À nossa espera…

Meu filho, aqui estou Eu, sozinha, no canto a que teu desprezo me relegou, repleta daquele amor materno que tua rejeição comprime em Mim e impede que se expanda; daquele afeto que se conserva intacto em sua abundância e intensidade, palpitando de compaixão, à espera de que retornes para te purificar, te envolver e cumular com sua misericórdia inesgotável…

O Homem-Deus

Ao iniciar uma das concorridas conferências de Dr. Plinio, jovens membros de seu Movimento pedem-lhe que comente a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo. E proclamam os seguintes trechos de um artigo por ele escrito(1):

 

Por que foi o Bom Jesus manietado por seus algozes? Por que impediram eles o movimento de suas mãos, prendendo-as com duras cordas? Só o ódio ou o temor poderiam explicar que assim se reduza alguém à imobilidade ou à impotência. Por que odiar assim estas mãos? Por que temê-las?

A mão é uma das partes mais expressivas e mais nobres do corpo humano. Quando os pontífices e os pais abençoam, fazem-no com um gesto de mão. Quando o homem inocente perseguido se vê saturado de dores e apela para a justiça divina, é ainda com as mãos que ele amaldiçoa. E por isto, os homens osculam as mãos que fazem o bem e algemam as mãos que praticam o mal.

Vossas mãos, Senhor Jesus — agora sangrentas e desfiguradas, entretanto tão belas e tão dignas —, desde os primeiros dias de vossa infância, quem pode dizer, Senhor, a glória que estas mãos deram a Deus, quando sobre elas pousaram os primeiros ósculos de Nossa Senhora e de São José?

Quem poderia dizer com quanta meiguice e com quanto carinho fizeram a Maria Santíssima o primeiro carinho? Com quanta piedade se uniram pela primeira vez em atitude de prece? E com quanta força, quanta nobreza, quanta humildade, trabalharam na oficina de São José? Mãos de Filho perfeito, que outra coisa fizeram no lar, senão o bem?

Por que, Senhor, tanto ódio? Por que tanto medo, que pareceu necessário atar vossas mãos, reduzir ao silêncio vossa voz, extinguir vossa vida? É porque alguém receasse ser curado ou afagado? Quem, porventura, teme a saúde, ou quem odeia o carinho?

Senhor Deus, para compreender esta monstruosidade, é preciso crer no mal, é preciso reconhecer que tais são os homens, que sua natureza facilmente se revolta contra o sacrifício. E que, quando entra no caminho da revolta, não há infâmia, nem desordem de que não seja capaz. E quando alguém diz “não”, começa a Vos odiar, odiando todo o bem, toda a verdade, toda a perfeição de que sois a própria personificação.

E se não Vos tem à mão sob forma visível, para descarregar seu ódio satânico, golpeia a Igreja, profana a Eucaristia, blasfema, propaga a imoralidade, prega a Revolução! Vossos inimigos amam tanto o mal, que percebem ainda sob as humilhações das cordas que vos prendem, toda a força de vosso poder, e tremem!

Ó Bom Jesus, vossos adversários tremem diante da Igreja, enquanto eu, miserável, vendo-a manietada, reputo tudo perdido…

Vossa Igreja, entretanto, participa de vossa força interior e pode, a qualquer momento, destruir todos os obstáculos com que a cercam!

Nossa esperança não está nas concessões, nem na adaptação aos erros do século. Nossa esperança está em Vós, Senhor!

Atendei às súplicas dos justos, que vos imploram por meio de Maria Santíssima:

Enviai, ó Jesus, o vosso Espírito, e renovareis a face da Terra!

O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?

Na agonia — contemplada no primeiro mistério doloroso — a Alma santíssima de Nosso Senhor sofreu de modo inenarrável. A repercussão desse sofrimento da Alma sobre o Corpo ocasionou o suor de sangue. O Corpo sagrado de Nosso Senhor ainda não fora atingido de modo direto, mas somente à maneira de reflexo, de corolário.

O primeiro mistério em que contemplamos o Corpo d’Ele ferido diretamente é a flagelação. Seguem depois a coroação de espinhos, Nosso Senhor com a Cruz às costas e a Crucifixão. Assim, nos cinco pontos sucessivos dos mistérios dolorosos, a Paixão inteira de Nosso Senhor, de Alma e de Corpo, está expressa.

Mas, de fato, a dor da Alma não cessou de nenhum modo quando começaram os sofrimentos do Corpo. Pelo contrário, foi num crescendo; a Paixão de sua Alma foi se desenvolvendo à medida que a Paixão do Corpo aumentava. E chegou ao ápice no momento do “Consummatum est” — Tudo está consumado, e Jesus expirou.

Na Paixão, Ele padeceu no Corpo, mas, sobretudo na Alma. O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?

Seria preciso um oceano de tempo para fazer uma meditação completa sobre este tema. Mas alguns pontos podem ser dados, sumariamente. Assim, entro diretamente no assunto.

Verdadeiramente homem, verdadeiramente Deus!

Em Nosso Senhor Jesus Cristo há uma só Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja definiu esta verdade nos primeiros séculos, depois de ter saído das catacumbas, contra muitas heresias que pretendiam desfigurar essa realidade, ora afirmando que Cristo era exclusivamente um homem, ao qual Deus tinha, por assim dizer, extrinsecamente tocado um pouco; ora dizendo, pelo contrário, que Ele era um fantasma, uma figura que Deus suscitara para dar a impressão de que tinha havido a Encarnação. Porque eles não queriam se consolar com a ideia desse arco voltaico sublime, feito entre Deus Onipotente e Criador e o homem tão miserável.

Conforme o ensinamento da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma só Pessoa, com duas naturezas. Para dar alguma comparação, consideremos o homem que tem uma parte animal e outra espiritual, as quais formam uma só pessoa. Essas duas naturezas, o aspecto animal e o aspecto espiritual — o aspecto anjo, digamos —, convivem perfeitamente, de tal maneira que a muitos de nós nunca passaria pela mente perguntar como somos constituídos.

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, a natureza divina e a natureza humana coexistem perfeitamente e estão hipostaticamente unidas, de modo a constituírem uma só Pessoa, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo de Deus que se fez carne, quer dizer, formou-se nas entranhas puríssimas de Nossa Senhora, resultante do esponsório da Santíssima Virgem com o Espírito Santo.

Segundo inúmeros teólogos, ainda que não houvesse o pecado original e, portanto, não fosse necessário Nosso Senhor vir à Terra para resgatar os homens, teria havido a Encarnação do Verbo.

Embora representasse perfeitamente o gênero humano, Adão não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.

Deus dispôs toda a Criação admiravelmente: os anjos com suas três hierarquias, e em cada uma delas três categorias, formando nove coros, que cantam perpetuamente a glória divina; abaixo dos anjos — em certo sentido, pouco abaixo; em outro sentido, enormemente abaixo dos anjos —, vêm os homens.

Adão, o primogênito do gênero humano, Deus o criou com grandeza de inteligência, bondade de vontade e riqueza de personalidade. E com uma força, bem como um aspecto perfeito da face e do corpo, que o faziam digno de ser o primeiro dos homens, o primeiro jorro desta torrente, que deveria ser a Humanidade.

Ele era belo e grande em todos os sentidos da palavra. O Criador o fizera esplendidamente dotado de alma, o elevou à ordem sobrenatural, vivia na graça de Deus. Havendo nele a ordem perfeita, seu corpo e notadamente sua face eram o símbolo perfeito de sua alma.

Tinha, portanto, a beleza física, que era o aspecto material de sua beleza moral, e que se completavam harmonicamente. De maneira que, quem olhasse para Adão, veria a perfeição do gênero humano manifestada de modo adequado e esplêndido.

Tudo isso entrou em decadência, em degradação, com o pecado original. E os homens nascidos de Adão e Eva tiveram a marca do pecado original e, depois, a dos pecados que foram cometendo, causando os resultados por nós conhecidos.

Se não tivesse sido cometido o pecado original, e os homens nascidos no Paraíso Terrestre lá continuassem — porque eles, no Éden, seriam pecáveis; muitos poderiam pecar, mas seriam expulsos —, constituiriam como que uma raça perfeita, eleita, magnífica, repetindo de algum modo as grandezas e os esplendores de Adão.

Adão, embora representasse perfeitamente o gênero humano, que haveria de nascer, não era seu ápice. A perfeição é escalonada, e ele não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.

Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima, é a suprema perfeição do gênero humano.

Deus, na sua sabedoria infinita, não cria as coisas como quem retira de uma sacola punhados de confete e os joga na rua, sem saber sua quantidade e o local para onde os lança. Muitas pessoas têm a impressão de que a Criação foi assim: Deus tirou do nada — que seria o saco de confetes — tufos de pessoas, que começaram a viver meio espantadas de estarem juntas, não havendo uma ordenação superior que as reuniu para determinado fim.

Mas o Criador faz as coisas de um modo especial, ou seja, com uma perfeição que só Ele pode proporcionar. A partir do barro, criou Adão. E depois os outros homens, fazendo com que se reproduzam como conhecemos, e dotando cada um de uma alma espiritual. De tudo isto, no plano de Deus, forma-se uma coleção ordenada, como seria, por exemplo, uma coleção de leques, de relógios, de armas, em que cada peça tem sua individualidade, sua razão de ser, e constitui uma harmonia com as outras peças.

Para melhor exprimir essa ideia de harmonia, todos os homens — o gênero humano — constituem uma harpa colossal, com milhões de cordas que vibram sob o olhar de Deus. Se cada corda vibrar como Ele quer, executa uma harmonia digna dos anjos e do próprio Criador.

É claro que, nesta coleção, Deus haveria de fazer as coisas com graus de perfeição desiguais. Pelo princípio da unidade deve haver variedade. E em razão do princípio da unidade na variedade, ou da variedade na unidade, nessa coleção estabelecida, planejada pela Providência, teria que existir um ser supremo.

Esse supremo, que leva a perfeição do gênero humano a um grau inconcebível por nós, é Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima.

Se imaginarmos o mais perfeito dos homens, física, moral e intelectualmente falando, sem comparação com os outros, não teríamos nem de longe uma ideia completa do que era Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, e do que é no Céu, onde Ele está com seu Corpo glorioso, acrescido de esplendor de modo verdadeiramente maravilhoso.

Devemos considerar que este Homem não era apenas um santo, o qual levou sua santidade ao mais alto grau. Ele é o Homem-Deus! Aquele Corpo, aquela Alma humana, ligados pela união hipostática à natureza divina, formavam uma só Pessoa. Não era apenas um santo, mas a própria santidade!

Ficamos diante de uma ideia de grandeza, de perfeição, que excede a tudo quanto se possa cogitar. E devemos acrescentar outra reflexão: o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo — porque é próprio do corpo refletir a alma — era a expressão perfeita de sua Alma humana; exprimia a própria Divindade.

O Homem-Deus, no que tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino

Entendemos assim quem é Nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, qual a atitude de adoração, de veneração, de respeito, de fidelidade, etc., que Ele naturalmente devia despertar em todos.

Nosso Senhor veio à Terra para salvar as almas; portanto, esse efeito, tão salvífico para as almas, Ele queria produzi-lo. E, neste sentido, o Divino Salvador amava sua própria figura, sua própria inteligência, sua própria santidade, não só porque era Deus — e Deus não pode deixar de amar-Se a Si mesmo infinitamente —, mas pelo fato de que aquilo de humano que havia n’Ele era o melhor reflexo de tudo quanto fora criado.

Lemos no Gênesis que Deus, depois de ter criado o universo, descansou, contente, vendo a harmonia que Ele havia feito. Porque cada coisa era boa e o conjunto ainda melhor.

Ora, tudo quanto há no universo valia menos do que Nosso Senhor Jesus Cristo. Podemos imaginar o seu comprazimento — santíssimo, sem nem de longe se assemelhar àquilo que chamamos egoísmo, paixão tão vil —, conhecendo-Se como era, e a natureza humana dizendo dentro d’Ele às três Pessoas da Santíssima Trindade: “Eu sou o vosso espelho mais exato em toda a Criação, glória a Vós!”

O Homem-Deus, no que Ele tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino; por causa disso, Nosso Senhor tinha gosto em que, por amor a Deus — evidentemente não por uma vaidade; isto está inteiramente afastado — os homens contemplassem esse reflexo do Criador e O adorassem. E para Ele era uma razão de alegria, quando as multidões iam ao seu encalço, sendo preciso que os Apóstolos O protegessem, para não chegarem perto demais.

Ensinava fazendo o bem

O Evangelho narra a cena de Nosso Senhor pregando para o povo de dentro de uma barca, para que pudesse ser ouvido por todos. Ele tinha a voz perfeita — com que suavidade, força, grandeza, riqueza de inflexões! — e dali podia falar admiravelmente as coisas mais fulgurantes, ou mais doces, ouvidas a qualquer distância.

O Redentor passava por algum lugar e via uma pessoa que estava sofrendo, sozinha, numa estrada ou num caminho. Ele via as almas que se abriam para Ele, e tinha com isso a felicidade que Deus tem na sua própria glória, observando que a criatura, que Ele criou e chamou para amá-Lo, é tocada pela graça e exclama: “Meu Senhor e meu Deus!”

Para provar aos homens ser Ele o Homem-Deus — sua missão consistia em ensinar quem era Ele —, Nosso Senhor tinha como instrumentos, primeiro — e que instrumento incomparável! — a Si próprio. Depois o que Ele dizia: sua doutrina maravilhosa, simplicíssima, delicadíssima, fortíssima, de lógica inquebrantável, verdade intocável, irrepreensível, perfeita. Até o fim do mundo, os homens estudarão os sermões do Divino Mestre que estão no Evangelho, e não chegarão até o fundo.

Além disso, Ele aconselhava, ajudava, praticava milagres para curar. Tais benefícios mereceram que São Pedro fizesse de Nosso Senhor este elogio tão simples e tão grandioso: “pertransivit benefaciendo” — passou pelo mundo fazendo o bem(2). Em todos os lados, de todos os jeitos, Ele praticou o bem, até mesmo quando punia.

E quando Jesus tomou um látego na mão e expulsou os vendilhões do Templo, teve bondade para com eles. Aterrorizou-os, mas deve ter-lhes dado a graça do temor, para que se convertessem. O seu braço fortíssimo, divino, atingia e metia em fuga, mas, ao mesmo tempo, a sua graça procurava levantar as almas, para se unirem a Ele através do temor de Deus.

Milagres, que quantidade! Milagres físicos: curas que Nosso Senhor realizou; milagres morais: pessoas péssimas, perdidas, completamente desviadas pelos recantos da vida, e que, entretanto, conhecendo-O, se voltavam para Ele e ficavam limpas.

Mais ainda: pessoas tão embotadas no mal, que O conheciam, convertiam-se por pouco tempo e caíam novamente no pecado. O Redentor as procurava, reconduzindo-as para o bem. Ricos como Lázaro, pobres como as multidões que O acompanhavam, poderosos como Nicodemos, José de Arimateia, todos O seguiam, encantados.

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

 

1) Artigo publicado na revista “Catolicismo”, de abril de 1952.

2) At 10,38

 

A Santa Igreja, nosso maior tesouro

Outubro de 1943. Os conflitos da Segunda Guerra Mundial devastavam as nações, produzindo um morticínio nunca antes visto e expondo vários povos ao perigo de caírem sob a tirania de um dos totalitarismos em voga.

Naquela grave conjuntura em meio à qual se jogavam os destinos da humanidade, Dr. Plinio, pelas páginas do Legionário, procura orientar as almas para algo de valor supremo e imprescindível, capaz de abrir ao mundo os caminhos da salvação: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ao comentar a célebre encíclica do Papa Pio XII sobre o Corpo Místico de Cristo, afirmava:
“Quem ler com atenção o texto pontifício perceberá facilmente a extrema complexidade da matéria de que ela trata, e a série quase interminável de confusões, de erros serpejantes — a expressão é do Papa —, de ambiguidade de toda ordem que se têm procurado apoderar do assunto. (…)

“O ambiente contemporâneo é cheio de contradições e entrechoques doutrinários violentos, [conforme aponta Pio XII]: enquanto por um lado perdura o falso racionalismo, que tem por absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro parecido, o naturalismo vulgar, que não vê nem quer reconhecer na Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador. (…)

“Na esfera política, o resultado foi claro. Poucos foram, infelizmente, os católicos que souberam ver na disciplina ardente e incondicional à infalível autoridade da Igreja, a verdadeira tábua de salvação. Uns procuraram a fórmula salvadora no nazismo. Outros, no comunismo. Outros, na forma nazificante ou nas bolchevizantes. Poucos foram os que se lembraram de que “bonum ex integra causa; malum ex quocumque defectu”. Se havia mal nos dois lados, ficássemos só com a Igreja, integra causa por excelência.

“E daí uma tremenda confusão. Uns, por amor à autoridade, chegaram ao totalitarismo. Outros, por amor à liberdade, chegaram até a demagogia. A grande tragédia da luta entre nazismo e comunismo, entre fascismo e democracia, não foi tanto o extravio completo dos que já eram maus, mas a ruína, a confusão, a dilaceração interna entre os que eram bons “Sejamos prosélitos ardentes da doutrina do Corpo Místico de Cristo. E, sobretudo, insistamos por que todos os estudos feitos nesta matéria tenham por base e constante ponto de referência a admirável Encíclica Mystici Corporis Christi. Com isto, cessará qualquer dificuldade e brilhará serena, para a edificação geral, a genuína doutrina da Igreja.

“Da Igreja! Como não compreender, admirar e amar ainda mais a Santa Igreja Católica, depois da luminosa e claríssima doutrina ensinada pelo Santo Padre Pio XII sobre o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a própria Igreja Católica!

“A Igreja Católica é o maior tesouro que Nosso Senhor deu aos homens. É ela o escrínio em que se encerram todos os outros tesouros que Cristo nos deu. Não sei de coisa mais urgente, mais atual, mais premente, do que inculcar nos fiéis uma ardente devoção à Santa Igreja.”

(Extraído do “Legionário” de 24/10/1943)

Supremacia, nobreza e serenidade

A arte medieval me levou à conversão, pois aprendi as verdades da Igreja Católica nas criptas das velhas igrejas e catedrais europeias.

Assim se exprimiu Pugin, um dos mais ilustres arquitetos ingleses do século XIX, que havia sido educado num rígido calvinismo. Tendo se tornado católico, dedicou-se de corpo e alma ao renascimento do gótico na Inglaterra, posto ser a única arte que ele considerava realmente cristã. E teve sucesso, embora, após a sua morte, vários dos edifícios que construiu tenham sofrido  reformas, mudando-se-lhes propositadamente o estilo original. Outras de suas notáveis obras tiveram seu nome apagado e substituído pelos de arquitetos anglicanos.

Um exemplo é o Parlamento de Westminster, do qual, durante muito tempo, julgou- se que somente alguns detalhes triviais eram de Pugin. Hoje se sabe com certeza que são dele toda a fachada que dá para o rio Tâmisa e a famosa torre do relógio.

Grato me é constatar a comprovação histórica dessa autoria, pois vem corroborar a impressão que tive quando pude contemplar de perto o Parlamento inglês e a torre do Big Ben. Aquele conjunto arquitetônico pareceu-me tão medieval, tão acertada e retamente católico, que pensei: “Pode ser que, aqui, a Igreja Católica tenha deixado algumas das melhores marcas de seu próprio pensamento e de sua própria alma”.

O que existe ali de especial?

Não é, por exemplo, o que há de peculiar na Catedral de Colônia ou na de Notre-Dame de Paris. A primeira  possui algo de feérico, uma espécie de explosão de pedra, de uma imponência extraordinária, na qual, mais do que a razão, está presente a imaginação germânica no que ela tem de categórico. Ou seja, não se trata de uma concepção suave nem poética (no sentido doce da palavra), mas é a ideia de quem desejou construir uma epopeia grandiosa e, desse modo, marcar todos os séculos com uma nota de magnitude mais celeste do que terrena.

Assim, a característica saliente da Catedral de Colônia é algo de fantasioso e imaginativo, que o espírito possante conseguiu realizar.

Na catedral de Notre-Dame encontramos a conjugação da fantasia com a razão. Dir- se-ia que a fantasia concebeu uma construção magnífica e que, depois, a razão colocou os planos em ordem,  introduziu simetrias, bons sensos e harmonias quase clássicas, sem subtrair nada do sublime e do extraordinário próprios ao medieval.

Já a fachada do Parlamento de Westminster e a torre do relógio representam, dentro desse conjunto, algo de diferente. Não é a afirmação predominante da fantasia, nem a admiração predominante da razão, mas é uma reunião de dois valores diversos que se situam numa outra ordem de idéias: a força e a delicadeza.

Sua fachada é toda feita de linhas longas que se repetem, e de um grande desdobramento estendido numa amplitude de horizonte que, sem ter o “élan” de Colônia nem a espécie de harmonia  superlativa de Paris, possui entretanto uma categoria que lhe é peculiar. Ela se reveste de imensa dignidade, de superior  elevação e de alta nobreza, com algo de sereno, de senhor de si, de afável e, ao mesmo tempo, de sacral e de sério, reunindo assim extremos opostos. E toda obra de arte que, numa fusão, alia extremos opostos — que um espírito comum poderia julgar contraditórios —,  realiza algo de supremo no seu próprio gênero. Supremacia esta que, a meu ver, a fachada do Parlamento inglês logrou alcançar.

Nela, o aspecto força se faz notar também na forma de uma grandeza estável, que não se entregará a novos empreendimentos, sem todavia começar a decair. Ela se senta sobre seu próprio poder e se põe a meditar em suas glórias imorredouras… O mesmo se pode dizer da torre do relógio, uma verdadeira maravilha digna de ser justaposta ao edifício do Parlamento. Este, ao ter de ostentar uma torre, só pode ser uma como aquela: tão coerente, tão lógica, tão bela, porém com essa doçura, essa suavidade dos ingleses que o gênio católico depositou ali pelas mãos de Pugin, que soube interpretar os edifícios nos seus planos originais e comunicar um sopro de catolicidade a tudo aquilo.

Ele soube compreender, de modo ímpar, a nostalgia que a Inglaterra, anglicana e industrial, sentia — e ainda sente — daquela primeira Inglaterra, católica, feita mais para conquistas de ordem cultural do que para triunfos de ordem material. Ele, o arquiteto católico (como era chamado), soube, por meio de símbolos, tocar a fundo a alma de seu país, e realizar monumentos que  incontáveis protestantes não têm cessado de admirar até os presentes dias.

Muitos dos monumentos e edifícios projetados por Pugin não saíram do papel. Se porventura, no mundo de hoje, fosse dado a alguém construir uma obra que ele planejou, mas não pôde levar a cabo, prestaria a mais alta homenagem que se pode tributar a esse varão, verdadeiro artista católico. Seria a realização póstuma de mais um de seus grandes sonhos inspirados pela Fé.

Plinio Corrêa de Oliveira

O Versailles da Idade Média

Em viagem pela Europa no ano de 1978, um dileto discípulo de Dr. Plinio visitou o famoso “Château de Vincennes”, nos arredores de Paris. De volta ao Brasil, resolveu ele presentear seu mestre com um belo álbum de fotografias tiradas nessa ocasião. Dr. Plinio as comentou em uma de suas conferências.

 

Antes de iniciarmos a projeção das fotografias do “Château de Vincennes”, seria interessante apresentar alguns dados históricos a respeito do castelo.

O espírito francês possui obras-primas de toda ordem. Uma delas é o modesto “Guide Vert”(1) [Guia Verde], o qual contém interessantes referências sobre o castelo.

Veremos como as sacolejadas do passado deixaram suas cicatrizes no castelo.

Narra-nos o livro:

O Versailles da Idade Média apresenta dois aspectos distintos: um altaneiro e severo “donjon” e um majestoso conjunto do século XVII.

Esta descrição é um primor de resumo e talento.

Continua o Guia:

No século XI, a Coroa adquiriu, da Abadia de Saint Maur, a Floresta de Vincennes. Filipe Augusto lá construiu um castelo. São Luís o enriqueceu com a construção de uma capela. O bom rei proibiu que nessa floresta se caçassem animais, pois ele gostava de encontrá-los durante seus passeios.

Simbolizando a mansidão de um rei cruzado

Apesar de exímio caçador, São Luís IX fez ali o que talvez tenha sido o primeiro parque florestal da Europa: uma larga extensão cercada, onde era proibido caçar. Ele queria ter a alegria de passear pelas belezas do bosque e encontrar os animais, a fim de se entreter e brincar com eles.

Aos pés de um carvalho, o rei recebia, sem o impedimento de qualquer oficial, todos quantos viessem suplicar-lhe justiça.

Este episódio ficou famoso na História: nas estações mais belas do ano, São Luís sentava-se sob um carvalho particularmente frondoso e de seu agrado, para tomar contato com qualquer francês que quisesse vê-lo.

Esta era uma manifestação da benignidade do rei para com todos, especialmente em relação àqueles que tinham mais difícil acesso à sua pessoa. Este carvalho tornou-se símbolo da mansidão deste rei tão majestoso e cheio de glória.

Maison du Roi Soleil…

Mazarino, tornando-se Governador de Vincennes em 1652, fez construir simetricamente dois pavilhões: o do Rei, e o da Rainha. Um ano após o fim dos trabalhos, em 1660, Luís XIV lá passou sua lua de mel.

Entre os mil cargos que Ana d’Áustria, Regente da França, deu ao cúpido Primeiro Ministro Mazarino — homem extraordinariamente capaz, que desenvolveu o absolutismo real em detrimento do feudalismo — está o de Governador do Castelo de Vincennes.

Ele, por sua vez, teve o mau gosto de alterar o estilo do castelo, mas, é preciso dizer, o fez com bom gosto! Quer dizer, introduziu no famoso conjunto arquitetônico medieval duas construções ao estilo de seu tempo: o Pavilhão do Rei e o da Rainha.

Luís XIV, então moço recém-casado, passou seus primeiros tempos de matrimônio com Maria Teresa D’Áustria no Pavilhão do Rei, em Vincennes.

Percebe-se, ao longo dos séculos, uma espécie de chuva de ouro de recordações extraordinárias, que vai se acumulando em Vincennes. Primeiramente, São Luís ali acolhe os humildes e acaricia os animais.

Bem depois, Luís XIV, precedido e seguido por mosqueteiros, chega ao castelo numa carruagem magnífica, trazendo consigo a jovem rainha; ele sai da carruagem, estende a mão à rainha que nela se apóia levemente para descer, os cortesões ali estão para recebê-los, as tropas prestam armas, algum sino toca. O jovem monarca começa a sua vida de casado em Vincennes. Luís XIV estava na sua ascensão e, nesse tempo, era um monarca de vida muito pura — mais tarde, ele se desencaminhou.

Prisão dos ilustres

Desde o início do século XVI até 1784, o “donjon”, onde não moram mais os soberanos, torna-se prisão de Estado.

Tendo os reis deixado de residir no “donjon de Vincennes” — cuja estatura impressionante veremos pelas fotografias que serão projetadas —, este se transforma em prisão do Estado. Entre outros, um prisioneiro muito conhecido foi o Príncipe de Condé,  que na batalha de Rocroi jogou seu bastão de marechal no meio das tropas espanholas e disse: “Agora vamos buscá-lo”;  com esse artifício, Condé  determinou o curso, para ele vitorioso, da batalha que estava indecisa.

Mais uma vez vemos aqui a História se acumular. Isso nos mostra como foi a vida na Europa. Quantas coisas se somaram nas paredes veneráveis dos prédios que duraram séculos!

Belas porcelanas…

Outro fato digno de nota na história do Château de Vincennes é o seguinte:

Em 1738, o castelo transforma-se fortuitamente num atelier industrial. Dois operários, desertores da fábrica de porcelana em Chantilly, lá receberam asilo. Executando os segredos trazidos, eles fabricaram verdadeiros jardins de porcelana.

Naquele tempo, a fabricação de porcelana era um segredo de altíssimo valor, que os missionários jesuítas haviam trazido para a Europa. Quando os ocidentais chegaram à China, naturalmente se encantaram com a porcelana lá existente — a qual é mundialmente famosa — e começaram a comprar peças da mesma e enviá-las por navio aos amigos da Companhia de Jesus, a fim de serem vendidas na Europa para, com o dinheiro, manter as missões etc. E a porcelana chinesa interessou enormemente aos europeus.

Mas não se sabia fabricá-la. Até que um jesuíta, particularmente dotado do dom da sagacidade, de que Santo Inácio foi o padrão e modelo perfeito, conseguiu saber de um chinês o segredo para confeccionar a porcelana. Então, o religioso escreveu a fórmula e a mandou para a Europa, com todas as indicações de qual era o tipo de terra, como esta deveria ser preparada etc.

E em Chantilly, na França, começaram a fabricar a porcelana, porém mantendo o segredo. Certo dia, dois operários propuseram à Corte: “Se quiserem entrar numa combinação conosco, mandem vir tal terra que nós fabricaremos porcelana e ensinaremos o segredo para o rei”.

O monarca foi consultado e concordou. Os operários passaram então a fazer, nos imensos salões de Vincennes, lindas porcelanas que começaram a se escoar.

Como a narração do Guia é muito resumida, não conta como eles saíram de Vincennes. O certo é que fundaram uma das duas fábricas de porcelanas mais famosas da França: a de Sèvres(2) .

Cenário de um crime famoso

Num outro trecho o Guia narra:

Ao lado do fosso percebe-se, à direita, aos pés da Torre da Rainha, uma coluna que lembra o lugar onde foi executado o Duque d’Enghien, Príncipe de Condé(3).

Creio que todos já ouviram falar da execução do Duque de Enghien por Napoleão. Limito-me simplesmente a fazer um resumo.

Ele foi um dos cavaleiros mais brilhantes de seu tempo e o último da estirpe de Condé. Esse príncipe era um obstáculo para a realização dos planos de Bonaparte, pelo seguinte:

Todo o mundo, e talvez o próprio Napoleão, percebia que seu império e sua dinastia não podiam durar muito. E que mais cedo ou mais tarde, pela lei pendular da História, após a França ter chegado até a república, o pêndulo deveria oscilar e voltar, embora não inteiramente, ao ponto de partida que fora a monarquia absoluta e de direito divino do “Ancien Régime”, ou ao menos a uma monarquia temperada, com a mesma dinastia.

Entretanto, quanto aos Bourbons, as possibilidades de se perpetuar a estirpe não eram muito grandes, porque Luís XVIII, o eventual sucessor de Napoleão, era viúvo, não tinha filhos e já estava velho.

E o irmão dele, que lhe sucedeu, Carlos X, tivera um filho, do qual poderia provir uma descendência; mas, sendo viúvo e sexagenário, não era provável que ele tivesse outro filho. Se eventualmente o filho de Carlos X fosse assassinado, o trono passaria ao Duque de Orléans, filho do regicida, Felipe “Egalité”, que era ele mesmo um liberal de quatro costados.

Evidentemente, a transferência do trono para o Duque de Orléans indignaria os monarquistas franceses, que tinham a pior recordação de seu pai. Assim, provavelmente ele não subiria ao trono, mas sim o Duque de Enghien, que era o último príncipe do ramo da família Condé.

Esse homem brilhante, que lutara contra a Revolução na chamada Rue du Prince, foi capturado durante a noite pelas tropas de Napoleão, levado para o Castelo de Vincennes e, depois de um simulacro de julgamento, executado barbaramente à noite, num fosso aberto junto à muralha. Esse crime impressionou enormemente todos os europeus daquele tempo.

Então, há uma coluna indicando o lugar preciso onde esse crime se deu.

Já o século XIX deixou ali mais uma recordação famosa e impregnada de traços de romantismo, porque o Duque de Enghien era secretamente casado com uma princesa da Casa de Rohan. Não sei por que razões seus pais se opunham a esse casamento; por isso as bodas foram celebradas às ocultas.

Quando ele morreu, revelaram-se os documentos e a princesa, Duquesa de Enghien, ficou inconsolável, chorando. Uma viúva jovem, vertendo lágrimas por um príncipe de conto de fadas, executado por um tirano, numa noite de tragédia, dentro de um fosso, foi material para o século XIX, romântico, fazer toda espécie de choradeiras. E, na história do pranto romântico universal, esse local ficou marcado de um modo especial.

Com isso se fecha o ciclo da história do Castelo de Vincennes, assim descrita em linhas muito gerais no “Guide Vert”. Passemos agora a analisar as fotografias.

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1979)

 

 

1) Guide Vert Paris. Michelin e Cia. França. 1978.

2) Sèvres, cidade situada às margens do Sena, no subúrbio sudoeste de Paris.

3) Louis Antoine Henri de Bourbon-Condé.

Silêncios e implicitudes

Em minhas mãos, emprestado por um amigo, tive um disco cuja ilustração da capa me pareceu extremamente sugestiva: era um clássico jardim francês, provavelmente de Versailles, iluminado por um brilho de luar mirífico, um luar não apenas prateado, mas lilás, como os mais entusiastas das refulgências da lua não saberiam pintar.

O dono do disco levou-o consigo. Na minha má memória procurei conservar particularidades daquela gravura que tanto me impressionara, pois sentia em mim que, na recordação daqueles detalhes, qualquer coisa se moveria e cresceria no meu espírito. Era a implicitude de algo que estava em silêncio há muito tempo em minha alma e que em certo momento eu conseguiria explicitar, talvez de modo ainda incompleto.

O que seria? O que me dizia aquele jardim, agora melancólico, e entretanto mais belo do que belo fora na época áurea de Versailles? Dir-se-ia que o Rei Luís XVI há pouco o deixou para nunca mais retornar, sendo levado preso a Paris. Como estaria o palácio no seu interior, quando seus jardins se achavam naquele estado?

De cogitações dessas, que não são diretamente lógicas, nasceu em meu espírito uma espécie de parábola, que não pretendo de nenhum modo ter qualquer valor literário. Mas, seria algo assim…

Imaginemos a primeira noite de Versailles após a saída de Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e do resto da corte. O palácio está fechado, alguns de seus salões ainda em ordem, outros desarrumados, revelando as marcas de uma depredação levada a cabo pelos agitadores da Revolução Francesa. A desolação reina ali dentro, enquanto lá fora os raios de um lindo luar deitam suas cintilações sobre os arvoredos e flores de um parque extraordinário, ainda intacto.

De vez em quando, num ponto qualquer do castelo se ouve o bater de portas e janelas tocadas pelo vento, para em seguida tudo imergir num silêncio como nunca houvera em Versailles, desde a sua construção até aquele momento.

Imaginemos que, nesse cenário de melancolia e abandono, ainda transitava um casal de pequenos nobres que prestavam serviços ao rei. Por razões de ofício, ali permaneceram, recompondo o que fosse possível naquela grande desordem. Terminado o que podiam fazer, eles se retiram e atravessam a célebre “Galerie des Glaces” — a Galeria dos Espelhos —  de Versailles onde, para a surpresa deles, encontram outra pessoa. É um dos músicos do palácio que, já nostálgico, antes de se retirar para sempre dali, toca num cravo uma última melodia, digamos um último minueto.

O casal se detém diante daquela cena, na galeria iluminada apenas pelo luar que atravessa as amplas janelas. Emocionados, esposo e esposa começam a dançar aos acentos da música. Eles dançam o último minueto, o músico fecha o cravo e os últimos sons de Versailles, nos seus dias de glória, se extinguem.

Na consideração desse último minueto dançado em Versailles, disto que não é senão uma parábola — pois não há notícia de que esse fato tenha jamais acontecido —, pergunto eu: é verdade ou não que se pode sentir mais diretamente o que desapareceu com o fim do “Ancien Régime”, do que no-lo diz uma narração histórica inventariando e descrevendo todos os fatos como na realidade se passaram?

Ao contrário do que talvez pensassem certos espíritos muito doutos, cuido eu que o homem capaz de imaginar uma parábola como essa não é um fantasioso. Antes, compreendeu ele um aspecto da realidade muito difícil de explicitar, de exprimir e de avaliar razoável e retamente, mas que tem seu papel na descrição, no estudo e na ponderação da realidade total.

Essa parábola nasceu depois de longos silêncios e de implicitudes fecundas as quais, tomadas de dentro de minha alma como o mel de dentro do favo, veio à luz do dia e se tornou descrição: o último minueto em Versailles. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/12/1990)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)

A sede de admiração

Conforme o pensamento de Dr. Plinio, quando o homem dirige seus anelos para uma ordem de coisas superior à terrena, onde tudo lhe fala da perfeição absoluta do Criador, caminha ele pelas vias da admiração, ao longo da qual tornar-se-á uma grande alma.

 

A partir de qualquer ser possível, podemos imaginar um ser parecido, naquela linha, mas de uma perfeição maior.

Suponhamos um ser dos mais modestos, uma formiga, a propósito da qual nos é dado pensar na formiga perfeita, descartando o que ela tem de feio e analisando apenas os seus aspectos bons e até bonitos. Seria então a arqui-formiga, a formiga obra-de-arte, a formiga-tesouro, que poderia ser representada num diadema ou numa coroa.

Na verdade, a perfeição pode ser considerada em dois níveis: no primeiro, o ser, mesmo com seus defeitos, é levado ao pináculo do que ele pode atingir; no segundo, ele é despido de suas imperfeições e galgado a um superior grau de maravilhamento.

O homem tende a conceber a perfeição absoluta

Por detrás dessa noção se percebe a tendência do homem para o Paraíso, para o Céu, que o leva a conceber o mais perfeito de cada ser e, em última análise, a ideia de perfeição absoluta, que é Deus.

Esta inclinação, por outro lado, faz com que o homem procure também conceber nesta Terra uma série de coisas “paradisáveis”, não com a perfeição absoluta de Deus, mas toda a perfeição de que são capazes. Portanto, quando possui certa elevação de espírito e amor ao Criador, o homem se põe a conceber as coisas com esses vários graus de pulcritude, perfeição e excelência, e estas produzem nele o que em francês se diria um “chatouillement”, uma impressão deleitosa.

Creio que todo homem tem essa tendência, que no período da infância se traduz por um maravilhamento diante das coisas mais diversas. Digamos, quando a criança está numa fazenda e observa o panorama campestre à sua frente, com um rio cujas águas produzem um espelhamento do céu e emitem cores muito bonitas, ela se encanta de modo superlativo com aquilo.

Aspectos maravilhosos da Ásia

É interessante notar que, de certa forma, esse mundo maravilhoso se apresenta em muitos aspectos da Ásia, considerada quer como obra de Deus, quer dos homens. Percebe-se ter havido ali almas que, em determinado momento, pararam, pensaram e admiraram algo da infinita perfeição de Deus e, em seguida, cantaram, musicaram e esculpiram essas admirações, expressando-as em ritos religiosos, danças, palácios, tecidos, porcelanas e outras obras do gênero.

Voôs da pulcritude na Civilização Cristã

E teríamos, assim também, a ideia que orientou as almas a realizarem os esplendores da Civilização Cristã. De fato, na Cristandade ocidental e européia, ao lado de belezas como o castelo feudal, surgiram pequenas populações modestas mas encantadoras, cujas casas eram adornadas com bom gosto e alegria, os vasos de flores colorindo os beirais das janelas, terreiros bem cuidados onde criavam ovelhas e outros animais domésticos, junto com a pocilga dos leitões e, portanto, admitindo um convívio com o prosaico e menos encantador.

Como não nos lembrarmos das aldeias alemãs, com suas características habitações no estilo germânico, no interior das quais havia sempre um forno aceso onde se coziam pães deliciosos, e a lareira fumegante, junto à qual a família reunida entoava festivas canções.

Ou seja, ombreando com monumentos magníficos, havia uma arte popular muito bonita, constituindo com aqueles um mundo contínuo, sem monstruosidades, que ia desde o prosaico do terra-a-terra, até o alto das torres do velho castelo medieval.

E a Civilização Cristã produziu isso de próprio: o castelão e seus convivas eram como as estrelas do céu para o camponês que vivia em torno do castelo. Existia um tal relacionamento entre eles que algo do brilho da vida dos primeiros fazia permear o maravilhoso para o ambiente do aldeão. Essa não é uma afirmação gratuita. Os dados relativos a esse tema são tão abundantes que se poderia fazer, não um álbum, mas uma biblioteca de fotografias sobre as condições do povo na tradição medieval, apenas para se compreender as torrentes de maravilhas que a vida dos superiores proporcionava à existência dos inferiores.

Almas especialmente sedentas de arquetipias

Aliás, tenho a impressão — e o digo como opinião pessoal — de que nos séculos de Civilização Cristã, mais ou menos em todos os ambientes, Deus suscitou almas especialmente sedentas de perfeição, nos vários patamares sobre os quais acima falamos. E, talvez sem perceberem, impulsionaram esse desejo para frente, transmitiram-no às gerações seguintes, não só formando pessoas, mas criando costumes cuja importância, nesse campo, é tal que não se pode aquilitá-la em toda a sua medida.

Ousaria dizer mais. Creio que o primeiro homem a cantar uma bela canção popular, fazendo com que fosse entoada pelos demais habitantes e se tornasse um emblema daquela região; ou o primeiro homem que resolveu colocar um pote de gerânios na frente de sua casa para enfeitá-la, com o desejo de oferecer a quem o admirasse, a carícia desse convite para elevar suas vistas a uma esfera mais alta — esses pioneiros desempenharam, na ordem natural, um papel semelhante ao de um profeta na ordem sobrenatural. Nesse sentido de que apontaram aos outros o caminho da perfeição e da pulcritude que conduz à beleza absoluta, que é Deus.

Um perigo a se evitar

O escolho a se evitar nessa tendência para o maravilhoso perfeito é de se deixar atrair e dominar pelos deleites que a admiração pode produzir em nós. Pois, não raro, o admirável é delicioso. O indivíduo sente-se agradado no exercício de seu intelecto admirando algo, mas também pode sentir uma delícia física, como, por exemplo, quando ouve uma bela música. É possível que, na convergência dessas duas formas de sensação prazeirosa ele seja tentado a preferir apenas o gosto físico. Cedendo a essa tentação, começa a decadência, e ele passará a procurar somente as delícias palpáveis, desprezando as delícias “alpinísticas” do pensamento.

Chegará o dia em que esse indivíduo será dominado pela preguiça de empreender qualquer voo de espírito, e deixará o tempo se esvair como a areia escorre na ampulheta. Seu único trabalho será o de inverter a posição dela e deixar o pó cair novamente. Pior. Ao cabo de alguns anos, o homem que morou no palácio e nos parques da admiração, começa a olhá-la como inimiga. Porque se ele quiser voltar ao palácios e aos parques, terá de se esforçar. E tudo quanto dele exige força é seu inimigo. Assim ele naufraga na vida de delícia.

Alcançando o ponto máximo da admiração

Pelo contrário, à medida que o homem progride na admiração autêntica, no fundo de seu horizonte vai tomando corpo algo novo que é o ponto máximo do que ele admira e com o qual nunca sonhou. À força de se encantar com as coisas intermediárias, começa a se delinear para ele o objeto supremo da sua admiração. Assim, vai criando uma série de pontos de atração pinacular, os quais constituem para ele como que um Céu nesta Terra.

Se ele souber vencer os apelos do delicioso e viver para a admiração, encontrará o caminho a seguir para se tornar uma grande alma. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 4/6/1994)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)

 

A prece dos fortes

No dia 7 de outubro celebra-se a festa de Nossa Senhora do Rosário, estabelecida pelo Papa São Pio V a fim de manifestar a jubilosa gratidão da Igreja para com a Santíssima Virgem, cuja solícita  intercessão determinou a vitória da causa católica na batalha de Lepanto.

Ardoroso devoto do santo Rosário, por ele rezado diariamente, Dr. Plinio não perdia oportunidade de enaltecer as excelências dessa prática mariana, sendo-lhe — como afirmava — “motivo de sumo agrado” recomendá-la e incentivá-la entre seus filhos espirituais. Nesse intuito, fazia-lhes compreender como o Rosário “ocupa privilegiadíssimo papel na história da piedade católica. Em primeiro lugar, porque une o fiel a Nossa Senhora, e atrai para ele toda sorte de graças celestiais. Em segundo lugar, porque afugenta o demônio. Alguém que se sinta tentado, tome fervorosamente o Terço em suas mãos, e ver-se-á forte contra a investida do inimigo de nossas almas.

“Excelente meio de venerar a Mãe de Deus, é incalculável a torrente de bênçãos que a recitação do Rosário efundiu sobre a Cristandade. Por isso, Papas e autoridades eclesiásticas não se cansam de elogiá-lo. Se tal não bastasse, a Santíssima Virgem, querendo Ela mesma incentivar essa inestimável devoção, mais de uma vez apareceu trazendo em suas mãos virginais o piedoso instrumento. De modo particular, nas aparições de Fátima, em Portugal, quando recomendou aos homens, com tocante insistência, a recitação diária do Terço. Além disso, a Igreja enriqueceu o Rosário com muitos privilégios e indulgências, inclusive plenárias, de maneira a fazer dele um verdadeiro tesouros de bênçãos inapreciáveis.

“A recitação do Rosário se dilatou de tal maneira que, durante muito tempo, identificou-se com a piedade católica: uma e outro eram a mesma coisa. Fosse nos atos cotidianos da vida espiritual, fosse nas festas e celebrações de maior significado, o Rosário — ou o Terço — sempre esteve presente como expressão do fervor das almas devotas.

“São Domingos recebeu da Rainha do Céu este mesmo Rosário cuja forma hoje conhecemos: começando pelo Crucifixo, que devemos oscular pedindo à Mãe de Deus que seja nossa intermediária e apresente a seu Filho nossas orações; em seguida, três Ave-marias, um Glória, e depois as cinco dezenas em que meditamos nos principais Mistérios da vida de Jesus e de Maria Santíssima — Gozosos, [Luminosos(1)], Dolorosos e Gloriosos.

“Ainda que rezado por almas mais frágeis, o Rosário é a prece dos fortes, é a súplica dos batalhadores, porque é um conjunto de orações de tal eficácia que faz avançar o bem e recuar o mal. A par das riquezas espirituais que encerra, temos a pluralidade dos feitios e coloridos com os quais é utilizado: rosários pequenos, graciosos, delicados, para crianças de trato; modestos e rústicos, mas fortes, dedilhados por mãos vigorosas que passam sobre aquelas contas;sério, varonil;rosários de princesas, de rainhas, lavorados como verdadeiras jóias, preciosos como esses que pendem das mãos das imagens de Nossa Senhora. Todos nos fazem ver algo da suavidade e da bondade régias de Maria, protetora dos débeis, amparo dos fortes, como foi o próprio São Domingos, enfrentando e vencendo com o Rosário a heresia albigense.”

E após recomendar com incansável empenho a recitação do santo Rosário, necessária aos fiéis de todos os tempos, Dr. Plinio ainda oferecia este tocante conselho: “Nunca nos separemos do Terço. Que ele esteja sempre junto a nós, em todos os momentos: quando dormimos, quando descansamos, quando estivermos lendo ou fazendo toda e qualquer coisa. Jamais o larguemos. E quando nossas mãos não puderem mais nem se abrir nem se fechar, mas forem fechadas por outros para a nossa última atitude de oração, que o Rosário esteja entrelaçado em nossos dedos. De sorte que, chegado o momento da grandiosa Ressurreição dos mortos e nosso corpo recobrar vida, nosso primeiro gesto possa ser o de oscular o Terço que encontraremos cingidos às nossas mãos…”

 

Plinio Corrêa de Oliveria

1) Dr. Plinio faleceu em 1995, antes de o Papa João Paulo II enriquecer o Rosário com os Mistérios de Luz, na sua Carta Rosarium Virginis Mariae. Motivo pelo qual acrescentamos os mesmos entre colchetes, para o presente comentário adquirir ainda mais atualidade.

Idealismo ou fruição da vida?

“Se alguém quer vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá; e quem perder sua vida por causa de Mim, a encontrará” (Mt 16,24-25).
Dr. Plinio sempre teve vincado em sua alma este ensinamento do Divino Mestre, e continuamente admoestava seus discípulos a serem fiéis no cumprimento deste sublime conselho evangélico.

 

Muitas pessoas têm a ideia de que suas vidas lhes foram dadas para elas mesmas, a fim de viverem confinadas dentro de seus próprios interesses e sem noção alguma do que seja viver em função de uma causa.

O fato de a pessoa se contentar inteiramente em viver sem dedicar-se a uma causa, e nem mesmo ter ideia do que seja uma causa, cria a impossibilidade de ela possuir uma alta ideia de causa. Porque não tem ideia de algo quem não compreende nem sequer o que esse algo possa ser. Por exemplo, um cego de nascença não pode ter ideia do valor de uma cor.

Choque contra o primeiro Mandamento

O indivíduo faz este raciocínio: “Eu existo. Deus de um modo ou de outro me criou, estou aqui. Para a vida ter razão de ser, é preciso que ela me proporcione as fruições que são próprias a uma vida. Se essas fruições não me forem concedidas, eu não vivi”.

A razão da vida dele é fruir. Essa ideia se choca evidentemente com o primeiro Mandamento da Lei de Deus, que é amá-Lo sobre todas as coisas.

Mas há um equívoco, um erro, dentro disso, que funciona da seguinte maneira: “Eu sirvo a Deus não fazendo o que Ele proibiu. Dos Mandamentos, três são referentes a Deus, um manda honrar pai e mãe e os outros são negativos: não pode isso, não pode aquilo… uma obrigação e seis recusas. Se eu me abstiver desses seis atos, implicitamente terei praticado os três primeiros. Portanto, o campo de batalha é esse. Posso praticar todos os Mandamentos sem pensar nos três que se referem a Deus. Então posso reduzir ao seguinte: se eu for bom para os outros, não cometer pecado contra eles, terei dado a Deus aquilo que Ele mandou. Fora disso, o próprio Deus já dispôs as coisas para que houvesse a fruição. De maneira que eu fruo, porque tudo que não seja fruição não faz parte da finalidade da vida”.

E aqui está o erro e a falta de noção do que é “causa”.

Tese, ideal e causa

Vejamos o que significa causa. Causa não é apenas um ideal, mas um ideal posto em luta, em choque, a favor do qual trata-se de dedicar e que pode trazer consequências gravíssimas, dependendo das atitudes tomadas. Há diferenças entre tese, ideal e causa.

Tese é uma certeza que se tem e se demonstra, mas, tomada em abstrato, não traz nenhum engajamento de dever. Por exemplo, alguém sustenta que se deve dormir cedo, pois isso faz muito bem à saúde, e alega diversas razões benéficas, com base na Medicina, para provar sua tese. Enfim, cientificamente compreendo que isso possa ser assim, mas isso é uma tese.

Ideal já é uma tese que desperta na pessoa uma série de atitudes, de entusiasmos, de enlevos etc., e convida para uma dedicação.

Causa é o ideal que convida não só para a dedicação, mas para o sacrifício, para o esforço.

Por exemplo, a Doutrina Católica tem veracidade; é uma tese, ou seja, isso pode ser demonstrado. Ela não é apenas um ideal, mas o ideal. Mas ela é uma causa. Quer dizer, nós devemos vê-la como sendo hoje continuamente negada, contestada, conspurcada etc., ou em perigo de o ser. Por causa disso, nossa posição deve ser de defendê-la, dedicarmo-nos a ela. E isso é um dos aspectos distintivos da Igreja: ser militante.

Portanto, isso supõe as seguintes conclusões: a pessoa nasceu não para fruir, exceto no conhecimento dessa causa. Porque o resto é um fruir completamente secundário, não vale nada.

E nenhum ideal é digno desse nome enquanto não tenha uma relação, não encontre seu mais alto significado no ideal católico.

Colocar o centro de gravidade na causa

Explico melhor o que estava dizendo anteriormente.

A atitude privatista: “Tal coisa não é pecado, é um direito meu que posso eventualmente arguir até contra Deus — porque, no fundo, chega até lá! —, ou, pelo menos, Ele pode desejar muito que eu renuncie a tal coisa, mas não deu ordem. Logo, eu me salvo não dando essa coisa para Ele”. Essa posição torna impossível compreender inteiramente o significado do ideal católico.

Poder-se-ia perguntar se o homem que cuida demais de seu interesse privado não acaba arruinado. E a resposta é: Se está entregue às coisas do mundo, não; se ele se dedica a Deus, sim! Para um homem mundano, que cuida de seu próprio interesse de modo frenético, a vida pode lhe trazer desastres, por disposições da Providência. Mas alguém que serve a Deus e se põe muito a cuidar de seu interesse particular, está selado de antemão para a ruína.

Toda a questão é de “centro de gravidade”. A pessoa deve ter a coragem de colocar o seu “centro de gravidade” na causa. Esse é o problema. Enquanto não fizer isso, à medida que o indivíduo vai fazendo renúncias, ele vai se agarrando a fórmulas cada vez mais tênues e veladas de coisas em que ele possa continuar a ser o “centro de gravidade” do que ele executa. E o grande problema é deslocar de dentro de si o seu “centro de gravidade”. No fundo, é o gosto de sentir-se a si próprio. Por causa disso, acabam surgindo nos religiosos e em outras pessoas que se dedicam a Deus, manifestações as mais desconcertantes.

Portanto, trata-se de pedir a Nossa Senhora que  o nosso “centro de gravidade” seja posto em Deus e que o apego a si próprio deixe de ser o centro da vida.

Um religioso é uma pessoa que se deu a Deus nesse “centro de gravidade”, e ficou religioso para conseguir, a rogos de Maria, que o torne completamente d’Ele. Então todo o resto — consagrar‑se só às coisas divinas, obedecer ao superior etc. — são circunstâncias favoráveis para isso, mas não são o “clou”(1) da questão.

O verdadeiro ideal é como a luz que ilumina as trevas da vida

E quando a pessoa é chamada a dedicar-se a um ideal, ela foi destacada por Deus da condição de uma pessoa privada, destacada do “privatum” para o “publicum”. Ela se deu à causa, passa a ser uma pessoa pública, a ter estatuto público nesta ordem de coisas.

Deus faz a essa pessoa uma promessa implícita na vocação: “Se tu aceitares isso, eu falarei contigo como falava com Adão no Paraíso”. É uma analogia desse gênero. Deus se comunica com a alma, dando-lhe paz, alegria etc. Entretanto, fazemos isso não meramente para conseguir a paz, a alegria, mas para estar unidos a Nossa Senhora, e por meio d’Ela unirmo-nos a Ele.

Mas pode acontecer que o indivíduo restrinja o domínio do “privatum” a uma minúscula “ilha”. Isso tem seu mérito, é verdade. Mas naquela “ilha” ele é um Robinson Crusoé sem Sexta‑Feira, e acaba tendo um apego enorme. E há mais distância entre o homem que renuncia à “ilha do apego” e o que mora na “ilha” apegado, do que entre o homem que renuncia ao mundo para ir à “ilha”.

Vamos imaginar o seguinte processo: Um homem tem o mundo inteiro, renuncia a ele e vai para a “ilha” de uma vida religiosa. Depois, renuncia à sua própria “ilha” e se dá inteiramente a Deus. O segundo lance é maior do que o primeiro!

Não pode haver situação mais cheia de ânimo, de maior “lumen”, do que a de uma pessoa que resolve levar seu ideal até às últimas consequências, ainda que tenha de sofrer muito sacrifício para a realização do seu ideal. Porque o ideal em si, a presença dele, torna tudo leve, é a luz que ilumina todas as coisas do mundo.

Pode-se tomar o início do Evangelho de São João(2) e aplicá-lo ao ideal. Ele se aplica ao pé da letra, de tal maneira que Nosso Senhor Jesus Cristo é a personificação de todos os ideais santos, e todo ideal santo é um reflexo do Divino Salvador. Pode-se dizer que o ideal verdadeiro é a luz que brilha nas trevas da vida humana, e as trevas não conseguem abarcar esse ideal enquanto a pessoa o tem, enquanto está unido a ele.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 29/3/1974 e 22/3/1980)

 

1) Do francês: prego; o ponto alto. Neste segundo sentido, indica o ponto central, o aspecto mais importante de algo.

2) “A luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la.” (Jo 1,5)

Santa Margarida Maria – A hora da misericórdia voltará

A festa de Santa Margarida Maria Alacoque, que a Igreja Universal celebra hoje, trouxe-me à memória um fato antigo, que não é sem interesse para os dias que correm.

Quando viveu na França a humilde visitandina à qual o Sagrado Coração de Jesus fez suas tão suaves confidências, reinava Luís XIV, que a admiração universal consagrou com o título de “Roi-Soleil”.

Este epíteto correspondia à realidade. Dizia Mazzarino, que vivera na sua mais absoluta intimidade, que havia nele estofo para cinco reis. Tanto do ponto de vista físico como moral, representava Luís XIV o tipo clássico daqueles reis de fantasia, com que certos contos costumam deslumbrar as imaginações infantis.

De uma formosura viril e majestosa, acentuada por uma perfeita nobreza de porte e de gestos, e por uma indumentária admiravelmente escolhida, foi ele o modelo supremo dos gentis-homens de seu tempo. As qualidades de inteligência e caráter estavam à altura desse físico magnífico. Sua inteligência era clara, vasta, metódica e idealmente equilibrada. Sua vontade dotada de tal força imperativa, que dobrava quaisquer obstáculos. De um soberano domínio sobre si, não se permitia ele em manifestações extremadas de cólera, de prazer ou de dor. Pelo contrário, todos os acontecimentos o encontravam sempre igualmente sereno, igualmente grande, igualmente sobranceiro. De tal maneira sua índole se havia conformado com as obrigações de “métier” de Rei, que o protocolo era, nele, como que conatural, e até mesmo as suas ações as mais triviais denotavam a alta noção que ele tinha de sua dignidade e de seus deveres.

* * *

Quando Deus dá a alguém qualidades naturais singularíssimas, de qualquer natureza que sejam, impõe-lhe implicitamente responsabilidades onerosas.

Conta-se que os PP. Jesuítas, que foram educadores de Voltaire, impressionados com a inteligência do menino, costumavam dizer que ele seria ou um Santo, ou um demônio.

Luís XIV era uma dessas almas privilegiadas que Deus chama a grandes realizações, e que, por isso mesmo, estão na eminência de descambar pelos mais profundos abismos, caso não correspondam à própria vocação. Se ele tivesse querido ser um novo São Luís, é provável que a Revolução Francesa não tivesse explodido, que a pseudo-reforma protestante tivesse sofrido desastres irreparáveis, e que o curso da História, em lugar de correr pelos precipícios por onde vai, tivesse assumido orientação inteiramente diversa.

Mas Luís XIV não quis ser um novo São Luís. Sensual, ávido de prazeres, ambicioso e vaidoso em extremo, sacrificou à sua lascívia e ao que ele supunha ser sua glória, tempo, recursos e prestígio que Deus lhe havia dado para fim inteiramente diverso. Depravando o Reino por seu mau exemplo, provocando guerras com o único intuito de dilatar seus Estados, desunindo entre si as potências católicas então ameaçadas pelo alastramento do protestantismo, e aliando-se com os próprios muçulmanos contra o Santo Império, faltou ele a seus mais elementares deveres de Rei, e mereceu a censura, em seu tempo, de todos os franceses verdadeiramente católicos mesmo entre aqueles que lhe eram mais fielmente devotados.

Manda, entretanto, a justiça que se acrescente que a vida do grande Rei teve altos e baixos, e que, se em certo sentido ele faltou gravemente a seus deveres para com a Igreja, em outro sentido, lhe prestou assinalados serviços, entre os quais figura com destaque a sapientíssima revogação do Edito de Nantes.

Não obstante tudo isto, o certo é que o Rei não desempenhava aquela missão providencial à qual, evidentemente, fora chamado por Deus.

* * *

Santa Margarida Maria Alacoque 

Intervém aí a humilde Visitandina. Em revelação, o Divino Redentor mandou-lhe dizer ao Rei que se consagrasse, e bem como o Reino, ao Sagrado Coração. A comunicação foi feita em tom imperativo, e deixava ver claramente que a recusa do monarca acarretaria para ele e para a França os mais severos sofrimentos.

Evidentemente, o Sagrado Coração de Jesus não desejava de Luís XIV apenas uma consagração “pro forma”, mas uma consagração real, que implicasse na renúncia a todos os pecados e todos os erros do Rei.

Por meio de uma pessoa da nobreza, com quem tinha relações, Santa Margarida Maria fez chegar a comunicação a Luís XIV, que, entretanto, não lhe deu importância, e a consagração não foi efetuada.

Recusada assim essa providencial fonte de graças, o Reino foi descambando cada vez mais pelos abismos da impiedade e da libertinagem, até que o extravasamento destes males, isto é a Revolução Francesa, veio lançar por terra o trono dos Bourbons, e atear pelo mundo inteiro o facho diabólico e incendiário do espírito de rebeldia.

Entretanto, não se sabe se a recordação do recado de Santa Margarida Maria perdurou na família de Bourbon, ou se o fato que passamos a narrar foi devido a um mero movimento de piedade espontânea de Luís XVI. O que, de qualquer modo, é certo, é que, entre os papéis do Rei, encontrados em sua miserável prisão do Templo, se achou uma nota em que o desditoso soberano prometia a Deus que se consagraria, e a toda a França, solenemente, ao Coração de Jesus, o que desde logo, em forma privada, ele fazia no cárcere. Assim, dizia ele, seria de esperar que o Coração de Jesus arrancasse a França aos horrores da Revolução.

O piedoso e infeliz monarca fez, pois, no cárcere, o ato de piedade que seu poderoso antecessor se recusara a fazer nos esplendores de Versailles. Mas ao que parece a hora da misericórdia já tinha passado, e já era tarde para deter o curso da justiça divina.

Luiz XVI, pessoalmente, teve sua recompensa com a graça de morrer de modo edificante, chegando alguns a afirmar que foi mártir. Conta-se que, ao subir ao patíbulo, o carrasco quis amarrar suas mãos com cordas, ao que o Rei se recusou terminantemente, originando-se daí um ligeiro início de luta física entre ambos. O Rei voltou-se, então, para seu confessor, perguntando-lhe o que dizia a isto. A resposta do sacerdote foi pronta: “Se Vossa Majestade se deixar amarrar, sua morte terá mais um traço de analogia com a do Salvador”. Imediatamente, a resistência da vítima cessou. Daí a pouco, sua cabeça tombava sob a lâmina da guilhotina, e o Sacerdote que o acompanhava exclamava: “Filho de São Luiz, subi ao Céu”.

* * *

É possível, realmente, que a hora da misericórdia tivesse passado. Não porém, de modo definitivo. A França tem tido por demais Santos, de lá para cá, para que se afirme que a hora da misericórdia de Deus passou para ela. Hoje mesmo, quando a França está imersa em luto profundo, e uma metade de seus filhos já não reconhece a outra, na desolação do panorama contemporâneo, se pode afirmar entretanto que há Santos. Santos verdadeiros. Santos autênticos, vivendo na penumbra em território francês, e preparando por suas penitências, por suas orações, por seu trabalho, a grande França de amanhã, que não será nem a França liberal de ontem, nem a França totalitária de Vichy, mas a França católica, de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Enquanto na Europa os legisladores reformam  as instituições, os banqueiros reformam a economia ao sabor das heresias de hoje, na penumbra os Santos reformam as almas e, pela reforma autêntica da almas, destruirão a falsa reforma das instituições e da economia.

Plinio Correa de Oliveira, (in Legionário, N.º 423, 20 de outubro de 1940)