São Bruno

Alma dotada de um vigor extraordinário, São Bruno encerrou-se na mais rigorosa das reclusões, entregue à meditação das coisas divinas.

Fundador da cartuxa, seu exemplo de ascetismo conferiu novo ânimo e impulso às ordens religiosas que trilhavam as sendas da tibieza e do relaxamento.e do relaxamento.

Reluz nos céus da Igreja como um modelo de espírito audacioso, afirmando para o mundo esta superior verdade: quanto mais recluso e mais contemplativo, tanto mais ousado; quanto mais um homem que reza e pensa, tanto mais um homem capaz de arrojar-se e de empreender maravilhas.

Cintilações da alma franciscana

Em diversas regiões da velha Europa cristã, há lugares que ainda conservam uma certa unção, ligada à própria natureza deles, não só porque Deus assim o dispôs, mas também porque foram “sobrenaturalizados” pela santidade de homens que ali viveram. É exemplo paradigmático disto a cidade de Assis, marcada para todo o sempre pela extraordinária virtude do santo Fundador dos franciscanos.

Ao peregrinarmos por aquelas paragens que conheceram a prodigiosa alma do “Poverello”, logo o imaginamos passeando pelos lindos e pitorescos arredores de Assis, analisando tudo e fazendo altas considerações que o uniam ainda mais ao Criador. Então se encantava com uma pequena flor, com as ervinhas a crescerem nos sopés das colinas, ou com o “irmão sol” num lindo crepúsculo, etc., elevando-se na contemplação, no conhecimento e no amor de Deus com uma plenitude incomparável.

Essa comunicação especial que São Francisco tinha com Nosso Senhor produzia, por sua vez, uma forma de circulação de sobre- natural por aqueles lugares, envolvendo e conferindo a tu- do algo da própria perfeição espiritual do santo.

Em Assis, ainda se pode degustar algo que só a autêntica piedade católica é capaz de engendrar, isto é, a harmonia de sentimentos opostos. Ali se experimenta um pouco da bondade e da doçura franciscanas, ao lado da austeridade e da combatividade de um varão que era entusiasta das Cruzadas. Sente-se a felicidade extraordinária de um dos santos mais alegres da história cristã e, ao mesmo tempo, o signo de uma tristeza digna, composta, senhora de si, que é o reflexo da dor de São Francisco pela morte do Filho de Deus. Tem-se a imponência das construções da monumental basílica, ao lado do espírito de humildade e desapego das coisas terrenas levadas ao último ponto no “Êremo delle Carceri”. Assim como a pureza estava para São Luís Gonzaga, estava a pobreza para São Francisco. A “dama pobreza”, como dizia, a qual ele misticamente desposara.

Eis uma das grandes maravilhas a serem admiradas em Assis: extremos opostos que nascem dos troncos benditos da Igreja, que não entram em conflito, mas se equilibram de forma prodigiosa, manifestando, pelos fulgores da alma de um santo, algumas das infinitas perfeições do Criador.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Clara de Assis Modelo de consagração a Deus

Na véspera de conduzir seus discípulos a uma histórica demonstração de Fé e catolicidade pelas ruas de São Paulo, Dr. Plinio procura avivar em suas almas as chamas do amor de Deus,  comentando-lhes alguns expressivos episódios da vida de Santa Clara de Assis, modelo heroico de entrega e devoção ao serviço divino.

No dia 12 de agosto, após termos celebrado a festa de Santa Clara de Assis, nosso movimento realizará, sob o patrocínio dessa insigne contemplativa, um grande cortejo pelas ruas de São Paulo. Parece-me de assinalada beleza que algo tão ativo se efetue sob o signo de tão intensa contemplação.

Encontro com São Francisco

Consideremos, portanto, alguns aspectos e episódios mais significativos da vida dessa admirável santa, baseados numa biografia escrita por Dom Guéranger em sua obra “L’Anné Liturgique”. Discorrendo sobre a conversão de Clara, aponta o autor:

Quando São Francisco pregava em Assis, na igreja de São Jorge, uma jovem de nobre família tinha resolvido ir com sua mãe e sua irmã para ouvir uma das suas instruções. Clara ouviu palavras de amor ardente, contemplou a fisionomia transfigurada de São Francisco e desde este momento o escolheu como guia de sua alma. Ela confiou seu desígnio a uma tia e com ela foi a Santa Maria dos Anjos. Quem poderia dizer o que se passou na alma do pai Seráfico, nesta primeira entrevista com aquela que deveria ser sua auxiliar na obra que o Céu lhe confiou?

Com efeito, Santa Clara, juntamente com São Francisco de Assis, fundou o ramo feminino da Ordem franciscana cujas freiras, em homenagem a ela, são chamadas de clarissas.

Inteira consagração ao serviço divino

Prossegue o biógrafo:
São Francisco desvendou a Clara as belezas do Esposo Celeste, a excelência da virgindade. Em seguida, a entreteve com tudo aquilo que tinha de mais caro no coração: o poder e os encantos da pobreza e a necessidade da penitência. Surpresa, enlevada, Clara o ouviu e atendeu ao chamado divino em sua alma. Em pouco tempo a sua deliberação estava fixada: ela quebrará todos os vínculos que a unem à  terra e se consagrará a Deus.

Ou seja, depois de se converter, Santa Clara se consagra inteiramente a Nosso Senhor. Vejamos agora como isso se fez.

Na noite de Domingo de Ramos do ano 1212, ela deixou furtivamente a casa paterna e, em companhia de algumas amigas íntimas, tomou o caminho de Santa Maria dos Anjos. Francisco e alguns frades foram ao encontro delas com tochas nas mãos e as introduziram no santuário de Maria. Foi ali, no meio da noite, que se passou a cena dos desponsórios espirituais de Santa Clara. Francisco lhe perguntou o que ela queria e a santa respondeu: “O Deus do Presépio e do Calvário. Eu não quero outro tesouro nem outra herança”. Enquanto Francisco lhe cortava os cabelos, ela depositou tudo quanto tinha de precioso — suas jóias, seus ornamentos — e recebeu o hábito e o véu grosseiros, a corda, e se consagrou a Deus para todo o sempre.

Cena esplendorosa

Devemos considerar o esplendoroso da cena. Na pequena cidade de Assis forma-se um cortejo de moças que, movidas pela graça do chamado divino, abandonam o império das famílias que lhes queriam longe dessa vida de penitência. Andam pelas ruas tortuosas de Assis, a passos lentos para não despertar a atenção alheia. Saem do perímetro da cidade e, no campo, entre Assis e o pequeno convento de Santa Maria dos Anjos, encontram um outro cortejo, ainda mais celeste que o delas, encabeçado pelo próprio São Francisco. Este era um outro Cristo na Terra, pois, além de um dia ser tocado por chagas nos mesmos lugares em que Jesus foi ferido, aparentava até semelhança fisionômica com Nosso Senhor.

Então, com alguns dos santos que o ajudaram a fundar sua obra, São Francisco sai de encontro a Clara e suas amigas, à luz de tochas que eles portam nas mãos. Os dois séquitos se unem e se dirigem à igreja de Nossa Senhora onde, no silêncio da noite, com as portas provavelmente fechadas, Santa Clara renuncia ao mundo e se consagra a Deus. Como simbólica afirmação dessa entrega, deixa que São Francisco lhe corte os cabelos e dá assim o passo definitivo do qual nascerá a Ordem das Franciscanas, cujos frutos renderam e ainda renderão glória a Deus de tantas formas e tantos modos.

Colateralmente faço notar a necessidade de medirmos o genuíno valor das coisas santas e católicas, como o da cena acima descrita, para fazermos o confronto com a profunda decadência na qual o mundo vai imergindo, tornando-se indiferente a essas maravilhas.

Numa cena repassada de beleza, Santa Clara e suas companheiras se encontram com São Francisco e seus frades nos arredores de Assis, e todos se dirigem ao pequeno convento onde ela se consagraria para sempre ao serviço de Deus

Seguir o exemplo da consagração de Santa Clara

Será, talvez, a grande lição a colhermos desse lindo episódio da vida de Santa Clara. Pode-se dizer que valeria a pena ter nascido apenas para, neste momento, constatarmos a decadência religiosa e moral em que vamos soçobrando, sentirmos a alma dilacerada de dor, pulsando de indignação face a esse declínio, e tomar a deliberação de devotar a vida inteira para impedir que tal decadência continue a prejudicar as almas. Dessa forma estaremos fazendo uma consagração semelhante à de Santa Clara, que deixou tudo para entrar no convento.

Se a crise do homem contemporâneo nos é indiferente, e julgamos mais importante a “vidinha” de todos os dias, o ter um automóvel novo, uma vistosa roupa, um bom colchão de molas, o sucesso na profissão, etc., então é o caso de perguntar onde está nossa Fé, nosso amor a Deus sobre todas as coisas.

Uma afirmação de Fé

Nesse sentido, volto a lembrar do desfile que nosso movimento realizará no centro de São Paulo. Mais do que uma comemoração pelo êxito do abaixo-assinado contra o divórcio, será uma afirmação de nossa Fé, de nossa convicção dos princípios católicos que abraçamos e sustentamos, a afirmação de que desejamos, antes de tu-do, ser autenticamente filhos da Santa Igreja.

Não deverá ser um mero espetáculo, mas um propósito firmado diante de Deus, de Nossa Senhora, dos anjos e santos, de todos os membros do movimento que ali es-tiverem, um propósito de viver fundamentalmente para glorificar a Igreja. E nada mais. Se alguém morrer depois de ter feito esse propósito de modo sério, teria ganho sua existência, pois valeria a pena ter nascido para tal.

Incalculável importância da vida interior

Também a esse propósito convém recordar outro fato conhecido da vida de Santa Clara, quando ela pôs em fuga os sarracenos que sitiavam o seu mosteiro, avançando para eles com o santo cibório na mão. Mais uma cena de extraordinária beleza: esta virgem consagrada a Deus que não recua diante do invasor e o enfrenta, segurando a âmbula repleta de partículas consagradas. Diante dela, ostensório vivo que leva o Santíssimo Sacramento nas mãos, os agressores recuam e fogem.

Outra admirável lição para nós. Normalmente, a Providência quer que procuremos os meios materiais para enfrentar e derrotar os adversários da Igreja. Porém, quando esses meios faltam, não devemos julgar que Deus nos abandonou. Pelo contrário, Ele nos prepara para recebermos suas melhores graças, a fim de compreendermos como esses meios são secundários. Santa Clara não precisou de exércitos nem de armas para repelir o inimigo às suas portas.

Portanto, uma alma que faça um autêntico ato de generosidade interior, renunciando a si mesmo e rumando para sua santificação, poderá realizar maior bem para a causa católica do que, por exemplo, todo o nosso cortejo desse dia 12 de agosto o qual, entretanto, com a ajuda de Maria Santíssima, há de ser um grande feito.

Vemos, assim, o valor incalculável da vida interior.

Peçamos, então, a Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra, que, a rogos de Santa Clara de Assis, cumule nossas almas dessas resoluções, dessas considerações, bem como desse espírito de consagração e de entrega ao serviço divino.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Bruno – O fundador dos cartuxos

Com profundo senso histórico, ao analisar a vida de São Bruno, Dr. Plinio extrai valiosos ensinamentos acerca do espírito medieval, contrastando a Fé e os costumes daqueles tempos com os dos dias atuais.

No dia 6 de outubro, a Igreja celebra a memória de São Bruno, fundador da Grande Chartreuse. Nasceu ele na cidade de Colônia, junto ao Reno, na Alemanha(1).

Assim narra uma ficha com sua história:

“Manassés, Arcebispo de Reims, o nomeou seu chanceler. Mas Manassés se deixava arrastar pela simonia. Bruno o acusou, o que lhe atraiu as perseguições do Arcebispo, que o privou de seus benefícios.”

Chama-se simonia a venda de bens ou cargos eclesiásticos, a qual é punida pela Igreja com as maiores penalidades. São Bruno, sendo já clérigo e chanceler do Arcebispo, verificando que este praticava tal pecado, imediatamente o denunciou. Por causa disso, foi perseguido e privado de todos os benefícios.

Idade Média, a era dos milagres

“Entre os doutores da Universidade de Paris, Bruno tinha um grande amigo, muito estimado e tido como virtuoso e sábio. O amigo morreu e todos os membros da Universidade assistiram seus funerais. Durante o serviço fúnebre, enquanto um dos pequenos coroinhas começava a lição de Jó: “Responde mihi, quantas iniquitates habes?’…”

Fazia parte da liturgia esta pergunta: “Responde-me, quantas iniquidades tu tens?”

“…o corpo do defunto, que estava deitado no esquife, no meio da igreja, levantou a cabeça e disse com um tom de voz assustador:
— Sou acusado por um justo julgamento de Deus.
“E se deitou novamente no esquife”.

É cena tipicamente medieval, pois a Idade Média foi a era dos milagres. Estes vão atrás dos que creem e não dos incréus, embora pareça um paradoxo, pois se diria que milagre é para quem não tem Fé. Nas épocas de muita Fé, o milagre é abundante; nas de ceticismo, ele se torna raro. O único desmentido a isso ocorreu nos séculos XIX e XX, com os milagres quase contínuos de Lourdes.

Precisamos tomar em consideração que o medieval era homem como nós; realidade sobre a qual, às vezes, não se tem inteira noção, dada a distância que as pessoas de hoje sentem em relação aos tempos antigos. Então, para compreendermos o realce desse fato na vida de São Bruno, devemos imaginar aqui perto, na Igreja do Coração de Maria(2), um homem deitado no esquife e nós assistindo a cena. Em certo momento, o coro canta:
— Responde mihi quantas iniquitates habes?
O homem senta-se e diz:
— Eu estou punido por um justo castigo de Deus.

E de olhos fechados, com cara de cadáver, deita-se novamente.

Já imaginaram o efeito disso numa igreja? E sobre cada um de nós concretamente? Creio que a respeito disso haveria comentários durante, pelo menos, quinze dias, ocasionando ruptura de silêncio, falta de distância psíquica(3), etc. Pois bem, São Bruno teve a felicidade de assistir a esse episódio.

“O terror causado por um acontecimento tão pouco comum fez com que se adiasse o enterro para o dia seguinte, para ver o que sucederia.”

Hoje se enterraria na hora, para encerrar a história. Naquele tempo, havia Fé e as pessoas queriam verificar se aconteceria mais alguma coisa. Durante toda a noite, a igreja ficou cheia de povo, desejoso de ver o cadáver que falou, e esperando o momento no qual fosse lido aquele mesmo texto litúrgico.

Em nossos dias, a cena seria perturbada pela presença de rádio, televisão, repórteres, etc. Ou talvez se fizesse N-A-N-E(4) e algum jornal noticiaria o fato com o título: “Estranhos episódios de auto-sugestão na Igreja do Coração de Maria”.

“Durante o ofício, no dia seguinte, quando foi cantada a mesma lição, o cadáver exclamou com uma voz ainda mais horrível:
— Eu estou julgado por um justo julgamento de Deus.”

Aparente virtude desmascarada por Deus

Isso significava uma bênção para aquele povo, pois equivale a um verdadeiro retiro espiritual. Deus vai obrigar o cadáver de um condenado a declarar que ele estava julgado por um justo juízo de Deus! Mais terrível, é que era um homem tido como bom. E mais ainda, tinha entre seus amigos São Bruno.

“O povo ficou mais assustado ainda e decidiu enterrá-lo no outro dia. No terceiro dia, o cadáver levantou-se mais uma vez, exclamando com uma voz de estrondo terrível:
— Eu estou condenado por um justo juízo de Deus.”

Por que Deus quis, por essa forma, desmascarar a falta de virtude de um homem tido por todos como bom? Porque na Idade Média a virtude era incomparavelmente mais frequente do que em nossos dias. E os maus, muitas vezes, não ousavam apresentar-se na sua maldade, para terem livre trânsito entre os bons. Então, era preciso desmascarar a maldade e mostrar quantos homens falsos poderia haver sob aspecto virtuoso. Hoje é quase o contrário: é preciso desmascarar os bons, que se escondem tanto quanto possível, e os maus se mostram. Na Idade Média era necessário fazer com que os bons fossem vigilantes e não seguissem os maus que se fingiam de bons. É uma admirável lição de vigilância.

“O corpo do morto foi…”
Muitos estarão pensando “enterrado”. Porém, o texto assim continua:
“…jogado no lixo.”

Conforme São Tomás de Aquino, quando vier o fim do mundo, toda matéria sórdida, lixo e outros detritos que não tenham sido queimados serão jogados dentro do inferno, porque é a lata de lixo do Universo, para onde vão todas as almas e matérias que não prestam.

Fundação da Chartreuse

A ficha apresenta outros fatos isolados da vida de nosso santo.

“São Bruno se associou a seis companheiros.”

Trata-se da fundação da Chartreuse.

“Eles venderam todos os seus bens, depois foram à cidade de Grenoble. Lá havia um santo Bispo chamado Hugo. A visita de Deus precedeu de um modo admirável os sete companheiros, junto do santo Bispo. Este teve um sonho, no qual viu um imenso deserto onde Deus Padre construía para Si próprio uma casa para morar. Sete estrelas brilhantes, em forma de uma coroa elevada sobre a Terra — diferentes das estrelas do céu em situação, movimento e claridade — andavam diante dele como para lhe mostrar o caminho.”

Através desse sonho poético e bonito, vemos como a Idade Média era cheia de contrastes. Acabamos de recordar uma cena terrível: um condenado ao inferno obrigado a manifestar a justiça de Deus. Agora é o contrário.

Imaginemos o paço episcopal, onde um Bispo respeitável, venerável, santo, dorme tranquilamente o sono do justo, do homem sagrado e ungido por Deus. Consideremos a beleza do quadro: um deserto e o Pai Eterno. É digno ambiente para se manifestar o Pai Eterno um deserto onde ninguém vai e somente a majestade de Deus paira, como antes de criar todas as outras coisas Seu Espírito pairava sobre as águas (cf. Gn 1, 2). É uma solidão digna de Deus.

Depois o Bispo, no seu sonho, se vê caminhando rumo ao deserto com um bordão de peregrino, orientado por sete estrelas do céu, que formam uma coroa. Faz lembrar os reis magos seguindo a direção indicada pela estrela e indo para o Presépio de Belém. É uma coisa linda! Podemos imaginar a elevada expressão de fisionomia do santo, enquanto dorme, vendo essas estrelas que lhe aparecem.

Tudo isso nos introduz no ambiente da Idade Média, tão cheio de contrastes e coloridos. Antes o terror e agora o admirável. Nessa época histórica encontramos pouco o banal, do qual estamos repletos atualmente.

Continua a ficha:
“Santo Hugo não sabia o que significava essa visão quando, no dia seguinte, sete peregrinos vieram se prosternar a seus pés, comunicando sua resolução e pedindo-lhe que os ajudasse. Santo Hugo julgou que os sete peregrinos seriam, na sua diocese, estrelas resplandecentes por suas virtudes e sua doutrina.”

Não há nada mais belo que o encontro de almas santas

Voltemos a imaginar, no palácio episcopal, o santo sentado numa espécie de trono de madeira lavrada — numa sala com um reposteiro, uns vitrais, chão de pedra, um tapete, constituindo um ambiente de recolhimento — e os sete jovens que chegam. São pessoas resplandecentes de saúde, de Fé, de vontade de servir a Deus. Ainda cobertos pela poeira do caminho, eles se ajoelham diante de Santo Hugo.

Não há coisa mais bonita do que o encontro de almas santas: uma luz refletindo-se em outra e ambas se multiplicando. Daí nasce uma harmonia entre diversos seres, mais bonita do que um só ser. Uma nota do mais perfeito órgão tem menos pulcritude do que duas notas, ou três, formando um acorde. Assim esses santos formavam um acorde, uma harmonia de almas.

O santo Bispo, embevecido, vendo aqueles jovens, os quais, levados por alguma comunicação celeste, sabiam que lhes mostraria para onde deveriam ir. Então, de joelhos, pediram que lhes indicasse o caminho.

Essa cena daria para um vitral, uma iluminura, uma tapeçaria. Poderíamos julgar que essas formas artísticas medievais marcam fatos excepcionais da vida. Na verdade, elas reproduzem aspectos correntes da existência na Idade Média. Porém, tais aspectos tinham uma alta dignidade e mereceriam, portanto, ser retratados em matérias tão excelentes como a tapeçaria, o vitral, a iluminura.

“O Bispo os recebeu com alegria, pois esses homens poderiam dar glória a Jesus Cristo. Ele os estimulou e confirmou nas suas santas resoluções. E deu-lhes como lugar para se fixarem uns montes horrendos, perto de Grenoble, montes esses chamados La Grande Chartreuse.”

Lutavam contra a hostilidade da natureza cantando e glorificando a Deus

Esses montes horríveis, posteriormente, pela presença de São Bruno e seus filhos, tornaram-se famosos. Realmente, depois de serem cultivadas e adaptadas pelos cartuxos, aquelas montanhas formaram um panorama lindo.

Pode parecer estranho que o Bispo encaminhasse para um deserto horroroso almas tão eleitas. Mas fazia parte da vida monástica na Idade Média fixar os monges em pântanos, florestas, etc., porque ali eles lutavam contra os aspectos hostis da natureza pelo seu trabalho, enquanto cantavam e davam glória a Deus pela sua virtude. E as populações iam residir junto a eles, que constituíam a fina ponta do progresso.

Época feliz, em que os povos devastavam os matos e entravam pelos desertos, não em busca do ouro mas da virtude. Como tudo mudou! Era uma espécie de bandeirismo de oração. Não se iam procurar esmeraldas e sim virtudes. Que beleza! Não censuro a busca de esmeraldas, mas admiro a das virtudes.

“Eles construíram, no flanco da montanha, em honra da Santíssima Virgem, um oratório existente ainda hoje e que tem o nome de Santa Maria de Casalibus. É lá que São Bruno e seus companheiros iniciaram a vida de São João Batista.”

“Vida de São João Batista”, quer dizer aqui, recolhidos completamente.

Respeito à tradição

Outra coisa linda da Europa é o respeito à tradição. Quer os mais antigos e imponentes monumentos, que iniciaram as grandes obras, quer os pequeninos, sem importância, são guardados com cuidado.

Trata-se aqui de uma capelinha em honra de Nossa Senhora, que foi o ponto de partida dessa instituição de fama mundial hoje em dia, uma ordem religiosa com uma longa tradição na Igreja: os cartuxos. Segundo o espírito moderno, essa capelinha poderia ser destruída porque está envelhecida e foram ali construídas igrejas muito mais bonitas. Não! Ela foi o início daquelas edificações, e toda origem é respeitada e venerada. Por causa disso a capelinha é cuidadosamente preservada, como manifestação do espírito de tradição.

Na Rússia dos czares, havia uma coisa muito bonita. Em geral, as czarinas tinham seus filhos no Kremlin que, como se sabe, é um conjunto de palácios e fortalezas, num recinto fortificado. Em seu núcleo existia uma igrejinha com um sininho.

Segundo a tradição, quando nascia o primogênito do czar, tocava-se primeiro esse sininho, depois os sinos do Kremlin, e por fim, os de todos os campanários da Rússia. De “proche en proche”, iam assim espalhando a notícia do nascimento do herdeiro do czar. Quando soava aquele sininho velhinho, rachadinho, mas carregado de história, era o sinal para os outros sinos tocarem.

Este respeito à coisa veneranda, originária, primeira, empobrecida, encarquilhada pelo tempo — a qual, por isso mesmo, adquiria uma forma de beleza toda especial — caracterizava o espírito tradicional da Idade Média. Assim são as grandes instituições, como a dos cartuxos, cujo exemplo nos proporciona tais ensinamentos.

Em São Paulo há também nesse sentido algo interessante, no Parque do Ipiranga onde se proclamou a Independência nacional. No quadro de Pedro Américo — pintura “princeps”, que representa essa cena — figura uma casinha de caipira, a qual existe até hoje no meio do Parque, porque parece que naquele local se deu o ato famoso. É feita de taipa, sem nenhum valor arquitetônico, velhíssima; está disfarçada na vegetação porque ela não tem beleza, e pode ser visitada. Isso indica o respeito à coisa primeira, inicial. E assim, há outras coisas que se poderiam mostrar no Brasil e no mundo inteiro.

“Santo Hugo não tinha consolação mais sensível do que ir muitas vezes à Chartreuse, para se edificar com a vida santa que levavam esses valentes solitários.

“Urbano II foi discípulo de São Bruno.”

É outra glória de São Bruno: ter sido o mestre do Papa bem-aventurado que deu o primeiro toque de sino das Cruzadas.

Aparente contradição

“Na ‘solitude’ da Calábria, São Bruno escrevia a seu amigo Raul, para encorajá-lo a renunciar ao mundo: ‘Não me é possível vos pintar a agradável perspectiva que formam as colinas que se elevam sensivelmente, e o profundo dos vales e das fontes, dos riachos e dos rios que regam essa região, e apresentam aos olhos os espetáculos mais encantadores.”

Refere-se aqui a uma outra Cartuxa, fundada na Calábria, no Sul da Itália, a qual, por exceção, tinha um panorama atraente. Pode-se perguntar por que São Bruno dava esse argumento a fim de chamar alguém para ser cartuxo. Não parece uma coisa inteiramente extravagante dizer: “Venha observar silêncio perpétuo, castidade, pobreza, obediência, porque aqui há uns riozinhos bonitos e umas fontes agradáveis para você ver”?

O argumento parece completamente desproporcionado com o sacrifício e refere-se ao mais estranho e disparatado dos turismos. Como explicar que São Bruno fizesse essa sugestão?

Evidentemente, deve-se entendê-la no contexto, como quem diz a uma alma piedosa, que quer isolar-se: “Vem, porque aqui há muitas criaturas belas que nos servem para dar glória a Deus. O lugar é propício para a oração.”
Ou seja, devemos nos elevar a Deus procurando nas coisas analogias com Ele, para glorificá-Lo.

Vivendo numa cidade de asfalto e cimento armado, não se tem essas coisas senão raramente. De qualquer forma, há sempre algo para se dar glória a Deus, por exemplo, um bonito slide ou filme, um belo panorama.

 

(Extraído de conferência de 17/8/1973)

1) São Bruno nasceu em Colônia, no ano de 1030, e faleceu na Calábria, em 1101.
2) Situada em São Paulo, na Rua Jaguaribe, bairro de Santa Cecília.
3) Cf. “Dr. Plinio”, n. 106, janeiro de 2007, p. 25.
4) “Nada aprenderam, nada esqueceram” – Frase de Talleyrand, empregada por Dr. Plinio para designar a mentalidade daqueles que julgam os fatos de hoje, exatamente com os critérios errôneos em voga há décadas atrás. Por exemplo, os N-A-N-E consideram todas as coisas sob o ângulo dos velhos princípios laicos, e não compreendem que o campo decisivo dos acontecimentos mundiais é a vida interna da Igreja (cf. “Folha de São Paulo”, 5/4/70 e 12/4/70).

Conversa e amor ao próximo

Tema inesgotável nas exposições de Dr. Plinio, a arte da conversa, a “causerie” informal, era para ele importante forma de transmissão de conhecimentos, baseado num intercâmbio rico e espiritualizado no qual se procura antes fazer bem ao próximo do que transmitir-lhe ensinamentos “livrescos” e cartesianos. Vejamos como ele desenvolve essa matéria que lhe era tão cara.

 

A  respeito do tema “conversa”, como de tantos outros, fui favorecido pela influência de mamãe, pois ela era, fundamentalmente, uma “causeuse”(1).

Mais que palavras, a conversa por olhares e gestos

Um de seus maiores prazeres na vida era conversar. Fazia-o bem, longamente, sem pressa, com um charme envolvente, o qual não é fácil definir, pois tinha mais relação com seus pensamentos do que com seus ditos. Tratava-se do “arrière fond”(2) implícito de sua conversação. Ela não tinha o hábito — aliás, inexistente em sua época — de espremer seu raciocínio até sair o último suco por meio da explicitação. O espremer não fica bem a uma dona de casa: refeições, horários, tudo contado e corrido aguça nos convidados dela a vontade de se retirarem. Creio ser mais interessante o calmo estilo antigo.

E na alma de mamãe havia inúmeros aspectos pelos quais ela conversava muito mais pelo olhar, timbre de voz, gestos das mãos, do que propriamente pelo sentido das palavras.

Um paralelo com o contemplar as estrelas

A esse propósito, tomo a liberdade de fazer uma comparação que, nos lábios de um filho, pode parecer excessiva, entretanto é a única que encontro para exprimir minha ideia.

Quando criança, às vezes eu ficava sozinho, à noite, contemplando o céu estrelado. Como muitos, tinha a sensação de que a abóbada celeste não era inteiramente fixa, mas sim como um grande toldo circular, dilatando-se ou se encolhendo de modo suave. E que esse movimento comunicava um certo impulso de fole àqueles astros, os quais por isso cintilavam. Tomava-me a impressão de que as estrelas de certo modo dialogavam comigo, e, quando mudavam de posição, olhavam-me em silêncio.

Eu sabia que isso não tinha fundamento, e dizia a mim mesmo: “É verdade, mas não pode ser mera ilusão, deve haver algo de real nisso”. Somente depois de homem feito consegui explicitar o que eu sentia. Deus criou o firmamento de maneira a causar essa impressão nas pessoas. E embora não seja a autora desse movimento, a abóbada celeste o é dessa sensação. Esta tem como origem remota e suprema a Deus Nosso Senhor, Criador do céu.

Esse pensamento me parece elevado e belo, porque exprime o valor metafísico dessa sensação que nos colhe ao contemplarmos uma noite estrelada.

Ora, de modo análogo ao que ocorria comigo ao considerar o firmamento, quando conversava com mamãe, muitas vezes tinha a impressão de estar dialogando com duas estrelas (os seus olhos), as quais pulsavam e fitavam-me, dizendo coisas sem relação imediata com os assuntos por nós tratados. E eu sentia que lhe respondia também dessa forma, e assim conversamos durante quase 60 anos, até a morte dela. Esse foi o contributo que ela me proporcionou para compreender a riqueza da conversa.

“Não há arte de viver sem a arte de conversar”

E ainda menino, através das revistas da “Université des Annales”, bem como de livros de história franceses, etc., não custei a perceber essa realidade: as pessoas que sabiam conversar possuíam uma imensa vantagem na vida. Não há arte de viver sem a arte de conversar. Pois normalmente os homens não vivem sozinhos, mas em sociedade, devendo, portanto, trocar idéias e comentários. E o efeito que se produz nos outros depende em grande parte do que se diz.

Imaginemos uma pessoa contando a um conhecido o passeio que fez. Se ela seguir as normas da conversa, conforme expusemos, será ouvida com atenção e interesse. Porém, se narrar à maneira de um professor de química, que explica a reação produzida pela mistura de H2O com outra substância, fará um relatório extenuante e não uma autêntica descrição. Por mais que tal relato seja profundo, é inaceitável como elemento de convívio humano.

Certas revistas geográficas apresentam reportagens escritas por pessoas que passeiam sozinhas na natureza e contam o que vêem, sem nenhuma pulsação ou calor de alma. Ela fala, por exemplo, das borboletas do Ceilão ou das lagostas do Recife com a mesma neutralidade de um guia.

Um intercâmbio de duas personalidades

Ora, a conversa não pode ser assim. Sendo um meio insubstituível para viver, pensar, a conversa não é uma mera crônica, um simples relatório. Sobretudo, não é uma aula.

Entretanto, a “causerie” deve ter algo de crônica, de relatório e de aula. É, aliás, o que procuro fazer nesta exposição. Ela tem um aspecto docente, pois estou continuamente ensinando coisas. Mas difere de uma aula clássica, a qual pode ser comparada a uma avenida em cujo ponto terminal há um monólito chamado ensinamento. Enquanto que minha explanação é como um passeio por caminhos não retilíneos onde, de forma inesperada, encontra-se uma lição.

Nela há também algo de relatório, quando faço um inventário dos modos de se conversar. Além disso, em minha exposição existe um pouco de conversa. Embora nesse momento esteja agindo especificamente como um professor que fez a introdução e focalizou o tema, sem perceberem, meus ouvintes estão conversando comigo e assistindo uma aula. Isso é propriamente “causerie”…

E a conversa, o que vem a ser?

A palavra “intercâmbio”, com freqüência empregada em assuntos comerciais, é inadequada para exprimir coisas do espírito. Contudo, é o vocábulo que me ocorre para explicar esse tema.

A conversa é um intercâmbio de duas personalidades que falam sobre matéria atraente e que interessa a ambas. Será ainda mais autêntica, se o meu interlocutor puser certa nota pessoal em suas palavras, fazendo com que eu goste de ouvi-lo. Isso é um elemento fundamental da conversa. Há pessoas muito inteligentes e instruídas, cuja prosa é enfadonha; e outras de pouca capacidade intelectual e instrução, que conversam bem, pois sente-se em suas palavras, não principalmente o tema, mas o indivíduo.

Depois de tê-la definido, aponto no que consiste a plenitude da conversa: não é apenas uma troca de informações nem de impressões, mas também de cognições mútuas dos interlocutores, cujas personalidades se manifestam pelo olhar, tom de voz, gestos, etc.

Na boa conversa, a prática da caridade cristã

Pode-se dizer que há na essência da arte de conversar um preceito da moral católica: o amor ao próximo. Para conversar bem, o indivíduo precisa ter uma atitude de alma — portanto, toda ela interna — pela qual se torne interessante para os outros. Do contrário, ele nunca será um bom conviva.

Qual é essa atitude de alma?

Descrevê-la-ei de modo sumário. Quando uma pessoa considera outra e sente afinidade, homogeneidade, ou heterogeneidade harmônica, ela se regozija. Notando, ao invés, dissonância, desagrada-se. Ou seja, ela vibra em contato com outra alma. Esse é o ponto de partida do verdadeiro “causeur”. Ser indiferente às almas, não senti-las, percebê-las, nem vibrar com elas, torna a conversa impossível.

Por exemplo, estou conversando com meu auditório e percebo que todos, ou a maioria, nutrem interesse em conhecer minha alma, como ela se mostra ao longo dessa exposição, etc. E notam que eu, por meu lado, cultivo também a vontade de conhecê-los, de interpretar o olhar de cada um com interesse, como algo que a todo momento tem uma novidade a me dizer…

E assim nos beneficiamos, reciprocamente, desse tesouro que é a arte da conversa.  v

 

1) Feminino de “causeur”, aquele que possui a arte da conversa.

2) Âmago.

Confiança sem limites em Maria

Quando nos recomendou a confiança na oração, Nosso Senhor justificou: “Que pai dará uma pedra ao filho que lhe pede pão?” Se assim não faz um pai, menos ainda o fará uma mãe, personificação da bondade e solicitude. Ora, nossa Mãe por excelência é Maria Santíssima, abismo de misericórdias inauferível pela mera mente humana, que nos quer com requintes de amor, de afeto e benevolência, sempre disposta a nos auxiliar e atender.

Depositemos n’Ela, portanto, uma confiança sem limites, dizendo-Lhe: “Minha Mãe, sei que pedis em meu favor o perdão, a generosidade e o afago divinos a que não tenho direito. Rogo-Vos, pois, obtende-os para mim, pelos méritos de vosso maternal sorriso junto ao vosso adorável Filho…”

Plinio Corrêa de Oliveira

São Francisco de Assis

Nas veredas de um mundo que caminhava incontroladamente atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hino do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar: Foi o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja.

Numa palavra, o doce “poverello” de Assis foi talvez, a meu ver; a personalidade mais contagiante que tenha havido na Cristandade.

Seguríssimo Refúgio

Nossa Senhora é seguríssimo refúgio e fidelíssimo auxílio de todos os que estão em perigo. Não há mãe verdadeiramente católica que não sinta receio pelo que possa suceder a seu filho. Ora, Maria Santíssima, a melhor de todas as mães, quanta solicitude não terá para com seus filhos que vivem neste mundo, sujeitos a toda sorte de riscos?

Mais ainda. Concebida sem pecado original, confirmada em graça desde o primeiro instante de seu ser, Nossa Senhora é Aquela que esmagou a cabeça da infernal serpente. Ela pode, portanto, arrancar qualquer pecador das garras do demônio, e  impedir toda influência que este procura ter sobre as almas.

Esse insondável poder da Santíssima Virgem é uma razão de confiança e de alento para nossa vida espiritual. Em nossos momentos de tentação, nas horas em que temos medo de sucumbir ao pecado, lembremo-nos deste seguríssimo refúgio, deste fidelíssimo auxílio que nos oferece a Santa Mãe de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Francisco de Assis e o enlevo pelas coisas divinas

Personalidade admirável que marcou não apenas o seu tempo mas os séculos sucessivos, São Francisco de Assis tanto se identificou com o Divino Mestre que se Lhe tornou semelhante até mesmo no seu semblante físico. Para Dr. Plinio, o “Poverello foi uma imagem viva do enlevo pelas coisas divinas exercitado ao último ponto.

Nas veredas de um mundo que caminhava de modo torrencial atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hinodo desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar. Ele foi o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja. Por tudo isso, terá sido ele, a meu ver, a personalidade mais contagiante que talvez tenha havido na Cristandade.

A característica de uma alma enlevada

Entre tantos predicados dignos de consideração, creio ser oportuno ressaltar esse aspecto da alma de São Francisco: o seu amor arrebatado pelas coisas divinas, seu enlevo que chegava ao êxtase, diante das maravilhas criadas por Deus e diante da própria perfeição do Criador.

Tenho para mim que ponderável parcela da felicidade que nos é dado ter nesta Terra — vale de lágrimas — consiste em nos enlevarmos com aquilo que merece nosso encanto, amor e admiração, e em fazermos a doação desses sentimentos ao objeto de nosso enlevo. Bem entendido, essa admiração desinteressada e fervorosa deve se dirigir, acima e antes de tudo, ao que representa para nós uma expressão de Deus Nosso Senhor. E, portanto, tal enlevo será, em última análise, a manifestação de nosso amor ao Altíssimo.

Nesse sentido, é ilustrativo o fato narrado por um literato: certa vez, levou um amigo para ver, de longe, uma aldeia por ele já conhecida. Chegaram ao topo de uma colina e, lá do alto, após divisarem o belo cenário de montanhas e campos que envolviam a aldeia, ele começou a indicar: “Aquela é a casa de fulano, aquela outra de beltrano, a outra de sicrano”. O amigo, surpreso, perguntou-lhe:
— Bem, e a sua, qual é?
— Ah, eu não tenho casa. Não tenho nada. Só o panorama…

Compreende-se: quem tem o panorama, tem mais que o casario, porque tem o enlevo e a capacidade de admirar aquela superior beleza como um reflexo de Deus. É o gesto desinteressado de contemplar o cenário pelo cenário, sem vantagem própria.

A necessidade de doar-se

Insisto nessa ideia do amor desinteressado a algo que se ama por se tratar de uma manifestação da grandeza de Deus. E, portanto, uma disposição de alma que devemos cultivar para irrigar e alimentar nossa vida espiritual, para aumentarmos nossa capacidade de enlevo pelas coisas divinas.

Como saber se estamos trilhando esse caminho?

A meu ver, o sintoma de que fomos tocados pelo raio divino do enlevo é precisamente o fato de sentirmos uma necessidade de doar o nosso amor, abnegadamente, ao objeto amado enquanto tal e nada mais. No Glória que se reza na Missa, essa atitude de alma está muito bem expressa, quando se diz: Nós vos damos graças, Senhor, por vossa imensa glória. Ou seja, amo tanto a Deus porque Ele é Deus, e eu O agradeço por ser Deus como se fosse um inestimável favor feito a mim, quando a glória e o benefício é exclusivamente para Ele. Eu, homem, não participo dessa magnitude, a não ser como um adorador pequenino no fundo do santuário, com os olhos fitos no Tabernáculo.

Há, portanto, uma certa forma de enlevo pela qual a pessoa quer dar-se inteiramente e não conservar nada para si. E faz disso o ideal de sua vida, de tal maneira que coloca sua felicidade no ter oferecido tudo a Deus: “Senhor, eu vos trago tudo, não conservo nada para mim, dou-me por completo”.

Alma de fervor contagiante, São Francisco de Assis entoou o hino do desapego, do amor a Deus e do desejo de se entregar a Ele por inteiro

A perfeita alegria de São Francisco, expressão de enlevo

E, oh! coisa inexplicável, oh! paradoxo: essa é a felicidade mais autêntica que se possa ter. Prova-o o exemplo dos santos, e o exemplo do próprio São Francisco de Assis. Ele o exprimiu de modo perfeito, quando, durante o trajeto entre uma casa e outra de sua ordem, em tempo de rigoroso inverno, seu acompanhante Frei Leão lhe perguntou no que consistia a perfeita alegria, e São Francisco respondeu:

— Imagine que, chegando ao convento no meio da noite, sob neve intensa, com frio e fome, ao batermos à porta, o irmão porteiro nos atenda irritado, nos admoeste com desaforos e não nos deixe entrar. Então permaneceremos ao relento, sofrendo os rigores do frio e o aguilhão da fome, aceitando tudo com serenidade e resignação por amor a Deus: nisto estaria a perfeita alegria.

Penso que não se poderia compreender essa afirmação de São Francisco, a não ser em função do enlevo. Ou seja, é um tal amor e uma tal veneração pela ordem franciscana e tudo quanto ela representa, que um membro dela, após receber toda espécie de maus tratos e injúrias à porta de um dos seus conventos, ainda se deixa tomar de enlevo, como se exclamasse: “Ó moradia do meu Beato Pai Francisco! Ó muros sagrados! Ó paredes! Ó conteúdo sacrossanto! Ó espírito que habita nisto! Com que alegria eu, não podendo entrar, fico contente em estar de fora, imaginando o que está dentro!”. Isso é o enlevo perfeito.

Imagem viva do enlevo exercitado ao último ponto

E por essa atitude de alma se compreende também, que, por exemplo, um franciscano possa dizer: “Não sou eu mais quem vive, mas é meu pai São Francisco que vive em mim”. Claro está, não significa que ele deixou de existir materialmente, mas que o enlevo dele pela pessoa de São Francisco chegou a um tal extremo que, por assim dizer, ele se transformou num outro São Francisco de Assis, assimilou e se identificou com a personalidade de seu fundador. Do mesmo modo como o próprio São Francisco podia dizer: “Não sou eu mais que vivo, mas é Cristo que vive em mim”. Assim aquele religioso exclamaria: “É Francisco que vive em mim e, por meio deste, é Cristo que vive em mim. Eu morri, dando-me por inteiro ao ideal franciscano, transformando-me num filho completo de São Francisco.”

São Francisco tanto se identificou com Redentor Divino, que se Lhe tornou parecido até no semblante físico

Aliás, creio que uma forma de holocausto das mais sensíveis que houve na História — de propósito não digo que tenha sido a maior, nem a comparo com o exemplo de Nossa Senhora, que está acima de todos os conceitos — foi a realizada por São Francisco de Assis. De fato, o doce “Poverello” conformou-se tanto à figura de Nosso Senhor Jesus Cristo que chegou a se tornar fisicamente parecido com o Divino Mestre, inclusive recebendo os estigmas da Paixão.

Qual o significado dessa semelhança?

Significa uma tal união que, por todo o jogo das razões naturais, e mais ainda sobrenaturais, ele se transformou num outro Cristo: era a imagem viva do enlevo praticado até o último ponto.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 10/6/1967 e 10/3/1970)

São Francisco de Assis: Personalidade Rica e Marcante

Santo de uma personalidade tão rica e marcante, São Francisco de Assis parece vivo ainda hoje, resplendendo sua presença diante dos homens. Deixou-nos um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das perfeições divinas e do profundo amor a Deus. Ao considerar os peixes num simples regato, sabia colher desta cena uma aplicação concreta para a vida espiritual.

Dirigia-se ao “irmão sol” e à “irmã lua”, tecendo orações que elevam a alma à mais subida meditação das excelências de Deus, como quem afirma: “Ó Senhor, este universo criado, do qual faço parte, é grande e belo demais; porém, há algo infinitamente superior, que sois Vós!”

Daí a fabulosa densidade da religiosidade franciscana, que devemos imitar. Diria mais: sem esse espírito contemplativo, nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.

Plinio Corrêa de Oliveira