As escadas e a dignidade humana

Com aquela penetração de olhar que lhe era característica, Dr. Plinio costumava contemplar tanto as coisas elevadas quanto as corriqueiras. Quem teria pensado em analisar o que as escadas significam ou ocultam, como se as sobe com elegância ou deselegância, e como elas devem respeitar a psicologia do homem? Acompanhemos a primeira parte de um saboroso comentário.

 

O  homem contemporâneo, ao contrário do antigo, quase não tem ideia do verdadeiro significado de uma escada. Esta pode ser assim definida: uma série de degraus que nos permitem passar de um andar para outro, por via não mecânica. Através do elevador(1) tal acesso é feito de modo mecanizado, enquanto o realizamos de forma natural pela escada, como pitorescamente se diz em latim: “calcantibus pedibus” — calcando os pés.

Duas concepções de escadas

Por não se compreender seu autêntico sentido, na arquitetura moderna as escadas raramente são postas em relevo. A tendência é até ocultá-las o quanto possível, eliminando seu papel ornamental.

Consideremos uma bela escadaria, como a existente na sede principal do nosso movimento(2). Trata-se do prédio residencial mais antigo do Bairro de Higienópolis. O arquiteto, segundo a concepção artística de outrora, procurou dar ao giro da escada uma certa nobreza, e a revestiu de bonitos lambris, mais graciosos que a colunata do corrimão o qual possui pelo menos este aspecto interessante: faz parte da coleção dos objetos que, com suas formas e cores, ilustraram a moda de fins do século XIX.

Numa concepção diversa, não é difícil nos lembrarmos dos exemplos de escadas sem tradição, servindo puramente como acesso entre níveis diferentes. Muitas se apresentam como cascatas de degraus em linha reta, tendo em ambos os lados uma espécie de corrimão fixado nas paredes, sem beleza alguma, apenas o essencial para ser utilizado como apoio a quem sobe ou desce. Correspondem à noção moderna de escada.

Idéias distintas sobre o próprio homem

Por detrás dessas duas concepções há duas idéias a respeito do agir humano e do próprio homem.

De acordo com o reto conceito, a escada — tanto quanto possível e sensato — deve ser algo ornamental, decorativo. Pois tudo aquilo que serve para o homem agir, precisa dissimular ou fazer olvidar alguma coisa da miséria de sua condição decaída e, de outro lado, realçar algo de sua personalidade.

Ora, a mais elementar ideia de escada é a de um meio empregado pelo homem para subir ou descer. Porém, essas duas operações acabam por patentear algo de nossas debilidades, assim como evidenciam nossa grandeza. Tudo quanto cerca o homem — mesmo mais modesto — deve respeitá-lo. O respeito é um dos maiores bens da vida, e ser acatado pode valer mais do que ser querido. Não existe genuína benquerença sem respeito. A escada, portanto, deve ser construída para honrar o homem, realçando algumas qualidades, excelências de sua natureza e disfarçando debilidades de sua condição.

Vitória sobre o princípio da gravidade

Ao subir uma escada, o homem se depara com alguns problemas que eu chamaria de teatrais, quase de encenação, pois ele luta contra a lei de Newton: quanto mais se afasta do solo, menor é a força da gravidade e maior o cansaço de seus músculos. Se bem que possa ganhar alguma coisa distanciando-se do chão, ele perde algo de sua elasticidade, e no topo de uma alta escada aparece o sinal — embora às vezes discreto — da miséria: a fadiga.

Antes do pecado original, o homem se exercitava sem cansaço, o trabalho lhe era indolor, agradável, interessante. Porém, depois da queda de nossos primeiros pais, tornou-se difícil. A força da gravidade começou a agir contra ele, o chão o atraindo para deitar-se, e ele se esforçando para se firmar e pisá-lo.

De passagem, apesar de nada ter lido acerca do assunto, pergunto-me se um modo de interpretar o sapateado espanhol não seria a vitória do homem sobre o princípio da gravidade. Tomado pela ideia da supremacia do espírito em relação à matéria, ele sapateia, e como que não sente a ação da gravidade. Seus músculos vencem a lei de Newton.

Cada nação tem seu esplendor, gênio e modo de ser. Outra manifestação da vitória sobre a força da gravidade é o minueto francês, com aquela maneira de se movimentar delicada, em que o cavalheiro e a dama pisam o solo como se fossem plumas, conferindo ao chão a honra de ser tocado por eles. E para ostentar sua indiferença ao princípio da gravidade, executam longas reverências diante de pessoas às quais respeitam, depois se aprumam com altanaria e continuam a dançar com destreza, sem demonstrar cansaço. É uma linda expressão da “douceur de vivre” [doçura de viver] francesa, e um exemplo do papel do princípio da gravidade na conduta humana, dando-nos a oportunidade e o gosto de refletir.

Aliás, para mim, raciocinar de modo agradável — compreendo que haja preferências diferentes — não consiste meramente em compulsar um tratado de teoria e pensar, mas passar da prática para a doutrina, galgando-a até o ponto mais alto. E depois fazer uma imersão até o fundo mais miúdo da experiência, procurando ali a confirmação ou ilustração das elevadas cogitações doutrinárias. Esse “subir e descer escadas” mental tem a leveza de um minueto.

Tal exercício não é simplesmente deleitável, mas faz bem à alma. O homem se sente assim mais espírito, acentua-se nele o por onde é mais semelhante a Deus. E parecer-se com Deus é a honra suprema, o bem extremo, o fim último.

Tributo pago ao pecado original

Retornando ao nosso tema principal, cumpre considerar o seguinte: num homem ou numa dama, de qualquer idade ou condição social, ao terminar de subir uma escada, devido ao esforço, aparece alguma coisa que os diminui, algo do viço deles murcha.

Alguém poderá dizer: “Dr. Plinio, o senhor não me conhece. Subo escadas de dois em dois degraus…”

Não devemos nos iludir. Ainda que seja no arfar ou na pisada final, nota-se algo do tributo pago pela natureza, mesmo na flor da juventude. Além disso, visto do topo da escada, quem a sobe parece muito pequeno, e não é grato ao homem ser observado de cima para baixo. Os personagens que respeitamos, agrada-nos vê-los no alto. E assim, muitas outras considerações poderíamos fazer a respeito do “subir”.

Analisemos, porém, o “descer”. Também nesta operação, como em tudo que o homem faz por si próprio, aparece a nossa miséria, a qual devemos saber disfarçar.

Tal sucede nas mínimas coisas. Por exemplo, no momento em que lhes dirijo a palavra, apoio de modo ligeiro meu queixo sobre minha mão, enquanto faço um pequeno esforço de espírito para ordenar as idéias a serem expostas. Esse gesto é discretamente interrogativo, indicando que estou “emparafusando” um pensamento. Ou o faço com instintiva leveza, ou me degrado, porque a sensação de peso da queixada cansada é feia.

Alguns espíritos talvez julguem inútil, uma bagatela, a observação desses aspectos do nosso cotidiano. Para mim, isso é saber tirar todo o proveito da vida. É viver. O contrário é vegetar.

Então, se uma pessoa não descer uma escada com dignidade, dará a impressão de que está decaindo, degringolando. Pois a descida significa diminuição. Por exemplo, descer na saúde, na agilidade de inteligência, na arte de conversar, na virtude, no amor de Deus, etc.

Razão pela qual não devemos julgar que seja fácil descer uma escada de maneira a nobilitar-se. Trata-se antes de uma arte, sobre a qual falaremos em outra oportunidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Entende-se que, para os efeitos dessa exposição, a chamada “escada-rolante” se equipara ao elevador.

2) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341.

Importância do olhar

O homem não se exprime apenas pela palavra pronunciada, mas também pelo tom de voz, pela posição do pescoço e do tronco, pelo movimento das mãos. Entretanto, o mais importante é o olhar. Eis um dos elementos da verdadeira educação que deverá nascer no Reino de Maria, pela ação do Espírito Santo.

 

A  palavra dá o exprimível daquilo que a pessoa possa estar desejando dizer, enquanto o olhar proporciona o inefável, o inexprimível do que se está querendo dizer. Assim, há uma porção de coisas que o olhar diz e que daquele modo a palavra não conseguiria dizer.

Obra-prima de retórica

Por exemplo, um homem está precisando de pão; entra numa padaria e fala para o padeiro: “Quer me dar um pão?” A palavra diz: “Estou precisando de um pão, não tenho dinheiro para pagar, você quer me dar?” Mas o olhar diz uma série de coisas a respeito do próprio sujeito; o que ele está sentindo, como está sofrendo, como quem afirma: “Olhe para minha alma, veja a necessidade pela qual estou passando, olhe a minha tristeza a esse respeito, a humildade com que estou lhe pedindo, e que dureza de sua parte haveria em me recusar. Queira-me bem, porque estou necessitado!” É o que diz o olhar.

Então o olhar traz uma porção de conhecimentos por conaturalidade que acompanha aquele simples pedido de pão, e é uma justificação desse pedido, e nem adiantaria a palavra, por exemplo, se esta fosse dita por detrás de um biombo.

É curioso que toda atitude da pessoa constitui uma espécie de obra-prima de retórica, da qual ela não se dá conta. É uma coisa confusa, mas uma obra-prima: o pouco que o indivíduo pode dar de retórica, ele apresenta assim, porque também a voz modula, um pouco cantando, o que os olhos dizem olhando. E há inflexões de voz que dizem mais do que as meras palavras. Por exemplo: “O senhor queria me dar um pouco de pão?” Há mil modos de modular este pedido de maneira a, sem que o sujeito perceba, ser dito de tal forma que o tom de voz completa o que o olhar disse, e que está na linguagem da conaturalidade, não na linguagem do sentido lógico da palavra.

Elementos complementares dentro disso são a posição do pescoço sobre o tronco e a do tronco sobre as pernas. E a ponta do poder convincente está na atitude das mãos. Se pedir com a mão colada às costas, ele encaminha para uma recusa, é quase insolente.

A curvatura: quem pede, raramente entesa o tronco para pedir. Não entesa a cabeça, nem o corpo; é preciso ser um alto jogador para entesar as duas coisas e pedir. Tem um certo sentido quando o sujeito sabe dizer: “Veja o que está na miséria; veja o clamor desta injustiça que eu esteja sem pão: dê-me!” E isso pode ter seu valor cogente, conforme a circunstância.

O mais interessante são as riquezas da conaturalidade, por onde o homem não percebe isto e faz esse jogo com maior ou menor êxito.

O regionalismo europeu

E aqui entra uma questão complexa: como formar as pessoas para isso? Qual a medida, o ponto para tratar as coisas a partir das quais se consegue formar sem tirar a autenticidade do formando? Portanto, civilizar sem extrair a autenticidade do povo a ser civilizado, educar sem fazer do indivíduo um autômato. Há algo que estimula a aseitas(1) e a orienta, mas segundo um movimento que é dela; o ideal é extrínseco a ela, mas o tropismo por onde ela se volta para o ideal é dela.

Utilizando um exemplo do reino vegetal, tratar-se-ia de estimular a planta a tonificar seu tropismo mais do que torcê-la ou esticá-la numa determinada direção. É um problema muito delicado que se aplica até aos povos.

Dou um exemplo. Antes da Primeira Guerra Mundial, o que teria sido possível ou conveniente dizer para o mundo europeu a respeito da questão do regionalismo?

Se prestarmos atenção em como era o mundo europeu daquela época, em função do centripetismo nacional que vinha tomando aqueles Estados cada vez mais centralizados, e o centrifugismo regionalista de todas aquelas velhas regiões da Europa que estavam sendo trituradas, o que seria possível dizer para dar um golpe nesse centralismo e indicar o ponto de equilíbrio entre uma coisa e outra?

Consideremos um bretão. Segundo minha ideia, um bretão é um francês, mas de um tipo tal como nenhum outro é, e que deve ir engendrando notas características cada vez mais. Qual o ponto ideal onde o bretão é suficientemente francês para haver uma França verdadeira, mas suficientemente bretão para ser inteiramente um cidadão da Bretanha?

Que divagação agradável e interessante daria se pudéssemos lançar naquele tempo um mapa com todos os regionalismos, que são incontáveis! Na Espanha, por exemplo, pegue-se o país Basco; eu garanto que no país Basco existem particularidades, singularidades, etc., só falta ter de bairro a bairro na mesma cidade. E entre um granadino e um bilbaíno quantas diferenças há! Isso se ocultou, não se falou, a literatura não tratou disso; essas diferenças eram tidas como deformidades que  deveriam ser rapadas e liquidadas, e seria preciso tornar Castela o “monstro” que engoliu a Espanha inteira.

Assim foi Lisboa e toda a Europa que estava passando por esse processo. Com a guerra, naturalmente, isso se precipitou muito mais. E que coisa magnífica seria indicar o ponto de equilíbrio para que fosse a verdadeira Europa; que isso que nasce da base continuasse a florescer, a vicejar, segundo modelos locais, mas tendo algo de comum entre si que, isto sim, competiria ao país destilar. E isso mesmo que estou dizendo é mais didático do que real, porque é um pouco bonitinho, arranjadinho demais para a sociedade orgânica. A sociedade orgânica é menos simples do que isso; é mais emaranhada, mais mesclada do que essa realidade que estou pintando. E ali está a vida.

Então, como seria preciso tomar cada um desses povos como um maestro, toca ali, lá, acolá, para a sinfonia dos regionalismos autênticos se desprender de uma Europa verdadeira? É um muito bonito problema.

Eu estava imaginando, então, um arquiduque da Áustria que escrevesse um livro para justificar a monarquia dual, e jogasse na cara da Europa o seguinte: “A nossa monarquia é mais diferenciada do que os países de vocês. Vocês dizem que somos uns tiranos porque esmagamos os países, não permitindo que se separem os que estão sob nossa hegemonia. Vocês impediram os nascimentos; são necrópoles de crianças! Coordenar adultos que nós soubemos conservar livres é muito mais difícil do que ser administrador de um cemitério de crianças”.

A essência da amizade é metafísica e sobrenatural

No tocante ao olhar, aos gestos, o homem deve ser educado como essas nações, nessa correlação entre um tema e outro. E se um menino tiver, por exemplo, uma governanta que afirme — a minha me disse várias vezes —: “Um homem educado não gesticula com as mãos e, portanto, você não é educado, mas não diga, pelo menos, que não lhe avisei.” Pensei com meus botões. “Eu não sou eu se não gesticular. Então prefiro ser um mal-educado do que um bem-educado que não sou inteiramente eu mesmo. Depois, ela mesma quando se deixa tomar por determinado tema gesticula também, porque todo mundo gesticula. E, portanto, essa ‘boa educação’ não serve, saberei mexer com minhas mãos como eu quero”. Enquanto estou dizendo isso, eu as movimento.

Eu temeria muito escolas assim: “Três bolos na mão porque gesticulou”. Então eu passo o tempo inteiro sem gesticular, mas sinto que, irremediavelmente, sou um piano no qual uma nota ficou quebrada. Vê-se, portanto, a dificuldade de educar.

Tudo isso no Reino de Maria tem que nascer pelo efeito do Espírito Santo. Saber educar debaixo desse ponto de vista é muito delicado.

Portanto, o olhar não pode ser considerado isoladamente das outras formas de expressão, pois o corpo inteiro, às vezes sem percebermos, completa a sua retórica. Contudo, as outras expressões sublinham o olhar, mas este é o dado-mestre por onde todas as coisas falam. Quer dizer, todo o resto se ordena ao olhar.

Agora, qual é a relação do olhar com a palavra expressa? Um homem que canta, sua laringe é um instrumento musical, mas o olhar é propriamente a partitura daquilo que é cantado. O olhar acrescenta à palavra o que a partitura adiciona à escrita; não é só o olhar, mas é preponderantemente o olhar.

O que tem de curioso é o seguinte: os homens foram feitos — eu encontro dificuldade em convencer os outros a respeito disso, mas é uma verdade que está no fundo da cabeça de todo mundo — para se quererem, amarem uns aos outros, porém de um amor metafísico e sobrenatural, que é o único verdadeiro, por onde as almas se conhecendo profundamente umas às outras, notando consonância e harmonia, se querem porque desejam a coisa em torno da qual são consonantes. Quer dizer, o fundo da amizade é metafísico e sobrenatural.

Pode haver amizade natural, mas quando ela existe verdadeiramente é construída em torno de princípios metafísicos inexpressos. E a amizade entre dois indivíduos que foram educados juntos, por exemplo, de fato tem um sentido principalmente porque houve consonância entre ambos.

E, involuntariamente, dois mercadores que estão tratando no mercado, ou um homem num banco que apresenta um cheque e outro lhe entrega o dinheiro, portanto, operação puramente mercantil, sem se darem conta, quando eles se olham, um procura no olhar do outro o que se encontra em todo mundo.

Diafragma da máquina fotográfica

O ponto de partida de toda a nossa sociologia está nisso: quando olhamos assim, cada um de nós tem um ponto que é metafísico. O sujeito não sabe que é metafísico; apresenta-se a ele como um sentimento de alma. E, realmente, esse ponto metafísico produz um certo sentimento de alma, mas atrás deste há uma coisa metafísica em que se sente um certo isolamento, porque toda alma padece de viver isolada neste ponto profundo, e passa a existência olhando para os outros e perguntando: “Você é assim? Você é quem eu procurava”?

É uma coisa muito interessante observar duas pessoas que se veem pela primeira vez. A vida, para quem sabe observá-la, é interessantíssima.

Será alguém que está fazendo plantão numa sede nossa e toca a campainha um membro do Movimento residente em outro país; os dois nunca se viram. No primeiro olhar, o que se passa? É sempre uma procura.

Às vezes também a hostilidade nasce logo porque houve uma recusa. A hostilidade vem do fato de encontrar o contrário e, às vezes, acontece o seguinte: o sujeito está particularmente desprevenido e com uma esperança subconsciente de que no próximo toque de campainha ele vai encontrar uma coisa mais afável. Aparece um dinossauro, isso pode traduzir-se num… “Logo você?”

Mas essa procura é assim: há uma abertura análoga a um diafragma de máquina de fotografia que fecha e abre, conforme o sujeito puxa uma peça. No olho, a procura é o diafragma que se abre.

Imaginemos um indivíduo que, ao receber a visita de outro, pensa: “Esse faz parte do mundo do anonimato para mim”, e pergunta:

— O senhor o que deseja?

O outro responde;

— Vim cobrar uma conta.

— Sei. O senhor tem o recibo?

Está acabado. A conversa começou com os dois diafragmas abertos, como todas as conversas iniciam, e terminam tantas vezes com os diafragmas fechados.

No fundo, tudo aquilo de que eu falava há pouco, a sinfonia toda dos gestos, do tom das palavras, da inclinação, etc., visa esse ponto metafísico.

Assim, para aqueles que desejamos que tenham conosco o diafragma fechado, porque não há comércio possível, em toda a nossa atitude tomamos oposição. E para aqueles em que nós procuramos alguma coisa, assumimos uma atitude diferente.

Os restos da inocência

E eu não acredito, por mais incrível que seja em pleno século XX, no puro interesse. As pessoas podem de fato tratar-se segundo um objetivo, mas essa procura, no fundo, condiciona — embora nem sempre de um modo decisivo — o trato humano de ponta a ponta.

Mesmo um egoísta não visa o mero interesse. Ele resolveu entregar sua vida a um interesse, mas no fundo de sua alma tem embolada, sofrida como uma zona da alma que levou uma pancada e está começando a ficar infeccionada, gangrenada, a dor daquilo que ele queria ter sido e não foi, que desejava ter feito e não fez, e uma certa procura de alguém que seja consonante com ele, com o que ele quereria ter sido.

O sujeito pode, pelo mais vil dos movimentos, pegar uma pessoa com quem ele é inteiramente consonante, meter-lhe um pontapé e dizer: “Se eu ficar seu amigo, deixarei de ser um homem de interesse como quero. Você, para mim, é uma tentação, vou te desprezar.” Ele não dá esse pontapé à toa, em vão, porque acaba doendo nele.

E um indivíduo que pauta toda a sua vida de acordo com seus interesses, e pode chegar a ser um banqueiro ideal, de repente ele faz uma loucura; é a explosão daquela zona maltratada, colonizada e enxovalhada da alma, que muitas vezes não é o lado ruim que se revolta, mas é o lado bom que sofre; são os restos da inocência.     v

(Extraído de conferência de 5/6/1986)

 

1) Do latim: asseidade. Termo usado pela Filosofia escolástica significando o atributo divino fundamental que consiste em existir por Si próprio. Dr. Plinio o utiliza aqui em sentido analógico. Ver Dr. Plinio n. 140, p. 16 e n. 141, p. 20.

 

Rainha do Brasil

Com a coroação de Nossa Senhora Aparecida, esta devoção, nascida tão humildemente, culminou num verdadeiro ato jurídico, por efeito do poder das chaves concedido por Nosso Senhor Jesus Cristo à Igreja.

Maria Santíssima ficou sendo no Céu, além de Advogada, a verdadeira Rainha do Brasil. Esta realeza estabelece um vínculo especial de Nossa Senhora com este povo. Devemos ver neste fato um prenúncio do Reino de Maria, pois ao ser a Santíssima Virgem aclamada Rainha do Brasil, o Reino d’Ela fica juridicamente declarado.

Rezemos, portanto, pelo triunfo do Coração Imaculado de Maria, que no Brasil se apresenta sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

(Extraído de conferência de 5/10/1964)

Meu filho, não duvides jamais!

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou! Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 43 (Outubro de 2001)

Como grandes vôos de espírito…

Entre as belas e atraentes realizações do engenho humano, notadamente aquelas cuja arte reflete uma inspiração católica, sempre me aprouve contemplar as fontes e chafarizes que encontramos, ridentes e convidativos, em incontáveis praças e jardins. Quantos bons sentimentos e retas disposições de alma eles despertam!

Suas águas, ora surdem murmurantes e cristalinas, ecoando sons prateados, suaves como os de um cravo a tocar minueto, e transmitindo uma sensação de castidade e de pureza ao ambiente por elas adornado; ora se projetam em jatos vigorosos e imponentes, a nos falar de cogitações elevadas, de vôos de espírito, de pensamentos que partem de pequenas para maiores considerações; do mesmo modo como o filete líquido, que atravessa encanamentos, parece confiscado e chupado pelas trevas, mas, ao atingir a extremidade do condutor, é lançado para o mais alto dos ares.

Esse encanamento é, outrossim, imagem das tubulações em que canalizamos nossos entusiasmos, nossos fervores de alma. Na aparência, destituídas de beleza, elas têm, entretanto, na ponta a força de um maravilhoso e esfuziante golpe de água.

Os jorros de fontes e chafarizes podem ser ainda comparados a outro aspecto do espírito humano, quando este atinge o máximo de sua capacidade empreendedora. Levando o esforço ao ápice, o homem sente que, por uma nobre ascensão interior e uma extraordinária mobilização de suas energias, vai tirando de dentro de si vastidões e amplitudes, amplitudes e vastidões, até chegar à ponta de si mesmo e dizer: “Meu Deus, eu agora desfaleço, mas é para aquele supremo lance de realizações desejadas por Vós!” Esse convocar de forças nas profundidades de seu ser para projetá- las, rebrilhando, à luz dos acontecimentos, faz com que um homem se sinta como um chafariz das volumosas águas de Versailles, que emergem das entranhas da terra para povoarem as alturas, osculadas pelos raios do sol. É bonito, é grandioso!

Além disso, as cortinas líquidas, transparentes e luminosas dos chafarizes, rorejando miríades de gotinhas ao seu redor, revestem-se de um “verum”, um “bonum” e um “pulchrum” que, longe de  dissiparem o espírito contemplativo, convidam-no para maiores e mais compenetradas considerações sobre as infinitas maravilhas de Deus.

O homem cujo pensamento tiver uma dimensão mais vasta, ao ver o chafariz, pode perfeitamente cogitar em coisas e temas superiores, elaborar planos, decidir sobre situações, solucionar problemas, etc., movido por uma acuidade especial que essa vista favorece.

Pode, ainda, experimentar uma peculiar alegria do equilíbrio, da objetividade, da tranqüilidade. Ele observa as águas subirem e descerem numa profusão calma e constante, volta-se para os movimentos de seu coração e pensa: “Sinto que dentro de mim as coisas estão em ordem; vejo tudo o que me cerca nas devidas proporções, catalogo tudo segundo os predicados e circunstâncias inerentes a cada objeto de minhas ponderações; distingo o que é bom do que é mau, o falso do verdadeiro, o belo do feio, sem mexer em ninguém, mas simplesmente observando e formando o  meu universo interior, imagem fiel do universo exterior analisado”.

Esse sentimento confere ao homem uma plenitude de satisfação pela qual ele passa a exprimir a si próprio, com as idéias claras e, por isso mesmo, encontrando as palavras adequadas para se expressar. Palavras que saem cristalinas e fluentes, não como um esguicho, mas como a fonte cujas águas brotam puras, generosas, abundantes, cheias de donaire e serenidade.

Enfim, as comparações e analogias poderiam se estender e se multiplicar. Encerro-as, lembrando apenas que a água de um chafariz que bate no chão e depois respinga para o alto numa porção de gotas é, também, símbolo da gratidão do beneficiário sobre o qual recaem os favores celestes e que lança para cima, de novo para o Céu, a sua filial e jubilosa ação de graças…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Dona Lucilia e a alegria do Natal

Respondendo a uma pergunta, Doutor Plinio narra como em tudo, inclusive nas festas de Natal, Dona Lucilia agia movida por um alto princípio, procurando incutir em seus filhos o amor ao bem e a tudo o que é elevado.

 

No meu tempo de criança não se falava em Papai Noel. Mamãe nunca empregou este termo, que me parece paganizar algo muito mais respeitável e mais antigo, que pouco se ouve falar atualmente; trata-se de São Nicolau.

Tudo em Mamãe se relacionava com coisas muito elevadas

Em minha infância, diziam tratar-se de um santo, que descia do céu vestido de forma muito bonita e distinta, a fim de dar presentes às crianças que se tivessem comportado bem durante o ano.

Eu acreditava muito em São Nicolau, mas, por outro lado, percebia haver nele qualquer coisa de mítico e lendário, que me levava a não me preocupar em imaginar como deveria ser sua figura.

Mamãe possuía grande elevação de alma. Ela levava a vida tranquila, serena e recolhida de uma senhora de casa, a qual estava na direção de uma família pouco numerosa — apesar de morarmos na casa de minha avó, ponto de reunião de toda a família. Habitualmente, percebia-se pelo seu olhar, pelo timbre de sua voz, pela expressão de sua fisionomia, pelos seus gestos, que tudo quanto ela pensava e tinha no espírito se relacionava com considerações muito elevadas. Tinha-se a impressão de que ela comumente olhava as coisas a partir de uma esfera muito alta, eu quase diria metafísica.

Nas menores coisas, um incentivo para ser melhor

Isso se notava nas menores coisas. Por exemplo, ao ver-me brincando, ela me fazia um agrado que se diria igual ao de qualquer mãe para com seu filho. No entanto, partindo dela, o agrado era feito por uma razão elevadíssima, e surgia em meio a considerações que eu — sem, entretanto, explicitar — percebia virem de muito alto e serem feitos de modo muito lógico. Notava também pelo seu agrado que Mamãe me conhecia até o fundo da alma e sabia quais eram as minhas boas e más inclinações. Assim, ela procurava estimular em mim a prática do bem, e, à medida que eu me inclinava ao bem e rejeitava o mal, sua estima por mim aumentava.

Desta maneira, todo agrado que ela me fazia era um incentivo para eu ser melhor o quanto me fosse possível. Isto me habituou a, desde pequeno, procurar ver nas coisas o que elas têm de mais elevado.

Por este motivo eu, sem imaginar propriamente com deveria ser São Nicolau, procurava ver os valores sublimes e até transcendentes que ele representava.

Festa de Natal feita por Dona Lucilia

Isto se fazia sentir profundamente na noite de Natal. Mamãe providenciava uma grande árvore de Natal, adornada com uma porção de enfeites. Esta tarefa, Dona Lucilia nunca deixava ao encargo de empregados, mas ela mesma, com muito esmero, a executava. Para a festa de Natal, ademais de minha irmã e eu, mamãe convidava primos, sobrinhos e outros parentes que constituíam um grande número de crianças.

Em certo momento, descíamos do andar superior da casa, todos de mãos dadas, cantando canções natalinas, até junto à árvore toda iluminada, ao pé da qual se encontrava um presépio com a imagem do Menino Jesus com os bracinhos abertos, que era adornada por Mamãe todos os anos com um vestidinho diferente. Ela pedia, então, para todos se ajoelharem, e rezava uma oração. Tenho a impressão de que ela mesma compunha esta prece. Pois, tratava-se de um transbordar da elevação, da suavidade, da doçura de sua alma. Após esta oração, eu notava que uma alegria superior impregnava tudo. Era a alegria da bondade, da virtude, da retidão, da limpeza, em suma, a alegria da consciência tranquila. Em última análise, tratava-se da alegria de sentir o quanto Deus se comunicava conosco através dos sorrisos do Menino Jesus.

Até hoje guardo com muito esmero a imagem do Menino Jesus usada por Mamãe nessas ocasiões.

A vida do homem virtuoso é mais entusiasmável

Aquilo tudo embebia profundamente a noite de Natal, dando a ideia — como era, aliás, o objetivo de Dona Lucilia — de que a vida do homem virtuoso, quando bem levada, é mais suportável, mais aceitável, incomparavelmente mais entusiasmável do que a vida do homem que não pratica a virtude. Creio que nos dias atuais a educação de uma criança não conta com este cuidado, mas Mamãe o tinha muito vivo.

Terminada a festa de Natal, meus primos voltavam para suas casas, e eu ia logo para minha cama. Dona Lucilia esperava eu estar dormindo para pôr aos meus pés um grande e pesado presente. Quando ainda de madrugada eu acordava ansioso para ver o presente, mais uma vez a valiosa educação que recebi de Mamãe me levava a ser temperante. Eu compreendia que não devia acender o “abat-jour”, e fazê-lo parecia-me uma desordem, não só por acordar os que estão dormindo, mas por um princípio superior, o qual me indicava que a hora de dormir é para dormir, e durante ela não se devia brincar, assim como durante a hora de brincar não se devia dormir.

No entanto, eu ficava imaginando o que seria o presente, e pouco tempo depois, como criança, caía no sono, voltando a acordar ainda algumas vezes.

Quando já estava claro, eu acordava mesmo! Levantava-me, pulava da cama e abria o presente. Era um gáudio e uma satisfação enormes. Ficava à espera de que Dona Lucilia acordasse para mostrar-lhe e receber ainda o abraço, o beijo e a bênção dela, que eram para mim um presente ainda maior do que o de São Nicolau. Isso tudo constituía a alegria quase angélica do Natal, que é quase impossível transmitir a alguém que não a tenha sentido.  v

 

 

Plinio Corrêa de Olvieira (Extraído de conferência  de 27/12/1975)

Rainha dos Corações

O reinado de Jesus Cristo nas almas, afirma São Luís Maria Grignion de Montfort, só será efetivo quando Nossa Senhora reinar de maneira plena nos corações dos homens. Com palavras  pervadidas de veneração, Dr. Plinio nos mostrará as grandezas das virtudes da Santa Virgem Maria e o altíssimo mérito que alcançou, dando-Lhe o direito, outorgado por seu Divino Filho, de  exercer esse maternal e compassivo império sobre a vontade humana.

 

Supunham os antigos — como ainda hoje o fazem certas pessoas sem instrução especial — que o pensamento era elaborado pelos miolos, os quais seriam, portanto, a fábrica das idéias. Eles não  tomavam em consideração o papel espiritual da alma, determinante na gênese dos raciocínios. Ademais, achavam que os atos de vontade se formavam no coração, passando este a ser o símbolo das volições da criatura humana.

Soberana da vontade dos homens

Com base nessa última concepção, surgiu o culto aos corações de Jesus e de Maria, que é a devoção à vontade santíssima de Nosso Senhor e de Nossa Senhora.

Por sua vez, a Mãe de Deus se torna Rainha dos Corações ao ser venerada como a soberana da vontade de todos os homens. Tal domínio deve-se entender, não como uma violação da liberdade das pessoas, mas pelo fato de Nossa Senhora nos obter e distribuir uma abundância de graças que nos induzem, atraem, com supremo agrado, doçura e clareza para o que Ela deseja de bom para nós. Assim, é através da celestial influência dessas graças que Maria nos aparece como Rainha de todos os corações.

Em seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, São Luís Grignion de Montfort escreve: “Maria é a Rainha do Céu e da Terra, pela graça, como Jesus é o Rei por natureza e  conquista”. Ou seja, Nosso Senhor é o Rei do universo por natureza, pois, sendo Homem-Deus, sua essência O constitui Monarca de toda a criação. Já Nossa Senhora é Rainha, não por natureza, mas pela graça recebida de Deus. Rei também é Jesus, por conquista.

Com sua Paixão e Morte redimiu o gênero humano e alcançou para Si a realeza sobre o Céu e a Terra. Continua São Luís: “Ora, como o reino de Jesus Cristo  compreende principalmente o coração ou o interior do homem, conforme a palavra: ‘O reino de Deus está no meio de vós’ (Lc 17, 21)…” “No meio de vós”, quer dizer, sobre os vossos corações. “…o reino da Santíssima Virgem está principalmente no interior do homem, isto é, em sua alma, e é principalmente nas almas que Ela é mais glorificada em seu Filho, do que em todas as criaturas visíveis, e podemos chamá-La com os santos a Rainha dos corações” (nº 38).

Aos pés da Cruz, última troca de olhares

Essas verdades se prestam a algumas considerações. Imaginemos, por exemplo, uma pessoa na ilha Fernando de Noronha. Esse território é uma espécie de gigantesco navio parado, com suas âncoras agarradas ao fundo do oceano. A partir dessa posição maravilhosa, o visitante contempla o mar, regalando-se com aquele esplendor e se entusiasmando: “Como isto é belo!” Se for piedoso  e amar Nossa Senhora, ele deve ter o hábito de reportar à Santíssima Virgem tudo quanto pensa, e dizer: “Como será o Imaculado Coração de Maria, imensamente maior que todo esse panorama, não pelo tamanho físico, mas pelo valor, etc.”. E podem vir à sua mente outras cogitações muito boas sobre a extensão e a qualidade dos predicados de Nossa Senhora. Para compreendermos como   mar é uma vil gota d’água em comparação com a grandeza da alma de Maria, basta considerarmos a Mãe de Deus durante a Paixão. Seu sofrimento ao encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo carregando a Cruz é indizível!

Ela viu o divino Filho injustamente posto naquela situação, tratado de modo brutal por uma algaravia de gente péssima, aproximou-se d’Ele e O abraçou. Esse gesto não significava apenas um consolo, mas também uma exaltação, como se Lhe dissesse: “Meu Filho, Eu vos louvo por estardes padecendo assim pela humanidade, para a glória de Deus!”

Por quê? Porque é glorioso para Deus ter o reino das almas, e Jesus o estava conquistando ao redimir todas as almas criadas, vertendo por elas seu sangue preciosíssimo. Nossa Senhora consentiu nesse holocausto de Jesus, louvou-O e subiram juntos ao Calvário. A meu ver, a cena mais empolgante ali passada foi o último olhar de Nosso Senhor, indiscutivelmente dirigido à sua Mãe. E Ela O fitava nesse momento, pois tenho para mim que, durante todo o tempo junto à Cruz, Maria Santíssima não afastou seus olhos dos de seu Filho. Nessa suprema troca de olhares, Maria percebeu, notando o sofrimento extremo de Jesus, que a derradeira hora se aproximava.

Nosso Senhor então disse aquelas palavras de despedida a Ela e a São João: “Filho, eis aí tua Mãe; Mãe, eis aí teu filho…”

Co-redentora do gênero humano

É oportuno recordar aqui o ensinamento da Tradição católica, segundo o qual o Padre Eterno, ao dispor que Cristo deveria morrer como vítima de expiação pelos nossos pecados, desejou para isso o consentimento da Santíssima Virgem.  Claro está, absolutamente falando, não havia necessidade dessa anuência da parte de Nossa Senhora para que Deus Pai levasse a efeito seus desígnios sobre a Redenção dos homens.

Pensemos, porém, cada um em nossa própria mãe, diante dessa pergunta: “A senhora quer entregar o seu filho, fulano de tal, para ser vilipendiado, perseguido, desprezado e odiado pelo povo, flagelado, coroado de espinhos, e em seguida arrastar uma cruz até o Calvário e aí ser morto de modo atroz?”. Supérfluo dizer que ela não quereria! Nenhuma mãe deseja semelhante sorte para seu filho.

Entretanto, a Santíssima Virgem, ciente de que deveria oferecer Jesus em holocausto para a salvação dos homens, não hesita um só instante, e se inclina à superior vontade  divina. Por essa razão ela sofreu espiritualmente uma dor tão acerba que, de modo figurativo, compara-se à ferida causada por um gládio que traspassou seu Coração. A iconografia católica perpetuou a lembrança deste padecimento da Virgem Santíssima,  através da imagem de Nossa Senhora das Dores, venerada em inúmeras igrejas do mundo.

Esse sacrifício participativo de Maria na Paixão de Jesus, o consentimento d’Ela em que o Salvador fosse imolado de forma tão cruel e dilacerante  pela remissão de nossos pecados, os méritos desse sofrimento indizível da Virgem unidos aos méritos infinitos do martírio de Jesus, tudo isso granjeou-Lhe o título de Co-redentora do gênero humano. Junto com Nosso Senhor, Ela abriu para nós as portas do Céu e nos alcançou a vida da graça. Tornou-se, outrossim, digna de possuir o domínio de todos os corações.

“Sede Rainha de minha alma, para eu ser inteiramente vosso”

Compreendamos bem quão augusto é esse império sobre a vontade  dos homens. Imaginemos o indivíduo mais inculto, mais tosco de sentimentos e de disposições mais vis que possa haver. Nossa Senhora ser a Rainha do coração dele representa uma grandeza incomparavelmente maior do que imperar sobre os mares, as constelações, os planetas e o universo inteiro criado! Tal é o valor de  uma alma, ainda que a do último dos homens. Que dizer, então, do ser Ela soberana de todas as almas?! Reitero o que já tive oportunidade de afirmar: essa realeza de Maria é voltada de modo exclusivo para nos fazer o bem, para nos atrair para a prática da virtude, para nos conduzir à santidade a que somos chamados.

É um poder que nos revela a sua onipotência suplicante em nosso favor, enchendo-nos de consolação e confiança no seu infatigável auxílio. Assim, imbuídos dessa verdade admirável, dirijamos a Nossa Senhora este filial pedido: “Minha Mãe, Vós sois Rainha de todas as almas, mesmo das mais duras e empedernidas, desejosas contudo de se abrirem à vossa misericórdia. Peço-Vos, pois, sede Rainha de minha alma, quebrai nela os rochedos de maldade, as resistências abjetas que de Vós me separam. Dissolvei,  por um ato de vosso império, as paixões desordenadas, as volições péssimas, os restos dos meus pecados passados que tenham permanecido no meu íntimo.

Limpai-me, ó minha Mãe e Rainha, para que  eu seja inteiramente vosso.

Amém”.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora do Rosário

Nossa Senhora do Rosário: a invocação é lindíssima! Rosário faz de Maria Santíssima a grande fonte de inspiração de nossa meditação e o alvo imediato de nossa oração durante a meditação.

Por causa dessa focalização muito especial de Nossa Senhora, o Rosário é a devoção marial por excelência.
Foi revelada pela Santíssima Virgem a São Domingos de Gusmão, que estava lutando contra uma “lepra” que infectava o Sul da França, com penetrações no litoral mediterrâneo da Espanha: a heresia albigense.
Para vencer esta heresia, Nossa Senhora revelou o Rosário que ficou, assim, o símbolo da alma ortodoxa e devota d’Ela.

Aquilo que matou o prenúncio da Revolução, adiando durante alguns séculos a eclosão da Revolução protestante, é indicado pela Mãe de Deus para o adiamento do fim do mundo e para obtermos a nossa própria fidelidade.

Santo Rosário é, pois, uma devoção de luta! Estamos numa época de luta. Peçamos a Nossa Senhora que faça de nós lutadores inteiramente d’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/10/1966 e 12/4/1985)

Nossa Senhora do Rosário, uma festa de glória!

Uma das linhas mestras da piedade de Dr. Plinio era promover a glória da Santa Mãe de Deus. Por ocasião da comemoração da festa de Nossa Senhora do Rosário, Dr. Plinio manifesta um de seus mais entranhados desejos.

Nós devemos festejar a data que a Igreja dedica a Nossa Senhora do Rosário com um empenho especial pela simples razão de que o Rosário é um dos símbolos mais característicos da piedade cristã. Houve tempos em que ele pendia dos hábitos de quase todos os religiosos, ele estava no bolso de todas as pessoas católicas, inúmeras eram as pessoas que eram enterradas com ele nas mãos. Quando se queria simbolizar a piedade, este símbolo era o Rosário.

De maneira que nós devemos olhar para esta festa do Rosário cheios de esperança, e pedir a Nossa Senhora, que ajudou aos cristãos vencerem a Batalha de Lepanto, que nos conceda a graça da vinda do Reino d’Ela, que será também o Reino do Rosário.

Eu já afirmei isso, e volto a fazê-lo: se o nosso Movimento parasse de rezar o Rosário, ele não durava três meses. Eu me pergunto se, na decadência dos dias atuais, ele duraria três dias! Porque para se deixar de rezar o Rosário, tanta coisa teria caído antes, e tanta coisa cairia logo depois, que eu acho que três dias era o máximo para ele se desfazer. Não percamos isto de vista. É a Nossa Senhora, sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário, a quem nós devemos tudo.

E assim como dizemos “Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto, sicut erat in principio et nunc et semper…”, talvez pudéssemos afirmar “Glória a Nossa Senhora, como era no princípio, agora e sempre e por todos os séculos dos séculos. Amém”, desde que pela expressão “no princípio” não entendêssemos que Maria Santíssima é a criadora de todas as coisas — o que seria uma aberração —, mas que desde todo o sempre Ela foi a obra-prima da Criação, e estava presente na mente de Deus, que intencionou criá-La para ser, logo abaixo da humanidade santíssima de Jesus Cristo, a maior de todas as perfeições por Ele realizada.

Essa noção da glória de Nossa Senhora, que se traduz nas homenagens que fazemos a Ela, é reflexo do que nós trazemos dentro da alma. E essa glória de Nossa Senhora nós a queremos realizada agora e no Reino de Maria!

A verdadeira glória de Maria

O que é glória?

São Tomás de Aquino define a glória como o efeito que se volta para sua causa e a louva. Então o movimento pelo qual os filhos se voltam para seus pais, os alunos para seus mestres, os súditos para seus governantes e os louvam, os homens — sobretudo — se voltam para Deus e O louvam; todo esse movimento é de glória. Há nisto algo de circular. É o louvor perfeito dado por aquele que deve gratidão perfeita, tributo perfeito, àquele que está na origem, ou da vida terrena, do talento, ou da cultura, das ações acertadas etc., e sobretudo a Deus Nosso Senhor que está na origem de todas as coisas, é a Causa das causas.

Esse conceito de glória nós o verificamos a respeito de Nossa Senhora da seguinte maneira:
A Virgem Santíssima é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, e, enquanto Mãe d’Ele, é Mãe do Corpo Místico de Cristo. Por meio d’Ela todas as graças vem aos homens, e todas as orações sobem até Deus. Evidentemente, Ela está, portanto, logo abaixo de Deus, e por desígnio de Deus, no ponto de partida de todas as coisas. E a glória d’Ela será completa quando todos os homens se voltem para Ela e A louvem.

Mas esse louvor não pode ser apenas um cântico da grandeza e da bondade de Nossa Senhora. Tem de ser também o reconhecimento efetivo desta grandeza e desta bondade, o qual se traduz nos atos. Quer dizer, louva Maria Santíssima quem vive de acordo com as virtudes das quais Ela deu exemplo, e pratica essas virtudes com o intuito de honrá-La.

Louva Nossa Senhora, portanto, quem vive conforme as virtudes que a Igreja Católica inculca, porque a Mãe de Deus possui e praticou no mais alto grau todas as virtudes que a Igreja Católica ensina. A Virgem Maria era uma espécie de representação viva da Igreja Católica.

Uma pessoa que olhasse para Nossa Senhora teria, num só golpe de vista, a noção de toda a sabedoria, de toda a continuidade da Igreja, do esplendor de todos os seus santos, do talento dos seus doutores, da beleza de sua liturgia em todas as épocas, do heroísmo de todos os cruzados e de todos os mártires. Enfim, não houve coisa bela que a Igreja tivesse engendrado, e por onde manifestasse o seu espírito, que não brilhasse em Maria Santíssima completamente e com fulgor extraordinário.

Nós, portanto, louvamos a Nossa Senhora, sendo, vivendo e fazendo como a Igreja Católica manda. E exatamente o que fazemos agora, se fará continuamente no Reino de Maria.

Como fazer a vontade de Nossa Senhora?

Como fazemos isto agora? Pode-se dizer que a Igreja se divide em três partes: a Igreja Gloriosa que está no Céu, a Igreja Padecente, no Purgatório e a Igreja Militante, na Terra. Enquanto a Igreja estiver na Terra, ela será militante, lutará. Então os pensamentos da Santíssima Virgem para nosso século não podem deixar de ser pensamentos de luta.

Lembro-me de uma linda escultura gótica que representa Nossa Senhora com um manto todo cheio de dobras e com uma espada na mão, investindo contra o demônio. É esta a tarefa de Maria Santíssima em nossa época.

Alguém dirá: “Mas Nossa Senhora é Mãe, Ela é apresentada na Igreja e nos templos sob o aspecto da misericórdia!”

É verdade. Esta Mãe de misericórdia olha com bondade para a Terra, mas observem os pés d’Ela: esmagam a cabeça da serpente! Quer dizer, é uma luta que só cessará no fim do mundo, quando os demônios que pairam nos ares forem atirados no Inferno, e todos os homens receberem o seu julgamento solene e final, e com isso se terá feito completamente a justiça.

Portanto, se a Virgem Maria se encontrasse, nesta Terra, de maneira visível, estaria estimulando a todos nós à dedicação pela causa d’Ela. Por isso, lutando por Nossa Senhora, estamos fazendo a vontade d’Ela.
E uma das melhores provas de que alguém tem de estar fazendo a vontade da Santíssima Virgem, consiste em ser combatido pelos inimigos d’Ela. Se é verdade que um homem se define por seus amigos, acho que é muito mais verdade que ele se define por seus inimigos. Aquela expressão clássica: “Diga-me com quem andas que te direi quem és”, eu gostaria de completá-la com esta outra: “Diga-me quem te odeia que te direi quem és”;

Porque, com o homem bom, os ruins não erram. E se todos os ruins detestam um homem, este não pode ser ruim, tem que ser bom.

Os maus vivem divididos entre si, e só se coligam contra o bem e contra o bom. De maneira que quando se veem todos os maus cessarem as rixas entre si e se voltarem contra um, este um é necessariamente um bom, porque ele é o denominador comum contra o qual todos os outros se conciliaram e se ergueram. Por exemplo, vemos Anás, Caifás, Herodes e Pilatos apaziguarem as lutas que tinham na pequena Judeia e se ligarem para matar a Nosso Senhor.

Esplendor de Nossa Senhora

Nós tratamos da glória. Mas como será o esplendor de Nossa Senhora?
Na Idade Média, a devoção por excelência, embora não empregassem esta fórmula, era Cristo Rei. Nosso Senhor era cultuado como o grande triunfador. As catedrais do auge daquela época histórica tinham um ar de triunfo magnífico. Eram majestosas, solenes, se levantavam ao céu com uma tranquilidade de quem se sente dono do céu e da Terra. Suas torres davam a impressão de tocar nas nuvens, e seus fundamentos de descer até o centro da Terra. Tinha-se a ideia de que elas dominavam todo o universo. Os vitrais, triunfantes, exprimiam em geral a glória de Cristo que venceu a morte, por quem os mártires venceram as perseguições, os cruzados lutaram; de Cristo por cuja virtude a civilização se erguia, com esplendor nunca igualado, das entranhas de um mundo onde havia o paganismo, o bárbaro e uma latinidade católica sumamente decadente e tíbia. Nosso Senhor Jesus Cristo aparecia como um Pantocrator, sentado sobre um arco-íris e ensinando a toda a Terra.

Daí também o som triunfal dos sinos das catedrais, dos grandes órgãos tocando em todos os seus registros, os grandes cânticos de triunfos da liturgia, as grandes procissões públicas. A Igreja desenvolveu durante o período final do apogeu da Idade Média, em toda a sua plenitude, a sua grandeza e o senso de sua soberania.

Que beleza seria contemplarmos a Idade Média! Sinos começam a tocar diante de um povo que, ao ouvi-los, cessa de trabalhar e começa a fluir para a catedral. Abrem-se os portais enormes. Nobres, corporações, povos esparsos da cidade vão chegando e entram de Rosário na mão. Uns rezando em grupos, outros isoladamente, em voz baixa. Em determinado momento, tudo se estaca e entra o cortejo dos clérigos: um Bispo com sua mitra, seu báculo, tendo à sua frente todo um clero de mãos postas e que salmodia em latim. Quando o Bispo, revestido de trajes esplêndidos, transpõe o portal da catedral, ele encontra o povo genuflexo. Alguém lhe oferece água benta, ele se benze, toma o hissope e começa a abençoar a todos. O órgão toca, pelos vitrais entra a luz do Sol, o incenso começa a subir. O povo não cabe em si de alegria e põe-se a cantar também, louvando Jesus Cristo, Nossa Senhora, os Apóstolos, a Santa Igreja Católica!

Pois bem. Isto é tão maravilhoso, mas eu digo que é um prenúncio de uma coisa incomparavelmente maior que virá!

A glória do Reino de Maria

Nós teremos catedrais mais belas, mais sacrais, mais esplêndidas do que Notre-Dame, talvez até instrumentos de música que superarão os órgãos e todos os instrumentos anteriores, uma liturgia cuja santidade vai brilhar de um modo mais refulgente que a liturgia anterior, a qual é, entretanto, tão santa e admirável, que se tem vontade de oscular cada uma de suas letras.

Enfim, haverá todo um conjunto de pompas e esplendores que vão simbolizar um domínio radioso e muito mais glorioso de Deus sobre a Terra. E tudo quanto a Igreja tem ensinado ao longo dos séculos, a respeito de Maria Santíssima, vai ser posto na liturgia de um modo muito mais evidente, mais marcante. De maneira que de ponta a ponta, na liturgia, estará presente o princípio da Mediação universal de Nossa Senhora, ensinado por São Luís Grignion de Montfort.

Nossa Senhora será como a lâmpada colocada no mais alto dos candelabros, logo aos pés da imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, junto ao Santíssimo Sacramento. E nessa esplêndida irrupção da glória de Maria veremos, então, a confirmação de todos os nossos desejos e aspirações.

Se alguém me perguntar: “Dr. Plinio, o senhor não poderia dar um pouco a ideia de como será a glória do Reino de Maria?”, eu digo: “Faltam-me completamente os talentos para isto”. Mas uma coisa todos nós sabemos: a figura dessa glória já começou a nascer no interior de nossas almas. Pela beleza do movimento de alma com que todos juntos desejamos esta glória para Nossa Senhora, pela pulcritude da esperança com que, pela graça de Maria Santíssima e apesar de nossas infidelidades, nós desde já pressentimos com foros de certeza como vai ser esta glória. E na noite e na tempestade, e dentro do lodo, ver este sol de esperança que se levanta, é muito mais do que um simples lírio que nasce na noite e na tempestade; é um sol que fará cessar a tempestade e secará o lodo. A beleza das primeiras cintilações deste sol em algumas almas, que se conservam puras dentro deste lodo, contém na sua raiz toda a pulcritude da glória do Reino de Maria.

Uma meditação dos mistérios gloriosos do Rosário

Para marcar este dia de Nossa Senhora do Rosário, proponho rezar especialmente os mistérios gloriosos do Santíssimo Rosário em homenagem àquelas várias manifestações de glória de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora.

A Ressurreição de Nosso Senhor deve ter sido uma cena de uma majestade inimaginável! A sepultura parada, quieta, escura… De repente um anjo começa a remover a pedra e legiões angélicas entram no sepulcro e enchem-no de luz, e Nosso Senhor sai de dentro da sepultura com o seu Corpo glorioso. Quem pode ter ideia de como foi essa glória?

A Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo aos Céus: Ele, subindo lentamente e falando, até que sua voz não mais pudesse ser ouvida. Entretanto, cada vez mais resplendente, magnífico e bondoso, comunicando-Se pela irradiação de sua Pessoa mais do que quaisquer palavras. Maria Santíssima e todos os Apóstolos estavam olhando para o céu; os anjos aparecem e dizem: “Homens da Galileia, não temais! Aquele que subiu ao Céu etc.” Quem pode imaginar a beleza e a glória de uma coisa dessas?

Qual terá sido a glória da descida do Espírito Santo sobre Nossa Senhora e os Apóstolos? A coisa mais bonita que tenho visto em minha vida é uma alma se converter ou se santificar. Ver alguém que abandona um defeito e volta para uma qualidade que possuía; ou que regressa ao bom caminho que havia deixado; ou que adquire uma qualidade que ainda não tinha! Nada é mais bonito na Terra do que ver diretamente nas almas a santificação delas operada pelo Espírito Santo.

Alguém será capaz de imaginar o que foi ver o fogo do Divino Espírito Santo cair sobre Maria Santíssima e os Apóstolos? Nossa Senhora habitualmente tão sublime, esplendorosa de alma, de repente recebeu um grau de esplendor que não se imaginava existir.

E as pessoas, olhando a Nossa Senhora, tinham a impressão de estar vendo Nosso Senhor Jesus Cristo em figura feminina, mas, por fim, diriam: “Não, esta é a Mãe de Deus, a Mãe do Salvador!”, de tal maneira Nossa Senhora estava cheia do Espírito Santo. Isso é mais uma glória da qual não podemos fazer ideia.

Depois vem a glória delicadíssima, suavíssima, virginalíssima, maternalíssima de Nossa Senhora assunta ao Céu. Como deve ter sido o “luto” de toda a natureza com Nossa Senhora morta? Eu não posso imaginar! Mas depois, a alegria: Nossa Senhora que ressurge! Nossa Senhora que sai da sepultura! E depois é carregada pelos anjos, ressurrecta e que vai subindo! Enquanto Nosso Senhor manifestava grandeza e bondade na sua Ascensão, Ela manifestava mais bondade do que grandeza. Um sorriso materno, e todos olham para Ela, conhecendo-A mais, compreendendo-A mais, e sendo cada vez mais atraídos por Ela, à medida que vai Se elevando ao Céu, até o momento em que Nossa Senhora desaparece. Mas uma claridade fica espalhada sobre tudo e sobre todos, como quem diz: “Eu, em realidade, fiquei. Rezai porque estarei sempre presente, unida a vós”.

E por fim a festa no Céu, que só os bem-aventurados daquele tempo assistiram: Maria Santíssima entrando no Paraíso, conduzida pelos anjos e sendo recebida por Nosso Senhor Jesus Cristo! Há alguém que possa pintar Nosso Senhor recebendo a Nossa Senhora?

A recompensa demasiadamente grande

Eu creio que só houve uma cena que pudesse dar ideia disso: a Virgem acolhendo Nosso Senhor durante a Via-Sacra. Toda a ternura e adoração d’Ela para com Ele, todo o amor filial, e ao mesmo tempo do Criador, de Jesus para com Ela se manifestaram ali, na dor, de modo admirável. E era preciso ter visto o olhar recíproco entre Eles. Houve algum diálogo, uma pergunta e uma resposta, uma coisa fugidia porque Ele era obrigado a continuar. Mas Nossa Senhora indo depois ao encalço de Nosso Senhor, a troca de olhares do alto da Cruz até o último olhar d’Ele que, com certeza, foi para Ela. E o supremo olhar d’Ela para Ele antes do “consummatum est”.

Era preciso ter visto assim as relações entre Eles para compreender o que foi o olhar com que Nosso Senhor, do alto do trono de sua glória, considerou-A no momento em que Ela entrou para o Céu!

Alguém conseguiria imaginar com que espécie de respeito Nosso Senhor Jesus Cristo — que é Deus! — coroou a Ela, que de corpo e alma estava presente no Céu? Essa glória ninguém consegue descrever, pois excede a tudo quanto se possa cogitar.

Se Nosso Senhor é para cada um de nós a nossa recompensa demasiadamente grande, de que tamanho terá sido a recompensa que Ele foi para Ela? Entretanto, Ele o foi para Nossa Senhora, pois Ele é infinito.

Essas glórias nós as devemos considerar, pedindo a Maria Santíssima que acelere o dia da glória d’Ela!  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 7/10 dos anos: 1970, 1971 e 1987

Ó Senhora Aparecida!

Neste momento rico em esperanças e glória, ó Senhora, vimos agradecer-Vos os benefícios que, Medianeira sempre ouvida, nos obtivestes de Deus onipotente.

Agradecemo-Vos o território de dimensões continentais, e as riquezas que nele pusestes.

Agradecemo-Vos a unidade do povo, cuja variegada composição racial tão bem se fundiu neste grande caudal étnico de origem lusa — e cujo ambiente cultural, inspirado pelo gênio latino, tão bem assimilou as contribuições trazidas por habitantes de todas as latitudes.

Agradecemo-Vos a Fé católica, com a qual fomos galardoados desde o momento bendito da Primeira Missa.

Agradecemo-Vos nossa História, serena e harmoniosa, tão mais cheia de cultura, de preces e de trabalho, do que desavenças e de guerras..

Agradecemo-Vos as nações deste Continente, que nos destes por vizinhas, e que, irmanadas conosco na Fé e na raça, na tradição e nas esperanças do porvir, percorrem ao nosso lado, numa convivência sempre mais íntima, o mesmo caminho de ascensão e de êxito.

Agradecemo-Vos nossa índole pacífica e desinteressada, que nos inclina a compreender que a primeira missão dos grandes é servir, e que nossa grandeza, que desponta, nos foi dada não só para nosso bem, mas para o de todos.

Agradecemo-Vos o nos terdes feito chegar a este estágio de nossa História, no momento em que pelo mundo sopram tempestades, se acumulam problemas,  terríveis opções espreitam, a cada passo, os indivíduos e os povos. Pois esta é, para nós, a hora de servir ao mundo, realizando a missão cristã das nações jovens deste hemisfério, chamadas a fazer brilhar, aos olhos do mundo, a verdadeira luz que as trevas jamais conseguirão apagar.

PRECE

Nossa oração, Senhora, não é, entretanto, a do fariseu orgulhoso e desleal, lembrado de suas qualidades, mas esquecido de suas faltas.

Pecamos. Em muitos aspectos, nosso Brasil de hoje não é o País profundamente cristão com que sonharam Nóbrega e Anchieta. Na vida pública como na dos indivíduos, terríveis germes de deterioração se fazem notar que mantêm em sobressalto todos os espíritos lúcidos e vigilantes.

Por tudo isto, Senhora, pedimo-Vos perdão.

E, além do perdão, Vos pedimos forças. Pois sem o auxílio vindo de Vós, nem os fracos conseguem vencer suas fraquezas, nem os bons alcançam conter a violência e as tramas dos maus.

Com o perdão, ó Mãe, pedimo-Vos também a bênção.

Quanto confiamos nela!

Sabemos que a bênção da Mãe é preciosa condição para que a prece do filho seja ouvida, sua alma seja rija e generosa, seu trabalho seja honesto e fecundo, seu lar seja puro e feliz, suas lutas sejam nobres e meritórias, suas venturas honradas, e seus infortúnios dignificantes.

Quanto é rica destes, e de todos os outros dons imagináveis, a Vossa bênção, ó Maria, que sois a Mãe das mães, a Mãe de todos os homens, a Mãe Virginal do Homem-Deus!

Sim, ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças, e mais do que todas, concedei-nos a graça das graças. Ó Mãe, uni intimamente a Vós este Vosso Brasil.

Amai-o mais e mais.

Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes.

Tornai sempre mais largo e mais misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

Fazei-nos sempre mais amantes da paz, e sempre mais fortes na luta pelo Príncipe da Paz, Jesus Cristo, Filho Vosso e Senhor nosso.

De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina, do cêntuplo nesta terra e da bem-aventurança eterna.

*    *    *

Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil! Com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece de ação de graças e súplica? Onde encontrá-las, senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superior a qualquer louvor humano?

De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito, palavras que amorosamente aqui repetimos:

— “Tu gloria Jerusalem, tu laeticia Israel, tu honorificentia populi nostro”.

Sois Vós a glória, Vós a alegria, Vós a honra deste povo que Vos ama.

(Plinio Correa de Oliveira, Folha de São Paulo, 16/1/1972, Prece do Sesquicentenário)