos encanta: um bambino, daqueles gorduchos, mas, ao mesmo tempo, tão vivaz que não parece sujeito à ação da gravidade, e por isso esvoaça por todos os espaços que encontra diante de si, correndo ao longo do muro de uma prisão, atrás do quê? De uma cigarra… Que cena sumamente pitoresca!

Outro aspecto digno de nota: na muralha de uma penitenciária, do lado de fora, sorri uma imagem de Maria Santíssima com seu Divino Filho. Então é o contraste maravilhoso entre o vulto austero e duro de uma prisão e a afabilidade materna da Virgem aconchegada naquele muro. E os muros italianos constituem um encanto à parte: alguns por assim dizer leprosos, de pedras tão velhas, tão escangalhadas por toda sorte de tempestades, lavradas de um modo tão bruto que se diria estarem morrendo, mas… lindíssimas! Por sobre elas, ou se estendendo pelo seu corpo, crescem vinhas que frutificam em uvas apetitosas; o sol se deleita em aquecê-las, dando ensejo a que se produzam atraentes sombreados em volta delas. E aí temos o panorama de um tal milagre.

O menino se esquece da cigarra e se detém diante da imagem de Nossa Senhora. E a Virgem começa a se mover… O pequeno Jesus brinca com um passarinho, e podemos imaginar com que delicadeza, com que candura e vivacidade! Ele, o criador, se compraz em se divertir com a sua criatura. Tudo isso fornece elementos para recrear e extasiar a piedade dos homens.

De repente, um raio de luz transpõe as rudes muralhas da prisão e leva atrás de si o passarinho, o Menino Jesus, Nossa Senhora, o bambino. Todos entram no cárcere, e aquelas soturnas penumbras vão sendo iluminadas pela passagem da Mãe de Deus, provavelmente tocando os corações dos presos e os libertando, a uma vez, do castigo e do vício.

Eis, portanto, um fato encantador que nos apresenta Nossa Senhora enquanto extremamente meiga, doce, que socorre os indivíduos mais distantes d’Ela, os menos afortunados, mais pobres e mais abandonados. Mãe de todos os homens, Ela sempre encontra a forma, o jeito, a circunstância, enfim, artes maravilhosas para protegê-los, ampará-los, salvá-los.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/5/1967)

Uma conversa de Jesus…

Imaginando a vida quotidiana de Jesus, Dr. Plinio realiza como a Alma de Nosso Senhor se elevava às mais altas cogitações, sem entretanto abandonar a proporção normal de um homem.

 

Suponhamos que o Redentor estivesse descansando em casa de Lázaro; Ele comia e mantinha uma conversa normal, quer dizer, propriamente conversa à “bâton rompu”.

Nosso Senhor deveria dar um discreto valor à comida. Então, nesta perspectiva, como seria o trato com Ele, que impressão causaria?

Parece-me que todas as suas expressões seriam sumamente coerentes umas com as outras, em que o olhar, a voz, os gestos, o porte, a atitude da cabeça e o modo de se dirigir às pessoas, ou de ouvir o que elas Lhe falavam, tudo isto deveria apresentar um “unum” perfeito, dando a ideia de uma harmonia completa. De maneira que Jesus devia causar aquela impressão vitorina de emoção estética total, porém ainda mais alta porque não era só a estética física, mas através desta, a estética psicológica, moral. Quer dizer, com uma proporção, uma beleza perfeita, e a Alma que se via por detrás era incomparável, causando a impressão de se tocar no divino, no inefável, embora não fosse a visão beatífica. Era propriamente a ética estética total.

Figuremos Nosso Senhor à mesa, comendo um cordeiro que Lhe tivessem preparado. Ele faz um comentário qualquer: “Este cordeiro foi alimentado com tal coisa assim, na perspectiva de nosso encontro.” E alguém diz: “Aliás, foi difícil laçá-lo, o cordeiro saltava muito”, e conta que o cordeiro pulou do colo de um escravo para fugir. E o Redentor, na sua natureza humana, ouve entretido a narração desse fato.

E no entretenimento veríamos aquela espécie de bondade, do enormemente maior que sente coesão e continuidade com o tema pequeno, e não julga que este seja indigno d’Ele.

Pelo contrário, Nosso Senhor, tomando conhecimento do fato, compreenderia. Durante a conversa se perceberia que ora sua humanidade santíssima transparecia mais, quer dizer, subia em considerações comunicadas pela natureza divina, ora transparecia menos, mantendo, entretanto, uma proporção com a conversa. De maneira que no ambiente havia um fundo discreto, que não convidava a fazer Teologia, mas a sentir o tema concreto do cordeirinho, túmido de outras coisas nas quais o Redentor não entrava, mas apenas — para usar uma expressão que não indica bem o que eu quero dizer — aromatizava. Ele punha molho naquilo, mas não deslocava o assunto, e a conversa continuava caseira.

Noção divina das correlações

Notar-se-ia a transição suave, harmônica da Alma do Divino Mestre para o mais elevado, com lampejo do mais alto, e depois voltar ao comum, a propósito das várias coisas tratadas na conversação. Uma flexibilidade de alma e uma noção divina das correlações: o modo pelo qual um tema encaixa, imbrica com outro; o valor simbólico das coisas; tudo posto tão bem, e correlacionado com tanta suavidade, harmonia, facilidade — todas as palavras são impróprias para falar d’Ele, por causa da excelsitude —, com tanto “dégagé”, que nossa alma ficaria simplesmente encantada de sentir os espaços interplanetários que separam um assunto do outro, transpostos por Nosso Senhor com tanta facilidade e conduzidos de um lado para outro com uma naturalidade, sem deixar as pessoas propriamente — note-se bem — extasiadas e fora do teor da conversa privada.

O êxtase viria pouco depois que o Redentor tivesse ido embora, quando as pessoas se sentissem sem Ele e percebessem o diferente de tudo. Teriam vontade de dizer: “Por que fiquei aqui e não fui atrás de Jesus, uma vez que viver é estar ao lado d’Ele?” E se alguém levanta um assunto prático, nem se interessam.

Todo mundo está discretamente deliciado, mas é uma autêntica conversa doméstica, na superfície.

As várias teclas através das quais Jesus tratava os assuntos

O melhor dessa conversa seria os momentos nos quais se percebia que a Alma de Nosso Senhor tocava nas mais altas cogitações. Era um olhar, um timbre de voz, talvez um comentário ligeiro, deixando entrever outras ideias, mas sem nada da indireta de salão, que é trabalhosa, porque nada disto deve ser imaginado trabalhoso. Tudo normal, magnífico e facílimo, que é o próprio d’Ele, evidentemente.

E as pessoas ficavam verdadeiramente maravilhadas pelo seguinte aspecto, entre mil outros: sentir como Jesus tomava o tamanho das várias teclas por onde fosse tratando os assuntos; quando falava de um tema comum, Ele tinha uma proporção do auge da beleza daquilo, deixando apenas entrever muito vagamente outros auges, que na Alma de Nosso Senhor residiam.

Quando Ele falava apenas de raspão do maior dos assuntos, sentiriam que tratava aquilo de igual a igual. De maneira que aquele Homem, há pouco tempo tão igual aos outros, de repente aparecia como num píncaro de uma montanha, mas por instantes, e logo depois estava de novo misturado com as pessoas. Em seguida, tratando de alguma coisinha, o Divino Mestre ficava de tal maneira comprazido, condescendido, que se diria que Ele descia até a coisa e esta se elevava até Ele. Por exemplo, se enquanto Nosso Senhor falava entrasse um passarinho na sala — aquelas salas eram muito abertas — e pousasse perto d’Ele, sem milagres, cena comum, o Redentor acharia graça em ver o passarinho comer uma migalha de pão.

Ele sorriria com isto, de tal modo que tudo aquilo que simboliza o passarinho comer a migalha de pão se perceberia que Ele relaciona com o mais alto, mas achava interessante ver o mais elevado enquanto simbolizado no menor. Não é de nenhum modo, portanto, efetuar uma abstração, e passar a fazer Filosofia ou Teologia, mas comprazer-se em ver o mais alto simbolizado, alojado, se quiserem, dentro do menor e como que um com o menor.

Então, Jesus diria uma palavra encantadora qualquer, mas também não de arrebentar.

Insinuando que era o Cordeiro de Deus

De repente, a respeito do cordeiro, tema da conversa, Nosso Senhor faz uma insinuação de que Ele era o Cordeiro de Deus, um dia seria morto, e que todos se preparassem. Mas, digamos, durante a conversa, talvez falasse disso uma só vez.

Os Evangelhos não fazem referência a uma conversa assim. Acho que cinco quintilhões de livros não dariam para registrar uma conversa com Ele, porque tudo era memorável, com o ar mais natural do mundo. Tenho a impressão de que isto é muito mais reconstituível pela piedade do que escrevível e legível.

Então, quando Jesus fizesse tal afirmação, haveria um frêmito, mas não à maneira de uma cena renascentista: uma pessoa se levanta, outra faz não sei o quê. Não. Todo mundo continua a conversar. Penetrou-se até ao fundo, ao extremo de Nosso Senhor; depois aquilo passa e fica uma tinta depositada nas almas.

Alegria, seriedade, tristeza

Jesus dava assim uma noção conjunta de sua divindade — a conaturalidade d’Ele com o divino — e a relação de todas as coisas com Ele, como se tudo existisse apenas para ser relacionado com Nosso Senhor. Aqui está o que eu quereria exprimir, mas não sei se conseguirei fazê-lo.

Tal era seu modo de ser que se notaria uma hierarquia de valores harmônica e sumamente bem encaixada, procedente do mais alto, com uma gravidade extraordinária e uma luminosidade impossível de ser qualificada; e descendo depois degrau por degrau, de maneira que em cada degrau por onde passasse, a Alma d’Ele deitasse outro reflexo de si mesma, mas não se sentisse esgotada; manifestando-se nos mais altos e deitando um reflexo novo e adequado em cada degrau menor até o último, formando propriamente no contraste entre o maior e o menor e todos os pontos intermediários, certa forma de imbricamento e de harmonia que fosse no mais alto cheia de gravidade e, ao mesmo tempo, de uma felicidade transbordante. Jesus não devia irradiar só tristeza; de vez em quando Ele transluzia um fulgor de felicidade.

Se, por exemplo, na sala onde Nosso Senhor estivesse comendo entrasse uma brisa refrigerante, Ele faria um comentário, com um gáudio apenas insinuado; aquele zéfiro era apenas um símbolo de uma alegria fulgurante: a visão beatífica. Mas tudo nas proporções de uma conversa comum; não são de nenhum modo os grandes momentos do Evangelho, mas os momentos normais da vida d’Ele.

Então haveria esse entrelaçamento de alto a baixo. No alto, a alegria esplendorosa e seriedade enorme, acompanhada de uma tristeza noturna, que era uma espécie de prenúncio do Calvário.

Nos graus intermediários, a conaturalidade com o homem: a seriedade, as alegrias e as tristezas proporcionais a nós. E nos graus menores, a alegria de todas as coisas pequenas e graciosas com aquela forma de dor e de sofrimento própria da inocência da criança.

E notar isto passando de um lado para outro daria uma espécie de noção de hierarquia, como nenhuma ordem social, nem política, nem estética, ou qualquer outra pode dar. Tal noção seria transmitida pela voz, pelo olhar, pelo modo de ser de Nosso Senhor, com uma espécie de plenitude do que o homem deve sentir a cada momento.

Após a saída de Nosso Senhor, recordar as diversas cenas

Em qualquer dos estágios se notaria a tristeza, a seriedade, a proporcionalidade e também a alegria, que a tudo acompanhava. E quando Jesus saísse, uma pessoa que tivesse critério se destacaria cuidadosamente da roda e, andando sozinha pelo jardim, se sentaria no beiral de um poço; não faria nenhuma reflexão, mas deixaria aquelas cenas voltarem ao seu espírito e, à tardinha, depois de esgotados os últimos reflexos, ela começaria a pensar. Ou seja, muito depois de degustar é que viria a reflexão.

E no final da reflexão, esta ideia: “Eu vou deixar tudo e segui-Lo. Não quero mais saber daquele plano de passar uma quinzena em Jerusalém na minha bonita casa. É verdade que estou precisando comprar uma túnica nova, mas deixarei isto para depois. Onde é que Ele está?” E possivelmente o indivíduo não esperaria a aurora para ir ao encalço de Nosso Senhor.

Continuidade entre os pequenos e os grandes momentos da vida de Jesus

Embora não escrito, algo disso ficou transmitido e permanecerá até o fim do mundo. Sempre que um católico verdadeiro, um bom professor de catecismo, um bom sacerdote, bons pais pronunciam a palavra “Jesus” ou “Jesus Cristo”, todos esses imponderáveis, por uma tradição meio avivada por carismas, continuam e caminham nesta linha.

Falando a respeito de Jesus, o protestantismo toca com o piano quebrado, faltam sempre algumas notas. O calvinismo faz hipertrofia da seriedade e o luteranismo da bonomia d’Ele, não um simples exagero, mas uma hipertrofia leprosa.

A “heresia branca”(1) julga que essas pequenas coisas da vida de Nosso Senhor são impróprias de serem contadas, porque toldam a atmosfera dos grandes momentos. Pelo contrário, tudo isto está numa espécie de continuidade com os grandes momentos.

 Se de repente Nossa Senhora entrasse na sala…

E a cena que eu não ousaria imaginar: Nossa Senhora entrando de repente na sala. Quando Ela se dirigia ao local, Jesus em sua humanidade acutíssima, capacíssima, sem revelação dos Anjos nem manifestação do sobrenatural, sentiria de longe que Maria Santíssima para lá caminhava.

Nosso Senhor vai Se iluminando para a chegada d’Ela, tomando um ar de quem entra em contato com a companhia das companhias; é o mundo inteiro para Ele. Em certo momento, Ele se levanta e vai de encontro a Ela.

Também Nossa Senhora já O pressentiu e, quando Ela se aproxima, os dois Se olham e Se saúdam. Mas acho impossível descrever, eu ao menos não consigo. Todos os encontros de Jesus com sua Mãe não são descritíveis. Ora, só em função da descrição desses encontros, digamos comuns, é que se compreende o relacionamento d’Ele com Ela durante a Paixão, quando se encontraram, e até a morte de Nosso Senhor.

Tenho a impressão de que as sete palavras d’Ele na Cruz, exceto as últimas, foram de um sofredor nesta clave. Mesmo quando Jesus disse: “Mãe, eis aí teu filho; filho eis tua Mãe”, o fez com a tal naturalidade que acabo de referir. Apenas o último grande brado d’Ele e depois o ato pontifical — “Meu Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” — devem ter sido ditos com uma solenidade, uma grandeza dentro do gemido. Aqui seria preciso mais se tocar música ou pintar do que falar.

Também a atitude de Nossa Senhora, creio que se deduz adequadamente a partir da imaginada conversa comum.

Nesta Terra, não devemos querer viver apenas de apogeus

Repito: o convívio quotidiano com Nosso Senhor era proporcionado à capacidade receptiva da natureza humana, como será no Céu. Digo mais. Acho que há algo de enfermiço no fato de uma pessoa só se sentir bem nos apogeus. Na realidade, devemos ter fome e sede dos apogeus, mas não de viver em apogeus, porque não é de acordo com a nossa natureza; e estas situações intermediárias precisam suceder-se aos apogeus e precedê-los, numa sucessão que só Deus mede adequadamente. A Providência gradua através dos fatos.

Suponho que no Céu, pela ação da graça, a alma está elevada a tal estado que é conatural com ela o pináculo permanente. Isso se fará de um modo que não podemos entender, porque o Paraíso celeste vai ser infinitamente repousante.

Voltemos ao tema da vida quotidiana de Nosso Senhor. Se uma pessoa que tivesse assistido à refeição de Betânia desta maneira e depois pensou em Jesus, vendo alguém que lançasse contra o Divino Salvador uma ironia ou chacota, sua reação normal seria a bofetada. Isso só se compreende devido ao efeito que o Redentor causou a uma pessoa que O viu. E a reação dela foi à maneira da desintegração do átomo.

As perfeições de Nosso Senhor na mais eleita das criaturas

Toda criatura, individualmente, é incapaz de refletir adequadamente todas as perfeições de Deus. Daí a necessidade de haver várias criaturas, como sabemos.

E a recíproca disto é que Deus não pode, nesta Terra e nesta ordem, fazer aparecer todas as suas perfeições aos homens num grau que vá além do que a natureza humana comporte, porque, por assim dizer, lota demais as pupilas dos olhos.

Por causa disto, há certas perfeições em Nosso Senhor que, sem dúvida, se notam n’Ele, mas com a seguinte circunstância: se o Redentor fizesse perceber mais ainda, o olhar humano como que estalaria. Então, Ele faz notar estas perfeições na mais eleita de suas criaturas. E esta criatura é como que um desmembramento — como que, entenda-se bem, porque é uma criatura, não o Criador —, um suplemento de Nosso Senhor, fazendo notar algo que no texto principal não caberia pela diminuição de olho do indivíduo que lê.

Então, tudo quanto se diz de maravilhoso sobre a bondade de Nossa Senhora, seu amor materno, seu ódio ao mal — entretanto não é a principal missão d’Ela, ao longo da História, exprimir este ódio, mas a bondade materna, a afetividade — e cem outras coisas, tudo isto Maria Santíssima, como que, exprime em separado de Nosso Senhor, num grau menor do que Ele, forçosamente, mas insondável para nosso olhar, para termos uma ideia ainda mais global do que é Jesus. Tudo quanto estou dizendo aqui fica naturalmente sujeito ao julgamento da Teologia.

Parece-me que, de algum modo, olhando-se para Ela, veem-se excelências que não se percebem tão claramente n’Ele.

Entretanto, como pintá-las? Em que grau? De que modo? Sob que formas? No momento eu quase não teria o que dizer, porque são de algum modo coisas quintessenciadas de Nosso Senhor, as quais, não permitindo que apareçam tão claramente, Ele as exprime por meio de um ser inferior, o qual, por mais alto que seja, é uma criatura.

Correlação entre a Cristologia e a Mariologia

Seria preciso tomar uma clave em extremo delicada para considerar a relação exatamente em sua nota, pois na verdade nenhuma meditação cristológica poderia ser feita em completo sem uma espécie de superposição de Nossa Senhora; sobretudo nenhuma meditação mariológica seria adequadamente feita sem ter a Ele como fundo de tudo quanto se dissesse. E à falta de estabelecer essa correlação, tornam-se muitas vezes pobres a Cristologia e a Mariologia na piedade popular,

A Santíssima Virgem é, sob certo ponto de vista, o lago no qual se mira o castelo. Toda a beleza que o lago mostra, de fato reside no castelo, mas a pulcritude da água se soma para embelezar a figura do castelo. Pode-se dizer também que, de certo modo, a pulcritude da criatura se soma à do Criador, mas a desproporção é muito maior, evidentemente.

Aqui está a imagem da piedade como nós a entendemos. Quer dizer, densa de reflexão e inteiramente equilibrada, em que o homem não precisa se espremer para adquirir piedade, mas ele se põe na boa natureza que Deus lhe deu, na tranquilidade e no bem-estar de sua alma.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/5/1978)

 

1) Ver nota 1 no artigo “São Vicente de Paulo, perfeita harmonia de espírito”, página 17.