Santo André, Apóstolo: imitador do Divino Mestre em sua Paixão na Cruz

Ao ler a narração da morte de Santo André, Apóstolo, Dr. Plinio incentiva, uma vez mais, seus filhos espirituais ao amor à Cruz.

A Igreja comemora no dia 30 de novembro a festa do Apóstolo Santo André. Extraídas do Pe. Rohrbacher, como também do Abbé Daras, são as seguintes notas biográficas que passaremos a comentar.

“Santo André, primeiro Apóstolo a reconhecer Cristo, ao qual levou seu irmão Pedro, futuro primeiro chefe da Igreja, teve sempre um grande amor à Cruz. Na hora de sua morte, ao ver o madeiro no qual iriam pregá-lo, saudou-o com alegria.”

A saudação de Santo André à Cruz, feita neste momento, não deve ser considerada como pura literatura, pois cada palavra contém uma gravidade e um significado. Depois de açoitado, e ensanguentado, diante de sua cruz, a qual era em forma de “X” — por isto conhecida como Cruz de Santo André — está postado o Apóstolo mártir. Diante dela ele profere as seguintes palavras:

Cruz belíssima, desejada e amada com doçura

“Ó Cruz belíssima, que foste glorificada pelo contato que tiveste com o Corpo de Cristo! Grande Cruz, docemente desejada, ardentemente amada, sempre procurada, e afinal preparada para meu coração apressado, desejoso de ti.”

Eis a beleza da exclamação de um homem para a hora do sofrimento que Deus preparou para ele, e para a aceitação do cálice que ele tem de beber, a fim de obter sua glória no Céu. Cálice este, que, quando não sorvido, não alcança o prêmio celeste. Chega afinal a hora de seu máximo sofrimento, de seu martírio. Ele conhece o sofrimento, pois refletiu incontáveis vezes sobre a Paixão de Nosso Senhor, que assume sua alma nessa circunstância.

A cruz, que era um objeto de desprezo, um instrumento de punição para criminosos, contudo é por ele intitulada como “cruz belíssima”.

Por que belíssima? Ela foi glorificada pelo contato que teve com o Corpo de Cristo. Então ele acrescenta que a desejara com doçura.

Neste gesto é possível notar os inúmeros anos de amor ao martírio, que lhe tinha sido previsto e profetizado, a espera do momento em que ele faria por Deus este ato de holocausto desinteressado. Por amor a Jesus, ele deixou-se matar, assemelhando-se ao vaso de Santa Maria Madalena, quebrado com unguento junto aos pés do Senhor, sem utilidade prática, num ato de amor  desinteressado, em holocausto que não tinha outra razão de ser, senão seu próprio sacrifício. De forma tal que mesmo não sendo útil às almas, ou edificante para muitos, e ainda que não fosse uma humilhação para os adversários da Igreja, para manifestar a Deus que ele levava seu amor até aquele ponto, desejou a Cruz docemente, como algo suave.

Que beleza é a alma de um mártir, e quão belos sãos os esplendores existentes na alma de um mártir!

O que dá sentido à vida não é o prazer, mas a Cruz

“Grande Cruz, docemente desejada, ardentemente amada,…”

De todos os modos os homens fogem do sofrimento. O sofrimento é exatamente o que não desejam. Qualquer forma de luta contra as paixões, qualquer forma de renúncia ao mal, causa-lhe horror. A ideia predominante é de que a vida foi dada ao homem para que ele possa obter proveitos e vantagens, e que é preciso gozá-la, e o que não é fruir a vida, é morrer.

Pelo contrário, Santo André amava ardentemente sua cruz, compreendendo que o verdadeiro sentido da vida de um homem não é o gozo ou o prazer que tem, mas o sacrifício que pratica. Isto dá sentido à vida de um homem e, portanto, todo homem verdadeiramente sobrenatural, verdadeiramente homem, almeja o encontro com sua grande Cruz, com seu grande martírio.

Este é o filho da Cruz, o amigo da Cruz, como fala São Luís Grignion de Montfort.

Amar a Cruz, da qual todos fogem

“… sempre procurada…”

Não são muitos os homens que no momento de prestar contas a Deus, podem dizer que sempre buscaram a Cruz, e que em todos os acontecimentos de sua vida procuraram o sacrifício. Pelo contrário, geralmente os homens fogem da Cruz, pois não desejam de forma alguma o sacrifício. Entretanto, Santo André pôde dar de si mesmo o testemunho: “sempre procurada”. Assim, no instante de ele aproximar-se de sua cruz, estava disposto ao sacrifício.

Continua:
“… e afinal preparada para meu coração apressado, desejoso de ti.”

Manifesta-se aqui que Deus afinal concedera a Cruz para o coração que tinha grande afã da crucifixão.

O martírio significa o último holocausto. Nosso Senhor afirmou: “Ninguém tem um maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo 15, 13).

Ninguém pode dar maior prova do amor de Deus, do que desejar desta forma a Cruz.

“Cruz preparada para o meu coração, desejoso de ti, recolhe-me, ó cruz! Realmente abraça-me, retira-me dos homens, leva-me depressa, diligentemente, ao Mestre. Por ti Ele me receberá, Ele que por ti me resgatou.”

Pode haver uma oração mais bela do que esta? Existirá uma alma mais pronta para a visão beatífica do que uma alma que no momento da morte fala de tal forma?

Pode haver cátedra semelhante à Cruz?

“Por três dias esteve pregado na cruz, e durante três dias, do alto da cruz, ensinou aos homens”.

O fato é tão impressionante que pertence àqueles aos quais não competem comentários… Ficar dias preso à cruz, pregando ao povo, e ao cabo desses dias morrer, é um milagre extraordinário.

Apresenta a cruz como a mais grandiosa e augusta de todas as cátedras, cátedra do homem que sofre e, em nome de seu sofrimento, fala ao povo e produz enorme impressão. É uma tão grande plenitude de apostolado, que verdadeiramente não se sabe o que dizer.

Imaginemos um homem que era idoso, atado à cruz, no desconforto tremendo daquela situação, com açoites marcando seu corpo, possivelmente com as mãos e os pés perfurados. Nessa dor tremenda é mantido em vida por um verdadeiro milagre. Continua pregando ao povo, e a um povo ardoroso, contrito, provavelmente genuflexo, que lhe “bebia” as palavras, uma por uma. É uma das mais belas cenas de pregação católica de todos os tempos e de todos os lugares.

Pode-se imaginar quais foram as palavras, os ensinamentos, as graças, enfim, o martírio de Santo André? Que cátedra! Quem durante a vida possuiu uma cátedra semelhante à Cruz?

“Senhor, Rei Eterno da glória, recebei-me assim pendido como estou ao madeiro, à Cruz tão doce. Vós sois meu Deus, Vós a quem vi. Não permitais que me desliguem da Cruz; fazei isto por mim, Senhor, que conheci a virtude da Vossa Santa Cruz.”

E com estas palavras expirou.

Prêmio no Céu e nesta terra

Uma morte tão pulcra, da qual poder-se-ia dizer que apenas a de Nosso Senhor superou em beleza, era merecedora das maiores honras por parte da Santa Igreja, como de fato constatou-se séculos depois.

“Santo André foi sempre objeto de grande devoção por parte dos católicos. Assim foi, com indescritível entusiasmo, que a cabeça do santo foi recebida em Roma por Pio II, a 11 de abril de 1462. O Papa dirigiu-se ao encontro da preciosa relíquia. O cardeal grego, Besarion apresentou-lhe a caixa que a continha, e que estava colocada sobre um estrado. Antes de receber o sagrado depósito, Pio II pronunciou tocante alocução. Depois, beijou, chorando, a cabeça do Apóstolo, rezou diante dela; em seguida tomou-a nas mãos, segurando-a bem no alto, fez a volta no estrado para mostrá-la a todos os assistentes. Neste ponto, cantos e gritos dessa imensa multidão elevaram-se de todas as partes como uma única e grande voz, implorando a misericórdia de Deus.

A cabeça do Apóstolo foi depositada em São Pedro.”

Vê-se a descrição da linda cerimônia com que o Papa Pio II recebeu a relíquia de Santo André. O crânio de Santo André estava no Império Bizantino, infelizmente cismático. E à medida que os turcos invadiam o Império, algumas das relíquias insignes foram sendo retiradas do Império e levadas por mãos fiéis para terras católicas, onde pudessem ser adequadamente veneradas. Assim ocorreu com o crânio sagrado de Santo André.

Esse crânio foi recebido pelo Papa com toda a veneração narrada. Ele mesmo toma o relicário onde estava o crânio, e dá a volta no estrado para mostrar ao povo que o crânio de Santo André estava em Roma. Depois, o crânio, com enorme veneração, é levado até à Basílica de São Pedro e é colocado num relicário embutido numa das colunas da Basílica Vaticana.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/11/1964 e 29/11/65)

Sabedoria, certeza e contemplação

A existência humana, entre outras coisas, é própria a ser objeto de uma análise que abarque todo o seu conjunto. Nesse sentido, há pessoas que passam pelo jogo da vida e nada compreendem. Outras, prestam demasiada atenção em si mesmas para se inteirar do restante da humanidade. Outras, ainda, embora sem se importarem tanto consigo, não atingem a síntese ideal que seria uma conjugação das melhores disposições com que se tomam os interesses individuais e os coletivos.

Deve haver, portanto, diante da vida, uma noção e um conhecimento que sejam a arquitetura de todas as impressões que o quotidiano humano nos oferece, o qual tem de ser, por isso mesmo, observado e contemplado com sabedoria. Sabedoria e arquitetura estas que nos fazem compreender os supremos valores da vida e, por esse caminho, nos conduzem a conhecer algo a mais da infinita perfeição do Criador que dispôs assim a ordem terrena.

A meu ver, magnífica expressão desse estado de espírito sábio e contemplativo são as esculturas dos profetas de Aleijadinho. Em todas aquelas fisionomias transparece essa visão do conjunto da existência humana, e aqueles olhos grandes, dir-se-ia abertos para um superior conhecimento da vida.

Figuras de varões que nos transmitem a sensação da profunda certeza que os anima, certeza da missão que lhes foi confiada, certeza que os toma por inteiro e que passa pelo temperamento de cada um como o talento de um músico passa através do instrumento que ele toca. Um profeta daqueles, pelo seu porte, seu jeito, sua atitude, é uma orquestra de expressão de uma grande convicção que ressoa como uma sinfonia.

Diante deles, sentimos o nosso próprio ser como que deliciosamente invadido pela sua presença, por essa certeza, essa sabedoria e contemplação que eles exprimem, não para sermos censurados, mas elevados. Nós nos sentimos descansados, animados, afagados e protegidos. Sentimo-nos mais nós mesmos, porque ele está ali, profeta que contempla e compreende a vida. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 18/5/1963 e 17/4/1977)

Revista Dr Plinio 128 (Novembro de 2008)

A mais augusta das cátedras

Santo André amava ardentemente a sua cruz, compreendendo que não é o gozo e o prazer que dão sentido à vida de um homem, mas o sacrifício que ele realiza. Portanto, todo homem verdadeiramente sobrenatural deseja carregar sua própria cruz.

Nosso Senhor disse: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Ninguém pode dar maior prova do amor de Deus, do que desejar, por esta forma, a cruz.

A cruz é a mais grandiosa e augusta de todas as cátedras. É a cátedra do homem que sofre e que, em nome e com os acentos de seu sofrimento, fala ao povo. Isso representa uma tal plenitude de apostolado, que verdadeiramente não se sabe o que dizer!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/11/1964 e 29/11/1965)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)     

Patriotismo autêntico

Numa era em que a verdadeira noção de patriotismo havia sido deformada, Dr. Plinio demonstra aos brasileiros  qual é o verdadeiro sentido desta palavra, e quais os verdadeiros valores desta Nação tão grande no seu tamanho, na sua vocação e na sua missão histórica.

 

Um dos erros mais nefastos de que foi impregnada a educação de minha geração foi o patriotismo entusiasmado e incondicional, que se impunha em todas as escolas, como um inelutável imperativo da Moral.

Em via de regra, não havia, nem mesmo em certos cursos de Religião, uma explicação esclarecida e consciente do que seja a virtude do patriotismo, o seu exato sentido, os deveres que ela impõe e as deformações com que o espírito do mundo costuma desfigurá-la.

Em muito mais de 50% dos casos, ser patriota era achar que o Brasil é o mais rico país do mundo, que não há aqui um palmo de solo que não seja imensamente fértil, um palmo de subsolo que não seja imensamente rico, e um litro de água de rio ou de mar que não seja imensamente piscoso. A esta torrente de riqueza, acrescente-se uma beleza incomparável: em nenhum lugar do mundo é permitido haver um sol tão claro, estrelas tão numerosas, mar tão azul, cumes dos montes que ofereçam panoramas mais belos, vales que proporcionem remansos mais tranquilos e mais atraentes do que no Brasil.

Achar o contrário é ser um indivíduo sem inteligência e sem patriotismo. Sem inteligência, porque até as aves do poeta perceberam estas belezas e riquezas, a tal ponto que gorjeiam aqui de um modo diverso do que acontece no mundo inteiro, e muito deplorável seria que um homem não percebesse o que até as aves percebem! Sem patriotismo, porque é achincalhar sua própria pátria avançar timidamente a opinião de que talvez haja lugares mais férteis alhures, por esse mundo afora, do que as zonas velhas de São Paulo ou certas caatingas do Norte do Brasil. Como? Então, pode-se admitir que um brasileiro reconheça que talvez as florestas da Índia ou as pastagens da Suíça sejam mais aproveitáveis do que o mais surrado e mais estéril dos palmos de nosso território? Não é isto um crime de alta-traição?

Como todos os erros que se apresentam dissimulados no meio de uma forte dose de verdade, também esse erro não tardou em se propagar e adquirir ares de verdade dogmática e intangível. Todas as aparências conspiravam para isto. Porque, se é estúpido imaginar que no Brasil tudo deva ser necessariamente superior ao que existe em outros países, é certo, por outro lado, que a Providência nos galardoou com escolhidíssimos dons naturais.

Destes dons, o Brasil tem alguns que nenhum outro país do mundo pode se jactar de possuir. Outros, nós os temos em grau apreciável, embora menor do que certas regiões da Europa, da Ásia e da África. Raros, entretanto, são os países que podem inventariar em seu território uma tão larga, tão rara e tão preciosa série de riquezas quanto o Brasil. Poder-se-ia imaginar, para o patriotismo de quinquilharia, um pretexto melhor, a fim de fazer circular a ufania jactanciosa e falsa que o caracteriza?

* * *

Há muita gente que imagina que a única forma de combater uma verdade consiste em negá-la redondamente. Este é apenas o processo dos simplórios. O modo mais subtil e mais perigoso consiste em exagerar a verdade. Com isto, a gente fornece aos seus adversários pretextos para combatê-la, e a gente a desacredita no espírito dos que a amam. Por isto mesmo, a Igreja não tem, talvez, inimigos mais perigosos do que os que pretendem ser mais austeros, mais penitentes e mais ortodoxos do que o Papa manda que se seja. Talvez a pior forma de heresia consista em pretender-se ser mais católico do que o Papa.

Foi isto que se deu com o patriotismo. Os literatos do fim do século passado e do início deste século o laicizaram, lhe tiraram todo o conteúdo sério e o exageraram, dando-lhe uma extensão e uma pretensão injustificáveis. Tanto bastou para que, no seio de minha geração — que foi talvez a última leva de cobaias desta sinistra experiência ideológica —, o patriotismo, por uma compreensível reação, começasse a ser substituído pela fascinação do internacionalismo esquerdista ou do cosmopolitismo. Deste, sobretudo, nas classes mais ricas e mais elevadas de São Paulo.

Para justificar tal reação, os mais claros pretextos eram fornecidos pela própria escola de patriotadas em que fôramos formados. Realmente, basta andar um pouco pelo interior, para certificar-se a gente de que Deus deu ao Brasil uma riqueza imensa, mas que nem por isto o dispensou da lei comum de todas as regiões da Terra, que consiste em ter também certas porções muito menos aproveitáveis para o uso atual do homem. Desta verificação, nasceu um espírito de blague fácil e elegante. Tornou-se divertido fazer graças a respeito da “Pátria amada, idolatrada, salve, salve”.

O patriotismo é uma virtude sublime. Tanto basta para que todas as suas deformações e corrupções possam facilmente ser postas a ridículo: “corruptio optimi pessima”. E, por isto, com um espírito criminosamente iconoclasta, com um sorriso displicentemente revolucionário, muitos e muitos elementos de minha geração apostataram da escola oficial do patriotismo de convenção.

Outros, talvez, fizeram pior. E confesso que, se não fosse o Catolicismo, único parapeito que o homem encontra entre si e o abismo, também eu teria alguma complacência para com este erro. Procede ele de uma reflexão também sugerida pelo patriotismo convencional que circulou (deve-se falar no pretérito perfeito, ou no presente?) por aí. Admitamos que o Brasil seja tudo quanto se diz. E o homem? O que faz o homem no Brasil? Por que não foi ele capaz de aproveitar estas riquezas para construir uma civilização de forte conteúdo espiritual e de alto valor material? País muito novo? E os Estados Unidos, cuja civilização, se não tem o primeiro requisito, tem ao menos o segundo?

Daí uma atitude de desolação vexada e irritada para com o homem brasileiro, atitude esta aguçada pelo endeusamento sistemático de tudo quanto era europeu, que também se notou em nossa educação. Positivamente, como disse alguém com muito espírito e muita verve, conquanto sem nenhuma razão, o Brasil é um deserto de homens e de idéias. Um povo tão incapaz, habitando um país tão magnífico, dava-me uma impressão não muito diversa dos gregos dos séculos anteriores ao nosso, habitando com uma inconsciência revoltante ao lado dos monumentos inesquecíveis, erguidos pelo talento de seus avós.

Ingenuamente, eu e muitos como eu, deixamo-nos persuadir mais ou menos de que o samba, as modinhas dengosas e lascivas,(…) a escassez de manifestações artísticas de real valor, eram expressões autênticas e definitivas do vácuo interior da alma nacional. Muitos literatos da famosa escola do patriotismo incondicional, apregoavam tudo isso como distintivo do brasileiro, e procuravam ver em tudo isso algum pitoresco. Esse pitoresco não nos seduzia, mas, pelo contrário, nos repelia. E daí um divórcio profundo entre nós e a alma do Brasil.

Mas — e entrou aí um imenso “mas”, um “mas” salvador e orientador, com tudo quanto procede da Igreja — a Doutrina Católica é incompatível com semelhante modo de ver.

Todos os povos foram criados por Deus e para Ele. E nenhum deles foi tão desfavorecido pela divina munificência, que seja incapaz de se separar, com o auxílio da graça, até mesmo dos piores e mais graves defeitos morais. Essa imagem de um Brasil irremediavelmente mole e sensual, de um Brasil definitivamente preguiçoso e inepto, de um Brasil inseparável da modorra, do comodismo, do espírito de transigência e de acomodação, é uma imagem que insulta o próprio Criador. O Brasil tem, certamente, em dose desigual, esses defeitos. Mas é uma blasfêmia supor que, com o auxílio da graça, tais defeitos não possam ser removidos. Pensar assim é cair no materialismo mais crasso e no mais criminoso determinismo.

Um exame mais atento da História do Brasil convenceu-me, por outro lado, que os fatos demonstram à saciedade a grandeza de alma com que Deus dotou o brasileiro. Basta ler, sobretudo, nossa história religiosa, para que se possa ver claramente que o brasileiro, quando se empolga por um ideal que dele se apodera inteiramente, é capaz de chegar aos mais extremos sacrifícios, aos mais árduos esforços, às mais absolutas privações. É um erro imaginar que o indiferentismo é um traço distintivo do brasileiro. Quando o brasileiro se deixa dominar por um ideal, ele se torna coerente e intransigente como os que mais o sejam. E nem é preciso afundar até um passado muito remoto, para se ter disso uma ideia exata.

Em uma grande reunião católica, citei três exemplos do que pode um brasileiro que abre generosamente seu coração à graça de Deus. Destes três exemplos, dois são mortos, e por isso posso novamente referir-me a eles. Quem, em energia, em santa intransigência, em combatividade inflexível e infatigável, em sublime austeridade e rigidez de costumes, em severa têmpera de caráter, em magnífica grandeza de alma, excedeu no Brasil o saudoso Dom Duarte Leopoldo e Silva? Quem, em ardente espírito de luta, em abnegação, em heroísmo, em espírito epicamente cavalheiresco, excedeu Jackson de Figueiredo? Ante estas duas grandes figuras rijas como o ferro e heroicas como o fogo, quem ousaria ainda dizer que o Brasil é um deserto de homens e de idéias, um triste deserto onde os homens perdem as idéias e quase deixam de ser homens?

Um escritor apresentou certa vez a seus leitores a figura de um cego, interrogando pelas ruas a todos os que passavam: “Oh tu, que tens a luz, o que fazes dela?” A mesma pergunta se poderia fazer a nós, católicos. O que fazemos nós, que temos dentro da Igreja, não apenas a luz, mas a luz meridiana de uma verdade plena?

Por que não compreendemos plenamente, e não gritamos em alta voz, que o Brasil se tem às vezes parecido um deserto de homens e de verdade, é isto exclusivamente porque não se entregou inteiramente ao domínio do Homem-Deus e da Verdade que Ele veio trazer ao mundo?

Lemos diariamente, nos Santos Evangelhos, que o Salvador curava os cegos, os aleijados, os paralíticos, os loucos, e que essas curas afirmavam implicitamente seu poder para curar todas as misérias morais do homem. Por que, então, não acreditamos realmente, seriamente, ardentemente, entusiasticamente, que na Sagrada Eucaristia todos os defeitos do Brasil poderão ser curados, e que o brasileiro ainda poderá ser um homem à altura das grandezas materiais dentro das quais nasceu?

“Envia o vosso Espírito, e todas as coisas serão criadas, e será renovada a face da Terra”, exclama a sagrada Liturgia. E esse Espírito que criou o mundo e que pode renová-lo, não quererá ou não poderá renovar este Brasil que Ele próprio criou?

 

Plinio Corrêa de Oliveira Extraído de “O Legionário” de 29/1/1939)

Santo André Apóstolo

Quando lemos a narração evangélica sobre o encontro de Jesus com seus primeiros discípulos, não podemos deixar de louvar a fidelidade de Santo André.

Fiel a São João Batista, ele não hesitou um instante em obedecer à orientação do Precursor que lhes apontava o Cordeiro de Deus a ser seguido. Nosso Senhor era a realização da profecia do Batista. E Santo André, dócil à voz da graça, teve a glória de dar início à grandiosa história dos apóstolos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora e a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução – I

A Revolução é propulsionada sobretudo por dois vícios: o orgulho e a impureza. Para esmagá-la é necessário praticar as virtudes, o que somente se consegue pela graça. Sendo Maria Santíssima a Medianeira universal e o canal por onde passam todas as graças, o auxílio das suas orações é indispensável para que seja derrotada a Revolução, triunfe a Contra-Revolução e o Reino de Maria se estabeleça.

 

São Luís, na Contra-Revolução. E, em terceiro lugar, os traços da temática “Revolução e Contra-Revolução” dentro do Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

A RCR apresenta a Revolução como um movimento nascido de uma deterioração moral. São dois vícios fundamentais, o do orgulho e o da impureza, que constituem no homem uma incompatibilidade com a Doutrina Católica, debaixo do seguinte ponto de vista: A Igreja Católica como ela é, a doutrina que ela ensina, o universo que Deus criou, e que podemos conhecer melhor através dos prismas da Santa Igreja, são assuntos que o homem virtuoso, puro e humilde apetece. Ele tem enlevo e alegria em ver que essas coisas são assim, e aceita tudo isso de bom coração.

Mas, se uma pessoa cede algo ao vício do orgulho, começa a formar-se nela uma incompatibilidade com vários aspectos da obra de Deus. É uma inconciliabilidade, de início, com o caráter hierárquico da Igreja, depois com o da sociedade civil. Ou em ordem inversa. Em seguida, uma incompatibilidade com o caráter hierárquico da família. E assim vai o igualitarismo se desenvolvendo até chegar ao sumo do comunismo. Quer dizer, há toda uma metafísica contrária à Doutrina Católica proveniente de uma incompatibilidade da alma viciosa com a obra divina, e que nasce do orgulho.

Uma coisa mais ou menos paralela a essa se poderia dizer da impureza. O homem impuro tem os elementos necessários para implicar com a ordem estabelecida por Deus. Ele é levado normalmente para o liberalismo. Irrita-lhe a existência de uma regra, um freio, uma lei que circunscreva o transbordamento dos seus sentidos. Com isso, tudo quanto é ascese começa a lhe parecer implicante. Naturalmente, surge uma implicância contra o próprio princípio da autoridade enquanto tal.

O resultado é que, a partir da impureza e do orgulho, formam-se os elementos necessários para uma visão diametralmente oposta à obra de Deus. Essa visão já não é, portanto, diferente num ponto ou noutro da Doutrina da Igreja, mas à medida que esses vícios vão se aprofundando, e ao longo das gerações, tornam-se mais acentuados, vai-se estruturando toda uma concepção que não é apenas outra, mas é a mais contrária possível. E acaba sendo, em última análise, a concepção gnóstica e revolucionária do universo.

A Revolução tem como causa moral o orgulho e a sensualidade. Assim, todo o problema da Revolução e Contra-Revolução, no fundo, é uma questão moral. O que está dito nas linhas ou nas entrelinhas da RCR é que, se não fosse o orgulho e a sensualidade, a Revolução como movimento organizado no mundo inteiro não existiria, ela não seria possível.

Toda preservação ou regeneração moral verdadeira decorre da graça divina

Ora, se no âmago do problema da Revolução e da Contra-Revolução temos uma questão moral e, portanto, religiosa – porque todas as questões morais são substancialmente religiosas, já que uma moral sem religião é a coisa mais inconsistente que se possa imaginar –, conclui-se que a luta da Revolução e da Contra-Revolução é, em seu cerne, uma luta religiosa.

Assim, se nos encontramos no terreno da luta religiosa, compreendemos melhor o papel de Nossa Senhora na Contra-Revolução. Se uma crise moral origina o espírito da Revolução, então é verdade que essa crise só pode ser remediada com o auxílio da graça. A Igreja nos ensina que os homens não podem cumprir estável e duravelmente, na sua integridade, a Lei de Deus, com simples recursos naturais. Para cumprir os Mandamentos divinos necessitamos da graça.

Se por outro lado o homem cai no estado de pecado e se acumulam nele as apetências para o mal, essa situação moral, a “fortiori”, sem a ajuda da graça não pode ser resolvida, sendo necessários auxílios de caráter sobrenatural para o homem sair do estado em que caiu. O resultado é que toda preservação ou regeneração moral verdadeira decorre da graça divina.

Vemos, então, facilmente o papel de Nossa Senhora. Por ser Ela a Medianeira universal e o canal por onde passam todas as graças vindas de Deus, nós compreendemos que o auxílio das suas orações é indispensável para que seja derrotada a Revolução, e o Reino de Maria se estabeleça.

As graças poderão ser assim obtidas, mas se não forem correspondidas pelos homens, é inevitável que a Revolução triunfe. Logo, esse afluxo de graças sobre os homens fiéis é elemento fundamental para que a Revolução seja derrotada. Depende de Deus, é claro, mas Ele quis, por um ato livre de sua vontade, fazer isso depender da Santíssima Virgem, para a glória d’Ela e de seu Divino Filho. Donde se deduz que a devoção a Nossa Senhora é a condição para que a Revolução seja esmagada e a Contra-Revolução triunfe.

Insisto neste aspecto por ser muito importante: se tomarmos uma humanidade fiel às graças que receba por meio de Maria Santíssima para a prática dos Mandamentos, e esta prática se tornar um fenômeno geral, é inevitável que a sociedade acabe se estruturando bem, porque com o estado de graça vem a sabedoria, com a sabedoria todas as coisas entram nos eixos. Não é preciso fazer grandes estudos de Sociologia, Economia e finanças para conseguir isso. Porque com o estado de graça, não só pelo movimento natural, espontâneo, intrínseco de cada homem, tudo tende a regularizar-se, mas os estudos necessários se farão excelentemente e atingirão o seu resultado.

Quando há uma recusa da graça, nada anda. Se alguma coisa caminhar, é pior do que se não andasse. É como a civilização contemporânea: ela se construiu sobre a recusa da graça e alcançou alguns resultados estrepitosos, os quais devoram o homem. Os países dos grandes resultados são os países das psicoses. Embora essa ordem de coisas pareça ser uma afirmação do homem, na realidade o devora. Quer dizer, o homem, sem a graça, ou não constrói nada ou edifica um cárcere, uma câmara de tortura, um palácio de delícias no qual ele sofre mais do que num campo de concentração.

Ao mínimo ato de império de Nossa Senhora o Inferno inteiro treme

Isso posto, podemos dizer que, quanto maior a devoção a Nossa Senhora, mais aberto estará o canal de graças. Se for uma devoção inteiramente autêntica, é infalível que a oração seja atendida e as graças chovam sobre um determinado indivíduo ou país.

Porém, se a devoção à Santíssima Virgem comportar restrições, for defectiva, então a graça também encontra da parte do homem implicitamente uma certa resistência. Nisto mesmo ele já é ingrato, e acaba acontecendo que toda a vida, a seiva da sociedade, deperece.

Costuma-se dizer que, na economia da graça, Nossa Senhora está de tal maneira que Jesus Cristo é a Cabeça do Corpo Místico, e Ela seria o pescoço, porque tudo passa através d’Ela. A imagem é inteiramente verdadeira na vida espiritual de uma pessoa. Imaginem alguém com pouca devoção à Mãe de Deus: é como o indivíduo com uma corda atada ao pescoço, a qual lhe permite um fiozinho de respiração. Quando não tem nenhuma devoção, ele está asfixiado. Se, pelo contrário, ele possuir uma grande devoção à Virgem Maria, o pescoço está inteiramente livre, o ar penetra nos pulmões a plenos haustos e o homem pode viver normalmente.

Não estou dizendo que a coisa sai automaticamente, mas sim que, havendo a correspondência à graça, forçosamente tudo se estrutura bem. Não basta trabalhar, estudar, organizar. O grande problema fundamental é haver a correspondência à graça.

Em sentido oposto, poderíamos afirmar o mesmo a respeito do demônio. Porque o papel dele na eclosão e nos progressos da Revolução foi enorme. Foi o demônio que conseguiu tentar o homem, induzindo-o a uma posição revolucionária e a extremos revolucionários, que estão abaixo até da miséria humana. E a fazer uma Revolução como a atual, a qual é pior do que o grau de decadência da natureza humana.

Se o demônio não estivesse ali para tentar o homem, a coisa não teria saído tão terrível quanto ela é. Ora, este fator de propulsão tão forte da Revolução está inteiramente na dependência de Nossa Senhora. Porque basta Ela ter o mínimo ato de império que o Inferno inteiro treme, se confunde, se recolhe e desaparece. Basta, pelo contrário, Ela entender que, para o castigo dos homens, é conveniente deixar o demônio com certo raio de ação, que ele progride tanto quanto Ela deixar, mas o demônio está debaixo da dependência d’Ela completamente.

Então, os fatores enormes da Contra-Revolução e da Revolução, que são a graça e o demônio, dependem do império e do domínio da Santíssima Virgem. Vemos, portanto, uma vez mais, o papel de Nossa Senhora na Revolução e na Contra-Revolução.

Maria Santíssima é a Rainha do universo

É preciso acrescentar que a mediação de Maria Santíssima deve ser considerada do ponto de vista da oração, porém Ela não é apenas Aquela que reza por todo o universo, mas a Rainha do universo, e essa realeza é verdadeira.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, dizer que Nossa Senhora é Rainha é conversa, porque Ela faz tudo quanto Deus quer, é escrava de Deus. Portanto, em última análise, a Santíssima Virgem não é Rainha. Ela é simplesmente como um vidro transparente e inerte através do qual passam os raios divinos, mas o verdadeiro Rei é Deus”.

Entra aqui uma finura, que é preciso considerar: imaginem um diretor de colégio que tem alunos sumamente insubordinados; ele os castiga e impõe uma ditadura de ferro no colégio. Depois o diretor se afasta e diz à mãe dele o seguinte:

“Sei que vós governareis esse colégio de um modo diferente do meu, porque eu governo com vara de ferro e vós tendes um coração materno. Quero que agora governeis vós e não eu. Eu vos dou a direção do colégio.”

Esta senhora vai dirigir o colégio como o diretor quer, mas por um método que é dela e não dele. E que ao mesmo tempo representa a vontade dela enquanto distinta da dele, mas em que ela faz inteiramente a vontade do diretor.

Assim é Nossa Senhora como Rainha do universo. Nosso Senhor deu a Ela, que é unicamente Mãe e não tem papel de juiz, uma realeza cuja misericórdia vai além daquilo que a justiça de Jesus Cristo, e a sua posição de juiz, propriamente Ele quer exercer. Então Nosso Senhor coloca-A como Mãe, com todas as indulgências, todos os extremos de misericórdia da mãe, que a autoridade paterna de si não comporta. Ele A coloca como Rainha do universo para esse efeito, a fim de governar o universo assim. E a vontade d’Ele é que Ela faça algo que Ele não poderia realizar.

É, portanto, enquanto se distingue de Nosso Senhor que Ela, Rainha do universo, melhor faz a vontade d’Ele. Então há um regime verdadeiramente marial de governo do universo. E este regime explica o papel de Nossa Senhora como quem dirige, dispõe dos acontecimentos, decreta aquilo que deve acontecer. É claro que sempre inspirada por Deus, em união com Ele, etc. Maria Santíssima é infinitamente inferior ao Onipotente, isso é evidente, mas Ele quis livremente dar-Lhe este papel por um ato de liberalidade d’Ele. Então, é Nossa Senhora que regula o curso dos acontecimentos terrenos. Depende d’Ela a duração da Revolução e da Contra-Revolução. É Ela que intervém nos acontecimentos para que a Revolução não vença. Basta lembrar de Lepanto, por exemplo.

Quantos outros fatos da História da Igreja houve em que a Santíssima Virgem deixou claro ser uma intervenção direta d’Ela que influía nos episódios! E então se compreende que, mais do que Medianeira onipotente e suplicante, Ela é verdadeiramente a Rainha que conduz os acontecimentos e dirige a História.

Quando a Igreja canta a respeito da Mãe de Deus “Tu só exterminastes todas as heresias no universo inteiro”, afirma que o papel d’Ela nesse extermínio foi como que único. Quem promove a eliminação das heresias dirige os triunfos da ortodoxia, quem governa uma coisa e outra dirige a História. Ela é verdadeiramente a Rainha. Esta realeza de Nossa Senhora nos dá uma visão a mais do papel d’Ela dentro de toda a problemática R-CR.

Minguamento da devoção a Nossa Senhora: causa de todas as vitórias da Revolução

Esta noção a respeito de Maria Santíssima está ligada à mediação universal. E me parece que explica bem como a devoção a Nossa Senhora está absolutamente na raiz de todas as vitórias da Contra-Revolução.

Haveria um trabalho interessante de História para fazer, mostrando que, quando o demônio começa a vencer, é porque ele consegue minguar a devoção à Santíssima Virgem. Todas as decadências da Cristandade e todas as vitórias da Revolução têm como ponto de partida uma diminuição na devoção a Nossa Senhora. Se não fosse esse minguamento, a Revolução não caminharia.

Temos o exemplo característico na Europa da Revolução Francesa, que era como uma floresta combustível na qual com uma simples fagulha se ateava fogo em tudo. A devoção a Maria Santíssima nos países católicos fora prodigiosamente diminuída pelo jansenismo; o resultado nós conhecemos. Quer dizer, se a devoção a Nossa Senhora míngua, fica tudo acessível à Revolução.

Há o segundo ponto que é o seguinte: essas e algumas outras visualizações extraídas da Teologia comum, conhecida, são o suficiente para explicar o papel da Mãe de Deus na temática R-CR?

Nas últimas avenidas da perspectiva da Contra-Revolução está a ideia do Reino de Maria, ou seja, uma era histórica que será inaugurada por uma vitória espetacularmente obtida por Nossa Senhora sobre os seus inimigos. O demônio, que é expulso da Terra, volta para os seus antros infernais e a Santíssima Virgem reina sobre o mundo através dos homens e das instituições que Ela escolher para isso. A respeito dessa perspectiva do Reino de Maria, nós encontramos na obra de São Luís Grignion de Montfort algumas coisas misteriosas.

Ele é, sem dúvida, um profeta, o qual anuncia que essa era virá. São Luís Grignion fala disso claramente: é a época na qual surgirão os grandes santos de Nossa Senhora, haverá um dilúvio que lavará a humanidade e chegará então a época do Espírito Santo, que ele identifica com o Reino de Maria.

São Luís afirma que será uma era de florescimento da Igreja, como até então nunca houve. Ele chega a usar esta expressão: os santos do reinado de Nossa Senhora vão ser, em comparação aos santos anteriores, como os cedros do Líbano em relação a arbustos (n. 47).

Quando consideramos os grandes santos que a Igreja produziu até agora, perdemos o pé na consideração da grandeza desses outros bem-aventurados, que deverão vir debaixo desse bafejo de Maria Santíssima. Mas não há nada de mais razoável do que imaginar que a santidade cresça enormemente numa era histórica onde a situação concreta de Nossa Senhora deve progredir enormemente também. Portanto, não há dificuldade em admitir isso.

A quintessência recôndita da verdadeira escravidão

Então, nós podemos dizer que São Luís Grignion de Montfort dá peso, autoridade, consistência com seu valor de pensador, mas sobretudo com sua autoridade de Santo canonizado pela Igreja, às esperanças que se veem em muitas outras revelações particulares, as quais afirmam que virá uma época na qual a Santíssima Virgem verdadeiramente triunfará.

São Luís é, portanto, o profeta, porém mais do que o profeta ele é o fiador do Reino de Maria. A canonização dele e o acerto extraordinário de toda a sua obra nos servem de apoio para essa esperança de um Reino de Maria que deve vir.

Entretanto quando se analisa sua obra, nota-se ainda qualquer coisa de mais profundo: ele faz umas insinuações de que as relações entre Nossa Senhora e as almas – e especialmente as que a Ela se entregam na qualidade de verdadeiros escravos – não foram e não são conhecidas até o fundo pelos teólogos. E delas se podem tirar verdades a serem exploradas nos tesouros da Revelação e da Tradição, e que vão muito mais longe do que os teólogos dizem.

Ele fala do famoso segredo que há na verdadeira escravidão a Nossa Senhora. Por esse segredo a graça realiza, no autêntico escravo, operações inefáveis que não se sabe exatamente como são, e que correspondem também a uma união inefável, cujo verdadeiro alcance e feitio nós não conhecemos bem, e que representam a quintessência recôndita da verdadeira escravidão.

Quer dizer, fica acenado aí um progresso da Teologia especialmente no que diz respeito a esta parte das relações da graça com a alma, mediante Maria Santíssima. Coisa que ao mesmo tempo se vê que já existia na época dele e, entretanto, precisava ser explicitada, mas além disso cresceria de intensidade com o curso dos tempos, para atingir toda a sua amplitude no Reino de Maria, produzindo essa plenitude histórica, esse auge de santidade que deveria brilhar na Igreja e que nasceria desse mistério.

Como é um mistério, a respeito dele podemos esboçar apenas algumas pinceladas muito ligeiras. Mas me parece que São Luís Grignion, enquanto o “Cristóvão Colombo” desse novo continente da Teologia, deixa entrever coisas sobre as quais precisamos ter os olhos postos, se quisermos estabelecer uma relação entre o Tratado da Verdadeira Devoção e o problema “Revolução e Contra-Revolução”.

Porque então o auge da Contra-Revolução é o apogeu desta ação misteriosa de Nossa Senhora. Assim, a Contra-Revolução – pelo menos por um jogo de probabilidades – começa a aparecer como um avanço progressivo da Santíssima Virgem nas almas e uma acentuação desta ação misteriosa d’Ela nas almas, de tal maneira que, quando este sol chegar ao meio-dia, nós teremos a Revolução esmagada.

Há, portanto, uma gestação do Reino de Maria nas almas por um progresso novo, inédito desta ação misteriosa que se realiza na noite desta espécie de Idade Média do demônio em que vivemos, mas na qual já começa a haver algo que chegará ao seu meio-dia, quando o Reino de Maria for proclamado.        v

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

E a plebe morava em palácios…

Certo tipo de mentalidade se compraz em apresentar a Idade Média como tendo sido o paraíso da nobreza e o inferno da plebe. Esta não é senão mais uma das idéias errôneas que costumam propagar os detratores da Civilização Cristã.

Como já tivemos ocasião de considerar, na realidade os plebeus eram detentores de uma cômoda e folgada situação na sociedade medieval, embora não desfrutassem das honras reservadas aos nobres. Pelo fato de constituírem a classe militar que se imolava pelo bem comum, aos nobres cabiam direitos e privilégios superiores aos dos plebeus. Estes últimos não eram obrigados a derramar seu sangue em defesa da comunidade, e ao invés de lutarem e morrerem nas guerras, contribuíam para o benefício público mediante seu trabalho quotidiano, honesto e fecundo.

Essa contribuição plebeia chegou a tal ponto que, na Bélgica medieval, um conjunto de corporações (dir-se-ia hoje “sindicatos”) levantou, na Grande Praça de Bruxelas, magníficos edifícios que nada ficam devendo aos castelos e residências nobres. São construções em que a dignidade do trabalho manual ou comercial é, a justo título, glorificada.

Geminadas de modo muito pitoresco, manifestando a candura risonha e amigável das coisas engendradas pelo espírito católico, destacam- se as célebres casas das corporações, cada qual  correspondendo a uma associação diferente. Entre outras, as dos arqueiros, dos tapeceiros, dos carpinteiros, e também as dos impressores, padeiros, pintores, alfaiates, açougueiros, cervejeiros…

Não fosse o risco de cometer uma imperfeição próxima da mentira, eu gostaria de tomar pelo braço um desses rebarbativos detratores da Idade Média, levá-lo diante dessas casas e lhe dizer: “Esta é a praça da nobreza em Bruxelas!

Cada um desses edifícios é a residência de uma grande família nobre, vivendo no meio do luxo mais faustoso, contando com terras sem fim e algumas indústrias manufatureiras que lhes propiciam muito dinheiro. Os nobres vivem aí tranquilamente, sem trabalhar, porque têm quem o faça por eles…”

O meu ilustre e desavisado acompanhante exultaria: “Está vendo? Mas, é isto mesmo!”. E eu então diria: “Não, senhor… Lamento decepcioná-lo. Ali está a casa do padeiro, ali a do carpinteiro, e mais adiante a do cervejeiro… O senhor ignora História, não tem senso crítico e forma uma ideia falsa das coisas. Agora pode espernear à vontade. Não mudará o fato de que estes são lindos, magníficos e simples prédios destinados ao uso de plebeus…”

Para completar a extraordinária lição de harmonia que se aprende nessa Praça, lá está também — em inteira consonância com as construções, digamos, populares — o prédio do Paço Municipal, tão grandioso quanto o palácio de um soberano.

É um monumento gótico, erguido igualmente por plebeus para administrar seus próprios interesses e os da capital do país. Imponente e majestoso, elegante e delicado, com suas arcarias ogivais dominando-lhe a fachada, suas inúmeras estátuas aconchegadas em nichos ou dispostas em fileiras, e a esbelta torre central que vai se adelgaçando e se requintando em beleza, à medida que se lança para o alto, para as nuvens esparsas na amplidão do céu.

Fazendo “pendant” com o Paço Municipal, há outra suntuosa construção, a chamada “Casa do Rei”, talvez o ponto monárquico do lugar. Sabe-se que foi edificada no século XVI, sobre os restos do palácio em que se hospedaram grandes personagens civis e eclesiásticos, como o Papa Inocêncio III e São Bernardo de Claraval. Atualmente está transformada em museu.

Arquitetada com a riqueza e a pujança de um gótico “pré-flamboyant”, ela se ergue em ordenação irrepreensível, dando-nos a possibilidade de apreciar toda a beleza de que se reveste.

O primeiro de seus três andares abre-se para o exterior, numa série de pórticos terminados em ogivas superpostas. As inferiores são mais largas, enquanto as superiores, afiladas, incrustam-se nos peitoris rendilhados sobre os quais se apoiam as arcarias do segundo andar. Assim, aquilo que pareceria algo insonso por estar tão aberto, ao se afinar adquire charme, suavidade e graça. No andar seguinte, temos outra série de colunetas e arcos que, mais delgados, são um descanso para a vista do observador, em relação aos aspectos do primeiro e do terceiro pisos. Este último acompanha as linhas dos anteriores, mas sem as colunatas, apenas com suas janelas  ogivais e o extenso parapeito, primorosamente cinzelado.

Três andares, três ordens ao mesmo tempo muito semelhantes e muito distintas, extremamente harmoniosas, e que terminam em lindas mansardas ornamentais, feitas para ilustrar o topo do palácio. Já as fachadas laterais são arrematadas por dois torreões altos, de pontas esguias e rendilhadas.

E por fim, de alto a baixo, como florão de honra em função do qual tudo está construído, uma torre alta, toda enfeitada e ornada, constituindo o centro do edifício e conferindo a este “unum” e nobreza. De fato, a glória da “Casa do Rei” se encontra, sobretudo, nessa torre central. Ela é digna, altiva, afável. Ela nos deixa encantados quando a contemplamos de fora; honrados se nos permite transpor seus umbrais; e tranquilos, se nos concede o favor de nos acolher em um de seus aposentos, onde nos há de proporcionar um agradável e reconfortante repouso…

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2003)

Nunca se ouviu dizer….

Minha Mãe, dai-me a graça de nunca me sentir longe de Vós.
Dai-me a certeza de que a palavra ‘longe’, para efeito de vida espiritual, foi cancelada da Doutrina Católica, uma vez que Vós existis. Pois, se é verdade que muitos estão longe, Vós, Senhora, estais sempre perto.
Senhora, convencei-me de que Vós estais ao alcance, não de mãos que se estendem, mas de m„os que se juntam para rezar,rezar e rezar seriamente.
Nunca se ouviu dizer que alguém que tenha recorrido a vossa proteção e reclamado vosso socorro, fosse por Vós desamparado. Mãe minha, fazei-me compreender que, se nunca se ouviu dizer, não serei eu o primeiro a não ser atendido, o primeiro a ser uma exceção. Assim, pois, régia Senhora, fazei que sempre me volte a Vós com confiança. Amém.
Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta por Dr. Plinio para se rezar a Nossa Senhora)

O valor da família na sociedade cristã

Em sua obra magistral dedicada ao estudo das alocuções de Pio XII à Nobreza e ao Patriciado Romano, Dr. Plinio salienta o importante papel da família na estrutura harmônica de uma civilização  hierárquica e cristã.

Dado ser o estado matrimonial a condição comum do homem, é fazendo parte da respectiva família, como chefe ou membro, que ele se insere no imenso tecido de famílias que integra o corpo social de um País.

A par da família, o corpo social é constituído também por outros grupos intermediários. E a inserção de um indivíduo num desses grupos constitui também um modo de integração dele nesse corpo. Tal é verdadeiro, por exemplo, no que diz respeito à corporação de artífices ou à de mercadores, bem como às universidades, ou ainda aos órgãos diretivos que constituem o poder municipal urbano ou rural.

Se se atender à gênese do Estado, ver-se-á que, de um modo ou de outro, ele se originou de entidades pré-existentes, cuja “matéria-prima” era a família. Pois esta dera origem a grandes blocos familiares que os gregos designavam como “génos” e os romanos como “gens”. Estes últimos, por sua vez, formaram grandes blocos de “tonus” também ainda familiar, mas cujas correlações genealógicas se perdiam na noite dos tempos, e tendiam a diluir-se na confusão: eram as fratrias entre os gregos e as cúrias entre os romanos. “A associação” diz Fustel de Coulanges(1) “continuou naturalmente a crescer, e segundo o mesmo sistema. Muitas cúrias ou fratrias, agruparam- se e formaram uma tribo”.

Por sua vez, a conjunção das tribos formou a cidade, ou melhor, a civitas. E com isto o Estado. A família fecunda, um pequeno mundo A experiência demonstra que habitualmente a vitalidade e a unidade de uma família estão em relação natural com a sua fecundidade. Quando a prole é numerosa, ela vê o pai e a mãe como dirigentes de uma coletividade humana ponderável pelo número dos que a compõem como — normalmente — pelos apreciáveis valores religiosos, morais, culturais e materiais inerentes à célula familiar. O que nimba de prestígio a autoridade paterna e materna. E, sendo os pais de algum modo um bem comum de todos os filhos, é normal que nenhum destes pretenda absorver todas as atenções e todo o afeto dos pais, instrumentalizando-os para o seu mero bem individual. O ciúme entre irmãos encontra terreno pouco propício nas famílias numerosas. O que, pelo contrário, facilmente pode surgir nas famílias com poucos filhos.

Também nestas últimas se estabelece não raras vezes uma tensão pais-filhos, em resultado da qual um dos dois lados tende a vencer o outro e a tiranizá-lo.

Os pais, por exemplo, podem abusar da autoridade, subtraindo-se ao convívio do lar para utilizar todo o tempo disponível nas distrações da vida mundana, deixando os filhos relegados aos cuidados mercenários de “baby-sitters” ou dispersos no caos de tantos internatos turbulentos e vazios de legítima sensibilidade afetiva. E podem tiranizá-los também — é impossível não mencionar — por meio  das diversas formas de violência familiar, tão cruéis e tão freqüentes na  nossa sociedade descristianizada.

Na medida em que a família é mais numerosa, vai-se tornando mais difícil o estabelecimento de qualquer dessas tiranias domésticas. Os filhos percebem melhor quanto pesam aos pais, tendem a ser-lhes por isso gratos, e a ajudá-los com reverência — quando chegado o momento — na condução dos assuntos familiares.

Por sua vez, o número considerável de filhos dá ao ambiente doméstico uma animação, uma jovialidade efervescente, uma originalidade incessantemente criativa no tocante aos modos de ser, de agir, de sentir e de analisar a realidade quotidiana de dentro e de fora de casa, que tornam o convívio familiar uma escola de sabedoria e de experiência, toda feita da tradição comunicada solicitamente pelos pais, e da prudente e gradual renovação acrescentada respeitosa e cautamente a esta tradição pelos filhos.

A família constitui-se assim num pequeno mundo, ao mesmo tempo aberto e fechado à influência do mundo externo.

A coesão desse pequeno mundo resulta de todos os fatores acima mencionados, e esteia-se principalmente na formação religiosa e moral dada pelos pais em consonância com o pároco, como  também na convergência harmônica das várias hereditariedades físicas e morais que, através dos pais, tenham concorrido para modelar as personalidades dos filhos. Esse pequeno mundo diferencia-se de outros pequenos mundos congêneres, isto é, das outras famílias, por notas características que lembram em modelo pequeno as diferenciações entre as regiões de um mesmo País, ou os diversos países de uma mesma área de civilização.

A família assim constituída tem habitualmente como que um temperamento comum, apetências, tendências e aversões comuns, modos comuns de conviver, de repousar, de trabalhar, de resolver  problemas, de enfrentar adversidades e de tirar proveito de circunstâncias favoráveis. Em todos estes campos, as famílias numerosas possuem máximas de pensamento e de procedimento corroboradas pelo exemplo do que fizeram os seus antepassados, não raras vezes mitificados pelas saudades e pelo recuo do tempo.

Linhagens e profissões

Ora, sucede que esta grande e incomparável escola de continuidade — incessantemente enriquecida pela elaboração de aspectos novos modelados segundo uma tradição admirada, respeitada e querida por todos os membros da família — influencia muito os indivíduos na escolha das suas atividades profissionais, ou das responsabilidades que queiram exercer em favor do bem comum.

Daí decorre que, com freqüência, haja linhagens de profissionais provenientes do mesmo tronco familiar, por onde a influência da família penetra no âmbito profissional. É verdade que, no consórcio assim formado entre atividade profissional ou pública, de um lado, e família de outro, também estes vários tipos de atividades exercem a sua influência sobre a família. Estabelece-se assim uma simbiose natural e altamente desejável. Mas importa sobretudo notar que, o mais das vezes, o próprio curso natural das coisas conduz a que a influência da família sobre as atividades  extrínsecas a ela seja maior do que a de tais atividades sobre a família.

Noutros termos, quando a família é autenticamente católica, e conta não só com a sua natural e espontânea força de coesão, mas também com a sobrenatural influência da mútua caridade que lhe  provém da graça, a organização familiar atinge as condições ótimas para marcar com a sua presença todos ou quase todos os corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e por fim também  o próprio Estado.

A partir destas considerações, é fácil compreender que a influência benfazeja de linhagens cheias de tradição e de força criativa, em todos os graus da hierarquia social, desde os mais modestos aos mais elevados, constitui um precioso e insubstituível fator de ordenação, quer da vida individual, quer do setor social privado, quer da vida pública. E que, pela própria força dos costumes, a direção efetiva de vários corpos privados acabe por ir ter às mãos de linhagens que se destacam como mais dotadas para conhecer o grupo social, coordená-lo, dar-lhe o lastro de uma robusta tradição e o impulso vigoroso de uma contínua melhoria no modo de ser e de agir.

Nesta perspectiva, é legítimo que, no âmbito de alguns desses grupos, se forme uma elite para-nobiliárquica, uma linhagem preponderante para-dinástica, etc. Fato que contribui também para dar origem, nas sub-regiões e regiões rurais, à formação de “dinastias” locais, de algum modo análogas à família dotada de majestade régia.

Pais régios e reis paternos

Todo este quadro faz ver uma nação como um conjunto de corpos os quais se constituem, por vezes, de corpos menores; e assim, gradualmente, em linha descendente, até chegar ao simples indivíduo. Seguindo em linha inversa o mesmo percurso, percebe-se claramente o caráter gradativo e, enquanto tal, também hierárquico, dos vários corpos que intermedeiam entre o simples indivíduo e o mais alto governo do Estado.

Tendo em vista ser o tecido social constituído por toda uma abundante contextura de indivíduos, de famílias e de sociedades intermediárias, conclui-se que, sob certo prisma, a mesma sociedade é um conjunto de hierarquias de diversas índoles e naturezas que coexistem, se entreajudam e se entrelaçam acima das quais paira apenas, na esfera temporal, a majestade da sociedade perfeita, que é a do Estado; e, na esfera espiritual — a mais elevada — a majestade da outra sociedade perfeita que é a da Santa Igreja de Deus.

Assim vista, tal sociedade de elites é altamente participativa. Ou seja, nela, categoria, influência, prestígio, riqueza e poder são participados de alto a baixo, de maneiras diversas segundo cada degrau, por corpos com peculiaridades próprias. De tal maneira que outrora se pôde dizer que no lar, mesmo o mais modesto, o pai era rei dos filhos; e no ápice, o rei era o pai dos pais.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Nobreza e elites tradicionais análogas, nas alocuções de Pio XII ao Praticiado e à Nobreza Romana”, Livraria Editora Civilização, pp. 108-111. Título nosso.)

Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2002)

 

1) La Cité Antique, Librairie Hachette, Paris, Livro III, p. 135.

Um auge de amor de Deus

Comentando afrescos de Giotto, Dr. Plinio afirma entre outras coisas que logo após o nascimento de Jesus, Maria Santíssima observou o olhar lúcido e cheio de amor que Ele deitava sobre Ela. O Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento.

 

O  afresco pintado por Giotto na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, representando o casamento de São José com a Santíssima Virgem, tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação do pintor, corresponde a uma parte do Templo de Jerusalém.

Nossa Senhora com porte ereto e virginal

O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, debaixo da qual há uma espécie de camisa e uma meia-túnica que desce da cintura até o chão. É um ancião já de cabelos brancos, abundantemente barbado, numa atitude de piedade e recolhimento, que não visa ser a de um santo, mas de um prelado digno, respeitável, pois não tem em torno da cabeça a auréola de santidade. Ele está exercendo funções na cerimônia.

Identificamos São José pelo fato de ele estar com a mão direita passando uma aliança a Nossa Senhora, e com a esquerda segurando uma vara com flores. Era o tal bastão que floresceu, indicando ser ele o esposo escolhido pela Providência para Maria Santíssima.

Segundo uma antiga tradição, São José é apresentado como muito mais idoso do que Nossa Senhora. Daí notar-se na pintura a diferença de idade entre ambos. Ela ainda mocinha e com o recato, a compostura de uma pessoa toda virginal está vestida com uma túnica de um cor-de-rosa muito claro, quase se diria branco. O colorido não é bem exatamente o da meia-túnica do sacerdote, nem de uma espécie de meia-túnica de São José, mas são cores muito claras todas elas, que falam a respeito de virgindade, pureza, delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. Nossa Senhora está cingida com uma coroa de flores. Todo o seu porte é ereto e virginal.

São José toma um pouco o papel de esposo e de pai diante d’Ela. Sua atitude já é um tanto protetora em relação a Nossa Senhora, que Se deixa proteger. Ela está muito bem, apesar de sua aparente timidez junto ao sacerdote respeitável e a São José.

Em volta encontram-se as pessoas que estão assistindo às bodas. Não sei que papel terá no quadro esse personagem vestido de um verde muito claro. Alguns estão comentando o acontecimento, vestidos em trajes semelhantes aos romanos, mas com coloridos que não parecem ser de tecidos romanos, são mais orientais. Tudo indica que na mente de Giotto esta cena se desenrola no Templo de Jerusalém.

Realizado o casamento, organiza-se um cortejo com os esposos. É uma vista do cortejo que, com certeza, se encaminha para a festa. Nota-se que todos estão adornados, vestidos para uma solenidade, cabelos muito bem penteados.

Comunicações místicas do Menino Jesus com sua Mãe virginal

Esse outro afresco representa Nossa Senhora chegando à casa de Zacarias e sendo acolhida por Santa Isabel. A Santíssima Virgem está muito bondosa, muito meiga. Mas Santa Isabel, sobretudo, está respeitosa. Notem como ela faz uma inclinação e contempla Nossa Senhora, maravilhada. Esta olha comprazida para sua prima, mas não Se inclina. É natural: cada uma delas trazia em si um menino; mas no claustro de Santa Isabel não se encontrava senão o precursor do Menino que estava no claustro virginal de Maria. Sem dúvida é uma honra imensa ter concebido São João Batista – Nosso Senhor o comparou a Elias –, mas conceber o Homem-Deus não há comparação com nada!

No afresco representando o Nascimento do Menino Jesus, São José está dormindo, as ovelhinhas estão ali perto, o burrico também e os Anjos enchem o céu, cantando a glória de Deus. Os pastores estão ouvindo o cântico celeste. “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). É exatamente o que a Liturgia, no dia 24 para 25 de dezembro, deverá estar cantando.

É noite. Nossa Senhora acaba de dar à luz o Menino-Deus de um modo misterioso e maravilhoso. A atitude d’Ela é de uma pessoa inteiramente sadia, que está aconchegando melhor seu Divino Filho numa manjedoura. Mas com um desembaraço de movimentos que não é o de uma mãe da qual acaba de nascer sua criança. Compreende-se: o processo de nascimento é dolorido e difícil em virtude do pecado original, mas em Nossa Senhora não. Ela foi virgem antes, durante e depois do parto. Esse nascimento se deu de modo milagroso, de maneira a não representar um esforço para Ela. Ali está seu Filho, e Ela, como quem tivesse acordado de um sono brando, abrisse um pouco os olhos para ver o Menino, e vai dormir dali a pouco de novo.

De fato, é uma cena lindíssima, que empolga! Pode-se imaginar a situação de Maria Santíssima ao ver, pela primeira vez, o fruto do Divino Espírito Santo nas suas próprias entranhas. E que fisionomia tinha o Homem-Deus que acabava de nascer d’Ela! O Menino Jesus tomava toda a atitude de uma criança dessa idade. Ele teve, durante toda a vida, a atitude própria às idades que foi percorrendo, até os 33 anos com que Ele morreu.

Porém, como Ele possuía a natureza humana ligada à divina pela união hipostática, em uma só Pessoa, teve de fato uma inteligência plena desde o primeiro instante em que sua Santíssima Mãe O concebeu. Já no claustro materno Ele rezava, oferecia a Deus reparações, O adorava e implorava pelos homens. O Menino Jesus começou a sua vida inteiramente consciente, desde o primeiro momento em que passou a existir.

De maneira que essa Criança, com o todo de um bebê, teve, entretanto, incontáveis comunicações místicas, talvez diretas, não se sabe como, com sua Mãe virginal já desde o período da gestação. Nossa Senhora sabia que seu Filho era uma Criança inteiramente inteligente. Mas olhava para Ele, um Menininho, a quem a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade estava unida hipostaticamente.

Maria Santíssima compreendia ser lúcido e cheio de amor o olhar que Ele deitava n’Ela, e que os dois estavam Se conhecendo: o Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe, e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento!

Serenidade medieval que exprimia a graça de Deus

De acordo com uma bela tradição, os magos vindos do Oriente eram reis. Por isso, no afresco de Giotto vemos esses dois reis em pé, atrás, com coroa ou um diadema cingindo a cabeça. Eles vêm trazendo os seus presentes, recebidos pelo Menino Jesus no colo de Nossa Senhora, que está sentada numa espécie de troneto sobre um estradozinho ricamente atapetado. Ela mesma está também ricamente vestida. Para receber reis tinha que Se vestir com aparato. Mais adiante há uma tribunazinha onde estão vários personagens santos; nota-se isso pelas auréolas. Atrás de Nossa Senhora há um Anjo e São José.

É interessante o seguinte: um dos reis está adorando o Menino Jesus e osculando os pés d’Ele. Os dois outros monarcas estão tranquilos, comprazidos em oração diante de Nossa Senhora e de seu Divino Filho, vendo o seu companheiro de viagem, seu irmão na realeza, adorar assim o Menino. Estão contentes com tudo e esperam chegar a vez deles, sem impaciência, com essa tranquilidade, serenidade medieval que exprimia bem a presença, o espírito, a graça de Deus na alma desses personagens.

Logo atrás dos três reis há um gorducho que está freando ou dando um jeito qualquer no camelo, para este não criar problemas. Esse já não tem nada do sobrenatural, do tranquilo, do sereno dos demais; é um homem movimentado e prestando atenção em tudo, de nariz pontudo, olhos saltados e mandão. Está bem à altura de tratar com camelos.

Até o Templo tem algo de esguio e virginal

Outro afresco traz a cena da Apresentação do Menino Jesus no Templo. Vemos a Santíssima Virgem e São José de um lado, de outro o Profeta Simeão e atrás está a Profetisa Ana. Interessa principalmente a atitude de São José e de Nossa Senhora. Quem apresentou ao Profeta o Menino foi Ela, que está com as mãos estendidas como quem O acaba de entregar. São José, recolhido e modestamente em segundo plano, acompanha a cena. Não creio que haja meios para decifrar quem é o terceiro personagem.

Uma atmosfera de santidade e pureza domina o quadro todo, a ponto de o próprio templozinho ter qualquer coisa de esguio e virginal. Notem como Giotto coloca um fundo meio azulado com numa tonalidade um tanto escura, que dá muito relevo à parte central do tema, ou seja, o Menino Jesus, o Profeta Simeão, Nossa Senhora, São José e a Profetisa Ana.

Na pintura que representa a fuga para o Egito, Maria Santíssima vai montada num simples burrico, São José à frente guiando, e eles apresentam todos os sinais exteriores da pobreza. Entretanto, a dignidade d’Ela é de uma princesa; seu porte retilíneo, as costas sem a menor inflexão, a cabeça alta indicam a resolução com que Ela enfrenta os riscos da viagem, que parece estar no começo.

São José vai caminhando na frente, mas atentíssimo ao que acontece com a Mãe e a Criança. Nossa Senhora não. Ela parece confiar em São José e em Deus; por isso mantém-se recolhida em oração com o Menino que está como que dormindo e agarrado à Mãe, um pouco para dar a entender a intimidade entre os dois, e como é cheio de propósito que Ela reze a Ele por aqueles que estão contemplando o quadro.

O sangue dos primeiros mártires começa a subir ao Céu

O Rei Herodes mandou matar todas as crianças de dois anos para baixo porque os Magos tiveram a inocência de procurá-lo, perguntando se tinha ouvido falar do Rei dos Judeus que tinha nascido. Herodes achou que dois reis no mesmo reino não cabiam e que, portanto, era preciso eliminar esse menino. Houve, assim, uma matança geral de inocentes. Estes foram os primeiros mártires da Igreja Católica. Por que mártires? Por uma razão muito simples: eles foram mortos por ódio à Fé, a Deus, ao Menino que lhes dera a honra de nascerem na mesma cidade que Ele. Mortos assim, embora não tivessem consciência de si mesmos, foram todos para o Céu como mártires. E são os Santos Inocentes cuja festa se celebra no dia 28 de dezembro, com um nexo, por motivos óbvios, com a festa de Natal.

É interessante notar o seguinte: quando os Anjos aparecem na noite de Natal, eles cantam “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Os primeiros atos que se desenrolam a partir do Natal são cheios de luz, de bênção e de paz, é verdade, mas carregados de ameaças para o futuro. O que parece, para um espírito superficial, estar em contradição com a ideia de “paz na Terra aos homens de boa vontade”, porque pareceria que os homens de boa vontade não sofreriam nem perseguições, nem lutas, nem qualquer dificuldade. Dentre os pais e as mães desses meninos, provavelmente alguns seriam homens de boa vontade. Entretanto, o que eles tiveram? O morticínio de seus filhos. Uma coisa, portanto, de assustar!

Vê-se numa espécie de tribuna um personagem que proclama um edito. Imediatamente lotam a cena os algozes, os executores, à procura das crianças, e as pessoas tentam se esquivar. No primeiro plano uma mulher que evidentemente não quer entregar o filho. Mais adiante percebem-se cenas de uma agitação e de uma violência, que leva a admitir como provável que já nesse magma estão sendo mortas as primeiras crianças. O primeiro sangue de mártires começa a subir ao Céu. É uma coisa extraordinária!

Alguém perguntará: “Eles não são batizados?” Essas crianças foram batizadas no próprio sangue. Constituem, portanto, as primeiras almas batizadas, decorrentes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco depois de Ele ter nascido.

Uma resposta afirmada majestosamente

Essa outra cena mostra o encontro de Jesus no Templo. Nela vê-se um aspecto interno do Templo de Jerusalém, todo meio romanizado. Por exemplo, aquela espécie de abóboda seguida de dois outros compartimentos colaterais é de estilo romano a conta inteira.

Dentro do Templo, de um lado e de outro, encontram-se os doutores da Lei discutindo a interpretação desse ou daquele ponto da Escritura. Mas o Menino Jesus já Se destacou tanto entre eles que ocupa a presidência dos sábios e está falando como verdadeiro Doutor. As pessoas estão perto d’Ele pasmas com o que Jesus diz, procurando ouvi-Lo com muito interesse e aproveitando as lições que Ele dava.

À esquerda, de pé, Nossa Senhora e, mais atrás, com sua vara florida, São José. A cena faz entender que o Santo Casal não compreendia a atitude do Menino Jesus. Maria Santíssima está numa atitude de quem pronuncia a famosa pergunta: “Meu Filho, por que agistes assim conosco?” (Lc 2, 48). Nosso Senhor parece estar dando doutoralmente – eu quase diria majestosamente – a resposta: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2, 49).

No céu chamejam raios e brilhos de glória

No Rio Jordão, São João batiza Nosso Senhor Jesus Cristo. O batizado se dava na forma de um verdadeiro banho e Nosso Senhor é apresentado, portanto, com uma parte do tronco desnuda por causa do banho. No céu chamejam raios e brilhos de glória.

Notem a situação um tanto paradoxal: dir-se-ia que a grande figura ali seria quem batiza, e o neófito, uma figura secundária. Mas Nosso Senhor é apresentado, apesar da grandeza de São João Batista, com uma majestade divina, uma seriedade e uma tranquilidade extraordinárias, que fazem d’Ele um verdadeiro Rei e dominador. Ele não está com nenhum atributo da realeza, ao contrário, apresenta-Se com o busto desnudo. Entretanto, vejam o jeito d’Ele e a própria atitude de São João Batista, como é respeitosa e até um pouco inclinada, embora segura, e em nada intimidada. No céu, a Glória de Deus transparece.

Nas Bodas de Caná – outro afresco presente na Cappella degli Scrovegni –, a narração do Evangelho dá a entender que havia muitas pessoas, a ponto de esgotar a provisão de vinho da família, o que deu origem ao milagre da transmutação da água em vinho. Porém, para economizar espaço, Giotto representou apenas a cena central, ou seja, a mesa principal das bodas, onde se encontram Nossa Senhora, São José e Nosso Senhor Jesus Cristo que está dando ordem para a água se transmutar em vinho.

É interessante ver como o pintor imaginou a cena: as várias talhas alinhadas nas quais estava a água que se transmutaria em vinho.

Por se tratar de uma festa, os anfitriões queriam ocultar a rudeza da pedra e por isso estenderam sobre a parede uma cortina de bom tecido, suspensa a uma altura maior do que a de um homem comum. Esse era um costume frequente na Idade Média.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/11/1988)