Santa Margarida da Escócia

Foi soberana da Escócia e sua padroeira, século XI.

“Santa Margarida era rainha da Escócia e descendia, por seu pai, dos reis da Inglaterra e, por sua mãe, dos Césares.”

“Como a mulher forte de que fala a Epístola, a prática das virtudes cristãs tornou-a mais ilustre ainda. Penetrada do amor de Deus, impôs-se terríveis mortificações e soube, com seu exemplo, levar o rei seu esposo, a uma conduta melhor para com seus súditos, e seus súditos a costumes mais cristãos. Educou os seus filhos com tanta piedade, que vários deles viveram em alta perfeição. Nada nela, porém, foi tão admirável, quanto sua ardente caridade para com o próximo. Chamavam-na ‘Mãe dos órfãos’ e a ‘Tesoureira dos pobres de Jesus Cristo’. Margarida se privava não só do supérfluo, mas até do necessário, comprando assim a ‘pérola preciosa do Reino dos céus’.”

“Purificada por seis meses de sofrimento corporais, entregou sua alma a Deus, em 1093, em Edimburgo. A santidade de sua vida e numerosos milagres operados depois de sua morte, tornaram seu culto célebre no mundo inteiro. Foi designada por Clemente X padroeira da nação escocesa, sobre a qual reinou cerca de 30 anos. Admiremos a obra do Espírito Santo na alma da santa rainha, por Ele escolhida para o desenvolvimento do Reino de Cristo na Escócia e roguemos à santa pela volta desse país à unidade Romana.” (Missal Quotidiano e Vesperal, de Dom Gaspar Lefèbvre).

Santa Margarida é uma princesa que vem trazendo sangue do mais ilustre para a Escócia, que vem trazendo consigo toda a flor da civilização ocidental, ao mesmo tempo que é uma rainha maravilhosa, que deixa vários filhos em estado de perfeição, ilustres por sua virtude, que intercedeu a favor do povo, que deu esmolas, que realizou milagres, e tudo isto, sempre ungido pela coroa real, dá uma ideia tão completa da realeza, mas também de um mundo concreto onde maravilhas são possíveis e onde o extraordinário e o estupendo são realizáveis, que acaba sendo uma espécie de plenitude do princípio axiológico; daquela afirmação de que as coisas podem encontrar ordem, estão naturalmente numa disposição ordenada, e de que a ordem, mesmo a mais maravilhosa e audaciosa é realizada na terra.

É interessante ver como isso contrasta com o minimalismo de certo apostolado de hoje. Quando se consegue que uma pessoa seja mais ou menos boazinha, já é uma festa. Naquele tempo, o apostolado da Igreja era maximalista. As rainhas deviam ser santas e algumas delas o eram. Essas santas de tal maneira difundiam o bom odor de Jesus Cristo por toda parte, que isto acabava sacralizando a própria dignidade régia e criando uma espécie de ambiente de feeria, uma espécie de ambiente de maravilha na civilização medieval, da qual precisamente os vitrais são um reflexo.

Os vitrais, apresentando os santos no meio de fogos incandescentes, no meio de pedacinhos de vidro dourados, cor de rubi, cor de esmeralda, com uma luz na cabeça, aqui a coroa real sobre uma mesa, a santa que derrama flores em torno de si, etc. Tudo isto é a imagem do próprio modo como o medieval concebia a vida, por exemplo, de uma Santa Margarida,  Rainha da Escócia. Isto evitava, naturalmente, que o povo se voltasse para o culto do horroroso, procurando entreter-se com a vida, tão freqüentemente escandalosa, de atores, atrizes e de tantas outras coisas assim. Porque o povo, queira ou não queira, procura o maravilhoso.

A facilidade com que foi possível realizar o culto da personalidade na Rússia, com aquela horrenda “maravilha” que foi Stalin, prova bem isso. Não se apresentando um certo tipo de maravilha, tem-se que apresentar um outro tipo de “maravilha”. E quando o povo não se maravilha com Jesus Cristo, acaba se maravilhando com Barrabás.

… imaginem, por exemplo para se ver o efeito do que seria uma vida de Santa Margarida sobre a alma das pessoas, que agora houvesse uma conversão da princesa Margareth Rose, e que ela começasse a realizar milagres, que ela fosse vista dando esmolas para pobres, não de um modo socialista, que ela tivesse filhos que fossem tidos como verdadeiros santos, e que isso se desse num ambiente de legenda.

Ela seria odiada, contra ela se desencadearia uma perseguição horrorosa, mas ao mesmo tempo, milhares de almas vibrariam de entusiasmo por ela, e a fotografia dela estaria na parede das casas de operários, de camponeses de todos os lugares do mundo. Como esse simples fato impressionaria! E como impressionaria prodigiosamente! O prestígio de uma rainha na Escócia, naquela época, era imensamente maior do que o de uma rainha hoje, a “fortiori” de uma princesa.

Os senhores podem imaginar o que era a fama de Santa Margarida, rainha da Escócia, em toda a Cristandade. Aí é que se compreende o bem que isso poderia fazer!

Plinio Corrêa de Oliveira – excertos de palestra

 

Medianeira de todas as graças

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Portanto, todas as súplicas que vão a Deus passam por Ela. De tal maneira que se todos os Santos do Céu pedirem algo em união com Maria Santíssima, são atendidos; mas se Nossa Senhora não suplicasse com eles, não seriam acolhidos. Entretanto, a Santíssima Virgem pedindo sozinha é atendida.

É pela intercessão d’Ela que todas as preces chegam e se tornam agradáveis a Deus, como também todas as graças concedidas pelo Criador chegam até nós por meio d’Ela.

Maria é, pois, o canal por onde todas as preces sobem a Deus e todas as graças descem para os homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/10/1971)

Santa Gertrudes e a linguagem simbólica de Deus

Aproveitando a ocasião de uma Festa de Cristo Rei, Dr. Plinio comenta, enlevado, os diversos reluzimentos da infinita majestade de Nosso Senhor Jesus Cristo ao longo de sua passagem neste mundo. Majestade coroada nas glórias da Ressurreição e perpetuada nos grandiosos acontecimentos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Ao considerarmos a celebração da realeza de Cristo e, pois, da majestade do Filho de Deus, creio ser conveniente voltarmos nossos olhos para um aspecto pouco ressaltado quando se aborda esse tema.

Risco, dor e dever são inerentes à majestade

Majestade, do latim “major stare”, significa estar acima, no píncaro. Devemos então começar por compreender que essa condição de supremacia envolve muita reflexão. Não uma reflexão qualquer, mas inspirada, iluminada e elevada pela graça. Esse teor de pensamento patenteia, à pessoa que se encontra nessa posição suprema, o dever, o risco e a dor inerentes à sua condição. Porque possuir majestade consiste também — e não na menor medida — em aceitar a dor, o risco, as obrigações com todos os seus ônus.

Alguns espíritos contemporâneos, superficiais e avessos à reflexão, amigos das facilidades e inimigos da dor e do sofrimento, talvez se sintam contrariados com essa noção de majestade. Tal recusa, porém, não torna essa noção perempta, porque ela permanece invariável: se alguém se afasta dela, não é o conceito que decai, e sim esse alguém. Mais ou menos como um navio que afunda e, por isso, se distancia da luz do sol. Não é o astro que soçobra e desaparece, mas o navio. O sol continua a brilhar no alto dos céus.

A majestade autêntica provém da Fé

As grandes verdades e normas, os grandes princípios e planos, as grandes máximas e execuções são os aspectos por onde um homem, mesmo de condição comum, pode ter majestade. Portanto, essa majestade todo indivíduo deve desejar, sem nenhum prejuízo para a modéstia e a virtude da humildade que ele igualmente deve praticar.

Pois, entendamos, a majestade não é uma faceirice como uma gravata ou um atavio que vestimos para mostrar aos outros: “Veja, chegou-me de Paris”. Não, a autêntica majestade não é enfeite, e nunca ensoberbece aquele que a possui. Pelo contrário, o indivíduo que tem majestade se sente sempre pequeno diante dela, compreende que, por mais majestoso que seja, como simples indivíduo não é diferente de todo mortal. A majestade lhe vem da fé, da influência da Santa Igreja à qual ele se dispõe a aceitar. Se for honesto consigo mesmo, ele se perguntará sempre se levou sua própria majestade à altura para a qual foi criado.

O Rei por excelência, crucificado e rejeitado

Tocamos, então, no exemplo sublime que ilustra os conceitos acima considerados: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Pensemos na majestade do Homem-Deus no Calvário, sentenciado, condenado e pregado na cruz. Sobre Ele recaíram as piores execrações possíveis. Era o rejeitado por excelência, como nenhum outro ser humano fora nem será. Durante três anos de sua vida pública, Nosso Senhor não fez senão procurar atrair os outros, manifestando-lhes uma sabedoria, uma misericórdia e uma bondade infinitas. Seu império sobre as forças da natureza tornou-se patente em mais de uma ocasião. Um poder capaz de levantar um morto sepultado há quatro dias e que já cheirava mal, com uma simples ordem: “Lázaro, sai para fora!”

As tempestades agitam as águas do mar e, a uma palavra d’Ele, tudo serena. Falta vinho, Ele manda encher algumas bilhas de água e, quando o mordomo se põe a servir, espanta-se com a qualidade do vinho que é oferecido aos convidados das bodas de Caná. A multidão tem fome? Ele multiplica os pães e os peixes e ordena aos Apóstolos saciar aquela gente. A comida se verifica tanta que, com os restos, ainda enchem doze canastras.

Por onde Nosso Senhor passava, maravilhas se sucediam. Poder, sabedoria, bondade e ternura insondáveis. Seu olhar, sua fisionomia, suas mãos e sua presença divinas estavam repletos de dons ofertados aos homens. O povo O proclama rei para em seguida rejeitá-Lo em favor do facínora Barrabás.

Rejeição completa, na qual Nosso Senhor nada perdeu de sua majestade infinita, de sua distinção incomparável. Qualquer um que, de olhar límpido e isento de preconceitos, O visse pregado na cruz, ajoelhar-se-ia e diria: “Meu Rei!”

Não houve nem haverá na História um monarca que tenha, sequer de longe, manifestado semelhante majestade.

Grandeza régia do cadáver divino

Nosso Senhor morre, alguns discípulos mais corajosos retiram o corpo d’Ele da cruz. Ao longo dos séculos, os pintores têm se empenhado em salientar um aspecto verdadeiro da descida da cruz, isto é, o corpo santíssimo de Jesus sujeito às leis da gravidade, sem vida, pendendo para onde o inclinam. Retirado do madeiro, o depositam no colo virginal de Maria Santíssima e o preparam para ser deixado na sepultura. Igualmente se esforçam os artistas em retratar a dor da Mãe e a inanição do Filho.

Entretanto, se me fosse dado sugerir algo a um pintor ou escultor, pediria que encontrasse um meio de apresentar, na simplicidade e misérias extremas dessa Mãe e desse Filho, a sublime majestade de ambos: a régia grandeza do cadáver divino, e como Maria se sentia dignificada com aquele tesouro depositado no seu colo.

Incomparável majestade da Ressurreição

Pensemos, em seguida, na Ressurreição e naquilo que poderíamos chamar de “re-esplendor” da majestade de Nosso Senhor Jesus Cristo. No interior do jazigo, escuridão profunda. Mais majestoso do que todo o céu e do que toda a terra, ali repousa o corpo exangue do Redentor. Em determinado momento — imaginemos — a alma santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo a ele retorna e o revivifica, vencendo a morte.

Se um relâmpago, mera descarga elétrica, pode ser majestoso; se o sol, cujo fulgor é produto de gases em combustão, tantas vezes nos parece envolto em majestade, que dizer da apoteose que terá sido a alma de Cristo voltando ao seu corpo?

O tema é por demais elevado para nossas cogitações, e creio que pincel de artista algum seria capaz de representá-lo de maneira conveniente.

A pedra do sepulcro se move e o Senhor Glorioso abandona as trevas do túmulo para reaparecer na luz da vida. É a primeira festa de Páscoa da História da Igreja e que se repetirá, todos os anos, até o fim dos tempos. Majestade!

Pentecostes e as catacumbas: exemplos perfeitos de majestade

Poderíamos ainda evocar outras cenas que se seguiram à gloriosa Ressurreição do Rei Divino, as quais espargem reflexos de sua infinita majestade.

Cenáculo. Nossa Senhora e os Apóstolos estão ali reunidos, recolhidos em oração e recordações dos ensinamentos do Mestre. Sentem que algo de extraordinário está por acontecer. Seus corações se inflamam a cada nova oração, a cada nova lembrança das palavras de Jesus. O ambiente se reveste de grandeza, e os discípulos se tomam de um encantamento crescente pela pessoa de Maria Santíssima, vendo n’Ela a imagem do Filho. Tudo reluz.

Subitamente, quando pensam que atingiram o auge de suas cogitações, tudo ainda estava por vir: o Divino Espírito Santo aparece em forma de línguas de fogo e deita sobre cada um deles a plenitude de seus dons. Majestade!

Apresentação no Templo, por Gentile da Fabriano – Museu do Louvre, Paris

Muda a cena. Correm os séculos, e estamos nas catacumbas de Roma. Labirintos escavados no subsolo da velha urbe. Terra onde os cristãos depositam os corpos inanimados dos seus mártires. Naqueles túneis vivem e transitam pessoas humildes e ilustres, ricos e estropiados, católicos de todas as condições que iam assistir a Missa celebrada pelo sucessor de Pedro.

É uma noite de Natal, digamos. Noite comum para os romanos antigos, alguns dos quais se embriagavam em orgias; mas, lá embaixo, naquela cidade sob a cidade, entre paredes ornadas com pinturas primitivas que lembram cenas evangélicas, o Papa celebra o nascimento e a glória de Cristo. Exemplos perfeitos de majestade.

Revestida de seu manto majestoso, a Igreja atravessa os séculos

É a majestade da Fé, a majestade do sobrenatural professada até nas condições hostis e adversas das catacumbas, desafiando o martírio e a morte, enfrentando o império mais poderoso da Terra, admirando a pessoa do vigário daquele Cristo que adoram, com uma reverência tão grande que sua admiração ilumina aquele subterrâneo inteiro.

Majestade das almas, e, mais ainda, majestade de Deus que de algum modo se comunica àqueles primeiros cristãos e brilha nos seus olhares e na suas demonstrações de Fé.

Majestade primitiva da Igreja que continha em germe todas as majestades que ela manifestaria ao longo dos séculos, nas suas liturgias e na sua história, como uma rainha revestida de um imenso e precioso manto de beleza.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 27/11/1982)

O maravilhoso realizado na Terra

Na vida de Santa Margarida da Escócia nota-se a existência do maravilhoso na Idade Média dia. Não do maravilhoso como uma fábula ou lenda, mas como algo de realizável.

Para a brumosa Escócia, então terra de missão, essa princesa vinha trazendo sangue ilustre, toda a flor da civilização ocidental, tornando-se uma rainha magnífica, que deixa vários filhos ilustres por suas virtudes, e que intercedeu a favor do povo, deu esmolas, realizou milagres.

Tudo isso sempre ungido pela coroa real, além de uma ideia completa da realeza, apresenta um mundo concreto onde maravilhas são possíveis e o extraordinário, o estupendo, a ordem, mesmo a mais excelente e audaciosa, são realizáveis na Terra.

Santas como esta de tal maneira difundiam o bom odor de Jesus Cristo por toda parte, que acabavam sacralizando a própria dignidade régia e criando uma espécie de ambiente de feeria, de maravilhoso da civilização medieval, do qual os vitrais são um reflexo, apresentando os bem-aventurados em meio a pedacinhos de vidros dourados, cor de rubi, de esmeraldas, com uma luz na cabeça, a coroa real sobre uma mesa, uma santa que derrama flores em torno de si… Tudo isso é a imagem do próprio modo como o medieval concebia a vida, por exemplo, de uma Santa Margarida, Rainha da Escócia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1964)

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – V Nossas obrigações para com a Cruz

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo escrito por São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta esta grave advertência do santo: quem quiser ser um autêntico Amigo da Cruz, deve fugir do mundanismo que o conduzirá por um caminho de perdição, oposto ao da perfeição e santidade para o qual foi chamado.

 

São Luís Grignion de Montfort assim continua a sua Carta:

Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tornardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?

Justificadas apreensões de um Santo

Nestas perguntas transparece intensamente o espírito de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma em consideração os Amigos da Cruz como pessoas eleitas por Deus para um alto chamado. De outro lado, porém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista das condições em que estas pessoas vivem, São Luís manifesta suas  apreensões. Donde formular questões como esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”

Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Portanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadeiro desejo e vontade de assim vos tornardes com a graça de Deus”, etc.?

A formulação empregada por ele é muito apropriada e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que possui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu chamado. Este será considerado igualmente um verdadeiro Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz

Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim como pode haver dois graus de perfeição religiosa no cumprimento de uma vocação.

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformidade do membro de uma ordem com sua respectiva regra. Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ainda neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou, por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um elevado grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele, da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par das graves exigências que a regra lhe impõe.

O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devoção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últimos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pensar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdição? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e segura, e na realidade conduz à morte?”

A expressão “sem pensar”  é curiosa,  e insinua bem o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o homem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, embora não seja inteiramente consciente — e, portanto, não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses Amigos da Cruz.

Censura aos que cedem à concupiscência do mundo

Continua ele:

Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habitantes da Terra (Ap 8, 13), grita‑vos amorosamente, estendendo‑vos os braços: separai‑vos, meu povo (Nb 16, 21). Separai‑vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho, separai‑vos dos mundanos, malditos por minha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11).

Importa compreender bem a razão dessas fortes censuras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo.

Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiritual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscências que inclinam o homem para o pecado e o afastam de Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a santidade deve combater.

No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ainda se revestia de uma aparência elevada e nobre, característica do “Ancien Régime” prévio à Revolução Francesa, mas que preparou largamente a irrupção desta no cenário europeu. Se tomarmos gravuras que representam burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ainda pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela circunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, considere-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e já não se o distingue mais do nobre, não só porque os trajes se igualaram, mas também por causa da atitude. Nivelaram-se. E o mundanismo revolucionário que impregnava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da sociedade, putrefazendo-a por completo.

Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, atiçadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas. Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.

Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, devemos limpar nossas almas de qualquer laivo de mundanismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de laicista e de fundamentalmente contrário à sabedoria, nos costumes do mundo.

Contagiabilidade da virtude contra o vício

Continua São Luís Grignion:

Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (Sl 1, 1).

Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama: “Feliz o homem que (…) não se assenta entre os escarnecedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta última expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer dizer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o pecado e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual este se instala e aí faz luzir sua “glória”.

Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, 8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas senão as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vosso modelo (Mt 17, 5).

Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, levada a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo.

Por outro lado, é também interessante notar que no meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimentos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu modo contra a decadência generalizada do ambiente em que viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da contagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposição anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversibilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma virtude séria e profunda praticada de um lado repercute no outro. Assim, havendo na Vandeia ou na Bretanha daquela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetivamente separados do mundo, ainda que não conhecessem os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a possibilidade de perseverança, de santificação e de vitória destes últimos no meio dos deleites e das delícias da corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria

Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica personalidade, poderemos ver quanta retidão, compostura, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o trono, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Romano Alemão.

Creio que essa situação só se tornava possível por esse trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava entre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da corte, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afirma, se multiplica e conquista as almas.

Abraçar a Cruz em união com o Divino Redentor

Prossegue São Luís Grignion:

Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o mundo (Jo, 16, 33)?

Conforme o ensinamento de todos os grandes autores, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é suportável quando carregada em união com Nosso Senhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aquele que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças necessárias para aceitá‑la.

É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for elevado, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divino Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquirimos forças para segui-Lo.

E não nos esqueçamos de que essas graças e essas forças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssima, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e coroado de espinhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/6/1967)
Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

 

O ideal de Cavalaria, plenitude do espírito católico – II

O que diferencia o cavaleiro das outras vocações existentes na Igreja? Missionários dos bons tempos se expunham à morte pelo contágio de doenças ou se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. São pessoas admiráveis, dentre as quais muitas morreram mártires e foram canonizadas. Entretanto, o cavaleiro representa a Deus a um título especial ao lutar por Ele e pela Santa Igreja, caminhando com entusiasmo de encontro à morte.

 

Há também outra beleza que devemos considerar: a da luta. Morrer é belo. Os mártires, as vítimas da Revolução Francesa morreram. Oferecer-se, portanto, como vítima é lindo! Um doente na cama pode oferecer-se; Santa Teresinha do Menino Jesus ofereceu-se como vítima expiatória. Contudo, lutar tem uma beleza especial.

Dois modos pelos quais Deus associa o homem à sua obra criadora

Deus associa o homem à sua obra criadora de dois modos: um é pela paternidade espiritual ou física. O que é paternidade física todos sabem, não é necessário explicar. A paternidade espiritual se dá quando se gera alguém para a vida eterna; uma pessoa traz outra pelo apostolado para ela pertencer a Nossa Senhora e assim preparar-se para o Céu.

Há, entretanto, outro modo pelo qual Deus nos associa à sua obra criadora. Cabe a Deus tirar a vida de alguém. Porém, quem legitimamente mata outrem que, segundo o plano de Deus, deve ser morto, exerce uma prerrogativa divina.

Por exemplo, um homem é um assassino e deve ser morto num ato de legítima defesa ou porque a lei mandou que fosse executado. O Estado tem o direito de mandar matar, nas ocasiões em que é justo, bem como qualquer pessoa possui o direito de matar na sua própria defesa ou de terceiros. Assim, tem-se o direito de matar na defesa da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, nos casos em que a Moral católica permite(1). Portanto, quando se combate em nome da ira de Deus e movido por uma cólera inspirada pela graça, há uma beleza especial no exercício dessa justiça. Então, o cavaleiro que vai à guerra não só disposto a morrer, mas a matar para que a vida espiritual, sobrenatural se espalhe sobre a Terra, também representa a Deus a um título especial, e exerce uma missão divina.

Compreende-se por que os nossos antepassados julgavam uma tal maravilha um cavaleiro entrar, por exemplo, num lugar onde havia cinquenta maometanos e, com várias espadagadas, decapitar a todos. Por que era uma beleza? Porque os maometanos estavam atacando terras católicas ou impedindo a pregação do Evangelho.

Há certos trovões que se propagam por várias séries de explosões até uma plenitude final. O trovão é lindo porque dá a impressão de uma divina vontade de arrasar o que não deve existir, e que vai derrubando obstáculo por obstáculo até destruir tudo. É uma sinfonia! Para mim, mais bonito do que o trovão, só o órgão. São as duas supremas belezas em matéria de sons. Sou um entusiasta da trovoada. Qualquer trovãozinho que eu ouça, acompanho com gosto sua harmonia cheia de estampidos.

Esta é a alma do guerreiro quando ele, movido por uma cólera santa, mata um, outro e, ao fim do dia, matou muitos. Ele está como uma trovoada que descarregou toda a sua eletricidade, e repousa plácido depois porque a sua ira santa foi preenchida. É o repouso de um guerreiro depois de ter combatido, ter raspado pela morte, na véspera de outra batalha onde ele poderá morrer. Ele está continuamente com esta familiaridade com a morte que faz a beleza da vida do guerreiro, porque é a familiaridade com Deus.

Então, o que diferencia o cavaleiro das outras vocações que há na Igreja? Tomem, por exemplo, padres, freiras dos bons tempos que se expunham à morte com contágio de doenças; outros que, fazendo as missões, se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. Todas essas pessoas são admiráveis, dentre as quais muitas morrem mártires e são canonizadas. Que o sangue delas se levante e peça ao Céu perdão e graças para nós.

Desponsório com o risco, o esforço e a morte

Entretanto, o cavaleiro não é o que se resigna à morte, mas aquele que caminha de encontro a ela com entusiasmo; não se resigna com o perigo, mas tem fome dele; não se resigna à luta, anseia por ela. Esse é o cavaleiro, aquele que, na hora do risco e da batalha, como que sente a ebriedade santa do contato com Deus e se lança.

Em certo sentido, o cavaleiro pode ser considerado o artista da luta, pois gosta da pugna bela, nobre, elevada. Por isso ele se orna para o combate, segue belas regras para lutar e morre sentindo ter feito uma obra de arte. Na canção de gesta, Roland, morrendo, sabe que no horror de sua morte está realizando algo que despertará uma página de literatura para todos os tempos. E, antes de ele morrer, aparece São Miguel Arcanjo a quem o cavaleiro moribundo estende a sua luva em sinal de vassalagem, porque São Miguel é o chefe do que eles chamavam a Cavalaria Celeste, composta pelos Anjos que expulsaram os demônios, lançando-os no Inferno. Roland se sente um com os espíritos celestes, seus irmãos. Ele é, na Terra, o grande exterminador e ordenador, como foi São Miguel Arcanjo no Céu. Esta alegria, este entusiasmo, esta espécie de senso artístico da luta, do risco e da morte caracteriza o verdadeiro cavaleiro.

Compreende-se, então, porque o cavaleiro era alçado, habitualmente, à condição de nobre, pois é incomparavelmente mais elevado e digno quem possui esse espírito do que quem se entrega a outras atividades lícitas, necessárias, mas que não têm esse contato com o Divino, como, por exemplo, o comércio. Vender cebolas ou tamancos é uma coisa indispensável para a boa ordenação do mundo; fabricar vassouras ou esparadrapos é muito bom, sobretudo, pode ser muito lucrativo, não contesto. Mas contabilizar grandes lucros, embora seja bom e honesto, não é o mais alto modo de se unir a Deus. Essa espécie de desponsório com o risco, com o esforço extremo e com a morte é o que mais une a Deus. Isto é a Cavalaria.

Se ultrajado pelo inimigo, o cavaleiro mantém a cabeça alta, revida e continua a luta

Em nossa época, a luta não se dá só nem principalmente no campo físico. O principal da guerra não é o esforço material, mas o intelectual. Atualmente se conquistam mais povos pela guerra psicológica do que pela guerra militar. As maiores conquistas que o comunismo fez não foram pelas armas, mas pela velhacaria. Por exemplo, como o comunismo se introduziu em toda a Europa Oriental? Foi mediante concessões vergonhosas de Roosevelt, no Tratado de Yalta. Como o comunismo conseguiu conquistar a China e depois o Vietnã? Foram concessões que Marshall fez aos comunistas chineses, entregando a China numa bandeja. Como o comunismo vai se difundindo pelo mundo? Através da conquista das almas por meio do processo revolucionário descrito em meu livro Revolução e Contra-Revolução.

Contra essas formas de conquistas psicológicas, ou há uma conquista também psicológica ou não adianta nada. Então, nós somos contra o comunismo que brande ideias, como eram os cruzados contra os maometanos que brandiam sabres. Os maometanos não usavam sabres e lanças? Nossos antepassados também. O comunismo usa ideias, nós usamos ideias. Ele faz a Revolução, nós fazemos a Contra-Revolução.

Digo agora uma palavra sobre o risco. Há uma coisa que é para o homem como a morte, e às vezes ele enfrenta a morte para evitar isso: é o descrédito no meio dos seus. Deixar de ser considerado, benquisto, admirado, ser odiado, perseguido, desprezado exige muitas vezes mais coragem do que a luta armada. Quando há uma guerra, muitos vão para frente combater de medo que, se recuarem, na retaguarda riam deles e digam que são covardes. Isso quer dizer que o sujeito enfrenta a bomba por medo do riso. Portanto, em última análise, a risada dá mais medo ao homem do que a bomba.

De nós é exigida esta coragem, bela como a de quem enfrenta a morte. Se o homem tem mais medo do ridículo do que da morte, enfrentando o ridículo ele faz uma imolação a Deus mais preciosa do que entregando a vida. Estar, portanto, continuamente raspando-se no ridículo, não se incomodando com a opinião dos outros, isto é ser cavaleiro. Quando o homem faz isto e compreende que se une a Deus extraordinariamente por esta forma, e tem o gosto de ser vilipendiado, ultrajado, de manter a cabeça alta, de revidar e de lutar, ele é um perfeito cavaleiro.

Nosso Senhor não recuou um instante, mas caminhou para a frente continuamente

Comecei esta luta em condições muito desfavoráveis, porque só vim a compreender que ela era bela mais tarde. Era menino e percebi que, nos ambientes dos outros meninos, o que eu tinha de qualidade era objeto de sarcasmos, e que bastava assumir certos defeitos que seria causa de admiração. Mas resolvi seguir a mim mesmo, fiel às qualidades que eu tinha; não compreendia a beleza que havia nisto. Até me lembro de ter pensado o seguinte: “Todo mundo acha isto feio, quem sabe se é mesmo. Nesse caso, faço uma coisa feia, mas enfrento todo mundo e vou para a frente, porque ser de outra maneira eu não quero”.

No praticar uma coisa que talvez fosse feia por amor a um ideal, eu o fazia do modo mais belo possível. Eu me lembro de que pensava com meus botões: “Mas que coisa horrível ser desconsiderado assim! Veja tal menino de boca porca, de maus costumes que empolga a aula dizendo palavrões, e como eu faço um papel apagado, mole, bobo, com a minha perpétua observância da pureza, das boas maneiras, da distinção”. Mas eu refletia: “A pureza, as boas maneiras, a distinção valem isto; assim eu quero ser, ainda que me rachem.” Eu era, assim, uma espécie de bichinho se agarrando à tábua de salvação a todo custo. Ainda não percebia que essa tábua de salvação tinha um nome, era a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando mais tarde percebi, fiquei maravilhado, mas o passo estava dado, eu tinha entrado na luta.

Nosso Senhor Jesus Cristo nos é apresentado sempre enquanto padecendo, suando Sangue no Horto das Oliveiras, caminhando para a morte com uma tristeza enorme; e assim deve ser, porque devemos ter consciência, tomar na devida conta os sofrimentos infinitos que Ele padeceu por nós.

Mas, de fato, há outro aspecto da atitude de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo durante a Paixão, que é o seguinte: Ele não recuou um momento, caminhou para a frente continuamente. Mesmo quando caiu sob o peso da Cruz, foi para levantar de novo e poder chegar até o alto do Calvário; não teve uma hesitação.

Eu tenho a impressão de que se devêssemos olhar, numa Via Sacra, as pegadas sangrentas de Nosso Senhor no chão, um dos aspectos por onde Ele poderia ser visto era cambaleante, fazendo um zigue-zague, quase caindo ao peso da Cruz, mas não largando. Outro seria, pelo contrário, em linha reta: “Eu vou para a frente porque quero!” Uma vontade serena, majestosa, mas inteiramente inquebrantável, até quando encontrou Nossa Senhora e viu tudo quanto Ela estava sofrendo pela resolução d’Ele de morrer. Por fim, no alto da Cruz, aquela palavra de energia suprema: “Consummatum est”: foi feito tudo o que era preciso fazer.

Quando foram prendê-Lo, no Horto das Oliveiras, Ele perguntou:

— A quem buscais?

— A Jesus Nazareno – responderam os algozes.

— Sou Eu – afirmou Jesus. E todos caíram no chão.

Seu poder e sua majestade eram tais que Nosso Senhor dissera pouco antes a São Pedro que, se quisesse, mandava vir legiões de Anjos para libertá-Lo (cf. Mt 26, 53), mas Ele não queria. Portanto, tudo aquilo o Divino Redentor estava sofrendo porque Ele queria. Eis o Cavaleiro!

O mais belo de todos os martírios

Terminada esta exposição, poderia surgir a pergunta: “Tudo isso é bonito, mas como me portar quando chegarem para mim o risco e a morte? Não posso fazer uma espécie de injeção de tudo quanto ouvi e meter dentro de mim para sair um herói. O que vou fazer para ser fiel a essas ideias?”

Aqui vem a doutrina da verdadeira vida espiritual. Se eu, no meu ideal, sinto-me chamado para isso, mas na realidade não tenho forças, devo pedi-las para estar à altura do meu ideal. Para isto temos a oração, os Sacramentos, a meditação que nos elevam até esse ponto. Pode ser que alguns cheguem entusiasmados à hora do sacrifício, outros com medo, mas vencendo o próprio medo e compreendendo a beleza de vencê-lo para lutar.

Cito um personagem que foi, sem dúvida, muito corajoso, mas não era nem de longe um cavaleiro. Basta dizer que era um protestante. Protestantismo e Cavalaria são coisas que se excluem, pois esta é um predicado exclusivo da Religião Católica. Do nosso lado há Cavalaria, do lado deles há assassinatos. Todas essas luzes são da Igreja Católica e de mais nada no mundo. Mas, enfim, o Rei da França, Henrique IV, entrou numa batalha com muito medo e sentia até seu esqueleto tremer. Então de espada na mão ele gritou: “Treme velha carcaça…”, mas ele não queria ceder e lutou durante a batalha inteira. Quiçá na hora do medo tenhamos que dizer “treme velha carcaça”, mas nós vamos para a frente. É preciso confiar em que a graça nos ajude nesse momento.

O martírio mais belo que conheço – depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é super-excelso e não comparável com nada – foi o de Santo Inácio de Antioquia. Ancião, carregado de ferros, entrou na arena e, diante dos leões que rugiam, ele disse: “Leões, vinde a mim! Triturai-me como se tritura o trigo para ser como a Hóstia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu serei triturado e serei um com Ele”. Os leões vieram e ele foi estraçalhado e morreu. Isto, para mim, é a última palavra, o auge da beleza!

Cavaleiros conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo

Entretanto, havia duas espécies de mártires. Estive no Coliseu, em Roma, onde me mostraram o lugar do cárcere no qual ficavam os católicos a noite inteira, perto de outro compartimento onde estavam as feras rugindo. Os cristãos sabiam que, quando amanhecesse, tinham raiado para eles as últimas horas, e seriam levados para a arena onde aquelas feras iam devorá-los.

Imaginem, às três horas da manhã, solidão no Coliseu, aquele mármore muito branco, resplandecente, de uma alvura que para quem vai morrer tem quase o aspecto de um esqueleto ressequido, sobre o qual o trágico luar derramava uma tênue luminosidade; a sós, numa gaiola, os futuros mártires se preparam para morrer e têm pânico de apostatar na hora, porque era só fazer um sinal nesse sentido para serem salvos.

De repente, uma hiena uiva e a pessoa pensa: ela está com fome de mim, esse bicho amanhã vai devorar as minhas entranhas. Quando chega a manhãzinha, as feras vão acordando e uivando mais. O circo vai se enchendo de gente, muitos passam perto dos católicos, cospem neles, atiram pedras, dão risadas dizendo: “Vocês vão morrer mesmo…”

A certa hora, o Sol já está todo levantado e entram os barulhos familiares da cidade de Roma: os vendedores que oferecem suas mercadorias, carros que passam, é a vidinha de todos os dias que está ao alcance deles. É só dizer “eu quero apostatar” para terem tudo aquilo que eles estão prestes a deixar para entrar na arena e morrer.

Alguns soluçavam de medo, iam para a arena tremendo. Jogavam-se e as feras caíam em cima deles. Eram heróis tanto quanto Santo Inácio de Antioquia, talvez merecendo menos admiração.

Eram cavaleiros verdadeiramente, porque sentiam a beleza do seu ato e queriam consumá-lo, conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo. Evidentemente, para isto é preciso receber uma graça especial. Sem essa graça a pessoa não enfrenta. Mas é preciso pedi-la desde já. Por isso, em todas as Ave-Marias há esse pedido final: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Quem vai ter coragem nessa hora? Sem uma graça especial não se tem.

Papel extraordinário da virtude da confiança

Há graças especiais de luta e de morte também, mas peçamos essa graça, tenhamos a intenção de dar à nossa vida e à nossa morte esse sentido de beleza, e nós obteremos. Porque quem pede alcança.

Conto-lhes um fato extremamente gracioso. Havia uma jovem romana que foi condenada à morte por ser cristã. Mas ela tinha especial pavor de não sei de que bicho – digamos que fosse hiena –, tinha pânico. Então, ela disse a Deus o seguinte: “Eu consinto em ser morta, mas fazei com que não seja por uma hiena”. Os outros cristãos, católicos, que estavam assistindo ao martírio nos bancos do Coliseu, viram entrarem também hienas no circo, mas nenhuma delas atacou a jovem, que foi morta por um tigre ou um leão. Quer dizer, foi uma condescendência da Providência.

Termino com um caso para verem como esse conceito de luta e de martírio é complexo. São João Evangelista não foi mártir. Levado para ser morto num caldeirão de azeite em ebulição – uma morte tremenda! –, entrou no caldeirão e saiu do outro lado ileso, e por vontade de Deus o deixaram ir para casa.

Imaginemos que São João tenha ido para o caldeirão com algo da graça que dizia dentro dele: “Tu não vais morrer”. E ele pensasse: “Mas não tenho coragem de morrer agora”. E a graça responderia dentro da alma dele: “Tu não tens coragem porque não chegou a hora de morrer. Tu deves ter confiança de que não morrerás”. Então, ele mete o pé dentro do caldeirão, depois o corpo inteiro, certo de que não será queimado. Contra o paradoxo, atravessa o caldeirão, apoia-se do outro lado e sai.

Manter esta confiança dentro do caldeirão não é uma força de alma talvez maior do que a do martírio? Em nossa vida a virtude da confiança tem um papel extraordinário. Muitas vezes nós estamos como que derrotados e liquidados e temos que fazer como São João: confiar que sairemos do outro lado do caldeirão sem nos acontecer nada. Este é um outro lado do heroísmo e de coragem terrível. Às vezes, confiar é mais duro do que se entregar. Mas não temos o direito de ceder, e é preciso confiar.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1974)
Revista Dr Plinio 260 (Novembro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica, II-II q. 40, a. 1; q. 64 a. 2-3. Catecismo da Igreja Católica, n. 2264-2265.

 

Meditação e apostolado

A civilização contemporânea, por força da vida trepidante imposta pelos meios de diversão excitantes, mantém o homem numa perpétua agitação e fixa constantemente sua atenção sobre fatos novos, não raras vezes sensacionais, de uma atualidade candente, porém logo depois substituídos por outros, numa sucessão atordoante.

Habituado a ocupar-se por esta forma, o homem contemporâneo sofre frequentemente de uma superexcitação dos sentidos e da imaginação, e de uma atrofia da razão. Molesta-o fixar longamente a atenção sobre um mesmo objeto. A reflexão calma, lúcida, prolongada parece-lhe fastidiosa. Fixar a atenção, refletir são operações que implicam na primazia da inteligência sobre os sentidos. E nós vivemos do contrário: do domínio dos sentidos sobre a inteligência.

Por dissipação, entendem os autores espirituais precisamente este defeito. A alma considera constantemente o mundo, e nunca entra em si mesma, nunca analisa seu próprio interior. Considerando o mundo exterior, ela o faz de modo superficial, contentando-se apenas com as aparências e não penetrando jamais na realidade profunda das coisas, nem remontando delas para um plano de cogitações mais elevado.

O hábito da meditação consiste exatamente no contrário. O homem é capaz de isolar-se, privar seus sentidos da embriaguez contínua das impressões, das sensações e vibrações, desviar sua atenção do que é externo, passageiro, superficial, para isolar-se na calma de algum recanto e pensar.

A meditação especificamente religiosa, como no-la apresenta a Santa Igreja, tem um fim bem definido: considerar as verdades cujo conjunto constitui a Doutrina Católica, vendo a si mesmo e ao mundo exterior com ordem a essas verdades.

Toda a vida espiritual depende da graça de Deus e da colaboração da vontade humana. Ora, na meditação é Deus que, pela graça, vai esclarecendo a inteligência e dando vigor à vontade para o conhecimento e a prática do bem. É, pois, um ato de intimidade da alma com o Divino Espírito Santo, que transcende a simples meditação natural e a eleva à categoria de um dos atos mais augustos da vida humana.

Esta meditação sobrenatural, disse-lo expressamente Nosso Senhor (cf. Mt 11, 25), não é privativa dos homens de ciência. A história dos Santos prova que muitas vezes as meditações mais profundas foram feitas por pessoas muito ignorantes no sentido humano da palavra, mas cheias de virtude e de amor de Deus.

E o apostolado? Não se diria que a meditação inutiliza o homem para a ação? O que é melhor: rezar ou agir?

A pergunta equivaleria, no terreno espiritual, a esta outra no terreno material: o que deve fazer o homem, comer ou beber? Evidentemente, é preciso comer e beber, rezar e agir.

A meditação bem feita traz, por consequência, o espírito de apostolado. Os próprios religiosos contemplativos não escapam a esta regra, pois fazem apostolado, e do melhor. E se um contemplativo não tem zelo pela salvação das almas, pode-se dizer que sua contemplação é mal feita.

Meditar é exercitar-se no amor a Deus e ao próximo. Como pode alguém ter esse amor e ser indiferente a que a glória de Deus seja conspurcada a todo momento pelo pecado, e a todo instante as almas exponham a sua salvação?

Na realidade, ser apóstolo supõe, antes e acima de tudo, meditação. Pois um apostolado sem amor de Deus e do próximo não tem sentido nem consistência, é mera agitação(*).

 

Plinio Corrêa de Oliveira

(*) Excertos da conferência realizada na sessão solene de encerramento do 1° Congresso das Ordens Carmelitanas do Brasil em 30/10/1952, e publicada em Mensageiro do Carmelo, novembro-dezembro de 1952, p. 267-269.

Meu filho, ânimo!

Consolar não é apenas enxugar o pranto de quem chora; é muito mais do que isso. É dar força, dar ânimo, e dar decisão.

Nossa Senhora é a consoladora dos aflitos.

O homem que fica aflito, facilmente se acabrunha exageradamente, perdendo a coragem e se entregando. Nossa Senhora o consola dizendo: “Meu filho, ânimo! Eu te concedo forças para lutar. Enfrenta o adversário, pois tudo é reparável. No céu serão pagos os teus sofrimentos e lá tu serás recompensado, em glória, por tudo quanto tiveres carregado nos ombros. Agora, coragem e para frente!”

Isso é propriamente a consolação, quer dizer, uma fortificação. Nossa Senhora dá isso aos aflitos, àqueles que estão precisando de forças para lutar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/9/70)

Revista Dr Plinio 140 (Novembro de 2009)

Refulgente destruidor das heresias

Santo Alberto Magno refulgiu enquanto intelectual, contemplativo e homem de ação porque colocou acima de tudo a vida interior. Mereceu, assim, este elogio expresso num vitral da igreja dos dominicanos de Colônia: “Este santuário foi construído pelo Bispo Alberto, flor dos filósofos e dos sábios, modelo dos costumes, refulgente destruidor das heresias e flagelo dos maus.”

 

A respeito de Santo Alberto Magno, temos uma biografia muito interessante(1) sobre a qual pretendo tecer alguns comentários.

São Tomás de Aquino: o mais ilustre de seus discípulos

Alberto, o Grande, nasceu por volta de 1206, em Laurigen, na Baviera. Depois de uma educação cuidadosa, recebida em sua infância, foi estudar Direito em Pádua. Lá ele encontrou o Bem-aventurado Giordano, mestre geral dos Irmãos Pregadores, cujos conselhos o engajaram a entrar na família dominicana.

Logo se fez notar por sua terna e filial devoção para com Nossa Senhora, e pela fidelidade de sua observância monástica. Enviado a Colônia para completar os seus estudos, era tão aplicado que parecia ter penetrado todas as ciências humanas, mais do que nenhum de seus contemporâneos.

Julgado digno de ensinar, foi nomeado professor em Hildesheim, Friburgo, Ratisbona, Estrasburgo, enfim na Universidade de Paris, onde ele demonstrou o acordo existente entre a fé e a razão, as ciências pagãs e as ciências sacras. O mais ilustre de seus discípulos foi São Tomás de Aquino, que lhe devia suceder na Sorbonne.

Poderoso intelectual, grande contemplativo e homem de ação

Ele voltou a Colônia para dirigir os Capítulos Gerais de sua Ordem, foi nomeado Provincial na Alemanha, depois Bispo de Ratisbona. Lá ele se dedicou a seu rebanho e conservou seus hábitos de simplicidade religiosa. Mas ele renunciou três anos depois, em 1262. Desde então exerceu o ministério da pregação, agiu como árbitro e pacificador dos príncipes e dos bispos, assistiu ao II Concílio de Lyon e morreu em 1280. Por decreto de 16 de dezembro de 1931, Pio XII o inscreveu no número dos Santos e o nomeou Doutor da Igreja Universal.

Num vitral da igreja dos dominicanos de Colônia podiam-se ler, a partir do ano de 1300, as seguintes palavras: “Este santuário foi construído pelo Bispo Alberto, flor dos filósofos e dos sábios, modelo dos costumes, refulgente destruidor das heresias e flagelo dos maus. Ponde-o, Senhor, no número dos vossos santos.”

Ele tinha por natureza, segundo se diz, o instinto das grandes coisas. Assim como Salomão, ele implorou o dom da sabedoria, que une intimamente o homem a Deus, dilata as almas e leva para cima o espírito dos fiéis. E a sabedoria lhe comunicou o segredo de unir uma vida intelectual intensa, uma vida interior profunda e uma vida apostólica das mais frutíferas, porque ele foi ao mesmo tempo o iniciador de um poderoso movimento intelectual, um grande contemplativo e um homem de ação.

O essencial é a vida interior

A linha geral da vida de Santo Alberto Magno está bem expressa quando se diz que ele refulgiu ao mesmo tempo nesses três dons. Ele se manifesta, nessas condições, como uma daquelas grandes figuras da Idade Média, que são os construtores e consolidadores dessa era histórica, a quem Deus deu graças para se tornarem salientes em todas as coisas, de tal maneira que se ele tivesse feito só uma delas, por exemplo, simplesmente tivesse sido o intelectual que foi, já seria um homem imortal.

Além de intelectual, ele foi um grande religioso e um grande contemplativo. E, como Santo, também só por isso teria a imortalidade. Por outro lado, apenas como modelo de bispo ele teria também uma fama durável em sua pátria.

Por que a Providência estabelece a conjugação desses três dons, e faz alguns homens brilharem nessas três pistas ao mesmo tempo? É para dar a entender a seguinte verdade: O homem deve ser, primeiro, de vida interior, e depois as outras coisas. Mas quando ele escolhe ser, antes de tudo, homem de vida interior, de fato ele põe a mais importante das condições para, nos outros campos, ser o que deveria.

Santo Alberto Magno foi muito maior como intelectual porque tinha vida interior. De maneira tal que se ele simplesmente quisesse ser um grande intelectual, pela mera ambição da cultura, ele tinha vantagem em continuar a vida interior. Se apenas desejasse ser um homem de ação, pela mera vantagem de o ser, ele deveria continuar a vida interior. Porque a vida interior verdadeira, plena, faz o homem executar a vontade de Deus com toda a perfeição e dá à alma recursos que são, em parte, a plenitude de seus recursos naturais e, em parte, carismas e dons que o fazem centuplicar as suas possibilidades. De maneira que ele fica muito maior nas outras atividades porque exatamente naquele elemento essencial ele soube ser grande.

Isso me faz lembrar um dito de Dom Chautard, o famoso autor de A alma de todo apostolado, para um político francês anticlerical, Clemenceau. Este, sabendo que Dom Chautard estava envolto em mil atividades, perguntou-lhe o seguinte:

– Como é que o senhor consegue levar a cabo tantas atividades num dia de 24 horas? Respondeu Dom Chautard:

– O segredo é que além de fazer tudo quanto faço, eu ainda rezo o Rosário. Então, acrescentando essa ocupação, há tempo para todas as outras.

É um paradoxo, porque acrescentando deveria diminuir o tempo. Mas nisso que parece uma brincadeira há uma verdade profunda: se dermos a Deus todo o tempo que devemos dar, dedicando-nos à vida interior, a Divina Providência velará por nós e teremos tempo para tudo. Essa é a grande verdade que se desprende da vida de Santo Alberto Magno.

Um elogio que desapareceu completamente

Eu gostaria de analisar rapidamente esse lindo elogio a ele, escrito no vitral da igreja dos dominicanos de Colônia:

Este santuário foi construído pelo Bispo Alberto, flor dos filósofos e dos sábios, modelo dos costumes…

Coisas positivas, construtivas.

…refulgente destruidor das heresias e flagelo dos maus.

Quando é que hoje se elogia alguém por ser um refulgente destruidor das heresias ou flagelo dos maus? É verdadeiramente incrível como nós caímos, a tal ponto que esse elogio desapareceu completamente…                v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1966)

 

Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

 

Igreja perfeita e alegria do mundo inteiro

Feita de cristal, a Sainte-Chapelle é o auge da beleza, da proporção, da união, da unção régia e da gravidade divina. A Catedral de Notre-Dame, entretanto, é o monumento que melhor exprime o espírito francês no seu equilíbrio perfeito. Outrora quiseram demoli-la: eis o sintoma da decadência extrema da sociedade.

 

A Sainte-Chapelle, capela mandada construir por São Luís IX para abrigar um dos espinhos da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo, está encastoada no “Palais de Justice” do tempo de São Luís – o qual foi destruído quase completamente – e exprime, a meu ver, o apogeu do sorriso francês.

Capela feita de cristal

É uma capela a respeito da qual posso dizer que não conheço coisa mais piedosa do que ela. É admirável. Exprime a alma de quem reza como se deve rezar, focalizando seu espírito em Deus e procurando falar com Ele com a confiança filial, a veneração sem nome, a adoração excelsa.

É uma capela feita de cristal! Ela tem umas colunas esguias que se levantam até ao teto, separando um vitral de outro. Mas entre vitral e vitral só há essas colunas muito delgadas, muito finas.

Essa obra-prima se manifesta quando os vitrais estão bem iluminados em dias de sol. Ali não se espelha só a alma que está rezando, mas há algo que nos fala de Deus enquanto atendendo a nossa oração. De maneira que temos a impressão de estarmos falando e que nossa voz encontra naqueles cristais uma certa receptividade, como se a voz batesse numa concha de bronze ou de cristal e de lá voasse, saindo depurada e mais bela, para cima.

Tem-se a impressão de que do alto vem a resposta, ao mesmo tempo divina, infinita, grandiosa, mas maternalmente tocada não sei de que modo, meio miúda para estar na pequena proporção do homem, que não tem medo que Deus tonitrue com ele. Pode-se dizer que o fiel reza sorrindo e que Deus sorri quando fala com ele. É um encontro de dois sorrisos, flores de seriedade, de meditação, de Fé, de graça que se encontram e se fundem num certo ponto do ar. Esse é o verdadeiro encontro da alma com Deus quando reza olhando para aqueles cristais.

Isso é o auge da beleza, da proporção, da união, mas não basta o sorriso, por mais que ele seja excelente, piedoso. Não é uma atitude que abranja o conjunto de nossas relações com Deus, nem das expressões do universo criado por Ele.

Unção régia, gravidade divina, seriedade majestosa

Deus criou coisas lindas que produzem muitas vezes sorriso. Quem vê um beija-flor passando de flor em flor e sugando o mel não pode deixar de sorrir. Mas se ele pensa que está quite com Deus a propósito do beija-flor porque sorriu enternecido, não compreendeu. O sorriso é uma das fases do pensamento humano, mas de fato este voa mais alto, é mais sério, mais profundo. O sorriso é um dos aspectos panorâmicos do nosso itinerário para o Absoluto, mas não é a razão do nosso olhar para a coisa.

Por esse motivo, a própria Sainte-Chapelle tem uma unção régia, uma gravidade divina, uma seriedade majestosa e composta, dentro da qual o sorriso é um aspecto. Por mais que se glorifique esse aspecto, ele não deixa de ser colateral que não pode ser transformado no principal. Pelo contrário, é uma espécie de momento em que Deus faz o homem descansar um pouco. Não é descansar d’Ele, mas é mostrar n’Ele e nas suas criaturas aspectos feitos para aliviar o homem neste vale de lágrimas.

Por exemplo, os esquilos. A conduta deles, como parecem compreender as brincadeiras que fazemos e quase brincar conosco! Vê-se que esse animalzinho foi feito por Deus para que uma alma se deleitasse, sorrisse, mas depois subisse ainda mais alto e pensasse: “Como Deus é grande. Entretanto, na grandeza d’Ele cabe tanta bondade que, ao dar aos homens todas essas magnificências, ainda deixou uma ‘caixa de bombons’ para os homens se deliciarem. Essa ‘caixa de bombons’ é o conjunto de coisas encantadoras da Criação, das quais o homem pode usar de vez em quando.”

Uma das melhores expressões de Nossa Senhora

Há um monumento que exprima o espírito francês no seu equilíbrio, na sua plenitude, onde o sorriso está presente como elemento colateral, mas não é a nota dominante?

Esse monumento – a meu ver, perfeito – é a Catedral de Notre-Dame de Paris, a propósito da qual me lembro das palavras da Escritura sobre Jerusalém, chamando-a de cidade perfeita, a alegria do mundo inteiro (cf. Lm 2, 15). Parece-me que Notre-Dame é a igreja perfeita e a alegria do mundo inteiro.

Ela sorri? É evidente. Ela é séria? É evidente. Ela é heroica? É evidente. Ela é materna? É evidente. Ela é mimosa? É evidente. Ela é imponente? É evidente. Não há o que ela não tenha de um modo discretamente evidente.

Há certos monumentos que a mim me desagradam porque têm um ar de quem diz: “Olhe, aqui estou eu!” Tem-se a vontade de responder: “E eu com isso?” A Catedral de Notre-Dame não é assim, ela está presente em Paris como uma mãe visitando o seu filho. Enquanto está ali, é a rainha da casa, para ela se voltam as atenções, é o centro de todos os carinhos, de todas as venerações, de todos os respeitos, mas não tira o lugar a ninguém, não empurra ninguém com os cotovelos, não olha ninguém de cima para baixo; ela apenas diz: “Eu sou a mãe.” Essa nota materna que deve ter feito pulsar o coração de tantos Cruzados define bem a igreja de Notre-Dame.

Eu venero e quero tanto essa igreja que na orla dos castigos previstos em Fátima, se Nossa Senhora me permitir, pedirei a Ela: “Minha Mãe, castigai quem e como quiserdes. Não castigueis a Igreja de Notre-Dame, porque ela é uma das melhores expressões de Vós mesma nesta terra de pecado.”

Termômetro da extrema decadência da sociedade

Nas vésperas da Revolução, a França chegara a tal decadência que o Conselho de Estado, sob a presidência do Rei, tinha assinado uma resolução para demolir a Catedral de Notre-Dame como igreja antiquada, não correspondendo mais aos anseios estéticos dos tempos novos, para ser construído em seu lugar um templo grego inspirado nos templos da antiguidade pagã.

Por aí vemos, num lance só, a que extremos chegara a decadência daquela sociedade. Os homens eram tão revolucionários que os nobres, cujas cabeças a Revolução cortou, queriam derrubar a Catedral de Notre-Dame, essa igreja medieval que todos os povos da Terra querem contemplar quando vão a Paris, símbolo perfeito da Contra-Revolução, para substituir por um templo que representava perfeitamente a Revolução daquele tempo. Seria a implantação dos restos do paganismo – derrubado, escangalhado, rejeitado, pisado aos pés pelos séculos – que deveria ser restaurado em Paris. Compreende-se a desordem, o caos e a decadência da França que isso representava.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/10/1994)
Revista Dr Plinio 260 (Novembro de 2019)