Beato Carlos de Blois: Patrono dos guerreiros

A índole das instituições feudais, as quais eram hierárquicas, conduzia à santidade, enquanto as instituições que pressupõem uma igualdade completa levam ao contrário da santidade, que é o espírito da Revolução.

A respeito do Beato Carlos de Blois, o General Silveira de Mello, no livro “Os Santos Militares”, diz o seguinte:

Herda o Ducado da Bretanha

Carlos de Blois era filho do Conde de Blois, Guy I, e da Princesa Margarida, irmã de Filipe de Valois.
Recebeu educação esmerada e foi muito adestrado militarmente.

Casando-se com Joana, filha de Guy de Penthièvre e sobrinha de João III da Bretanha, por morte deste último, Carlos de Blois recebeu, com sua esposa, o ducado como herança, no ano de 1341. Assumiu o governo dessa província com grande entusiasmo dos nobres e dos seus vassalos mais humildes.

O povo do seu ducado da Bretanha, olhando para ele, pensando nele, admirando-o, venerando-o, tinha nele um reflexo de Deus na Terra.

Batalha de La Roche-Derrien
Biblioteca Nacional da França

Entretanto, o Conde de Montfort, irmão do Duque falecido, reclamou o direito à sucessão e pegou em armas para reivindicá-lo. Foi apoiado pelos ingleses, enquanto a França tomava o partido de Carlos.

O jovem Conde de Blois fez frente ao seu contendor. 23 anos durou essa luta que os ingleses sustentavam de fora.

Em 1346, no combate de La Roche-Derrien, Carlos sofreu um revés e caiu prisioneiro. Encerraram-no na Torre de Londres, onde permaneceu encarcerado durante nove anos. As orações que rezou neste cativeiro foram de molde a assegurar a continuidade do governo da Bretanha.

Nunca afrouxou seus exercícios de piedade

A Princesa Joana, sua enérgica esposa, assumiu a direção dos negócios públicos e da guerra e manteve atitude de energia pela libertação do marido.

Livre, Carlos prosseguiu com maior denodo as operações militares.

Sucederam-se reveses e vantagens de parte a parte, até que por fim, em 1364, aos 29 de setembro, festa do Arcanjo São Miguel, o santo e bravo duque caiu morto na Batalha de Auray. Esta jornada heroica, última de sua vida, iniciou-a Carlos com a recepção dos Sacramentos da Confissão e da Eucaristia.

Morreu como vivera, pois, em meio a todas as lutas que enfrentava, nunca afrouxou seus exercícios de piedade e austeridade, assim como nunca deixou de empreender obras de interesse para a Religião e para seus súditos.

Tão evidentes foram as suas virtudes, que logo após sua morte, em 1368, deram início ao processo de beatificação. São Pio X confirmou o seu culto em 14 de dezembro de 1904. É venerado no dia de sua morte, 29 de setembro.

Luta contra um vassalo infiel e revoltado

Trata-se de um Santo que é, de um modo especial, o patrono dos guerreiros. Há dois modos de ser patrono dos guerreiros: um, considerando o guerreiro enquanto guerreiro da Fé, lutador pela Doutrina e pela Igreja Católica. Mas neste caso é a função do guerreiro com um acréscimo que lhe é extrínseco e não necessário à condição do guerreiro. Quer dizer, o guerreiro realiza a maior sublimidade de sua vocação quando ele luta pela Fé, mas nem todo guerreiro luta necessariamente pela Fé.

O próprio do guerreiro é lutar, e o normal dele não é lutar apenas pela Fé. Mas o guerreiro pura e simplesmente, que não acrescenta a seu título essa auréola de cruzado, é aquele que luta na guerra justa pelo seu país, para defender o bem comum, ainda que seja o bem comum temporal daqueles que estão confiados à sua direção.

Temos aqui o exemplo do Bem-aventurado Carlos de Blois. Como vimos, ele era Duque da Bretanha, em virtude de uma herança recebida de sua esposa. Mas o tio desta, contestando a  legitimidade desse título, revoltou-se e moveu uma guerra contra ele. Ele era, portanto, a legítima autoridade em luta contra um vassalo infiel e revoltado.

Além disso, tratava-se da integridade do reino da França, porque o tio da Princesa de Blois era ligado aos ingleses, que queriam dominar a França. E ele lutava então pela integridade do território francês, batalhando pela independência da Bretanha em relação à Inglaterra.

Combate com um remoto significado religioso

Essa luta pela França, por sua vez, tinha um remoto significado religioso, mas que ele não podia prever, não estava nas suas intenções. A França era a nação predileta de Deus, a filha primogênita da Igreja. A Inglaterra era nesse tempo uma nação católica, mas futuramente haveria de tornar-se protestante. E se ela tivesse domínio numa parte do território francês, daí a alguns séculos isso seria muito nocivo para a causa católica.

Entretanto, esta consideração de ordem religiosa, que nos faz ver o caráter providencial da luta, não estava na mente desse Beato. Ele tinha em vista, como Duque, lutar pela integridade do  território de sua pátria próxima, que era a Bretanha, e de sua pátria mais genérica que era a França.

Ele levou nesta luta uma vida inteira. Foram perto de 30 anos de reveses, nove dos quais ele esteve preso. Mas o Beato soube comunicar o seu ardor guerreiro à sua esposa que, durante os nove anos em que ele ficou encarcerado na Torre de Londres, também lutou valentemente para conservar o ducado.

Ao beatificá-lo, a Igreja quis elevar à honra dos altares o senhor feudal perfeito, governador e patriarca de suas terras, aristocrata e, além disso, batalhador que sabia derramar o sangue pelos seus. Esta é a síntese do senhor feudal.

Para determinados revolucionários que vivem falando contra o feudalismo, e apresentam o cargo e a dignidade de senhor feudal como intrinsecamente má, o exemplo do Beato Carlos de Blois e o  gesto da Igreja beatificando-o constituem um desmentido rotundo, porque mostram bem que o cargo pode e deve ser exercido digna e santamente, e que através dele se pode chegar à honra dos altares.

Mostra-nos, com mais um exemplo, quantas pessoas de alta categoria da hierarquia feudal se tornaram santas.

Vemos também por este exemplo a índole das instituições. As instituições têm uma índole, uma psicologia, uma mentalidade como os indivíduos. A índole das instituições feudais levava à  santidade, enquanto que, de outro lado, as instituições que pressupõem uma igualdade completa levam ao contrário da santidade, que é o espírito da Revolução.

Acabando com as desigualdades, se elimina a ideia de Deus

Algum tempo atrás, tive a oportunidade de ler um livro de um dos chefes do Partido Comunista Francês, chamado Roger Garaudy, que sustentava a seguinte tese: É ridículo nós querermos fazer  suprimir no povo, por meio das perseguições, a ideia de Deus. A ideia de Deus, o povo a tem por causa das desigualdades. É considerando pessoas desiguais que o homem inferior pensa, concebe a  ideia de um Deus, o qual é a perfeição daquilo de que o seu superior lhe dá certa noção. Por causa disso — diz ele — nós não devemos primeiro exterminar a Religião, para depois acabar com a hierarquia política e social. Precisamos eliminar as desigualdades políticas, sociais e econômicas, para depois então exterminarmos a Religião. E afirma ele que, implantada por toda parte a igualdade, os símbolos de Deus desaparecem, e a ideia de Deus morre na alma dos povos.

O exemplo do Beato Carlos de Blois nos faz pensar nisto. O povo do seu ducado da Bretanha, olhando para ele, pensando nele, admirando-o, venerando-o, tinha nele um reflexo de Deus na Terra. A duplo título, porque o santo é um reflexo do Criador na Terra, e o general, o governador, o chefe, o mestre é um superior que representa a Deus. Assim, olhando para ele, a ideia de Deus se tornava mais clara na mente de seus súditos.

O gesto da Igreja beatificando Carlos de Blois mostra bem que o cargo pode e deve ser exercido digna e santamente, e que através dele se pode chegar à honra dos altares.

São Tomás abençoa a desigualdade, Garaudy blasfema contra ela

Aliás, é precisamente o que ensina São Tomás de Aquino quando trata da desigualdade. Ele diz que deve haver desiguais, para que os maiores façam às vezes de Deus em relação aos menores, e  guiem os menores para o Criador. É o pensamento do Garaudy, a mesma concepção a respeito da relação entre a desigualdade e a ideia de Deus. Entretanto, enquanto São Tomás de Aquino  abençoa essa desigualdade, porque ela conduz a Deus, Garaudy blasfema contra ela, por esta mesma razão.

Assim, nós vemos bem como a hierarquia feudal encaminhava as almas para Deus, e como este Santo brilhou como a luz colocada no lampadário, iluminando a França e a Europa do seu tempo com sua santidade.

Essas considerações conduzem a uma oração especial para ele.

Nós estamos numa profunda orfandade! Neste mundo de ateísmo, nesta época em que o igualitarismo fez por toda parte devastações tão tremendas, podemos olhar para o Bem-aventurado Carlos de Blois como verdadeiros órfãos que não têm o que ele representou para os homens do seu tempo.

Então, podemos pedir a ele que se apiede de nós nesta situação em que estamos, e que pelas suas orações faça suprir em nossas almas essa deficiência. Que o amor à desigualdade, à sacralidade, à  autoridade, o gosto de venerar, a necessidade de alma de obedecer, de se dar, de ser humilde brilhem em nossas almas de maneira tal que possamos dizer que verdadeiramente é a Contra-Revolução que vive em nós.

Beato Carlos de Blois, rogai por nós!

(Extraído de conferência de 28/9/1968)

Escudo e gládio da Santa Igreja

São Miguel comandou a luta contra os demônios e os precipitou no Inferno. Ele é, pois, o chefe dos Anjos da Guarda dos indivíduos e das instituições. E é ele mesmo o Anjo da Guarda da Instituição por excelência, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Nele, portanto, duas missões se concatenam. Deus quis servir-Se dele como seu escudo contra o demônio, e quer que ele seja também o escudo dos homens e da Santa Igreja. Mas o Príncipe da Milícia Celeste não é meramente escudo, é também gládio. Não se limita a defender, mas ele derrota e precipita no Inferno. Eis a dupla missão de São Miguel Arcanjo.

Por causa disso ele era considerado, na Idade Média, o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro celeste, leal, forte, puro, vitorioso como deve ser o cavaleiro que põe toda a sua confiança em Deus e em Nossa Senhora.

Esta é a figura admirável de São Miguel, que nós devemos considerar nosso aliado nas lutas.

(Extraído de conferência de 28/9/1966)

3 Arcanjos

Numa hipotética analogia com aspectos da vida humana, seríamos levados a atribuir aos três arcanjos — Miguel, Gabriel e Rafael — predicados pelos quais eles reluzem na história sagrada. Assim, São Gabriel é o anjo da contemplação, do ideal, da chama que leva a alma a embevecer-se com o Espírito Santo, como o fez diante da Santíssima Virgem, ao representar junto a Ela o seu Divino Esposo. São Miguel, o anjo da justiça, paladino da supremacia de Deus sobre todas as criaturas, o anjo da luta vitoriosa pelo bem. E São Rafael, o anjo da caridade, da confiança, protetor dos desvalidos, dos Tobias da vida de todos os dias, amparando-os com requintes de bondade e misericórdia.

Plinio Corrêa de Oliveira

Intercessor celeste de alta categoria

Temos em São Rafael um intercessor celeste de alta categoria que leva nossas preces a Deus, porque é um dos sete espíritos mais elevados que assistem junto do Altíssimo e, portanto, são os canais naturais das graças que desejamos.

Houve uma mística que, ao lhe ser dado ver seu Anjo da Guarda, ajoelhou-se em adoração, pensando tratar-se do próprio Deus, tão elevada, nobre e excelsa era a natureza daquele ser. Ora, sabemos que os Anjos da Guarda pertencem à hierarquia menos alta do Céu. Em comparação com isso, é inimaginável um Anjo das mais altas hierarquias. De que alegria vamos estar inundados no Céu quando pudermos contemplar um Arcanjo como São Rafael, e tudo quanto nele veremos de Deus!

Peçamos a ele para termos essa contemplação, e que a consideração dessa ordem angélica ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do reinado de Maria, dissipando toda a tristeza crescente destes dias em que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão se aproximando tão rapidamente de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/10/1964)

São Vicente de Paulo

São Vicente de Paulo era um homem obstinado no amor de Deus. O zelo com que ele, como hábil diplomata, defendia os interesses da igreja nos altos círculos onde tinha contatos, transformava-se em uma santa sofridão ao tratar dos pobres e necessitados. Queria a grandeza da religião católica, como desejava remediar todos os infortúnios.

Em última análise, movia-o uma firme e extraordinária vontade de ver o bem acessível a todos, porque Deus é o bem. Daí ter-se tornado o mais conhecido vulto de toda a epopeia de caridade dos vinte séculos de civilização cristã.

Plinio Corrêa de Oliveira

Balduíno IV, o protótipo do católico – II

Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentar Saladino, que se retirou. Talvez essa vitória tenha sido, sob algum aspecto, mais bonita do que a alcançada pelo rei leproso quando rezou com o rosto na areia. Nesta ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; naquela, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que o famoso guerreiro maometano fugisse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

 

Imaginemo-nos na situação dos soldados de Balduíno IV que combateram na batalha de Montgisard(1), revestidos de armamentos, marchando ou cavalgando às ordens desse rei, e pensando o seguinte:

Epopeia comparável aos episódios sacratíssimos da vida de São Luís

“Do outro lado está o Sultão Saladino, muito famoso, riquíssimo, cercado de todo o fausto do Oriente – o nome dele retumbava por todas aquelas zonas como o de um grande guerreiro –, um homem válido, sadio. Nós não somos senão trezentos, e o nosso rei o que é? Um miserável leproso, um pobre super doente, desfeito em chagas e purulências. E a Providência nos chamou para combater, sob as ordens de um desprezível leproso, todo o exército de Saladino!”

Não é verdade que poderia dar insegurança monumental? O que deveria ter sido esse Balduíno para, sozinho, dar segurança aos trezentos homens! Que canal, que veículo do Espírito Santo! Mais bonito ainda do que pensar em trezentos guerreiros é cogitar em trezentos soldados pernibambos… E o rei, leproso, que se prostra no chão e pede a Nosso Senhor, por meio de Nossa Senhora, força para os seus pernibambos. Ali, de fato, nada é forte a não ser a alma dele; mas esta o era por inteiro! Mais sublime não pode ser.

Eu pergunto: na história das monarquias católicas, há um episódio mais bonito do que esse? Não há. Nem os episódios sacratíssimos da vida de São Luís excedem a esse em beleza. Igualam sim, mas não excedem. É uma verdadeira maravilha!

Eis a epopeia que a História da Idade Média, vista assim, nos apresenta. Continua o autor(2).

No ano seguinte, Balduíno edificou no Gué de Jacob a fortaleza destinada a defender a Galileia dos ataques de Damasco.

Gué é um vale por onde Jacó teria passado. Como é bonita a figura desse rei que vai se desagregando, mas constrói fortalezas. Ele, ao contrário de uma fortaleza que se edifica, é um esboroamento vivo, a cada instante. Mas ele ainda constrói fortaleza para lutar no futuro.

Guilherme de Tiro pretende que isso tenha sido feito pelas permanentes solicitações de Odon de Saint-Amand, Grão Mestre do Templo. Em todo caso, qualquer que tenha sido o inspirador da ideia, não há dúvida quanto à importância estratégica da fortaleza que Balduíno mandou construir.

Um senhor feudal revolta-se contra Balduíno IV

Em 1179, Saladino invadiu a Galileia. Balduíno foi a seu encontro, tentando surpreendê-lo, como tinha feito em Montgisard. Mas, como os muçulmanos não se deixaram surpreender, o jovem rei foi cercado. Muitos foram mortos e presos nesse dia.

Pouco tempo depois, Saladino tomou o Gué de Jacó e mandou executar todos os cavaleiros do Templo que a defendiam.

Sybilla, irmã do rei, acabava de se casar – contrariamente aos interesses do Estado – com Guy de Lusignan, homem de beleza discutível, sem fortuna e sem talento. Balduíno, pressionado pelos seus, minado pela doença, havia consentido nessa união e doado a Lusignan os condados de Jafa e Ascalon.

Tão logo se manifestou a insignificância do marido de Sybilla, atiçaram-se as esperanças dos senhores feudais. Contava-se que o irmão de Lusignan, comentando o casamento, disse: “Se Guy for rei, eu deveria ser deus”.

Nessa mesma ocasião, Isabel de Jerusalém desposava Humphrey de Toron, filho indigno de seu pai, o extinto Condestável de Jerusalém, morto em defesa do rei. O estado de Balduíno IV piorava dia a dia. Foi uma provação para sua mãe, que não tinha boa fama, e para a roda de seus cortesões, ambiciosos e amorais, ver a aproximação de Balduíno com Raimundo de Trípoli, único homem capaz de aconselhá-lo devidamente.

Nesse momento reapareceu, libertado dos cárceres muçulmanos, o antigo Príncipe de Antioquia, Renaud de Châtillon. Este logo começou suas aventuras, assaltando uma importante caravana de peregrinos com destino a Meca.

Tal ato rompia a trégua assinada por Balduíno IV e Saladino, ofendia as convicções religiosas dos muçulmanos, a cujos olhos o atentado afigurava-se monstruoso. Intimado pelo rei a devolver os prisioneiros e o produto da pilhagem, ele recusou-se com arrogância, tornando assim evidente a incapacidade do doente de se fazer obedecer.

Portanto, esse senhor feudal revoltou-se contra o rei. Balduíno deu-lhe ordem de restituir o que tinha tirado aos muçulmanos, e ele não quis. O estado de doença de Balduíno não lhe permitia, naquele momento, manter a autoridade necessária.

Dirigia-se às batalhas, carregado em liteira

Em agosto, o infatigável maometano Saladino tentou tomar Beirute por uma ação combinada por terra e mar. Uma vez mais, Balduíno afastou o perigo.

Então, caminhando para a morte, ele combateu e venceu.

Impediu Saladino de se apoderar de Alepo e conduziu uma expedição até os subúrbios de Damasco.

Que era a capital de Saladino.

Assim, por toda parte, graças à sua energia sobre-humana, e ainda que daí em diante ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heroico leproso levava vantagem sobre o genial muçulmano.

Considerem um rei que não pode mais cavalgar e é levado em liteira para as batalhas, mas que vai animando os seus. Vejam, mais uma vez, a força de alma que renasce, enquanto o corpo cada vez decai mais.

Ele começava, entretanto, a perder a vista, a não poder mais se servir de seus membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar seus afazeres do reinado, e ao mesmo tempo passar parte de suas responsabilidades a Guy de Lusignan.

Pode-se bem imaginar o drama interior desse rei, com apenas 22 anos, corroído por úlceras, semi paralisado e quase cego, cercado pelas sombras da desconfiança e dos maus pressentimentos, atormentado ante as insinuações e sugestões pérfidas dos seus, de um lado, e a alta ideia que fazia de sua missão de rei, de outro lado. Se a lepra o enfraquecia e ele não podia ter esperanças de se curar, sempre, entretanto, encontrava novas forças e resistia da melhor forma às ciladas da camarilha.

É o período de ascensão máxima dele: cada vez mais cercado, ele vai resistindo à camarilha, crescendo em energia.

Pedido de socorro ao Ocidente

Como a doença entrava numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela e, sobretudo, contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.

Foi num desses períodos que ele consentiu, se bem que a contragosto, a investir Guy de Lusignan na regência do reino.

No primeiro encontro com Saladino, Lusignan deixou o exército franco ser massacrado. Recusou com altivez prestar contas a Balduíno, que o destituiu de seu cargo. E para evitar que, pela complacência de Sybilla, Lusignan se tornasse Rei de Jerusalém após sua morte, ele designou seu sucessor: o pequeno Balduíno V, filho de Guilherme Longue Épée.

Ele ainda teve, portanto, um gesto de suprema coragem e energia: vendo que o cunhado não prestava mesmo, destituiu-o da sucessão do reino.

Como a situação da Terra Santa estivesse desesperadora, Balduíno mandou uma embaixada ao Ocidente, composta pelo Patriarca de Jerusalém, pelo Mestre dos Hospitalários e pelo Mestre dos Templários, o velho Arnaud de Torrage.

Era um pedido de socorro ao Ocidente, para ver se mandavam gente limpa e boa para salvar a cidade de Jerusalém.

Agonizante, Balduíno enfrenta Saladino e o derrota

Renaud de Châtillon, que indiretamente tinha ajudado o rei a se desembaraçar de Lusignan, julgou-se autorizado a retomar suas pilhagens, mas agora então na mais alta escala.

Armou uma frota, que foi transportada ao Mar Vermelho em dorso de camelo. Essa frota, devastando portos, interceptando comboios, ameaçou por algum tempo o caminho para Meca.

Saladino, excitado até o cúmulo do furor, destruiu os navios de Renaud e depois sitiou-o em sua própria fortaleza, o Krak de Moab. Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino então retirou-se.

O Mar Vermelho era cheio de sultanatos e de pequenos Estados riquíssimos. Renaud de Châtillon fez transportar os seus navios, a dorso de camelo, pelo istmo de Suez – o canal naturalmente não existia, só foi aberto no século XIX –, entrou no Mar Vermelho e começou a saquear. Saladino ficou indignado. Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentá-lo. Saladino se retirou. Talvez tenha sido uma vitória, sob algum aspecto, mais bonita do que aquela quando ele rezou com o rosto no chão. Na primeira vitória, ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; na segunda, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que Saladino se retirasse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

O último ato de Balduíno IV foi o de reunir em São João d’Acre o Parlamento de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz e rebelde, foi então oficialmente afastado do trono. E a regência foi confiada a Raimundo de Trípoli.

O que era de justiça e sabedoria, porque ele designou um menino para ser seu sucessor, e tinha o direito de nomear o regente. Balduíno chamou então seu conselheiro fiel e designou-o como regente. Vê-se o golpe pelo qual ele não nomeou Guilherme, o Longa Espada, para rei, mas sim o menino. Assim, Balduíno pôde chamar seu conselheiro fiel e passar-lhe o bastão de mando, antes de morrer.

Mais tarde, a 16 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus, em presença de seus vassalos, dignatários e bons companheiros de guerra. Até os infiéis lhe tributaram homenagens.

Pedir a esse herói que nos obtenha a força de alma indomável

Entretanto, os católicos o esqueceram…  Em 1972, ele é lembrado num auditório cheio de pessoas de um continente naquele tempo habitado pelos guaranis, araucanos, tupis, etc. Aqui está um eco da glória de Balduíno IV, Rei de Jerusalém.

Esse é um fulgor da Idade Média. Não sei o que aconteceu, mas uma figura assim não foi dada mais à Cristandade. Esse exemplo impressionante do rei leproso e herói, diante de cujas feridas recuam, cheios de reverência, os filhos das trevas, não nos foi dado depois.

Alguém poderá objetar: “Dr. Plinio, o seu entusiasmo por Balduíno IV é como se ele tivesse sido santo. Mas o senhor não pode ter os olhos fechados para o fato de que esse homem teve fraquezas na vida, como o senhor mesmo observou nessa narração histórica. Como o senhor pode ter tanto entusiasmo por esse personagem?”

A vida tem me mostrado poder haver pessoas com algumas qualidades, mas que, sob o peso de provações muito grandes, embora com culpa, apresentam deflexões, mas a graça depois perdoa, reanima e leva de novo a altos cumes.

Essa foi a história, chagada e dolorosa, de Balduíno IV. Ele teve desfalecimentos, é verdade. Não como Nosso Senhor caiu debaixo da Cruz – perfeito, impecável, divino –, mas como um homem que teve fraquezas, e recebeu graças para não tê-las. Essas fraquezas devem ser julgadas com severidade. Mas os atos maravilhosos de sua vida também precisam ser, por isso mesmo, julgados com a mesma justiça. E esses impõem admiração, como as fraquezas exigem a severidade. Sobretudo, para que esse homem tivesse realizado o último lance de afugentar e impor respeito a Saladino naquelas condições, era preciso que a sua alma estivesse em muito belo estado.

Ele foi ocasião, como uma relíquia viva, para um dos mais bonitos episódios da História das Cruzadas. Como não admitir que a alma desse homem, num grau mais alto ou menos, esteja na presença de Deus? Nós não podemos canonizar ninguém, pois este é um privilégio único e exclusivo da hierarquia católica, mais especialmente do Papa. Porém, podemos pedir privadamente a esse herói que nos conquiste essa força de alma indomável. Que ele nos faça compreender algo desse espírito medieval, do qual ele era dotado em tão alto grau, e que é a luz que nos deve animar no caminho ao Reino de Maria.

Aqui está a grande recordação purulenta, fétida, chagada e maravilhosa de Balduíno IV. Mais do que isso, de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz, pensando em nós, em nossa meditação, abençoando-nos e nos perdoando por todos os defeitos que haja em nossas almas.

Nós nos compadecemos de Balduíno e, sobretudo, d’Ele. Que ambos tenham piedade de nós!

(Continua no próximo número)

 

Plinio  Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 21/10/1972)

 

1) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 245, p. 18.

2) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977, p. 111-115.

São Vicente de Paulo, perfeita harmonia de espírito

Fundador de Obras de Caridade, Diretor de uma Ordem Religiosa; por outro lado, insigne lutador contra o jansenismo e inspirador de uma cruzada contra Túnis. Homem ao mesmo tempo capaz de tratar com a rainha e com galerianos; de cuidar de doentes e de armar um exército contra os inimigos da Fé. Dotado de tal amplitude de espírito, São Vicente de Paulo representou a própria harmonia do espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Pediram-me que comentasse uma ficha biográfica de São Vicente de Paulo, extraída do Breviário Romano.

Vicente nasceu de pais pobres em Pay, na Landae, França, no dia 24 de abril de 1581.

Desde criança guardou os rebanhos de seu pai. Mas sua viva inteligência fez com que sua família o mandasse estudar entre os “cordelliers” de Dax.

Foi depois para Toulouse a fim de conseguir grau de Doutor e, em 1600, ordenou-se sacerdote. Após ter sido cativo em Tunis, em 1616 foi incluído no corpo de capelães da Rainha Margarida de Valois. Durante algum tempo, foi cura de Clichy e de Chatillon-les-Dombes.

Nomeado grão-capelão das galeras da França pelo rei, com um zelo maravilhoso, trabalhou pela salvação dos oficiais e dos remadores.

Indicado por São Francisco de Sales para o governo das religiosas da Visitação, cumpriu essa missão durante 40 anos com tal prudência que justificou plenamente o julgamento do santo prelado, o qual declarou não conhecer padre mais digno do que Vicente.

Mas sua carreira fez-se quase que inteira ao serviço da poderosa família dos Gondi. Ele evangelizou as nove mil almas que viviam em suas terras, e diminuiu a extensão das ruínas e das misérias produzidas pelas guerras civis ou com estrangeiros.

Até uma idade bem avançada, Vicente dedicou-se a evangelizar os pobres e sobretudo os camponeses. Para isto fez um especial voto, aprovado pela Santa Sé. Preocupou-se em estabelecer a disciplina eclesiástica, dirigindo seminários para o Clero, e tendo o cuidado de multiplicar as conferências espirituais entre os padres.

Enviou evangelizadores não só através das províncias da França, mas também para Itália, Polônia, Escócia, Irlanda e Índia.

Protegido pelos reis da França, assistiu Luís XIII nos seus últimos momentos e foi chamado por Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV, para fazer parte do Conselho de Consciência.

Lançou os fundamentos de uma nova Congregação, a dos Lazaristas, e com Santa Luísa de Marillac criou a Instituição das Filhas da Caridade, ou Irmãs de São Vicente de Paulo.

Acabado de fadiga, o chamado Apóstolo da Caridade veio a falecer em 1660. Afirma-se não ter havido miséria que ele não houvesse socorrido. Cristãos aprisionados pelos turcos, crianças abandonadas, jovens indisciplinados, moças em risco de cair no pecado, religiosas displicentes, pecadoras públicas, condenados às galés, estrangeiros enfermos, artesãos sem trabalho, os loucos e os mendigos, todos foram lembrados pelo grande Monsieur Vincent, como era conhecido naquela época.

Membro da Mesa de Consciência e Ordens

Quero chamar a atenção para dois aspectos de sua vida.

O primeiro é a quase incrível fecundidade dessa existência, tomando em consideração as várias situações pelas quais ele transitou.

Nascido de uma família pobre de camponeses, provavelmente analfabetos ou semianalfabetos, ele teve uma ascensão: dada a sua excepcional inteligência, foi estudar e ordenou-se sacerdote.

Depois, caiu como cativo dos berberes, piratas que percorriam o Mediterrâneo e às vezes até faziam incursões pelos territórios da Europa, levando católicos como escravos, os quais eram vendidos nos países do Oriente.

Maravilhosamente resgatado da condição de simples escravo, ele é logo contratado para ser capelão de uma rainha e entra numa corte. Deste alto cargo ele passa a ser vigário de duas aldeias; entra sob serviço de uma casa nobre poderosa, a dos Gondi, e parece cifrar o seu trabalho às nove mil almas que constituíam a população dos feudos ou das terras em que a família Gondi tinha restos de poderes feudais.

Mas, depois disto, ele novamente se aproxima da corte e é elevado a um dos mais altos cargos: membro da Mesa de Consciência.

A Mesa de Consciência e Ordens era uma instituição que existia em quase todas as monarquias católicas daquele tempo, e tinha uma função muito delicada. Naquela época o Estado era sempre unido à Igreja nos países católicos, e os Bispos tinham muitas vezes poderes temporais. A diocese era senhora feudal com poderes mais amplos, ou menos, destas ou daquelas terras; dessa forma o provimento das dioceses que se vagassem cabia ao Papa por princípio, porque só o Sumo Pontífice pode nomear e demitir livremente Bispos, mas mediante indicação do rei. Este propunha em geral três nomes, dos quais o Papa escolhia um.

Naturalmente, quando um nome não era adequado, o Sumo Pontífice exigia outro nome. Ele não ficava manietado, circunscrito àqueles três, mas era o rei que os indicava.

A Mesa de Consciência não era uma mesa no sentido material da palavra. Tinha esse título porque seus membros se reuniam em torno de uma mesa, e era um Conselho das pessoas de maior confiança e virtude do reino, mais perspicazes e inteligentes, para estudar quais os padres que, por sua vida e doutrina ortodoxa, cultura e atividade, saúde e influência pessoal, eram capazes de serem Bispos.

Como é sabido, toda a vida de uma diocese gira em torno do Bispo, e uma das coisas mais importantes para a vida interna da Igreja é a designação de bons Bispos. Podemos assim compreender quanto um país deve ter empenho em que seja escolhido o creme dos sacerdotes para ser Bispo.

Ele foi escolhido por Ana d’Áustria, a Rainha-Mãe, regente da minoridade de Luís XIV, para esta Mesa de Consciência e Ordens e ali exerceu grande influência para a designação dos Bispos.

Esse homem que subiu a tão alto cargo, tratando com cortesões no palácio real da França, entretanto foi capelão-geral das galés, tendo que fazer apostolado junto a criminosos, os quais eram atarraxados nos navios e passavam a vida remando. Entre um príncipe e um guerreiro há uma distância enorme; porém tal distância é menor do que a existente entre o sacerdote e o escravo. Tudo isso constituiu os vaivéns de sua existência.

Multiplicidade de atividades

Outro aspecto é a multiplicidade das atividades que ele exerceu: Obras de Caridade, Diretor de uma Ordem Religiosa que então estava apenas saindo das mãos de seu grande fundador, São Francisco de Sales; por outro lado, lutador insigne contra o jansenismo. Ele foi um dos homens que mais trabalhou contra o jansenismo na França, impedindo que essa forma péssima de protestantismo larvado penetrasse nos meios católicos. Além disso, São Vicente levantou uma cruzada contra a Tunísia; foi, portanto, chefe de cruzados.

Vemos assim a diferença de aspectos dessa personalidade. Um homem capaz de tratar com a rainha, mas também com galerianos. De atrair a confiança da soberana e de encontrar palavras que pusessem à vontade o indivíduo que estava remando nas galés. Um homem capaz de tratar de um doente e de armar um exército; de dirigir uma Congregação Religiosa de freiras reclusas, que passavam a sua vida em oração, mas ao mesmo tempo capaz de orientar almas de uma corte, passando todo o tempo sujeito às tentações do mundanismo.

Tinha ele um espírito amplíssimo, uma personalidade vastíssima, rica dos maiores aspectos, com a possibilidade de impressionar a fundo os homens mais variados. Ou seja, com uma faculdade de adaptação aos vários meios que de si dariam origem a um verdadeiro romance.

Há pessoas que leem com entusiasmo a vida de “Laurence of Arabia”, porque sendo inglês esteve na Arábia e se adaptou às condições de vida lá existentes. O que é isto em comparação com todas as pluralidades de papéis que São Vicente de Paulo desempenhou de um modo tão profundamente brilhante?

Se houvesse um grande biógrafo que soubesse apresentar a vida de São Vicente de Paulo com ardor, sem se distanciar em nada da realidade histórica, mas realçando os aspectos que verdadeiramente dão a chama de sua existência, tenho certeza que esta seria uma das biografias mais famosas.

Uma das figuras mais deformadas pela “heresia branca”

Parece-me que até a consumação dos séculos uma tentação para os que escrevem vida de santos vai ser de redigi-la de modo “heresia branca”(1). E a figura de São Vicente de Paulo é exatamente a que tem sido mais deformada pela “heresia branca”.

Em que sentido? A “heresia branca” gosta de apresentar este santo sempre sorrindo e com uma criancinha ao seu lado. Que ele seja apresentado sorrindo, ótimo! E com uma criancinha ao lado — se não quiserem economizar bronze, podem até pôr cinquenta criancinhas, não tenho nada a objetar contra isto —, está esplêndido. Quem pode objetar contra o apostolado junto às crianças de quem Nosso Senhor disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos”?

Mas que se queira ver neste homem só isto! Este é o lado verdadeiramente absurdo. Por que não se faz, numa igreja ereta em louvor de São Vicente de Paulo, um quadro deste varão de Deus, na presença de Luís XIII, obtendo deste a assinatura de um edito que ordenava uma cruzada contra Túnis?

Não devemos procurar corrigir uma unilateralidade com a outra, escondendo São Vicente de Paulo caridoso, para manifestar apenas São Vicente de Paulo guerreiro, porque a beleza consiste exatamente na coexistência dos dois aspectos. Aí está a perfeição, a harmonia do espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio  Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/7/1971)

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

A Inter-relação entre os Três Arcanjos

São Gabriel, São Rafael e São Miguel, tendo sido líderes contra a Revolução chefiada por Lúcifer, no Céu, ajudam possantemente os contrarrevolucionários na Terra. Dr. Plinio discorre sobre a inter-relação das missões desses três Arcanjos com vistas ao Reino de Maria.

 

Poderíamos nos perguntar que relação existe entre as tarefas dos três Arcanjos: São Miguel, São Gabriel e São Rafael.

Primazia por natureza

Parece que eles constituem uma espécie de circuito fechado, uma totalidade, como que uma trindade.

Como essa “trindade” se prende ao conjunto do mundo angélico? Por exemplo, são eles Serafins? Tanto mais que para calcular as missões e as importâncias deles, entram duas ordens de valores distintas: uma é o que eles são por natureza; outra é a conduta deles durante a prova, porque é certo que os três se conduziram de um modo perfeito naquela ocasião.

Mas a perfeição tem graus e, por exemplo, São Miguel vê-se que foi super exímio na prova. Alguém comentou comigo que São Luís Maria Grignion de Montfort diz ter sido São Miguel aquele que teve mais amor a Nossa Senhora durante a prova, e por isso foi mais combativo. Trata-se de uma primazia por causa da atitude durante a prova, o que é diferente do primado por natureza.

Então haveria dois títulos de primazia diversos para considerar. Vamos tratar aqui apenas das relações de natureza a natureza, e não vamos considerar a primazia efetiva como ela existe no Céu, posta a reação durante a prova.

Na primazia por natureza nós poderíamos ver o que e como eles fazem, e assim entender como se completam na tríade.

São Gabriel: conhecimento amoroso

São Gabriel é aquele que comunica o conhecimento de Deus. Daí o papel dele na Encarnação. São Rafael é quem ajuda os homens nas dificuldades da vida, e São Miguel o que os auxilia na luta.

O conhecimento de São Gabriel é evidentemente todo amoroso, não é um puro conhecimento abstrativo, teórico, doutrinário.

Que relação existe, então, entre as formas de ser desses Anjos?

Deve-se notar que o conhecimento do homem a respeito de determinado ponto se completa inteiramente quando ele é capaz de dizer, de formular em palavras, escrever ou exprimir de alguma forma aquilo que ele tem na mente. Enquanto não houver a representação, o conhecimento não está acabado. E com o conhecimento não concluído, o ato de amor também não está completo.

Ademais, é só depois de o indivíduo ter completado o conhecimento essencial de algo que ele delibera agir enfrentando as maiores dificuldades, e consagrando a sua vida àquilo. Quer dizer, a consagração do trabalho e da vida é uma espécie de deliberação que provém de um conhecimento já atuante, executivo, que é o termo final do conhecimento.

E, por fim, ninguém conhece inteiramente algo se não compreende por contraste. O contraste ajuda enormemente a conhecer. Sobretudo quando o contraste existe; não notá-lo revela uma grande falta de conhecimento.

Há, portanto, um conhecimento puramente especulativo e amoroso que convida à ação, e um conhecimento que convoca à luta. Esse conhecimento especulativo e amoroso não convida à mera especulação propriamente, mas convida também a falar o que a pessoa sente. É uma contemplação da qual é próprio emanar o verbo, a conscientização que na explicitação adquire sua luz. Portanto, a palavra, a exclamação é própria do conhecimento inteiramente feito, do amor completamente adquirido que dá no cântico de louvor inteiramente desinteressado.

Por exemplo, o canto que um Santo entoaria sozinho no deserto, apenas para louvar o Criador. Existe nele a capacidade de cantar criada por Deus, pela qual ele sabe que, cantando, o Altíssimo gosta de seu canto, e que ele, portanto, deve cantar para Deus. O Criador quer isso, é de acordo com a natureza de Deus.

Então poderíamos dizer que esses três Anjos formam na ordem especulativa três maneiras de ação, sendo que esta é muito pequena naquele que é maior na ordem especulativa. E a especulação é menor naqueles que estão na ordem ativa. Há uma espécie de reverso como Maria e Marta.

São Miguel: luta, oblação e holocausto

De onde se poderia afirmar que estou preparando o terreno para a figura de um triângulo equilátero, no qual eu diria que o ângulo de cima é São Gabriel, depois embaixo, em igual posição, São Rafael e São Miguel.

Mas não é verdade porque, conforme o ângulo em que se olhe a coisa, é um triângulo equilátero no qual se pode colocar qualquer um dos três Arcanjos na ponta sem derrubar o triângulo, o que é sobretudo claro com São Miguel. Por quê?

Porque o empenho da luta é algo meio destrutivo daquele que combate; mesmo quando o indivíduo não morre na luta, ou quando esta não é de morte, quer dizer, cujo desenvolvimento normal não é a morte, o combater é fazer um esforço completamente superior ao desgaste normal do organismo; de si é desgastante, tem qualquer coisa que é uma oblação.

Por exemplo, um homem que seja obrigado a trazer para um jardim zoológico uma onça na qual puseram focinheira. Ele não vai ser comido pela onça porque ela está com focinheira, mas tem que fazer uma tal força para levar aquele bicho, que esse homem é considerado um lutador. Esse lutador tem uma glória especial por causa de um quê de imolação existente naquilo.

É ele que se aproxima para ser golpeado e golpear. Digamos que a arma dele seja uma seringa com a qual dará anestésico na onça; portanto o homem não vai morrer; mas o que ele deverá sofrer tem um quê de evidente imolação.

Ora, Nosso Senhor disse que a imolação é a maior prova de amor, e que ninguém pode amar mais a outrem do que lhe dando a sua vida. Aliás, é de toda evidência, e o Redentor afirmou de Si mesmo para explicar como devíamos estar certos do amor que Ele tem por nós.

De outro lado, é verdade também que se trata da oblação na qual há maior desinteresse. Abraão com Isaac, por exemplo, mostrou um desinteresse fabuloso, foi puro amor. E pode-se lutar por puro amor, indo, por exemplo, à Cruzada, como Isaac caminhou para ser morto pelo pai; é uma coisa que é perfeitamente possível.

A oblação, nesse sentido, é a extinção da vida de uma pessoa em holocausto a outrem, a Deus, portanto.

Por aí nós vemos que, por mais bela que seja a palavra de São Gabriel, quando consideramos a magnificência da ação de São Miguel, percebemos ser um outro título, e nos resta perguntar qual dos dois títulos, absolutamente, é maior.

São Rafael: ação pensante

Acontece que cai dentro disso a ação. Esta parece muito menor do que a contemplação, e do que a luta, a oblação. Pode-se dizer que a ação é uma luta ela mesma; e nesse sentido um homem, quando vai trabalhar, afirma: “Vou para a luta”.

Ele é, por exemplo, datilógrafo da Prefeitura, e quando ele sai de casa a mulher lhe pergunta: “Para onde você vai?”, e ele responde: “Vou para a luta”.

Tudo isso se explica em vista de uma concepção muito material da ação. Com o próprio São Rafael, fica-nos na mente, ao menos a mim, o desenhozinho — aliás, encantador e bobinho — que ilustrava minha História Sagrada: São Rafael andando a pé com um bastão do qual pendia uma espécie de moringuinha, e conversando com Tobias animadamente. Então, São Rafael, o Anjo que anda, que transpõe distâncias, etc.

Não é verdade. São Rafael foi um Anjo de uma sabedoria ativa superior, que ajudou Tobias a ver o que de fato ele deveria querer na viagem, deu-lhe a força e o ânimo — esse é o sentido da companhia — bem como os meios para executá-la. O andar a pé, o aspecto material da viagem, fazer com que aquele boneco que São Rafael fabricou — e Tobias tomava como um homem — falasse, isso para o Anjo não era nada. E nem havia cansaço em fazer um boneco andar. Ora, sabe-se que ele estava animando um boneco.

Então se compreende que para se falar em São Rafael como Arcanjo da ação, deve-se escolher os mais altos graus e padrões da ação. Quer dizer, muito mais do que a ação operacional completamente ativa, a ação pensante. Para recorrer a um exemplo correntemente usado entre nós, aquela frase do Marechal Foch(1): “Ma droite est pressée, ma gauche est menacée, ma arrière est coupée… Que fais-je? J’attaque”(2). Isso é magnífico! Ou seja, “eu estou num apuro total, vou atacar”. É uma ação, se se pode dizer “rafaélica” nesse sentido da palavra, que mostra o pensamento sobre a ação, uma alta categoria.

A arte de governar, de dirigir profeticamente, a missão propriamente profética no conjunto da ação da vida, estaria com São Rafael, enquanto que com São Miguel, o profetismo da luta e do holocausto, e não da vida comum. O reinar seria com São Rafael.

E aí se compreende a beleza da distinção entre as várias coisas.

São Luís Grignion e os três Arcanjos

E São Gabriel seria mais o profeta que inspira o rei, digamos ele traça a metafísica. Quem dá a “meta-política” é São Rafael, com toda a execução da política. Quem proporciona a “meta-luta” é São Miguel.

Notem como se compreende bem o tema até o fundo, tomando em consideração o seguinte: a tarefa especial de repelir os demônios e da luta contra eles é de São Miguel.

Mais ainda: enquanto contrarrevolucionários, qual o papel dos três Arcanjos?

Eu diria que São Gabriel insufla o espírito verdadeiramente contrarrevolucionário, com todo o ideal carolíngio e, para lá de carolíngio, o Reino de Maria, com todo o desejo e a concepção das coisas altíssimas, de tal maneira que nos dá uma ideia dos lineamentos fundamentais de como uma ordem humana deveria ser.

A “metapolítica”, quer dizer, a partir dessa ordem suprema, quais são os modos executivos de organizá-la? E quais são as maneiras de levá-la a efetivar-se? Quem os indica é São Rafael. E lutar contra os adversários que se opõem é a missão de São Miguel.

Transpondo para o campo humano, vemos que em São Luís Maria Grignion de Montfort deveria haver necessariamente horas “gabriélicas”, horas “rafaélicas” e horas “micaélicas”, conforme a preponderância. Lendo o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem sente-se isso, porque há trechos em que se tem a impressão de que é São Gabriel que anuncia alguma coisa. E ele, enquanto um apóstolo que monta a argumentação para convencer um terceiro, e que acende um fogo de alma para chamá-lo, é São Rafael.

E São Luís Grignion tem movimentos de indignação, em que há de ponta a ponta do livro dele uma intransigência sublime, adamantina: essa é a hora de São Miguel. Quer dizer, existem tônicas. O que não elide o problema mais profundo que é o de saber qual dessas coisas absolutamente falando, em Deus, é a tônica.

Que aspecto angélico brilhou mais na vida de Nosso Senhor?

De outro lado, há o seguinte: poderíamos perguntar se na vida santíssima e augustíssima de Nosso Senhor, qual desses aspectos brilhou mais, e quais seriam os aspectos em que Ele se conduziu como o Deus de Gabriel, o Deus de Rafael e o Deus de Miguel.

Seria uma pergunta que daria motivo para um estudo do Evangelho muito belo. Aliás, é propriamente assim que eu gostaria que o Evangelho fosse consultado, porque o bonito é fazer perguntas dessa natureza.

Então eu diria que, por exemplo, Nosso Senhor no Tabor, a mim me parece eminentemente São Gabriel.

Na Paixão d’Ele, evidentemente São Miguel; é o holocausto e a luta, quando Ele venceu o mundo. Agonia, em grego quer dizer “a luta do atleta”; os atletas eram chamados “agonistas”.

E São Rafael é enquanto Mestre fazendo apostolado, na vida pública d’Ele.

A vida íntima d’Ele com Nossa Senhora, não era Gabriel?

Enfim, 30 anos, 3 anos, 3 dias. Aliás, o papel do número 3 aí é bastante bonito.

É muito ilustrativo para o espírito passear dentro desses problemas e remexê-los. Eles emitem luz ainda quando não os resolvamos. E se depois de pensarmos assim consultarmos um livro sobre Angelologia, em dez minutos está resolvido.

A meu ver, estaria dentro dos nossos métodos mentais, e eu acho que Nossa Senhora abençoa este modo de agir — não quero dizer que seja o único —, primeiro com as luzes que Ela nos deu, tratarmos de fazer as hipóteses, e depois ir estudar para ver o que a Igreja diz, num espírito de submissão, de querer aprender. Aí se entende bem o ensinamento da Igreja. Parece-me um modo de operar muito digno, muito correto.

É o que eu quis fazer um pouco nesta conferência, e também porque reputo este tema um tanto exorcístico. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/12/1976)

 

1) Militar francês que comandou as forças dos Aliados em 1914, de forma decisiva, levando-os à vitória (*1851 – †1929).

2) Minha direita é pressionada, minha esquerda é ameaçada, minha retaguarda é golpeada. O que faço?
Ataco!

Oração a São Miguel, pedindo a graça de ser um perfeito cavaleiro

Ó São Miguel Arcanjo, que desembainhastes vosso gládio no Céu para vingar contra os anjos rebeldes a glória do Salvador e de sua Mãe Santíssima, dai-me a graça de ser, neste auge do poder das trevas, um perfeito cavaleiro da Cavalaria Angélica suscitada em nossos dias para combater o demônio e seus agentes terrenos e implantar o Reino de Maria.

Para isto, obtende-me a graça de ter um espírito profundo, sério, abnegado, inebriado de fervor para com a Contra-Revolução, bem como transbordante de ódio e desprezo para com a Revolução satânica, igualitária e gnóstica.

Rei e centro de todas as coisas

Quem se dedica ao apostolado, ou qualquer outra atividade em prol da Igreja e da civilização cristã, deve compenetrar-se de que Nosso Senhor é o centro de todas as coisas e jamais poderá ser derrotado. Se tivermos sempre em vista essa verdade, compreenderemos como são pequenos os fatos que às vezes nos angustiam e nos fecham o horizonte.

 

Segundo fotografias que vi de desenhos e pinturas nas catacumbas, não há nada que indique terem os católicos daquela época uma ideia clara de como foi a face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seria natural que, considerada a grande importância d’Ele, houvesse alguém de seu tempo — ou cem, duzentos anos depois de sua Morte — que tivesse feito uma representação de Nosso Senhor, pintada ou de qualquer outra forma.

Arquetipização da figura de Nosso Senhor

Entretanto, apesar da carência desses documentos, de repente — não sei bem em que século da História da Igreja —, começam a aparecer imagens com a fisionomia que está no Santo Sudário.

Como foi preenchido esse hiato?

Alguém dirá: “Pela tradição.”

Sem dúvida, mas como é que a tradição se exprimiu? Como se transmite pela tradição a figura de um rosto que não se pintou, não se esculpiu, e nem sequer documentadamente se descreveu?

O Evangelho é uma espécie de autorretrato de Nosso Senhor, não feito por Ele, mas com fatos de sua vida que dão a ideia de como Ele era, entretanto não são suficientes para compor o rosto de Jesus. Depois de composta a face, lendo o Evangelho dizemos: “Não há dúvida, esse é o rosto d’Ele mesmo!” O Evangelho autentica a face, mas não dá os elementos para sua composição.

Vê-se que a graça continuou a fazer nas almas uma arquetipização(1) válida da figura do Redentor, à vista da iconografia muito insuficiente que havia, e essa arquetipização floresceu, de repente, no rosto d’Ele o qual conhecemos e que o Santo Sudário vem documentar.

Isso me parece uma prova criteriológica muito bonita do valor dessas sublimações movidas pela graça.

O Rei da glória é o vencedor

Tomando Nosso Senhor como Ele foi, com toda aquela elevação, bondade, calma, distância, intimidade e tudo o mais, deduz-se que, ou o gênero humano é uma pagodeira sinistra, uma espécie de sarabanda do Inferno prenunciativa da que lá existe, ou tem que haver no centro e no ápice uma figura em torno da qual todos os homens se ordenem.

Quer dizer, há uma espécie de senso profundo do ser que, diante da Revelação, exulta e nos leva a exclamar: “Sem dúvida, esse centro tinha que existir, não pode desaparecer; é Nosso Senhor. Ele tem que vencer, é o Rei da glória e as suas derrotas são aparentes, pois, no fundo delas, Ele é o vencedor, e sempre reaparecerá!”

O senso de que a História deve ter um futuro diferente, o porvir da ordem contrária à Revolução, vem deste senso de que Ele é o centro e não pode ser deslocado deste centro. E, como não pode ser deslocado, a vez d’Ele chegará. Por isso, quando virmos uma pessoa inteiramente fiel a Ele — ainda que seja o último ser humano que se conheça — podemos afirmar com segurança: “Vai vencer!”

A mulher que não tinha nariz

Conheci uma mulher sem nariz, uma beata da Igreja de Santa Ifigênia(2), que todos os dias, em qualquer tempo que fosse, ia lá com o guarda-chuva na mão; não sei por que ela não segurava no cabo, mas em cima, onde se reúnem as varetas. Feia, baixa, e com um lenço sempre limpo e de qualidade ordinária, cobrindo a cavidade do nariz, amarrado de tal modo que não atrapalhava a respiração ­dela. Ela andava, falava, vestia-se normalmente e tinha algum trabalho. Vivia no meio das beatas, porque era assídua em Comunhões na Igreja de Santa Ifigênia.

Humanamente falando, era uma derrotada, mas ela ia para a frente com uma firmeza, um ar de segurança da vitória que destoava de toda a melúria piedosa que a cercava e da qual ela não tinha bem noção. Ela possuía um triunfo, e andava naquelas ruas já neopagãs da São Paulinho, com ar de vencedora, pois participava dessa noção de vitória de que falei há pouco. E, por exemplo, a mim, essa mulher muitas vezes fez bem porque, olhando para ela, eu pensava: “Quem suscita almas assim, está vivo, não pode morrer e isto vai para a frente!”

Aquela pobre senhora era bem mais velha do que eu, e certamente terá morrido. Eu gostaria que no Céu, onde ela se encontra, essas palavras de saudades, de homenagem chegassem.

Ela me olhava muito, não sei por quê; eu também dirigia meus olhos a ela, mas os formalismos justos daquele tempo levavam a que, sendo ela uma pessoa de uma classe muito inferior à minha e de outro sexo, não nos abordássemos. É muito legítimo. Eu teria muita alegria de saber que fiz algum bem à alma dela.

Fonte perene que nunca deixa de jorrar a água viva

Uma vez que tivemos a graça e a alegria de poder expor esse pensamento sobre o Sagrado Coração de Jesus, creio que se não fizermos remontar todas as nossas doutrinas a isso, não compreendemos em toda a sua profundidade, exatidão, força cogente, aquilo que dizemos. Quer dizer, olhando para Ele, seriamente, compreendemos que Nosso Senhor é o centro e tem que vencer.

É, por exemplo, o pensamento que animava a Nossa Senhora na hora do “consummatum est”(3), em que Ela O teve sobre o colo, enquanto punham aromas no Corpo divino, e tudo o mais. E também A confortava durante o tempo em que Ele esteve sepultado.

Porque os Apóstolos, Santa Maria Madalena e os discípulos de Emaús tinham isso de um modo incompleto, não O reconheceram quando Jesus ressurrecto apareceu, a não ser em certo momento. Não possuíam a noção de que Ele não podia ser derrotado. E nisto estava o ponto fraco deles.

Ora, quando se conhece uma obra que resiste à Revolução e conserva, contra toda a ordem de coisas, um certo viço, percebe-se que ali a Fonte perene nunca deixa de jorrar a água viva, e que isso ninguém vence.

Se tivéssemos isto em vista, possuiríamos, por exemplo, um outro ânimo em tocar o apostolado, porque compreenderíamos como são pequenas diante dessa verdade as coisas que às vezes nos angustiam e nos fecham o horizonte.

Às vezes, vem falar comigo alguém com muito mais empenho em resolver o casinho de seu apostolado do que em tratar deste tema. É porque a pessoa perdeu de vista que a água viva é outra, o centro é outro, e todas essas coisinhas devem ser tratadas, pois têm o seu papel na vida, mas de nenhum modo podem lotar a nossa atenção.

O chinês que chega à Terra Santa à procura de um Ser perfeito

A respeito de Nosso Senhor, pode-se imaginar uma pessoa do tempo d’Ele que O conheceu em sua vida terrena e, por assim dizer, tivesse explodido de adoração a Jesus, tocada pela sua presença.

Mas seria possível dar-se um outro fato de pessoas que, levadas pela inocência, pela retidão, pelo senso do ser, fizessem um prognóstico mudo, não explicitado, de que algo como Ele deveria haver. E que se pusessem a procurá-Lo, sem saber que era a Nosso Senhor que estavam procurando. Então, por exemplo, poder-se-ia imaginar o seguinte caso irreal, mas daria um lindo conto.

Um chinês que tivesse saído da China, em linha reta, rumo ao Mediterrâneo, sem ter noção desse mar, e atravessando os mais variados povos, levado pela ideia confusa de que, à força de ver gente, ele encontraria algo que não sabia o que era, mas lhe preencheria a alma.

Chegando à Terra Santa, teria ouvido narrar os acontecimentos passados com Nosso Senhor, enquanto seu Corpo sagrado estivesse sepultado. E o chinês, numa explosão de Fé, houvesse dito: “Esse Homem não pode ficar na sepultura, Ele tem que aparecer!” E tivesse cantado o “Hosanna”, no próprio momento em que Nossa Senhora estava na soledade.

Essa alma teria feito esse outro caminho para encontrar a Nosso Senhor: levada por um misterioso sentimento de que Ele era o Rei e o centro de todas as coisas, sem saber explicitar, procuraria a Ele. E, encontrando-O morto, veria que o caso não poderia se liquidar assim.

Não é verdade que essa alma mereceria ter assistido à Ressurreição?

Movimento metafísico fortíssimo

Em pequeno, tive a felicidade indizível de ser batizado, conhecer Nosso Senhor, de ser tocado pela graça da devoção a Ele, especialmente na atitude de mostrar o seu Coração. Foi como um encontro pessoal que me fez conhecer coisas as quais eu não conheceria se não tivesse encontrado a Ele. Isso é verdade.

Mas também é verdade que Nossa Senhora obteve que fosse posto em minha alma, pela inocência, um movimento metafísico fortíssimo para buscar o centro de todas as coisas, e que quando encontrou a Ele, de algum modo já estava aberto para ver isso n’Ele.

Não sei como agradecer à Santíssima Virgem de ter pedido e obtido isso para mim! Mas vejo bem que se esta devoção a Ele vingou em mim, de um modo tão profundo e tão pouco vulgar para um menino daquela idade, foi porque já havia em minha alma um movimento para um maravilhoso, um absoluto, para uma coisa que a inocência me dava. E houve um encontro.

Seria, portanto, um pouco o homem que encontrou Nosso Senhor, e um pouco o chinês levado por aquele movimento metafísico. E, se não me engano a esse respeito, uma pessoa que queira me conhecer, deve notar esses dois movimentos na minha alma.

E daí ela mesma pode, através do conhecer-me, ser estimulada para uma e outra coisa. Não direta e exclusivamente para ver isso n’Ele, mas perceber a Contra-Revolução. No ver a Contra-Revolução, contemplar a Ele; e no ver a Ele, contemplar a vitória da Contra-Revolução e concluir: “Isso não pode ser derrotado!”

Contaram-me que no maremoto o mar recua, recua, e depois a fúria com que ele volta e a força de invasão é proporcionada ao poder de retração.

Podemos comparar isso à ausência de Deus no panorama moderno. Também Nossa Senhora faz assim com seus seguidores perseguidos, chamados à bem-aventurança de sofrer perseguição por amor à justiça: Ela recua, recua… Tomem cuidado, porque Ela deixa aqueles a seco, como um navio parado que ficou fazendo o papel ridículo de fantasma no meio de uma terra árida; mas quando o mar voltar, deve chegar onde nunca atingiria numa época comum!

Consideremos que Nosso Senhor disse o “Eli, Eli, lamá sabactâni”(4) depois de ter previsto a glorificação d’Ele ao Bom Ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” 5 Portanto, no meio daquela dor, Ele sabia que iria para a glória do Paraíso, e levaria São Dimas.

Ele foi, como Rei do Céu, abrindo as portas, absolvendo, perdoando o Bom Ladrão. Assim, a primeira canonização que houve na Igreja foi do alto da Cruz, feita por Nosso Senhor diretamente. Depois veio a Ressurreição, e todo o resto. 

(Extraído de conferência de 14/12/1985)

 

 

1) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a procura da perfeição em todas as coisas.

2) Localizada no bairro de mesmo nome, na região central de São Paulo.

3) Do latim: “Está consumado” (Jo 19, 30).

4) Mt 27, 46.

5) Lc 23, 43.