Abraão e Isaac

Para a alma que confia na Providência, as grandes esperas são o prelúdio dos grandes dons de Deus, o prenúncio da realização das grandes promessas que lhe fez o Altíssimo. Disso nos é exemplo o patriarca Abraão: quando já centenário, Deus lhe prometeu uma descendência incontável, da qual brotaria o Messias. Nasce-lhe um filho, e o Senhor determina que o sacrifique. Abraão confia. E na hora do seu supremo heroísmo, depois de tão longa espera, recebe afinal a certeza do juramento divino: “Multiplicarei a tua posteridade como as estrelas do céu e como as areias na praia do mar” (Gn 22, 17).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 23/3/70 e 17/5/1972)

Rumo as maiores belezas

Nunca nos cansamos de considerar como Deus é grande em suas obras, grande na sua Igreja, grande nas nações que existem dentro dessa Igreja. Como Ele é magnífico, e que realizações magníficas existiriam no mundo se todos os povos correspondessem às infinitas perfeições divinas que foram chamados a refletir! Que maravilha seria a face da Terra se cada país, cada indivíduo, fosse tudo aquilo que deveria ser, e a Santa Igreja pudesse desdobrar seus fulgores, de meio-dia em meio dia, sem nunca anoitecer!

Esse mundo seria possível ou é um sonho? Se toda essa multidão de homens tivesse correspondido à graça, como encontraríamos hoje a fisionomia do universo terreno? É-nos possível, de leve ao menos, conceber tamanha beleza?

Nisto penso amiudadas vezes quando contemplo monumentos em estilo gótico. Os gregos e romanos alcançaram um auge ao construir seus templos imponentes, seus arcos e colunas célebres. Sim, atingiram um ápice, porém viram surgir algo mais elevado nos horizontes da civilização ocidental ao reluzir o esplendor dos vitrais, a magnitude das catedrais, o arroubo dos sons dos órgãos, do aroma do incenso, da liturgia católica, das pompas temporais desenroladas nos edifícios sagrados, templos da Igreja Católica, nas grandes ocasiões da Cristandade!

Pergunto-me, mesmo, se Homero, Cipião, Marco Aurélio ou então o próprio Constantino entenderiam toda a magnificência do que veio depois deles, engendrado pela alma católica da Idade Média. Creio que não. Os da Antiguidade não compreenderiam aquilo que, durante séculos, comoveu o coração dos reis e dos simples, encantou a qualquer homem e mulher, ricos e pobres, camponeses que vinham das hortas em torno das cidades medievais, para ver e admirar, por exemplo, o relógio da torre da igreja ou da municipalidade dar as horas, e toda uma oficina de figuras mecânicas se deslocar e bater os sinos, enquanto os pombos esvoaçavam… Isso enchia a alma dos simples como as dos maiores.

Povos houve, naquela quadra histórica, que corresponderam à graça, disseram “sim” ao chamado divino; houve povos nos quais a distribuição da Eucaristia se fez abundante e bem acolhida; houve povos que se constituíram em nações da Civilização Cristã, e nessas, tais maravilhas se ergueram.

E quando analiso a história do estilo gótico, vendo sua última expressão que é o “flamboyant”, tão risonho, tão triunfal, tão seguro de sua grandeza, tenho impressão de um itinerário terminado. Atingiu, ele também, o seu ápice, e ali ficou. Não esgotado de cansaço, nem de moleza ou extenuação. É como um extraordinário cantor cuja laringe deu tudo o que poderia ter dado. Diante dele fica-se extasiado, admirado, mas entende-se que aquela música acabou, a partitura está cantada. O que virá depois?

Provavelmente, será gerado pela fé um estilo ainda superior, mais belo, mais magnífico. Pois, acreditamos, está na ordem das coisas postas por Deus que o bem prepara o caminho para um bem maior, a beleza prepara as vias para uma beleza mais requintada, e a verdade, para uma verdade mais profunda ou mais alta. É este o itinerário das coisas de Deus.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Perfeita humildade

Alma profundamente sapiencial, Maria Santíssima é o vaso de eleição no qual pousou o Espírito Santo, para nele gerar Nosso Senhor Jesus Cristo. E o único hino que conhecemos como proferido por Nossa Senhora em sua vida terrena — o Magnificat —é uma verdadeira maravilha de sabedoria: “Minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus meu Criador; porque considerou  a humildade de sua serva, por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada”.

É a escrava que se encanta de ser escrava, de ser pequena, de ver como Deus é infinitamente superior a Ela, e do fundo de seu nada glorifica o Senhor. É o pequeno que reconhece, com agrado, a  sua posição. O escravo não tem direitos, e está colocado abaixo da condição comum dos homens. Pois bem, Nossa Senhora se proclama escrava de Nosso Senhor Jesus Cristo, precursora de todos  os escravos espirituais que Ela mesma iria ter ao longo dos séculos. É o modelo perfeito de humildade, que ama seu lugar inferior, adorando a grandeza que a eleva.

Plinio Corrêa de Oliveira

Oração para pedir a graça do holocausto incondicional

Concedei-nos, Mãe e Senhora nossa, que assim como o guerreiro não escolhe o teatro de batalha e está disposto a fazer, em qualquer campo, o holocausto de sua vida, assim também saibamos lutar contra os inimigos — velados ou declarados — de vosso Nome e da Santa Igreja, onde quer que sejamos mandados: tanto no anonimato quanto na glória, tanto no heroísmo invisível e como que impalpável da existência prosaica de todos os dias, quanto nos lances trágicos dos acontecimentos que vossa mensagem de Fátima prenuncia.

Essa graça nós Vo-la imploramos como favor do qual não somos dignos; e se não estremecemos diante de tudo o que ela significa, é que sabemos poder confiar, com confiança sem limites, no vosso Coração Imaculado, força dos fracos, esperança dos desvalidos, refúgio e consolação dulcíssima dos humildes. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta por Dr. Plinio na década de 1960)
Revista Dr Plinio 211 (Outubro de 2015)

Sagrado Coração de Jesus:: Desejo de admirar e contempla

Revelando aspectos íntimos de seu relacionamento com o Sagrado Coração de Jesus e com Maria Santíssima, Dr. Plinio manifesta o caráter anti-igualitário dessas devoções em sua alma e na de sua extremosa mãe.

 

Outro dia veio-me ao espírito a seguinte ideia: Há pessoas que, ao rezarem, têm toda a impressão de que estão falando com um Santo, ou com Nossa Senhora, ou com Nosso Senhor Jesus Cristo, e que eles estão ouvindo e considerando, como um de nós, o que dizem. Outras têm a impressão de que há um vidro entre elas e os Santos, e que não se podem pôr propriamente na presença deles.

Profunda humildade ao rezar a Nossa Senhora

Comigo dá-se uma coisa curiosa: sinto uma superioridade muito grande dos seres celestes. E com Nossa Senhora nem se fale! Eu A sinto como no alto de uma ogiva a uma distância colossal de mim, e que assim mesmo existe certo atrevimento de minha parte em me aproximar. Aquilo que São Luís Maria Grignion diz, “petit vermisseau et misérable pécheur”(1), é bem a impressão que eu tenho.

Estou certo de que Ela me ouve, mas numa impassibilidade de ícone, e aquilo que eu digo chega lá por um eco amortecido, fraco, distante. Maria Santíssima toma conhecimento completo, mas da parte d’Ela não procede nada para mim porque não sou digno disso. É a impressão. Eu sei, teologicamente, que não é assim, e rezo com a certeza de que não é, mas a impressão é esta.

Numa ou noutra rara ocasião tenho a sensação de que Nossa Senhora, daquela distância, sorri com uma afabilidade muito grande. Mas não sei bem se sou eu que subo ou Ela que baixa. Mas sinto que a distância diminui e é como se eu falasse muito de perto com Ela. Mas é de relance. Depois restabelece aquela distância…

Não é uma distância in oblíquo, mas como se houvesse um vidro grossíssimo entre a Santíssima Virgem e eu.

Contudo, gosto muito dessa distância, porque satisfaz o meu desejo de admirar e contemplar.

Alegria em sentir-se insignificante

A tendência de minha piedade é de imaginar Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus, Nossa Senhora, todos os Anjos e Santos enormes, com distância extraordinária, por assim dizer fabulosa. E, sentindo-me muito pequeno, de algum modo nessa separação sinto uma união. É o prazer de me sentir insignificante. Aquilo me enche de contentamento, de uma alegria, de uma dedicação, de espírito filial que corresponde a um modo de ser.

Sei, teologicamente, que não há essa distância. Ela é Mãe de misericórdia, e se eu tivesse uma dúvida neste ponto, me desintegrava na hora; então nada é nada na terra de ninguém. Mas, enfim, é o modo de ser de cada um.

Por exemplo, confiança. Quando eu falo da confiança, e até de senti-la, é como se partisse daquele alto nicho um verão suave, perfumado, mas a distância continua a mesma.

Isso pode ser visto de modos diferentes, mas creio que para mim, provavelmente, é uma via.

Tudo o que estou dizendo é muito natural, não tem nada de extraordinário, é comum. Mas outro dia eu estava rezando o Rosário e isso sobreveio assim: pela primeira vez ocorreu-me rezar os mistérios do Rosário como quem estivesse junto a Nossa Senhora, comentando com Ela o que eu pensava de cada um daqueles fatos que se passaram. E um pouco como quem pergunta o que Ela teria sentido naquela ocasião. Mas achei que essa era uma situação diferente das habituais. Rezei até muito bem o Rosário assim.

Digo isso para mostrar como é uma coisa individual, que não deve ser tomada como padrão.

Desde então tenho rezado o Rosário assim, com proveito. Neste caso, vem certa impressão de proximidade d’Ela, fazendo contraste com o que acabo de dizer.

A vida consiste em cumprir os desígnios de Deus

Um corolário saudável disso é a ideia preconcebida e preestabelecida de que Deus, Nossa Senhora têm o direito de nos tratar — se pudéssemos nos exprimir assim, sem blasfêmia — do modo mais “despótico” que se possa imaginar, permitindo que nos aconteçam as coisas aparentemente mais irracionais, mais arbitrárias e mais pungentes. Isso é inteiramente natural, porque corresponde a essa desproporção. Portanto, não temos que reclamar, nem estranhar, nem alegar direitos, nem nada disso.

Um aspecto que me impressionava em mamãe era notar como se davam os acontecimentos mais imprevistos e, debaixo de certo ponto de vista, mais ilógicos, e ela os tomava como se fossem a coisa mais natural do mundo.

Mamãe não tinha direitos a alegar perante Deus. Ele era Senhor dela, como de todas as criaturas, podendo fazer o que bem entendesse. Ela sabia que isso correspondia a desígnios de misericórdia d’Ele. Mas existe aquele mistério: Nosso Senhor Jesus Cristo pediu para se afastar o cálice d’Ele “se possível”. Ora, para Deus tudo é possível! É um mistério, porque Deus quis que o holocausto fosse até lá. E da parte do Divino Redentor, a plena submissão, como quem dissesse: “Diante de vossos desígnios absolutos, de vossos direitos, de vossa sabedoria Eu Me dobro. Dai-Me apenas forças”. Isso eu notava em Dona Lucilia muitíssimo.

Ela rezava com muito afeto, e sua devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora, era muito impregnada de ternura. Mas ela rezava com muito empenho quando queria obter as coisas. Entretanto se não as obtivesse, era com uma naturalidade, uma paz de alma, a maior do mundo!

Naquela fotografia em que mamãe tem aproximadamente 50 anos de idade, ela está cheia disso. Encontra-se na voragem da dor, mas não pergunta a Deus por quê. É assim e deve ser assim. Há um desígnio de Deus e a vida consiste em cumprir os desígnios de Deus. E, portanto, se é assim não se discute. O que é uma posição fundamentalmente anti-igualitária.

Estado de espírito de Dona Lucilia em relação a Deus

Mas eu tenho visto gente que é protuberantemente o contrário disso, e em quem percebo laivos de atitudes deste gênero: “Eu peço a Deus, mas Ele, lá nas coisas d’Ele, a mim não atende. Atende a todo mundo, mas não a mim. Ele comigo faz o contrário do que eu queria que acontecesse”.

Não era esse, absolutamente, o estado de espírito de Dona Lucilia. Esse estado de espírito de um terceiro em relação a Deus, que cobra, invectiva, alega direitos, não está naquela fotografia, em nada!

Mais ainda: no fundo, essa paz que vemos no Quadrinho(2), sob o qual se poderia escrever a frase: “Ite vita est”, é como quem diz: “Eu fiz a vontade d’Ele até o último elemento, bebi todo o cálice de fel, até a última gota. Mas está bebido, e agora chegou minha hora de ajudar os outros”.

Sem dúvida, uma das coisas mais tocantes para mim naquela fotografia, em que mamãe tem cerca de 50 anos, é essa resignação dela no meio da dor. Vê-se que ela não entende e há qualquer coisa de uma pergunta ansiosa: “Como será, por que será?”, mas sem o menor laivo de revolta, de inconformidade, nem nada. É como alguém que adora o mistério do sofrimento que está tendo.

Isso partia de uma ideia altíssima que mamãe tinha de Deus.

Aliás, uma coisa curiosa: ela nos ensinou o Pai-Nosso de um modo um pouquinho diferente da fórmula corrente. Não sei se no tempo dela se tinha introduzido, talvez no hábito brasileiro ou pelo menos de Pirassununga, um acréscimo que era: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje, Senhor…” Este “Senhor” não está na oração dominical. Durante algum tempo eu rezei o Pai-Nosso assim. Depois, por conformidade com a Igreja, suprimi o “Senhor”. Mas a minha alma se regozijava de poder dizer este “Senhor”. O “Senhor” calha ali com uma precisão, no ritmo da oração, muito bem. Suprimi, porque a Igreja ensina de um modo diferente. Quando mamãe rezava alto, conosco, nas Sextas-feiras Santas, não saía o “Senhor”. Eu acho que ela, em certo momento, se deu conta também e suprimiu.

Mas era a ideia do “Dominus” cheio de bondade, de misericórdia, de carinho, que estava no espírito dela. Ela tinha muito isso, mas muito!

Doçura dentro na majestade

No tocante ao meu relacionamento com Nosso Senhor, com Nossa Senhora, eu sempre tive e continuo a ter aquela certeza, que a graça de Genazzano(3) corroborou, de ser atendido diante de problemas que envolvem a Causa Católica. Por exemplo, quando recebi a graça de Genazzano, eu me lembro perfeitamente da impressão que tive de Nossa Senhora tomando aquela atitude, fazendo-me entender o que Ela quis que eu compreendesse. Ali sim, não tenho dúvida nenhuma de que foi uma graça, uma promessa.

Depois me contaram que o provincial dos agostinianos do Santuário, a quem haviam narrado o fato, disse que esse tipo de graça era característico da Mãe do Bom Conselho de Genazzano. Para mim, não tem dúvida nenhuma: Nossa Senhora me concedeu essa graça.

Lembro-me de que o quadro d’Ela como que se animou. Não tive nem um pouco a impressão de que Ela estivesse falando comigo. Mas o quadro como que adquiriu uma vida dulcíssima, revelando um interior d’Ela, mas com uma suavidade inexprimível. Porém, conservando sempre essa superioridade. De maneira que era um sorriso materno dentro do esplendor e da majestade.

Segundo meu modo de ser, essa doçura que se manifesta dentro da majestade é mais doce do que fora da majestade.

Naquele hino a Nossa Senhora do qual gosto muito, “Si quæris cœlum, anima, Mariæ nomen invoca…”, há uma estrofe que é assim: “Pelo nome d’Ela fogem as culpas e as trevas, as dores da doença e as úlceras. Aos vencidos se desatam os pés, e para os navegantes as águas se tornam mansas.”

Acho muito bonito! Aliás, toda essa cançãozinha é linda! “Se tu queres o Céu, ó alma, invoca o nome de Maria. Pois aos que invocam Nossa Senhora as portas do Céu se abrem”.

São grupos de quatro estrofes. É como se houvesse asteriscos entre elas:

“Glória a Maria, Filha do Padre e Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos, amém.”

“Pelo nome de Maria os Céus se alegram, os Infernos estremecem. O céu, a terra e os mares, o mundo inteiro se rejubila.”

Tem muita candura.

Por exemplo, estou falando disso, mas não se dissocia de Nossa Senhora no Céu, altíssima, puríssima e, por causa disso, exercendo sobre a Terra essa ação benfazeja, enorme! Não há mares, não há trevas, não há coisas que Ela não domine, em razão de ser tão boa e estar tão alta.

Sensibilidade eucarística diante do Santíssimo Sacramento exposto

Já minhas Comunhões não costumam ser sensíveis. Aliás, tenho, por assim dizer, mais sensibilidade eucarística quando estou diante do Santíssimo Sacramento exposto do que quando comungo.

Em geral, quando estou diante do Santíssimo Sacramento, fico muito, mas muito tocado. A noção da presença d’Ele me comove muito. Mas na Comunhão, paradoxalmente, de um modo habitual, menos sensível. O que predomina é a presença de um Visitante desmedidamente grande, a Quem se trata de pedir. Daí calhar inteiramente, no meu modo de ser, o método de Comunhão sugerido por São Luís Maria Grignion de Montfort: pedir que Nossa Senhora venha à minha alma para recebê-Lo. E Ele encontrando-A como dona desta casa e fazendo-Lhe as honras por mim, tenho então muito comprazimento. Donde dirigir a Ele, por meio d’Ela, os atos de adoração, reparação, ação de graças e petição. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/7/1985)
Revista Dr Plinio 211 (Outubro de 2015)

 

1) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

2) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base em uma das últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.

3) Ver Revista Dr. Plinio n. 21, p. 16-23.

Grandeza incomparável do sacrifício

Devido ao pecado original, o homem, mesmo inocente, tem necessidade de fazer sacrifício. E no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado, era preciso a ascese? Dr. Plinio julga que sim, pois seria um ato ordenativo do homem, em estado de prova.

 

Considerando o sacrifício na perspectiva da Doutrina Católica, parece-me que ele não tem o caráter de mera expiação, mas de um reconhecimento da supremacia de Deus, pelo fato de serem consumidas em honra d’Ele coisas que Ele mesmo deu ao homem, por onde este reconhece implicitamente que privar-se daquilo e dar ao Criador afirma a superioridade d’Ele em relação a todas as coisas.

Sacrifício de dedicação

Cornélio a Lápide(1) distingue o sacrifício de dedicação e de expiação, no Antigo Testamento.

Analisemos o que significa essa dedicação.

Uma criança pode ver, pendente numa árvore, uma fruta muito bonita; corre, apanha-a e a oferece ao pai ou à mãe. É propriamente um sacrifício de dedicação que a criança faz. Isso que parece muito razoável pode ser desdobrado em aspectos.

Um aspecto é: a criança renuncia à fruta para dar aos pais. O que significa essa renúncia? Há nisso um ato de ascese, mas não é a principal nota do ponto de vista da dedicação que se deve considerar. No homem nascido sem pecado original, essa ascese não pareceria necessária, porque o homem tinha um inteiro domínio de si mesmo. Portanto, vigorava a ideia de que aquela fruta tão excelente, melhor conviria a uma pessoa mais excelente. Representaria uma forma de justiça colher aquela fruta tão linda e dá-la a uma pessoa tão bela. Esta seria uma dedicação.

Creio que é esse o espírito com que muitas pessoas colhem flores para oferecer nos altares de Nossa Senhora. Por exemplo, ornar um altar para o “mês de Maria”: uma pessoa pode colocar nisso uma intenção de reparação, mas não é o intuito comum, e que esteja próxima e imediatamente na natureza do ato. O que está nisso é a noção de que à Santíssima Virgem, sendo a Flor da Criação, fica bem que as flores muito bonitas estejam postas junto a Ela, por assim dizer porque “similis simili gaudet”(2). Então, junto Àquela que poderia ser chamada, por algum lado, “Flor das flores” convém colocar flores.

Sacrifício de louvor

Entra também outro aspecto metafísico, que me parece mais bonito e mais importante, por onde há uma afirmação do Absoluto. Aquelas coisas são lindas, mas passageiras; e convém que elas, no que têm de passageiro e contingente, sejam oferecidas a Deus, que é eterno e Absoluto.

Essa destruição do transitório e do contingente em honra do eterno e do Absoluto fica meio implícita na natureza. E é uma grande verdade que o homem tem vontade de explicitar, e Deus deixa a cargo do homem fazer a explicitação. O desejo de explicitar o que Deus pôs implícito leva o homem a dizer: “Vós que sois Absoluto, eu a Vós entrego tal coisa, porque me destes o domínio sobre ela. E a destruo em vossa honra, porque a Vós, que sois o Criador de tudo, compete que se Vos honre, destruindo algo do que criastes”. É uma espécie de homenagem ao próprio Criador, a Quem se homenageia, em parte, em alguns aspectos, destruindo, mostrando que Ele merece aquela destruição.

Da parte psicológica do homem, entra nessa destruição um reconhecimento efetivo do Absoluto.

Contudo, para o homem concebido no pecado original, entra um reconhecimento de caráter necessariamente ascético, pois o ser humano tem tal tendência a se apegar e a dar àquilo que é contingente o valor que ele daria ao Absoluto que, para corrigir este defeito e desagravar a Deus dessa tendência a que tantos homens cedem, é preciso sacrificar alguma coisa para dizer: “Eu cheguei ao ato concreto e, assim, esmaguei internamente a minha tendência a ver isso como uma coisa absoluta.”

É preciso notar que isto é um aspecto muito importante, mas que não está na essência do ato praticado. Há o sacrifício, portanto, de louvor, que é o sacrifício do amor. O louvor é a voz do amor. A adoração, o louvor, o sacrifício de louvor se exprimem assim.

Deus, como Causa exemplar

Aliás, o Ofício Divino — recitado, por exemplo, segundo o estilo beneditino — tem o sentido do louvor a Deus, que o religioso faz cantando de um modo belo um texto adequado que O louva com suas próprias palavras, porque quase tudo é tirado da Escritura; e, quando não é da Bíblia, é da Igreja. Ademais, louva-O também com um cerimonial bonito, objetos e órgãos bonitos, numa igreja bonita, etc. A organização do belo para louvar é um predicado eminentemente beneditino e, de fato, seria necessário que, no seu conjunto, a Igreja Católica tivesse algo especialmente voltado para isso.

Tal modo de proceder é perfeito e condiz com outro aspecto da questão, formando uma espécie de geminação onde se tem o equilíbrio perfeito. Esse sacrifício de louvor pode dirigir-se a Deus como Causa eficiente, final, e também como Causa exemplar. E, enquanto Causa exemplar, nós podemos oferecer ao Criador coisas criadas por Ele, e semelhantes a Ele pela conexão com Ele. E, neste sentido, por exemplo, um grande abade beneditino pode constituir uma abadia magnífica, sem ceder nada a um luxo emoliente, mas para louvor a Deus como Causa exemplar de todo o belo na Criação.

O luxo pode ter uma nota de sacrifício

Até uma pessoa como Salomão, antes do pecado, que lembrava muito a Deus como Causa exemplar, poderia cercar-se de todo aquele luxo virtuosamente, louvando o Criador como Causa exemplar e dizendo: “Vede em mim como Deus é grande!”

Este constitui o elogio certo, mas arriscado, de muita forma de grandeza e de beleza, indispensável para uma civilização considerada no seu total. Então, por exemplo, eu creio bem que o Louvre de São Luís deveria ter, por vários aspectos, muito luxo. Este luxo deve ser visto assim.

Isso tem a nota do sacrifício no seguinte sentido: são riquezas que foram desviadas do uso do rei para simbolizar, perante Deus, uma determinada perfeição que lembra a Ele. Seria, por exemplo, o luxo da Sainte-Chapelle, mas poderia ser o luxo da pompa real, enquanto mostrando o rei como representante de Deus, ou da pompa papal, enquanto manifestando no Papa o Vigário de Nosso Senhor.

A meu ver, esta é a melhor resposta à crítica protestante ao luxo eclesiástico. O protestante diz: “É para o gáudio do padre que se usa isso.” A resposta é: “O padre de fato goza muito pouco disso, mas se gozasse era um aspecto secundário. O importante é que Deus seja glorificado também nisso”.

Entretanto suporia, para manutenção do equilíbrio nesse próprio louvor, que o homem fizesse rebaixamentos, atos de humildade e de ascese que compensassem isso, para que o equilíbrio se apresentasse perfeito.

Então, se eu imaginasse, por exemplo, um rei que fosse um Salomão da Cristandade, resplandecente com todo o brilho da realeza, mas que na Sexta-Feira Santa, na hora de adorar a Cruz, fosse a pé e descalço, em trajes de penitente, flagelando-se, de maneira que todo o povo visse que de fato sua intenção sincera era de se humilhar diante de Deus. Esse homem realizaria um equilíbrio admirável das duas coisas, e que seriam duas formas de sacrifício que se completam, formam um carrilhão. E nesse carrilhão há a harmonia perfeita.

Quando numa civilização falta ou míngua uma dessas formas de sacrifício, ela não é completa.

Necessidade da ascese até no Paraíso terrestre

Restaria saber como seria no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado original e a consequente expulsão do homem.

Parece-me que não haveria a penitência, porque os homens não tinham pecado, mas existiria o que dizíamos há pouco do sacrifício de louvor, da doação, da entrega, pelo reconhecimento de que Deus é Absoluto e perfeito.

No que diz respeito à presença da ascese no Paraíso terrestre, uma vez que o homem se encontraria ali em estado de prova, é patente que ele seria tentável. Isso me inclina a pensar que, para prevenir essa tentação e oferecer um corretivo para algo que não era o pecado original, mas uma possibilidade de pecar, uma determinada ascese pareceria ser necessária. Não se trataria, portanto, de uma expiação, mas de um ato ordenativo do homem, porque naquilo em que ele era tentável havia a raiz de algo que poderia propender para a desordem.

Estamos, pois, em presença de uma hipótese que poderia dar ao sacrifício de louvor certo caráter preventivo da tentação.

Propriamente no sacrifício de louvor de que eu estava falando, o gáudio supremo que tem aquele que oferece o sacrifício é uma espécie de estremecimento de alma diante do fato de que, oferecendo alguma coisa que se destrói, ele pratica um ato que, aparentemente, na ordem natural não é razoável, e encontra sua razão de ser apenas no caráter de dádiva “inútil”, “desarrazoada” Àquele que é Absoluto. E desta maneira se afirma com louvor — e com o único louvor adequado — o caráter absoluto d’Ele, e o nosso reconhecimento deste caráter absoluto. Nisto entra exatamente uma espécie de ósculo do contingente no Absoluto, que é uma atitude totalmente desinteressada, realizada por ser Ele Quem é.

A doação supõe o sacrifício feito como que gratuitamente, diante do mero fato de que Deus é Deus, mais nada.

Sacrifício desinteressado

Este é o estado de espírito com que se deve morrer. Na hora da morte, a pessoa deve aceitá-la como sacrifício merecido pelo pecado original e pelos seus pecados atuais. Pode até oferecer pela Cristandade, por outros interesses, o que Nossa Senhora quiser, mas acrescentaria um elemento altíssimo se dissesse só isto: “Por serdes Vós Quem sois, eu me ofereço!”

Então, o fazer-se pequeno é o único modo, a garantia única que o homem tem de que todas as grandezas construídas por ele não deem em vanglória. Por quê? Porque terá atendido à exigência dessa ordem metafísica mais profunda, que é o sacrifício desinteressado.

Aliás, tenho a impressão de que no sacrifício de Isaac entrava isso: era um sacrifício tributado a Deus porque Ele quis o filho único de Abraão, que disse: “Bem, Vós quereis esta hóstia de louvor, que é meu filho inocente. Vós o tendes!”

Algo disso parece-me estar presente também na resposta de Nosso Senhor à objeção de Judas contra Santa Maria Madalena, quando esta lavava os pés do Divino Mestre com um perfume muito valioso: “Por que não se vendeu este perfume por 300 denários para dá-los aos pobres?” (Jo 12, 5) — reclamava Judas. Ao responder: “Deixai-a; ela conservou esse perfume para o dia da minha sepultura! Pois sempre tereis pobres convosco, mas a Mim nem sempre tereis.” (Jo 12, 7), Jesus dava a entender que não se deve deixar de prestar a Deus o sacrifício desinteressado, de puro louvor, sob o pretexto de acabar com a pobreza.

Essa atitude de abnegação tem seu reflexo nas relações humanas. Também a perfeição da amizade vem do fato de alguém ser capaz de fazer uma coisa dessas por outrem que mereça. Por exemplo, estou com uma pessoa que é santa e vejo que vão matá-la. Posso substituir-me ao santo, para ser morto eu e não ele, pela seguinte razão: “Não toque naquele que é uma obra-prima de Deus!” A primeira ideia é a incolumidade daquele que é obra-prima de Deus, para continuar a dar glória a Ele. Eu, pecador, desapareço dentre os viventes, mas consegui que o santo continuasse a existir. É uma coisa muito bonita!

A autêntica imolação deve ser total

Também me parece que na humilhação bem aceita está o sacrifício voluntariamente realizado. Esta necessária humilhação diante de Deus absoluto traz consigo uma passageira, transitória, mas efetiva como que destruição de si próprio, por onde, além do lado expiatório, o indivíduo faz por amor o que ele faria da flor que ele ofereceria a Nossa Senhora. Ele como que se destrói, pondo-se até abaixo do que é, para fazer consigo o que realizaria com a flor.

Este ato, por ser como que uma destruição, produz sofrimento nesta Terra, dado o pecado original. De algum modo, o mais humilde dos homens realiza isso num espírito de sofrimento. Porque, por mais santo que ele seja, tem uma parte ruim, não consentida, que sofre com a humilhação.

Como seria no Paraíso terrestre, para o homem concebido sem pecado? Ele se apequenar ao ponto de ser um nada diante de Deus, não traria revolta? Isso é muito misterioso.

Vê-se que com satanás, em determinado momento, o fato de sentir-se não pequeno, mas “apenas” o primeiro dos grandes da corte de Deus e não o próprio Deus, trouxe uma inconformidade, e esta participa da dor. Portanto, vejo de um modo um tanto nebuloso como seria este fenômeno na natureza angélica.

Entretanto, mesmo para o homem concebido sem pecado original, se esse aniquilamento não chegasse efetivamente ao último limite de si mesmo e reservasse qualquer coisinha, ele não seria autêntico.

Há atitudes em que a imolação só é autêntica quando é total. Foi o que, em última análise, Deus quis de Jó, quando permitiu que o demônio o tentasse.

É nessa perspectiva que tomam toda a beleza coisas que a “heresia branca”(3) admira sem considerá-las debaixo deste ponto de vista. Então, por exemplo, um de nós tem um inimigo leproso e faz por ele um determinado benefício, humilhando-se inenarravelmente diante do opositor, que ainda responde com um desaforo. Tal ato, visto somente como o considera a “heresia branca” — ou seja, a pena do leproso e o leproso que não tem compaixão de mim — não manifesta toda a sua profundidade. O fundo está na pessoa ter-se apequenado de tal maneira que chegou a sofrer isto. Aí, nesse sentido do apequenamento que viemos expondo, o sacrifício tem uma grandeza incomparável. Mas isso a “heresia branca” não considera, porque tem horror à perspectiva de grandeza e de seriedade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1984)
Revista Dr Plinio 211 (Outubro de 2015)

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Do latim: o semelhante alegra-se com o semelhante.

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.–––

Opto pelo Sagrado Coração de Jesus

Ainda menino, em suas cogitações a respeito do contraste entre dois mundos e duas mentalidades, Dr. Plinio viu-se diante de uma alternativa, cuja escolha orientaria toda a sua existência. Nossa Senhora o ajudou a fazer a opção certa e a adotar o verdadeiro caminho.

 

Quem me conhece pode ter a impressão de que sou compreensivo e sinto atração apenas pela classe aristocrática, e que não dou importância, não tenho zelo, estima nem desvelo pelas outras classes. Porque quando falo a respeito da classe aristocrática tenho um fogo especial, e isso indica certamente uma preferência; e em vez de uma “opção preferencial pelos pobres”, decorreria daí uma “opção preferencial pelos nobres”.

A vida em torno da Igreja do Coração de Jesus

Para verem o quanto essa impressão não é verdadeira, conto a tentação que para mim chegou a constituir o antigo Largo do Coração de Jesus(1).

Eu tinha entre 10 e 13 anos. A primeira nota que esse Largo apresentava era de muito pouco movimento, porque naquele tempo o automóvel ainda era artigo de luxo e não constituía transporte para qualquer pessoa com um pouquinho de conforto, como é atualmente. Por causa disso, o número de automóveis que transitavam por lá era bem menor do que hoje. Também não havia ônibus, o transporte coletivo era o bonde.

Uma linha de bonde percorria a Rua Barão de Piracicaba, que atravessa o Largo do Coração de Jesus. Os bondes iam e vinham, mas eram também raros, pois a população da cidade era pequena.

Por isso, o Largo era, antes de tudo, muito tranquilo e, eminentemente, habitado por uma pequena burguesia ou um proletariado aburguesado, com uma camada de operários — suponho que filhos de imigrantes — que tinham feito algum dinheirinho e comprado casinhas em torno daquele local.

Toda essa gente formava quase uma vida de aldeia muito aconchegada, em torno da igreja a qual, para a São Paulo daquele tempo, parecia enorme, com aquela torre muito alta que também parecia colossal, cujo carrilhão, ao meio-dia e às seis horas da tarde, tocava a melodia: “Louvando a Maria, o povo fiel, a voz repetia, de São Gabriel: Ave, ave, ave Maria…” Uma canção popular muito simpática e respeitável.

A atenção se voltava, então, para a imagem do Sagrado Coração de Jesus dourada, em cima da torre, com os braços abertos, indicando a receptividade do Coração d’Ele para todo o mundo. Aquele som enchia a praça.

Tinha-se a impressão de cada badalada ser uma nota de cristal que, quebrando-se em mil pequenas bolhas, penetrava em tudo.

Busto de Dom José de Camargo Barros

No centro do Largo há um busto do Bispo Dom José de Camargo Barros, que se tornou célebre por ter participado do naufrágio de um navio de passageiros chamado “Sirius”, vindo da Europa para o Brasil. Ele era um prelado de São Paulo e viajava com um colega de Pindamonhangaba(2), que fora sagrado bispo por São Pio X e nomeado arcebispo de um Estado do Norte do Brasil.

Em certo momento houve o naufrágio, e o número de salva-vidas era insuficiente para os passageiros. Dom José de Camargo Barros ficou com um salva-vidas, mas, não havendo outro para o futuro arcebispo, exigiu que este, absolutamente, aceitasse o seu. Ele o tomou e, com isso, conseguiu sobreviver ao naufrágio. Mas Dom José de Camargo Barros morreu.

Fizeram-lhe, então, no alto de uma coluna, um busto que a meu ver não dá a ideia de seu “martírio”, mas de um bispo muito bem assentado na vida, plácido, olhando o movimento que passa. Mas tinha-se a impressão de que, quando os sons das badaladas desciam sobre a praça e se multiplicavam sob a forma de bolhazinhas de luz e de cristal, Dom José de Camargo Barros, do alto de seu pedestal, dava uma bênção.

Quando anoitecia, às vezes pelas seis horas, a farmácia chamada “Farmácia Coração de Jesus” — o armazém parece que se denominava “Empório Coração de Jesus”, tudo se chamava “Coração de Jesus” ali em volta; eram outros tempos… — tinha, como em geral nas farmácias daquele tempo, uns globos de cristal enormes com matéria corante, vermelha, verde, azul, dourada, e atrás um foco de luz; aquilo formava uma luz ampliada que a mim, assaz colorista, impressionava muito; eu achava interessante ver aqueles focos de luz.

Bênção do Santíssimo Sacramento

Um pouco mais tarde, o sino do Coração de Jesus, que soava todas as horas, começava a dar outro sinal: era a bênção do Santíssimo Sacramento.

Quem estivesse no Largo poderia ver certo número de moradores que, das casas em volta, vinham chegando para a bênção. Formavam propriamente aquilo que se poderia chamar o “beatério”, o conjunto de beatos e beatas que caminhavam muito devagarzinho, conversando uma conversota que nunca acabava e nem se interrompia.

As beatas, senhoras sofridas na vida, com uns “xalezinhos”, uns arranjinhos, de quem tem suas economias… Os beatos, ou era gente que não trabalhava mais e vivia de rendazinhas, ou ainda exercia um trabalhinho metódico, pequenininho, que os esmagava um pouquinho mais a cada dia. Via-se que eles estavam sujeitos a um processo de achatamento, com o tempo iam ficando mais baixinhos, sumidinhos, as roupas mais rapadinhas, mas com a alminha contente e a vidinha arranjada.

Quando chegava a hora marcada, entrava o padre na igreja, expunha o Santíssimo, começava o “Tantum ergo” e por fim dava a bênção, enquanto tocava o sino; era um momento de muito recolhimento, muita piedade e elevação espiritual.

Depois, todos saíam. Tratava-se de um mundo que não era o meu, fechado para mim, mas eu queria saber como era e, por isso, ficava prestando atenção neles.

Sempre me interessou soberanamente a análise, a observação da vida. Saber como é esse, aquele, como vive, como pensa, para onde vai, como se relaciona com aquele, com aquela, com aquilo, como aconteceu tal coisa, como vai acontecer… Isso me atraía a atenção fabulosamente!

Não sei o que pensariam daquele menino curioso. Eu não contava a ninguém em casa, porque julgariam extravagância dedicar-me a essas cogitações sociais.

Eu percebia que, quando os beatos e as beatas entravam, eles eram como descrevi, mas quando deixavam a igreja, saíam com uma dimensão de ­alma muito maior. Certos reservatórios interiores de resignação, de sublimidade, de elevação de espírito, estavam reabastecidos até o dia seguinte.

O Sagrado Coração de Jesus os tinha dessedentado, a rogos de Nossa Senhora Auxiliadora, e eles saíam super-saciados; e se desfaziam na bruma ainda violácea do dia que estava se pondo.

A alta classe rural tradicional de São Paulo

E o menino curioso ia sozinho para casa fazendo reflexões… Eu andava três ou quatro quarteirões e chegava a minha casa, onde encontrava um outro mundo, que não o da pequena burguesia do Largo do Coração de Jesus.

Aos domingos, na Missa das onze horas, o aspecto do público da igreja era inteiramente diferente. As pessoas que, mais ou menos, representavam uma aristocracia local em São Paulo frequentavam essa Missa.

Viam-se chegar os bonitos automóveis, as senhoras de idade madura em bonitas toilettes, muitos dos homens ainda usando fraque e cartola por homenagem a Deus, Senhor de todas as coisas, a Quem eles iam visitar.

Quando eu era bem pequeno, meu pai com frequência ia de fraque à Igreja do Coração de Jesus. Ele dizia que em Pernambuco chamavam o fraque “a roupa de ver a Deus”.

Era um mundo em que aparecia muito do antigo donaire, algo de corte dessa espécie de aristocracia constituída pela alta classe rural tradicional de São Paulo.

Havia uma rua limítrofe que marcava o começo do mundo da antiga aristocracia rural: um mundo europeizado, aberto às ideias novas, com bastante dinheiro, e até luxo, com preocupações de progresso para si mesmo, de conforto, etc.; e com toda a agitação política, mundana, cultural, toda a alegria, todo o tom “hollywoodiano” que caracterizava aquele tempo.

Antipatia pelo jazz e amor ao órgão

O jazz era o grande escândalo sonoro de então. É preciso dizer que antipatizei com o jazz desde o primeiro momento em que o ouvi, assim como amei o órgão desde que tomei consciência de sua existência.

Meu ambiente doméstico era um misto de órgão e de jazz. A tradição, que inegavelmente havia, tocava o órgão. Mas assim como as badaladas desciam no Largo Coração de Jesus, também as cacofonias do jazz cobriam o mundo e entravam também na residência da Rua Barão de Limeira, 77, onde havia espíritos “aggiornati”(3) segundo o jazz, e outros ajustados à tradição, entre os quais Dona Lucilia e eu.

Eu estava inserido em toda aquela sarabanda, à qual não se pode negar certo brilho e o deleite da vida. E eu era sensível a esse brilho e a esse deleite. Quer dizer, a vida com luxo, as viagens para a Europa em navios-palácio com salões de dois andares, o turismo pelo Velho Continente, o palacete enorme em São Paulo, automóveis de luxo vindos da Europa, dos Estados Unidos…

Tudo isso me atraía muitíssimo, mas constituía um polo de atração inteiramente diferente do Largo Coração de Jesus. E, sem cogitar de minha vocação — pois eu ainda não tinha noção dela —, do ponto de vista meramente individual, cheguei a me pôr esta pergunta:

“O que me convém mais para levar uma vida agradável: integrar-me nesse mundo agitado e brilhante, mas trabalhoso, ou no mundo do Largo Coração de Jesus, nessa vidinha, vivendo à luz ou à sombra do Santuário, sem aventuras nem riscos, nem problemas, nem complexidades; simplesmente afundar-me no anonimato, destacando-me do meu meio como uma figura que some e afunda na penumbra agradável do Largo Coração de Jesus?”

Seriamente hesitei entre uma coisa e outra. De tal modo a atração nobiliárquica não é uma mania em mim, que os meus lados fracos ter-me-iam levado a me afundar na vidinha: “Ah! deixe ‘correr o marfim’… Eles que se arranjem! Vou levar uma vida sossegada, rezando e depois fazendo mais ou menos nada. Para que fazer alguma coisa? Desde que eu viva bem, nada mais me incomoda!”

O que me impediu de me deixar levar por essa hipótese foi uma noção do dever. Volto a dizer, não era a ideia da vocação, que ainda não se tinha esboçado em meu espírito; mas a noção de que cada pessoa que levasse consigo um nome histórico, e se afundasse nessa bruma, era como uma estrela que se apagaria no céu. Embora seja menos trabalhoso para uma estrela afundar na bruma a ficar cintilando pelos séculos dos séculos, a obrigação da estrela é cintilar.

Eu, Plinio Corrêa de Oliveira, tinha o direito de me afundar? Não! Essa opção, eu a exerci, portanto, não em virtude de uma ideia de comodismo, de vantagens, de prazer, mas do dever, vencendo o meu pendor naturalmente indolente.

Aristocracia paulista: trato cerimonioso e mobiliário das residências

Eu notava, entretanto, também nas pessoas da aristocracia, o conflito de duas influências. De um lado, a velha tradição portuguesa, muito afim em alguns pontos com a tradição francesa, pela qual a nota distintiva do homem educado era uma seriedade amável, até afável, mas principalmente seriedade. Secundariamente, como um ornato complementar, vinham a afabilidade e a amabilidade.

De maneira que se víssemos um desses senhores ou uma dessas senhoras andando sozinhos na rua, a fisionomia que faziam era séria, de quem estava cônscio de sua importância.

Se um menino ou um rapaz conhecido deles passasse perto, tinha a obrigação de cumprimentá-los, tirando o chapéu. O senhor respondia amavelmente o cumprimento, com um sorriso e erguendo discretamente seu chapéu-coco.  Às vezes puxava uma conversa, sempre composta e cerimoniosa: “Como vão os seus? Ouvi dizer que a Dona tal está adoentada… Já melhorou? Será que vamos nos encontrar de novo este ano em tal estação de águas? Eu gostaria tanto… Diga lá em casa…”

Por mais afável que tivesse sido a conversa, ao final, novo cumprimento tirando os chapéus de parte a parte. Quando o senhor, e mesmo as senhoras, tinham mais intimidade, batiam ligeiramente com a ponta dos dedos nos ombros do mais jovem, o que representava, simbolicamente, um abraço.

Esse trato cerimonioso encontrava seu correlato no ambiente e no mobiliário das residências.

Toda casa que se prezasse tinha um salão com móveis dourados estilo Luís XIV, XV, XVI, ou um pouco mais longe, Luís XIII, e a parede revestida de damasco, ou de papel vindo da Europa, também dourados, ou painéis de damasco de outras cores. Lustres de cristal.

Se as posses da família permitiam, o hall era de mármore. Cortinas de damasco, sedas, veludos, quadros a óleo, tapetes felpudos que abafavam o som de quem entrava nas salas.

Mesmo na intimidade do lar, o modo de as pessoas se dirigirem umas às outras era repleto dessa seriedade. Até a brincadeira era com um tom cheio de respeito, o qual constituía uma espécie de atmosfera de gás ou de líquido, no qual a vida inteira estava imersa.

Influência de Hollywood

Entretanto, tudo isso se foi abrindo para a influência de Hollywood. As músicas tocadas pelos discos nas vitrolas, as canções que se cantarolavam, as senhoras dedilhavam no piano ou os rapazes executavam no violino, tudo isso era “hollywoodiano”.

O resultado era a difusão de uma gargalhada superficial, agitada, estridente e sem significado profundo. Porque a influência de Hollywood era a da gargalhada, da brincadeirada, da semi-imoralidade sedenta da imoralidade completa, da aventura sôfrega: “cowboy”, tiros no teto, motocicletas, torcidas…

Eu percebia essas duas influências que se combatiam. Aquela seriedade sacral de outrora ia sendo enxotada pela superficialidade trivial, adoradora da máquina, do dinheiro, da corrupção. Tinha que dar na civilização moderna.

Muitas daquelas pessoas respeitáveis, que estavam com seus filhos e netos na Missa pela manhã, iam levá-los na sessão de cinema, à tarde.

Observei o seguinte: quando se encontravam na Missa do Sagrado Coração de Jesus, todo o lado tradicional deles vinha à tona e os dominava; quando estavam no cinema, ficavam cheios do espírito de Hollywood.

De onde me vinham ideias meditadas no meu silêncio, como esta: “Se esse aspecto tradicional floresce na Igreja do Coração de Jesus e em outras igrejas de São Paulo — aonde às vezes também vou à Missa —, mas não se desenvolve no cinema, há uma relação de aliança, de afinidade entre esse ambiente, essa Religião e esse lado bom; e existe uma relação, não de aliança, mas de antagonismo, entre a Igreja e esse lado ruim que se patenteia quando eles vão ao cinema”.

Para ilustrar esse pensamento, imaginemos o jazz sendo tocado na Igreja do Coração de Jesus. Uma blasfêmia! Ou um órgão executando música religiosa, para acompanhar certas fitas de cinema: parava o órgão ou a fita, porque os dois não iam juntos!

Donde eu concluía haver no cinema um princípio hostil ao Sagrado Coração de Jesus, enquanto que na vida tradicional, um princípio que procede d’Ele.

Eu olhava em torno de mim e pensava: “Que reação teriam essas pessoas se eu lhes dissesse que estou cogitando isso? Afirmariam que não é assim, que não estou entendendo nada, que esse antagonismo não se põe…” Porque eles não queriam fazer a opção, a escolha e, portanto, não desejavam confessar o antagonismo. O resultado é que eles deixavam a parte boa ser devorada pela má, como um câncer.

Eu dizia no meu íntimo: “Opto pelo Sagrado Coração de Jesus!”

Horror ao mofo e desejo de uma alegria sã e casta

Por tê-Lo conhecido e me deixado modelar por Ele, tanto quanto minha miséria permitia, eu estranhava uma coisa dissonante de Nosso Senhor. Por isso também, eu reconhecia n’Ele a regra a ser seguida qualquer que fosse o sacrifício, a batalha. E o critério para diferenciar o bem e o mal, a verdade e o erro, é estar consonante com o Sagrado Coração.

Isso é um ato de adoração, de devoção e supõe, evidentemente, rezar a Ele, visitar sua imagem na igreja d’Ele, tê-Lo em vista na imagem d’Ele em minha casa, e dirigir-me a Nosso Senhor por meio da Mãe d’Ele. Quer dizer, ser devoto, devotíssimo de Nossa Senhora, como canal necessário para chegar até Ele.

Estou cônscio, deliciosamente cônscio, até o fundo de minha alma, de que eu nunca teria chegado a nada disso se não fosse a intercessão de Nossa Senhora.

O que aconteceu com alguns outros que conheci, aparentemente grandes rezadores? De manhã, rezavam num manual, mas não tinham suficiente amor para, na hora do cinema, estar se lembrando d’Aquele a Quem tinham rezado; e evitavam a opção. Logo, cada vez mais a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tornava-se uma fórmula, e a entrega à mentalidade do cinema, uma realidade.

Havia, ademais, um problema na dualidade jazz e tradição. É que a tradição aparecia tristonha, incapaz de suscitar alegria, vida, verdadeiro espírito de luta e algo que não fosse mofo. Era preciso um ato de Fé para acreditar que essa tradição tinha inspirado coisas como as Cruzadas, de tal maneira ela estava carregada de mofo.

Como a única forma de alegria estereotipada era a “hollywoodiana”, não havia uma fórmula para dar escoamento psicológico ao júbilo, para o qual a alma tem tendência, senão os padrões “hollywoodianos” daquele tempo. Por isso, para um católico, ser alegre era uma espécie de infidelidade. Em sentido contrário, ser tradicional, fiel à Igreja de sempre, parecia trazer como corolário ser tristonho, abatido. E eu tinha horror ao mofo e a tudo quanto não é vida.

Quando entrei para o Movimento Mariano, uma das metas que tive foi de fazer sentir que eu não renunciava nem um pouco à alegria sã e casta de viver.

Está assim, de um modo muito sumário, narrado, tanto quanto me é possível, um dos itinerários de minha alma rumo ao Sagrado Coração de Jesus. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1985)
Revista Dr Plinio 199 (Outubro de 2014)

 

1) Situado no Bairro Campos Elíseos, zona central de São Paulo.

2) Município da Região Metropolitana do Vale do Paraíba, ao Norte do Estado de São Paulo.

3) Do italiano: atualizados. Aqui tem o sentido de “estar na moda”.

Senhor, dai-me forças que Vos seguirei!

Para conseguir o Reino de Maria —­ o grande ideal de sua vida — Dr. Plinio compreendia ser necessária muita dor, a fim de que a impiedade reinante no mundo atual fosse derrotada. Assim como o Redentor derramou todo o seu Sangue para esmagar o demônio, ele estava disposto a sofrer tudo para que, em união com os padecimentos de Cristo, fosse alcançada a vitória de Nosso Senhor sobre os ímpios.

 

Após o pecado de nossos primeiros pais, o gênero humano poderia ter sido exterminado com a precipitação de Adão e Eva no inferno. Porém, Deus não quis isso, mas sim que seu plano primitivo em relação aos homens, seres intermediários entre os Anjos e os animais, se realizasse, fosse perpetuada a ordenação do universo como Ele a havia concebido, e se operasse, em certo momento, a maravilha da Encarnação do Verbo.

Era preciso que a dor e a derrota fossem o preço da grande vitória

Com efeito, Ele quis precisar de um Homem que tivesse um mérito infinito, para expiar pelo pecado de Adão e de Eva. Então, Deus Pai decretou:

“A natureza humana, na qual a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade irá se encarnar, padecerá tudo. Ela sofrerá, será derrotada, esmagada, crucificada e liquidada aos olhos dos homens, até o momento glorioso da Ressurreição. Mas pelo valor infinito deste sofrimento, será esmagado Satanás e se abrirão para os homens as portas do Céu. Desta mesma estirpe maculada dos filhos de Adão nascerá a Virgem imaculada que, por obra do Espírito Santo, dará à luz o Imaculado por excelência, Jesus Cristo, meu Filho, no qual haverá a união hipostática. Oh! maravilha! Isto Eu farei porque Jesus resolveu sofrer até o fim. O sofrimento, a derrota, o padecimento d’Ele serão a minha vitória sobre a morte, o demônio e o pecado.

“O gênero humano vai padecer, vai pecar. Mas virá um dia em que uma Virgem nascerá. E essa Virgem, concebida sem pecado, pedirá que venha o Messias. E o que ninguém alcançou, Ela alcançará, e o que Ela não imagina se dará: o Messias será concebido, por obra do Espírito Santo, das entranhas puríssimas dessa Virgem, e esse Messias, com o consentimento e o oferecimento d’Ela, será sacrificado no alto da Cruz. Derrota espetacular! Derrota tremenda! Ela O receberá morto sobre os joelhos e presidirá a cerimônia fúnebre por onde o cadáver d’Ele, recortado de golpes, de pancadas, de dilacerações, será coberto das ervas aromáticas, que, segundo o rito judaico, devem acompanhar os corpos dos mortos na sepultura. Ela O seguirá até lá e, depois, ficará num isolamento misterioso, enquanto Ele estiver no isolamento do seu sepulcro. Três dias depois, Jesus ressuscitará num esplendor único e começará a série de vitórias. O demônio ficará arrasado!”

Era preciso, portanto, que Um resolvesse sofrer, expiar, tomar ares de derrotado, de repudiado pelos acontecimentos, pelas circunstâncias, e que a dor e a derrota d’Ele fossem o preço para a grande vitória de Deus.

Taça de dor oferecida a Nossa Senhora

Desde então, nunca deixou de haver na Igreja, ao longo de toda a sua História, almas que se oferecessem na aparência da derrota, da humilhação, das demoras inexplicáveis, dos desmentidos esmagadores de suas esperanças, vertendo, com isso, o sangue de suas almas. Mas Deus quer esse sangue para vencer as batalhas que Ele trava.

E se o Reino de Maria brilhar, como nós temos certeza que brilhará, e o demônio for esmagado, estejamos certos de que contribuíram para isso os nossos padecimentos, ao longo de todas essas décadas: os meus velhos sofrimentos e os vossos jovens sofrimentos. Tudo isso somado terá contribuído para preencher uma taça de dor que nós entregaremos a Nossa Senhora, quando chegar o último momento de sofrer, e dissermos:

“Mãe, tudo quanto é produzido por nós, apresentado a Deus sem ser por Vosso intermédio, não vale nada. Mas, oferecido por meio de Vós, vale tudo. Aqui está tudo quanto nos pedistes: todo o suor, todo o sangue, todas as lágrimas que enchem, de sobejo, essa taça. Condescendei em sorrir para tanta dor! Dignai-Vos abençoar e purificar isso que, se não passar por Vós, não tem condições para agradar a Deus. Sorri para essa oferenda, ó Mãe, purificai-a e apresentai-a ao vosso Filho!”

Nesse momento em que Maria Santíssima Se voltar para Jesus e disser “Filho, a última gota foi posta por eles, a última perfeição foi posta por Mim”, o som de um gongo simbólico percorrerá todas as vastidões dos Céus e da Terra e começará o triunfo.

”Christianus alter Christus”

O último sangue que o homem tem que verter, e que de fato verte, é o mais precioso que ele dá. É por essa razão que eu tenho tanta devoção ao episódio de Nosso Senhor transfixado pela lança de Longinus. Ele tinha derramado todo o seu Sangue, mas queria — por um desígnio insondável — dar mais. E havia ainda algum soro no interior de seu Corpo Sagrado, e esse soro, misturado com uns restos de Sangue, precisava ser vertido. Então, aquele soldado vem e crava a lança no Sagrado Coração, e jorram Sangue e água.

É a última barbaridade, a última tortura, a última dor, o último Sangue. É o perfume mais magnífico, a doação suprema, a entrega mais esplêndida. É aquilo que mais deixou os Anjos encantados no Céu, e Nossa Senhora, ao mesmo tempo rompida de dor, mas extasiada de admiração na Terra.

Esta dor, este sofrimento é o contributo para tudo quanto nós esperamos. E se é preciso que eu sofra, aqui estou, como vítima à maneira do Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. “Christianus alter Christus”: o cristão é um outro Jesus Cristo. Se é meu dever unir meus padecimentos aos sofrimentos divinos d’Ele, eu aceito! Descarregue-se em mim a dor, se for necessário! Eu me ofereço como vítima e digo: “Senhor, se o raio de vossa cólera tem que cair sobre minha inocência para comprar a vossa vitória sobre os ímpios, que caia Senhor, mas vencei-os!”

Foi preciso que o Cordeiro de Deus, puríssimo além de toda expressão possível de pureza, fosse morto para expiar pelos pecadores infames. O mérito do Sangue do Cordeiro, por assim dizer, deu a Deus o direito de resgatar das garras do demônio aquilo que não se lhe tiraria mais. E, desse modo, o demônio foi esmagado. Mas o Altíssimo quer que demos o nosso sangue junto com o d’Ele. Deus quis que nosso Rei, o Rei de toda a glória, Se apresentasse na hora da vitória coberto de chagas, de dores. Um dos profetas pôde dizer que o Redentor Se tornara como um leproso, e que do alto da cabeça até a planta dos pés, por causa da Paixão, não havia n’Ele uma parte do Corpo que estivesse sã.

Então, Nosso Senhor sofreu por mim, e eu não sofrerei por Ele? Que horror!

A alegria de participar do grande desfile inaugural do Reino de Maria

Quando o padre celebra a Missa — esse símbolo me encanta! —, após colocar o vinho no cálice, verte nele uma gota de água. Qual a razão de ser dessa água, se é o vinho que vai ser transubstanciado? Ela representa os sacrifícios dos homens, unidos ao sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao misturar-se com o vinho, aquela água forma com ele uma só substância; ela, de si, não poderia ser matéria para a transubstanciação, mas unida ao vinho transubstancia-se em Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Assim também os nossos sofrimentos, unidos aos de Nossa Senhora e aos de Nosso Senhor, adquirem o mérito que nunca teriam, e como tais se apresentam diante de Deus, que quer essa gota de água e nos pede: “Meu filho, não é uma gota, mas um tonel, pois é tudo o que há em ti. Sento-Me à tua cabeceira e te digo: Queres dar-Me?”

Como dizer “Senhor, não”?!  A única resposta possível é: “Senhor, quanta bondade de terdes pensado em mim! Eu inteiro sou vosso; dai-me forças que Vos seguirei!”

Vemos, portanto, a beleza dessa espera que padecemos. Enquanto essa espera se dá, nós estamos comprando a vitória. Talvez não entendamos, mas a Fé nos ensina que isso é assim. E quando chegar a hora da vitória, Nosso Senhor, na sua glória, Nossa Senhora, magnífica no reluzimento de sua realeza, sorrirão para nós e dirão: “Meus filhos, vós bem sabeis que sangue entrou nisso! Lembrai-vos de tal hora, de tal momento, de tal ocasião? Tudo isso ajudou para comprar agora este triunfo. Vinde,  Nós vos associamos à nossa glória!”

Qual será, então, a alegria daqueles que, pela própria dor, compraram a promulgação do Reino de Maria? A participação no grande desfile inaugural do Reino de Maria! Não há palavras que indiquem isso suficientemente.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1983)
Revista Dr Plinio 187 (Outubro de 2009)

 

O primeiro ato de amor

Não há maior sujeição nesta Terra do que a de uma criança à sua mãe no ventre materno. E, durante nove meses consecutivos, Nosso Senhor quis pertencer inteiramente a Nossa Senhora! Jesus, o esperado das nações, o Homem‑Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, quis sujeitar-se a Maria!

Sendo perfeitíssimo desde o primeiro instante, quando seu corpo começou a se constituir Nosso Senhor começou a pensar; começando a pensar, começou a orar e, conhecendo perfeitamente de que Mãe era Filho, Ele certamente disse a Ela uma palavra de amor. Pode‑se calcular qual foi essa primeira palavra de amor d’Ele para Nossa Senhora, e qual foi a resposta d’Ela, sentindo o carinho que Lhe vinha do Filho de Deus?

Que riqueza de alma era preciso ter para responder adequadamente a esse primeiro carinho! Que noção dos matizes! Que noção das situações! Que perfeita disponibilidade de alma para corresponder a tudo perfeitamente, e oferecer a Ele esta primícia incomparável: o primeiro ato de amor que o gênero humano Lhe oferecia!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/3/1984)

Coragem e elegância

Embora seja uma nação de língua e herança alemãs, a Áustria tem características próprias, valores e tradições que muito a diferenciam de sua vizinha germânica. Enquanto esta é mais guerreira e afeita à expansão de suas fronteiras por meios nem sempre pacíficos, aquela é mais diplomática. Não que o povo austríaco careça de grandes combatentes e heróis na sua história, mas o traço  propriamente distintivo de sua personalidade é, sem dúvida, a diplomacia.

A tal ponto que o lema da expansão da dinastia austríaca — a célebre Casa dos Habsburgs — escrito em latim, reduzia-se a estas vogais: “A, E, I, O, U: Austriæ est imperare orbe universo” (cabe à Áustria imperar no mundo inteiro). O modo de alcançar tal objetivo era também expresso em latim: “Gerant alia bella, tu, felix Austria, nube”; o que em português significa: “Os outros que façam guerras; tu, Áustria feliz, casa-te”.

Essa requintada diplomacia que lhe granjeava importantes conquistas no cenário político, era completada por um grande senso de sacrifício, uma superior disciplina sobre si mesma, uma  extraordinária seriedade no conduzir seus interesses nacionais e internacionais. No meio de toda essa habilidade política, nunca deixou de haver muita  delicadeza, gentileza, elegância e  perfeito senhorio da situação. E não só no campo diplomático brilharam as qualidades austríacas. Outra magnífica expressão delas, vamos encontrar, por exemplo, na Escola de Equitação de Viena, cujas exibições, admiradas em toda a terra, perpetuam as tradições desse glorioso passado.

Fundada no século XVI, essa escola nasceu no tempo em que a cavalaria era determinante nos combates bélicos. Ora, para que o homem fosse de fato eficaz na guerra, como cavaleiro, devia ter um completo domínio do cavalo, conjugado ao total governo de si mesmo. Dessa maestria na guerra derivaram as competições equestres, e quando estas já se haviam tornado banais, surgiu a ideia de ensinar o cavalo a fazer movimentos elegantes como passos de dança. Era, por assim dizer, o creme dos cremes da arte de combater, à qual o austríaco soube comunicar sua distinção, sua categoria e amabilidade.

Os cavaleiros se apresentam numa atitude irrepreensível, nobre, distinta e elegante. Mas, de homens bastante sérios para enfrentarem uma guerra e nela sobressaírem por sua coragem, se a isso  os conclamar o dever patriótico. Homens que poderiam ser guerreiros, vestidos com todo o refinamento, sem qualquer espécie de arma, ali estão apenas para fazer com que seus cavalos executem graciosos passos de dança.

Entram solenemente numa arena que mais parece uma sala de palácio preparada para espetáculos, com arquibancadas e camarotes adornados de veludos e pingentes, lindos lustres de cristal  deitando reflexos prestigiosos em todo o ambiente. Flores variegadas perfumam as galerias, e aqui e ali, faixas brancas e vermelhas lembram as cores da Áustria.

Uma vez na arena, a primeira preocupação dos cavaleiros é de saudar o povo que, encantado e lisonjeado, aplaude calorosamente. Em seguida têm início os exercícios sucessivos de disciplina:  cavalos se adiantam, recuam, se reúnem para depois se separarem, andam, trotam, saltam, dançam…

Durante todo o espetáculo, as atitudes dos animais são próprias a agradar o espectador, como se estivessem num salão. O cavalo tem todas as cortesias, gentilezas e atenções de um fidalgo:  levanta-se, trota com leveza, inclina-se, enfim, demonstra no âmbito da sua espécie todas as maneiras de uma pessoa bem educada. “Os animais são uns colossos”, dir-se-á. E o são. Porém, incomparavelmente mais dignos de elogio são os cavaleiros, pois reduzir a brutalidade do cavalo ao mimo do salão é uma obra-prima semelhante à de educar um homem para se sobressair na   sociedade. E essa proeza os cavaleiros realizam, sob a admiração e o entusiasmo da platéia.

Termina a exibição, o povo está de pé, aplaudindo os cavaleiros que recebem a ovação impassíveis, porque é da maior categoria não fazer gestos de agradecimentos. Dali a pouco eles se retiram e  desaparecem, deixando o sorriso de satisfação e enlevo impresso nas faces dos espectadores. O que se viu neles? Aquele mesmo senso de direção, de sacrifício, a calma para poder ser amável,  agradável e gentil, característicos do bom diplomata, do político fino e do homem educado, como são os expoentes da nobreza e do povo austríacos.

É a maneira de ser deles, que completa e se harmoniza com as peculiaridades e atributos de outros povos europeus, como o espanhol, por exemplo, do qual nasceram a ousadia e a coragem dos  toureiros. Se deixasse de haver Espanha ou Áustria, seria uma perda irremediável para a Europa e o mundo. As duas personalidades se compensam, e a composição de ambos os aspectos resulta  numa espécie de pleno da alma humana, que verdadeiramente alegra. É o garbo, a galhardia, o desassombro, o esplendor da serenidade e da varonilidade que enfrenta o perigo; e, ao mesmo  tempo, a disciplina e a gentileza… Predicados que se completam, frutos da civilização cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira