Santo Ambrósio, Bispo e Doutor da Igreja

Foi por aclamação popular que Santo Ambrósio ascendeu à dignidade episcopal: “vox populi, vox Dei”.

A respeito de Santo Ambrósio, Bispo, Confessor e Doutor da Igreja, Dom Guéranger fornece alguns traços biográficos:

Ainda adolescente, Ambrósio apresentava gravemente sua mão para ser osculada por sua mãe e sua irmã por-que, dizia ele: “Esta mão será um dia a de um Bispo”.

Vemos o que é a compenetração da dignidade episcopal: Como essa mão viria a ser um dia a de um Bispo, beije-a desde já. E fazia isso não por vaidade, nem por orgulho, mas por amor à dignidade episcopal. É realmente magnífico!

A honra de pertencer à Igreja

Pode-se crer que se a vontade divina não tivesse irrevogavelmente condenado o Império Romano a perecer, influências como as de Ambrósio, exercidas sobre um príncipe de coração reto, teriam evitado sua ruína. Sua máxima era firme, mas ela não devia ser aplicada senão nas sociedades novas, que surgiriam depois da queda do Império.

Santo Ambrósio dizia: Não há titulo mais honroso para um imperador do que “filho da Igreja”. O imperador é membro da Igreja, e não está acima dela.

Santo Ambrósio e outros Doutores da Igreja precisaram lutar contra uma tradição que permaneceu entre os imperadores romanos cristãos, a qual procedia do tempo do paganismo.

Na época do paganismo clássico, não havia propriamente uma igreja pagã, nem a distinção entre as duas sociedades, igreja e Estado, como Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu. Mas o Estado pagão era um Estado-igreja, que, ao mesmo tempo, promovia a vida temporal, o culto e dispunha a respeito de todos os assuntos religiosos. De maneira que os imperadores romanos  habitualmente se consideravam chefes da religião. E, quando eles morriam, eram até “deificados”, elevados à condição de deuses.

Quando surgiu o Cristianismo, muitos imperadores romanos, por hábito mental, se consideravam os chefes da Religião Católica, dando origem a enormes atritos, como o de Santo Ambrósio com o Imperador Teodósio.

É conhecido o fato de que o Imperador Teodósio, não querendo subordinar-se à ordem de Santo Ambrósio, Bispo de Milão, foi à igreja, acompanhado de todo o seu séquito, depois de ter sido excomungado. Ele encontrou Santo Ambrósio com seu clero na entrada do templo, que lhe proibiu entrar. E Teodósio retrocedeu.

Então, Dom Guéranger comenta esta máxima de Santo Ambrósio: “Nada é mais honroso para o imperador do que ser filho da Igreja. O imperador está na Igreja, e não acima da Igreja”. Quer dizer, para o imperador o grande título de honra é o de católico. Por isso, após a queda do Império Romano, os soberanos católicos colocavam toda a sua honra em ligar seus cargos a títulos religiosos. Assim surgiram o Sacro Império Romano Alemão e os títulos de Rei Apostólico para os reis da Hungria; Rei Cristianíssimo aos da França; Defensor da Fé, concedido a Henri-que VIII da Inglaterra, antes de ele apostatar; Reis Católicos aos soberanos da Espanha; Rei Fidelíssimo ao monarca de Portugal.

É bonita a observação feita por Dom Guéranger, pois o título imperial ou real, que é o mais alto dos títulos humanos, vale pouco se não vem conjugado de alguma forma com a Igreja Católica.Entusiasta da virgindade

Santo Ambrósio é um dos Padres do quarto século que mais vivamente exprimiu as grandezas do ministério na pessoa de Maria. Esta terna predileção por Nossa Senhora explica o entusiasmo de que Ambrósio estava repleto pela virgindade cristã, da qual ele merece ser considerado o doutor especial. Nenhum dos Padres o igualou no encanto e na eloquência com os quais ele proclamou a dignidade e a felicidade das virgens.

Esse é um lindo título que cabe a Santo Ambrósio. De todos os Doutores da Igreja, foi o que melhor estudou a virtude da virgindade; aquele que, com delicadeza de linguagem e de alma inexcedível, soube tratar do tema de maneira a não só firmar a convicção de que a virgindade é uma virtude excelsa, mas ainda proporcionar uma verdadeira apetência da virgindade. Valeria a pena, algum dia, comentarmos aqui os sermões de Santo Ambrósio sobre a virgindade; é tudo quanto há de mais belo.

Zeloso pela dignidade externa

Santo Ambrósio preocupava-se com que os ministros da Igreja apresentassem grande dignidade externamente. Não aceitava em seu clero quem não tivesse uma presença respeitosa. Assim, não admitiu um seu amigo porque notou em seu modo de andar algo menos próprio.

Conheço o caso de uma senhora, cujo filho estava querendo ser padre. Certa vez ela entrou num bonde e viu um padre tão sujo de tabaco, com o cabelo tão despenteado, que essa senhora disse o seguinte: “Meu filho jamais será padre.”

Era um raciocínio errado, mas com certo fundo de razão. Quer dizer, se numa classe os homens se apresentam assim, não convém pertencer a essa classe. A ideia é muito verdadeira: quando uma pessoa é altamente respeitável, até no seu físico uma respeitabilidade transparece. Compreende-se, portanto, como Santo Ambrósio tinha profundamente razão.

Apostolado de presença

Santo Ambrósio combateu os hereges e converteu Santo Agostinho.

Santo Agostinho conta que ele tinha verdadeira fascinação por Santo Ambrósio. Então, de vez em quando, ele ia à casa do santo Bispo de Milão, metia-se na sala onde ele estava escrevendo e ficava sentado, na esperança de que Santo Ambrósio lhe dissesse alguma palavra. E Santo Ambrósio, muito ocupado com os trabalhos, não dava entrada a Santo Agostinho. Mas, pelo fato de ver Santo Ambrósio trabalhar, estar ali na atmosfera criada pelo Bispo de Milão, ele sentia que aquilo fazia muito bem para sua alma.

Por isso, e devido a alguns colóquios que eles tiveram, bem como por causa das obras de Santo Ambrósio, algumas das quais Santo Agostinho conheceu antes da conversão, se pode dizer que Santo Ambrósio cooperou constantemente para esse fato que talvez seja o mais importante da sua vida: não foram os livros que ele escreveu, nem as obras que realizou, mas ter convertido Santo Agostinho. Somente essa conversão é um capítulo na História do mundo e na História da Igreja.

Vemos aqui duas coisas bonitas em Santo Ambrósio: em primeiro lugar, o apostolado de presença.

Insistimos tanto sobre o alcance desse apostolado. Muitas pessoas pensam que valem para o nosso Movimento na medida em que falam, atuam, trabalham. Claro está que isso tudo é muito bom.

Mas há um apostolado de presença, que pode ser muito melhor; e desse fato deu provas muito eloquentes Santo Ambrósio em face de Santo Agostinho.

De outro lado, notamos a confiança na Providência Divina. Se Santo Ambrósio fosse superficial, ele cessaria todos seus trabalhos para fazer uma pescaria apostólica com Santo Agostinho. Depois ele iria trabalhar desordenadamente; pior, minguaria seus livros e escreveria uns “livrequinhos” superficiais, para ter tempo de conversar com Santo Agostinho.

Porém, confiante na Providência, no amor de Deus, na Igreja Católica, ele fazia o que estava dentro de suas possibilidades. Era vontade de Deus que Santo Ambrósio escrevesse um livro, e ele o fazia com perfeição. E que Santo Agostinho aproveitasse as beiradas que encontrasse; Deus haveria de prover. E, de fato, proveu.

Quer dizer, essa confiança na Providência, não querer fazer loucuras, absurdos, mas ser temperante, inclusive no próprio zelo apostólico, é rica em lições para nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 7/12/1964 e 6/12/1966)

Síntese esplendorosa

Conforme nos ensina a Bula “Ineffabilis Deus”, a beleza e a perfeição da Santíssima Virgem só se manifestam completas porque Ela triunfa, vence e aniquila o demônio. Satanás é um escabelo aos  pés d’Ela.

Sendo Maria imaculada e soberanamente formosa, não basta que todas as criaturas deste mundo, as do Céu e as do Purgatório  Lhe prestem homenagem: importa que o inimigo esteja esmagado
sob seu calcanhar.

Uma perfeita consideração do esplendor de Nossa Senhora envolve, portanto, a ideia do demônio inteiramente subjugado e humilhado por Ela. Essa vitória sobre Satanás dá um particular brilho à celestial beleza da Imaculada Conceição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Herói na luta contra os inimigos da Igreja

Devido a tramas efetuadas por hereges contra São João Damasceno, sua mão direita foi amputada por ordem do califa. O Santo recorreu a Nossa Senhora e a mão milagrosamente uniu-se ao  antebraço. Ele tornou-se um dos maiores Doutores da Igreja, famoso por seu talento, sua doçura e implacável heroicidade na luta contra os inimigos da Igreja.

Comentaremos uma ficha tirada do livro “Vie des Saints”, de Emanuel d’Alzon, a respeito de São João Damasceno.

Um eremita muito culto é salvo da morte

A narração explica que São João Damasceno era do Oriente Próximo. Seu pai, Sérgio Mansur, católico e ministro de um califa maometano, Abdal Malique, homem terrível, mas que gostava muito de Mansur porque este era um personagem de muito valor, criterioso.

Certo dia, Mansur saiu à rua e viu um número enorme de católicos sendo conduzidos para a morte. Então prometeu interceder por eles e salvá-los, o que efetivamente conseguiu do califa, junto a quem gozava de enorme prestígio.

Mas ele notou entre os prisioneiros – vejam os vaivéns da Providência – um que portava os trajes e tinha todo o jeito de um eremita. Naquele tempo, os eremitas usavam uma roupa que  vagamente lembrava o burel de um franciscano, moravam no deserto, em grutas, inteiramente sós, e eram personagens grandiosos. Ele notou que esse eremita estava com muito receio de morrer, e lhe disse:
– Eu compreendo que os outros estejam receosos; mas o senhor, um homem que abandonou o mundo, com medo de morrer? Confesso ao senhor o desapontamento que isso me causa. E o eremita deu-lhe esta resposta:
– “De morrer não tenho medo. Mas o que me causa apreensão é tudo quanto estudei em minha vida, e que o senhor não sabe.

Então vem uma dessas enumerações orientais pitorescas de tudo quanto ele estudou. Um homem sozinho, numa toca qualquer, tinha, além de tudo, aprendido oratória. Subia num montículo e falava para populações inexistentes.

Continuou o eremita:
– “Eu achava que tudo isso era para o serviço de Deus. E eis que agora estou fadado a morrer com a inutilidade de tudo que aprendi.

– Mas eu obtive do califa libertação de todos: o senhor está salvo – tranquilizou-o Mansur.

O eremita deu extraordinárias manifestações de contentamento. Mas o benfeitor lhe disse:
– Há uma condição: tenho dois filhos, e queria que o senhor viesse morar comigo e utilizasse toda a sua ciência para ensiná-los. Um desses filhos, o do segundo casamento, era João, futuro Doutor da Igreja e conhecido como São João Damasceno.

O eremita respondeu:
– Depois de o senhor salvar minha vida, estou ao seu dispor.

Hereges envolveram São João Damasceno numa intriga

Pelos desígnios da Providência, esse homem tinha sido chamado para uma ermida e ali encher-se de uma ciência extraordinária, sem saber definidamente o que Deus queria dele. Possuía, porém, uma noção interior tão grande e firme de se tratar realmente de um desígnio divino, que quando ele se viu condenado à morte, sem que esses conhecimentos fossem utilizados, sofreu um verdadeiro golpe.

Ele não sabia que essa tragédia a qual iria aproximá-lo da morte e consagrar a inutilidade de todos os seus esforços, na realidade fá-lo-ia encontrar o aluno em ordem a quem toda essa sabedoria tinha sido acumulada. E que ele seria célebre enquanto São João Damasceno o fosse, exatamente por causa do seu papel nessa celebridade. Esse anacoreta era como uma abelha, dotada de todo o mel da cultura antiga para nutrir um Doutor da Igreja.

A nota biográfica conta que São João Damasceno era muito bom aluno, inteligente, e aproveitou profundamente a ciência de seu preceptor. Entretanto, como se tratava daquele regime de politicagem do Oriente, os hereges envolveram São João Damasceno numa intriga.

O Imperador de Constantinopla estava em guerra contra o Califa de Damasco ao qual servia o pai de São João Damasceno. Um inimigo de Mansur, querendo comprometê-lo para que ele – ou seu filho João – fosse morto, escreveu uma carta falsa em nome de São João Damasceno ao Imperador de Constantinopla, na qual dizia admirar muito o Imperador, e que sendo católico não podia resignar-se diante da ideia de que os católicos fossem presos. Então, convidava o Imperador a invadir e tomar conta do califado, pois João e seu pai se levantariam para derrubar o califa.

O Imperador – herege iconoclasta chamado Leão III, o Isáurico – mandou a carta para Abdal Malique, dizendo estimá-lo tanto que lhe enviava aquela missiva como prova de lealdade, pois, podendo levantar esses súditos contra o califa, enviava-lhe a carta para que ele pudesse exterminar aqueles traidores.

O califa manda cortar a mão direita de São João Damasceno

Ao receber a carta, o califa ficou indignado e, sendo um homem de temperamento explosivo, mandou que carrascos agarrassem São João Damasceno e lhe cortassem a mão direita, como castigo. E só não o mandava matar por causa do grande prestígio que Mansur tinha junto a ele.

A ordem foi cumprida e São João Damasceno perdeu a mão, mas pediu ao califa que, ao menos, lhe entregasse o membro amputado para enterrá-lo. O califa acedeu ao pedido, pensando em tudo, menos no que poderia vir a acontecer.

São João Damasceno, de posse da mão cortada foi para o Oratório e começou a rezar, pedindo a Nossa Senhora que lhe restituísse a mão perdida. Deu-se, então, um milagre espetacular: a mão uniu-se ao corpo.

Diante do milagre, o califa contemporizou, soltou São João Damasceno que retomou seus escritos e sua pregação, tornando-se um dos maiores Doutores da Igreja, famoso por seu talento, por sua doçura e por sua implacável heroicidade na luta contra os inimigos da Igreja.

Imaginem o golpe para a Cristandade se São João Damasceno não pudesse expandir em todo o seu esplendor o brilho de sua palavra, em defesa da Igreja nas crises daquela ocasião.

Por outro lado, com o mestre se dá algo à maneira do que se passou com o discípulo: condenado à morte, vai perder todo o seu talento. Nesse episódio o mestre conhece o discípulo para o qual ele nasceu, e seu talento se eterniza na pessoa de São João Damasceno. Este, por sua vez, tem a mão cortada, a carreira prejudicada, a vida golpeada. Depois, um magnífico milagre e a prova de que Deus estava com ele. Admiração para todos os católicos da Ásia Menor e para a catolicidade inteira, ficando assim com um grande prestígio para pregar a palavra de Deus. Antes disso, porém, Deus quis levá-lo às sombras da morte.

“Em tua luz veremos a Luz”

Não posso me esquecer de que na Faculdade “Sedes Sapientiæ”, onde fui professor, havia uma capela que não era bonita, mas na qual existiam coisas muito bonitas: um vitral representando Nosso Senhor e, embaixo, esta frase da Escritura: “Ainda que eu caminhe nas sombras da morte, não temerei os males” (Sl 22, 4). Depois, outro vitral, do qual não me lembro a figura, com uma frase belíssima: “Iluminados por tua luz, veremos a Luz” (Sl 35, 10).

“Ainda que eu caminhe nas sombras da morte, não temerei os males”. O que significa isso para nossa vocação? Mesmo que os mais tenebrosos obstáculos se oponham ao caminhar da nossa vocação, não temeremos os males e continuaremos a andar serenamente, porque Nossa Senhora abrirá os caminhos e nós os transporemos, e chegaremos até o fim, desde que sejamos verdadeiramente devotos d’Ela.

“Iluminados por tua luz, veremos a Luz”. Embora eu não seja um exegeta, creio que essa frase pode ser aplicada a Maria Santíssima. Ela é uma luz, e à luz d’Ela vemos a Luz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Essas duas frases têm relação com a vida de São João Damasceno. As sombras da morte rodearam o preceptor dele, mas este encontrou a vida achando seu discípulo. O mesmo na vida de São João Damasceno. As sombras da morte o rodearam nesse golpe tão duro. Ainda aí ele não temeu os males; sua mão se recompôs e ele recomeçou.

Isso nos leva a uma confiança cega em Nossa Senhora. Se confiarmos, teremos tudo; se não confiarmos, nada possuiremos.

A expressão “Em tua luz veremos a Luz”, como é adequada quando estamos diante de uma imagem da Santíssima Virgem tendo ao colo o Menino Jesus! É uma luz e, junto a Ela está a Luz das luzes. E à luz de Nossa Senhora de Coromoto, vemos o Menino Jesus. Não pode haver nada mais bonito do que isso! Aí fica a figura enternecedora dessa imagem e a graça dada a um índio da América do Sul, fixadas no firmamento da Igreja à memória gloriosa de São João Damasceno.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/5/1976)
Revista Dr. Plinio 237 – Dezembro de 2017

Gloriosa noite coroada de contradições

Senhor Jesus, com quantas contradições quisestes coroar a noite mil vezes gloriosa de vosso Santo Natal!

“Coroa” sim, é bem este o vocábulo que convém a esse conjunto de circunstâncias com que quisestes cercar a hora tão rica em símbolos de glória e de dor, na qual, nascendo do seio da Virgem Mãe, iniciastes a caminhada esplendorosa que, conduzindo-Vos da gruta de Belém até o alto do Tabor, e deste último ao Calvário, haveria de ter seu termo final no momento glorioso e terrível em que destruireis o Anticristo, encerrareis por um terrível decreto de extermínio a História da humanidade e baixareis à Terra para iniciar o julgamento de todos os homens!

Contemplando essas cenas de dor e de vitória, de glorificação suprema como de condenação inexorável e extrema, situamos a Festa de vosso Santo Natal em sua plena perspectiva histórica. Sim, uma perspectiva na qual Deus e o demônio, o Céu e o Inferno, num contraste implacável, em uma luta suprema, haveriam de desfechar os seus golpes até o momento em que, cessada a História, só restariam em confronto os bons e os maus, uns votados pela Justiça eterna para a felicidade inteira, perfeita, gloriosa e sem fim, e outros para o abismo perpétuo e insondável de dores, de opróbrios e de vergonha, onde tudo não é senão derrota, insucesso, gemido e revolta perfeitamente inútil.

Na Noite Feliz os Anjos cantaram “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e na Terra paz aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Sim, aos homens de boa vontade. Porém, já havia também sob a abóbada celeste, constelada de estrelas, homens de má vontade. Certamente não era para eles – os malditos, os precitos – o precônio da paz, mas o da inexorável e total desgraça.

Vós quisestes que rodeassem vosso Presépio não só as glórias de aturdir, que Vos tocam na infinitude de vossa Santidade, mas as doçuras insondáveis do perfeito Coração de Mãe que Vos adorou desde o primeiro instante de vossa concepção.

É no ápice de todas essas perfeições que nossos olhos Vos contemplam hoje, na noite de Natal. De tantas contradições ao mesmo tempo magníficas e supremas, deslumbrantes e terríveis decorre um ensinamento que, súplices, Vos pedimos marqueis em nossos corações.

Também o mundo contemporâneo está imerso na contradição entre a verdade e o erro, o bem e o mal, a beleza e a hediondez. De um lado, contemplamos-Vos, Senhor Jesus, e vossa Santa Mãe, junto a quem refulge a santidade de José; e de outro, vemos o oceano das ignomínias, dos crimes, das abjeções nas quais vai se precipitando o mundo “totus in maligno positus est” (1Jo 5, 19).

Para onde quer que nos voltemos, algo vemos ou ouvimos que Vos ofende, ultraja e conspira contra Vós. Não há o que não se volte para Vos escarnecer, golpear, fazer sangrar e arrastar à Cruz. Em torno de Vós tudo é contradição, no sentido de que quase não há senão mal, e este é essencialmente contraditório.

Senhora das Dores, fazei que compreendamos esta hora de contradição, mantendo-nos genuflexos aos pés da Cruz, mas ao mesmo tempo eretos e destemidos como guerreiros, como Anjos em pleno campo de batalha. Combatentes implacáveis, de coração abrasado de amor a Vós e a vosso Divino Filho, para esmagarmos o mal, destroçarmos as contradições, elevar-Vos ao fastígio da glória de vosso Reino, ó Maria!(*)

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

* Conferência de 23/12/1993.

Pedindo a plenitude do espírito de Maria

Mãe nossa, Senhora do universo, obtende para nós do Menino-Deus, Vós que sois sua Mãe extremosa e sem mácula, uma contrição verdadeira e profunda por tantos pecados cometidos ao longo deste ano que se encerra, e que constituem sinais inequívocos de um transbordante egoísmo e de uma inquietante falta de amor de Deus.

Vós quisestes dobrar uma página de nossa história, tomando Vós mesma a iniciativa da reconquista de nossas almas. Acabai, pois, Senhora, a obra que começastes! Não se detenha vosso braço no início da tarefa, nem descansem vossos pés antes de atingir a meta. Comunicai-nos a plenitude de vosso espírito, preparai-nos para os grandes lances que se apresentam diante de nós.

Fazei com que o vosso espírito sagrado transponha os abismos de nossas misérias e infidelidades, como outrora o Verbo de Deus transpôs os abismos que O separavam da Criação para Se unir a Vós.

Sobretudo, Senhora, fazei com que a grande batalha profética se trave, que São Miguel venha e Vós vençais. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

São Silverio – O ódio sacral da Igreja militante

Está na índole da heresia ser brutal, falsa, visar o extermínio. Os hereges empreenderam tudo contra São Silvério, entretanto nada conseguiram porque ele se manteve firme e fiel.

A má-fé do herege deve ser vencida por meio de atitudes que o desmoralizem aos olhos de terceiros, para que ele não possa ser nocivo. A Igreja é militante, e é com espírito de luta que se deve combater as heresias.

Nós estamos numa guerra declarada e a mais terrível de todas, porque é a guerra entre os filhos da serpente e os filhos da Virgem.

São Luís Grignion de Montfort disse muito bem que essa inimizade sempre existirá, pois tudo quanto Deus faz é perfeito, e essa é a única estabelecida por Ele: “Inimicitias ponam” (Gn 3, 15). É uma inimizade perfeita que ressalva o desejo de salvar as almas dos hereges, mas vai até o extremo do ódio sobrenatural. Desse ódio sacral as nossas almas devem estar cheias, fazendo de nós os apóstolos dos últimos tempos, combativos, zelosos, intransigentes; e nunca apóstolos abobados e traidores da causa que deveriam defender. Eis a grande lição que se desprende da bela vida de São Silvério.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1967)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

A antítese mais completa do mal

Exceção feita da humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, nenhuma criatura de Deus ressalta tão bem a antítese entre o bem e o mal do que Nossa Senhora. Porque n’Ela não há nenhum mal, essa oposição é muito mais forte.

Por outro lado, a virtude que Lhe conferem a Imaculada Conceição, a confirmação em graça, enfim, tudo o mais é de tal maneira excelente que faz d’Ela a antítese mais completa do demônio. Não é dizer que Maria é tão santa quanto o demônio é ruim. A santidade d’Ela excede a perder de vista a maldade do demônio, nem é possível a comparação.

Aliás, até mesmo nesta impossibilidade de comparação, o contraste se afirma grandiosamente. Ela é muito mais do que a “anti-demônio”, porque é a Mãe Virgem do Salvador! Isto explica o “inimicitias ponam”, o calcanhar que esmaga a cabeça da serpente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/9/1992)

Lumen honoris

A maior honra que o homem pode alcançar nesta Terra é a amizade com Deus, ou seja, o estado de graça. Partindo deste princípio, Dr. Plinio explica o que é honra e como cada nação da cristandade desenvolveu fórmulas e estilos de cortesia, respeito e honorificência

 

Honra é a forma particular de apreço que se deve àquilo que é excelente. A honra é distinta da aprovação. A simples aprovação é a declaração de que uma coisa está na altura de sua natureza, enquanto que a honra mostra a excelência de algo.

Nesta perspectiva, podemos distinguir na honra primeiramente um aspecto pelo qual a pessoa internamente percebe a sua própria excelência e tem para consigo próprio a noção do respeito que deve a si mesmo. Isso é especialmente agudo no católico, em virtude de dois pontos: o dogma do pecado original e o dogma, ou verdade de Fé, a respeito da vida da graça na alma.

Excelência e estado de graça

Só é verdadeiramente excelente aquele que está no estado de graça e a partir daí faz coisas excelentes. Quem está fora do estado de graça pode ter coisas boas, mas não é excelente. Por que razão? Imaginemos uma maçã que está quase toda podre, mas tem uma parte pequena não apodrecida. Se alguém, com uma colherinha, conseguir isolar essa parte e servir-se dela, talvez perceba que foi uma deliciosa maçã. Entretanto, dela não se pode dizer: “Que boa maçã!” Pode-se afirmar que foi, mas que é, não. Porque a podridão desnatura até aquela parte pequena, não podre, que na maçã existe. Então, o estado presente daquela maçã não é excelente.

Isso se dá com o homem, cuja natureza é muito elevada. O homem é uma síntese de todo o universo: tem o espírito como os anjos, a vida animal, vegetal e a existência mineral dentro de si. Mas entrou no homem a “podridão” do pecado original. E devido a isso ele é capaz de uma ou outra ação excelente, mas em todo o seu ser ele não será.

Assim, por exemplo, os antigos pagãos tinham uma ou outra atitude muito bonita, mas eles não possuíam toda a personalidade excelente. É como o exemplo da maçã, a qual tem um ponto em que se pode perceber que teria sido excelente, mas de fato ela não o é.

O católico é sempre auxiliado pela graça. Se ele diz “sim” à graça e se mantém na amizade de Deus, sobretudo quando está na posse habitual do estado de graça, o católico se torna bom. Se, além de possuir o estado de graça, faz alguma ação excelente, essa excelência repercute sobre todas as outras virtudes que ele possui. Ele fica excelente se tem várias disposições de alma excelentes e, mais ainda, se possui todas as disposições de alma excelentes, que é o santo.

Noção respeitosa da própria dignidade

Acontece que o católico, sabendo como é miserável por natureza, quando ele vê que se mantém em estado de graça e tem disposições de alma que vão além do que os Mandamentos exigem e entram na linha dos conselhos — relativos a atos que, mesmo não realizados, não fazem com que a alma se perca; ela os pratica por amor, sendo esses atos excelentes —, percebe que existe nele uma raiz de excelência, a qual o eleva muito acima do pecado original.

Seria mais ou menos como a maçã podre, sobre a qual Nossa Senhora pedisse a Deus que desse uma bênção e a transformasse numa maçã sadia. Ela se tornaria muito mais do que era antes de apodrecer, porque seria uma maçã “miraculada”, sobre a qual desceu o poder de Deus onipotente, como a água das Bodas de Caná: Maria Santíssima pediu e Nosso Senhor transmudou a água em vinho.

Assim também é o homem com o pecado original, que pela graça consegue praticar todos os Mandamentos. Sem a graça ninguém consegue praticar duravelmente todos os Mandamentos. Então, é uma excelência! Maior ainda é a excelência se o homem considera que, além de estar acima do nível do pecado original, habita nele a graça, uma participação criada na vida incriada de Deus.

O católico, que sente em si o pecado original — é um dos aspectos mais característicos da inocência o indivíduo sentir como ele, pelo pecado original, não vale nada —, vendo sua própria excelência, deve admirá-la, dar graças a Deus e ter uma noção respeitosa de sua própria dignidade. É semelhante ao leproso grato, a quem Nosso Senhor curou. Ele reconheceu que estava curado e se alegrou com o estado de saúde recuperado, a tal ponto que voltou para agradecer. Assim também nós, quando fazemos coisas excelentes, somos como leprosos curados. Devemos reconhecer a excelência daquilo que fazemos e, portanto, respeitar-nos por gratidão para com Deus, para com Nossa Senhora, sem A qual não teríamos obtido isso do Altíssimo, porque toda graça nos vem por meio da Santíssima Virgem.

Devemos compreender que não é por “megalice”(1) que precisamos reconhecer nossas qualidades, mas por respeito para com o dom de Deus. E esta vem a ser a primeira noção de honra: o fato de a pessoa se respeitar a si própria.

Um dos maiores ultrajes que se pode dizer a alguém é este: “Nem você sequer se respeita a si mesmo, quanto mais querer que os outros o respeitem!” Às vezes, para chamar a atenção de um homem que está fazendo uma ação indigna, pode-se dizer: “Respeite-se!”, como quem chama a atenção para razões que ele tem para se respeitar.

Admiração, respeito, benquerença

Então, a honra é um estado de excelência, o reconhecimento interno dessa excelência, com o agradecimento a Deus, por meio de Nossa Senhora. E também o reconhecimento que outro faz do que temos de excelente, por onde ele mostra uma admiração e um respeito especiais. E eu ponho exatamente em ordem: primeiro admira-se e, em razão disso, respeita-se; porque só se respeita aquilo que se admira; depois querer bem, porque a quem se admira e respeita, deve-se querer bem, ter carinho. E vou dizer mais: só se tem carinho verdadeiro por quem se admira e se respeita.

Então, numa civilização cristã e, sobretudo, no Reino de Maria — aonde, como diz São Luís Grignion de Montfort, os santos vão ser tão grandes, em comparação aos antigos, como os carvalhos em relação aos arbustos — o grau de excelência vai ser incomparavelmente maior do que conhecemos agora. E a noção que cada um terá de sua própria honra e do respeito para consigo mesmo será muito maior. Crescendo essa noção de respeito, cresce também a ideia que os outros têm do respeito a nós devido. Em consequência, no Reino de Maria o trato e o ambiente, serão impregnados de honra.

O que quer dizer “impregnado de honra”? Significa que se aproveitarão todas as ocasiões e todos os pormenores para dar a cada um a honra que merece. Será uma civilização eminentemente cerimoniosa.

O que é cerimônia? É um conjunto de palavras e de gestos por onde a pessoa exprime respeito. Portanto, uma civilização impregnada da ideia de honra é pervadida(2) de cerimônia e de cerimonial, é toda ela cerimoniosa. E a atitude das pessoas, o modo de se portar, de olhar, de se tratar, reproduzirá isto. De que forma? Com as antigas fórmulas de respeito, usadas neste ápice da respeitabilidade que houve no mundo, que foi a Idade Média? Ou com outras fórmulas ainda acrescidas? Que fórmulas?

Um problema bonito para se tratar é o seguinte: as fórmulas inventadas na Idade Média — algumas das quais decaíram no “Ancien Régime”(3), mas outras, pelo contrário, se requintaram até ao “delicioso” — são arbitrárias, podem variar ou estão de acordo com a natureza das coisas e são invariáveis? Algo de invariável elas têm, e isso devem conservar.

Relações entre o Papado e o poder temporal

Lembro-me de uma iluminura medieval representando uma cena que, tanto quanto eu saiba, não se deu; portanto, é uma cena imaginária. Era um Papa celebrando Missa, acolitado por dois coroinhas: o Imperador do Sacro Império e o Rei da França.

Tal iluminura exprime inteiramente a ideia que o católico deve ter das relações do Papado com os poderes terrenos, e o altíssimo e supremo grau de honorificência que reside no Papado, mas também no poder temporal. Sendo o Papa tão elevado, entretanto o poder temporal é digno de acolitá-lo; é uma honra ser coroinha. E um imperador que escrevesse para seu país relatando o fato, deveria redigir assim: “Tive a honra de servir de acólito na Missa celebrada pelo Vigário de Jesus Cristo na Terra, Pedro vivo em nossos dias, Sua Santidade, o Papa. Comigo acolitou o augusto Rei da França.”

O Rei da França deveria escrever: “Tive a honra etc., e também a honra de ser co-acólito com Sua Majestade Imperial.” Porque, como o Imperador é mais do que o Rei da França, é também para este uma honra ficar colocado numa situação análoga à do Imperador. E isso ele precisaria reconhecer.

E o último barão da Cristandade que estivesse presente na cerimônia deveria dizer: “Não cabia em mim de entusiasmo e de respeito. O Vigário de Cristo, o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o Rei da França participaram da Missa. O Imperador acolitou e o Rei também!”

São os vários graus de respeito devidos a cada um.

Origem dos Grandes de Espanha

A civilização ocidental, na Alemanha, na França, na Espanha, destilou manifestações de honorificência e de respeito, próprias à índole de cada país.

Por exemplo, um Grande de Espanha é uma coisa fenomenal!

A Espanha de si é grande, independente de ter ou não ter colônias ou grandes extensões geográficas. O grande império colonial foi um episódio de sua grandeza. Ela é grande por causa da grande alma que possui e do consórcio comum da alma do espanhol com o que há de maior, posto nas maiores proezas — às vezes, com um pouquinho de exagero.

Saint-Simon(4) narra a origem dos Grandes de Espanha. Havia naquelas primitivas monarquias espanholas, existentes antes da fusão dos vários reinos católicos, uma porção de outros reinos que foram se unindo, se aglutinando em dois grandes blocos: Aragão e Castela. Mas continuavam existindo aqueles vários pequenos reinos, cujos monarcas possuíam pouco poder.

Esses reis tinham em suas terras grandes vassalos, grandes senhores feudais, que por sua vez tinham sob a sua dependência grande número de trabalhadores manuais. E eram chamados “ricos homens”, e não condes ou barões, porque eram anteriores a esses títulos. E as mais antigas famílias espanholas e portuguesas descendem dos “ricos homens”, que chefiaram a rebelião do povo contra a invasão dos árabes.

Os “ricos homens” não possuíam títulos dados pelo rei, pois eram senhores naturais daquelas terras. E há uma beleza especial nisso, pois eles tinham uma nobreza que, por assim dizer, saiu do chão, das mãos de Deus, como uma flor. Poder-se-ia dizer do “rico homem” um pouquinho o que Nosso Senhor diz dos lírios do campo: “Considerai os lírios, como crescem; não fiam, nem tecem. Contudo, digo-vos: nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles” (Lc 12,27). Quer dizer, o “rico homem” é como um lírio que nasceu da ordem natural das coisas e domina suas terras.

Os reis, querendo sujeitar esses “ricos homens”, começaram a dar-lhes o título de Duque. E para alguns “ricos homens” os monarcas não lhes concediam esse título, mas tiveram que reconhecer que eles eram grandes. E então, mais do que o título de Duque era o de Grande, que não era dado pelo rei, mas criado pela ordem natural das coisas. Era, por assim dizer, um título nascido das mãos de Deus, através dos dedos da História.

Os monarcas acabaram dando o título de Duque a todos os descendentes dos antigos “ricos homens”, mas esses descendentes tratavam com certo desdém esse título, porque o importante era ser Grande de Espanha.

Por estas e aquelas “vuelteretas”, os reis acabaram distinguindo os “ricos homens” em três classes: a primeira, a segunda e a terceira.

Eles responderam muito “hidalgamente” e à la espanhola à manobra dos reis: não se revoltaram, mas não contavam a ninguém quem era de primeira, segunda e terceira classe.

E Saint-Simon, que era apaixonado por coisas nobiliárquicas, depois de muito empenho, conseguiu somente a indicação de alguns Grandes de Espanha, que eram de primeira e de segunda classe, e mais nada. Porque eles mantinham isso em segredo.

Os reis podiam ter feito decretos dizendo: “Declaramos que de primeira classe é este, de segunda é aquele, de terceira é aquele outro”, mas não ousaram fazer, provavelmente porque perceberam que, se publicassem decretos assim, os Grandes não iriam tomar em consideração do mesmo jeito. E fariam uma espécie de greve dos duques, o que seria uma atitude eminentemente espanhola. E assim ficou o título de Grande de Espanha.

Não quero dizer que é mais do que tudo, mas é uma coisa acima da qual não há nada. A tal ponto que a própria condição de Príncipe da Casa Real espanhola, que é, teoricamente, mais, eu acho menos impressionante do que dizer que alguém é um Grande de Espanha.

Para ilustrar um pouco esse assunto, um dos Grandes de Espanha é o famoso Duque de Alba, que venceu os protestantes poloneses belamente. Ele adoeceu e mandou dizer a Felipe II que precisava falar com ele, pois estava para morrer. Felipe II não foi logo, mas, com aquela majestade solene, lenta e solar que lhe era própria, chegou alguns dias depois. Quando ele entrou no quarto do Duque de Alba, este o olhou e disse: “Es tarde, señor”, virou-se para a parede e não olhou mais para o Rei! Era um Grande de Espanha!

Uma cena de Cyrano de Bergerac e o Magnata húngaro

Há muitos anos, li o Cyrano de Bergerac(5). E havia uma heroína francesa, a Roxane, que atravessou as linhas espanholas para ir visitar o exército onde estava o Cristian, que era o noivo dela, e que se encontrava lá com o Cyrano. Porque a guerra era com a Espanha e, para não dar uma volta muito grande, Roxane precisou atravessar as linhas espanholas.  Rostand imagina a cena assim: ela se apresentava, vestida com a dignidade de uma nobre francesa, e dizia ao sentinela espanhol que desejava conversar com um “gentilhomme” francês, que estava do outro lado da linha, e perguntava se ele permitia. O soldado mandava chamar o superior, um espanhol “fier comme un prince” — altivo como um príncipe —, que tirava o chapéu para ela e dizia: “Pase, señora!”

Aqui está um gênero de categoria bonita, porque todo espanhol tem algo de sombrio no fundo, um ar de desafio. Esse “Pase, señora” está longe de ser: “Madame, veuillez passer —Senhora, queira passar”. É a beleza da Europa dos mil “esmaltes” e das mil “tonalidades”.

Consideremos agora o contrário, um Magnata húngaro: nome dado aos nobres da Hungria, que faziam parte da Câmara dos Lordes. Com aquela “aigrette”(6), pele de pantera, espada curva, aquele ar vagamente huno ou mongol, que lhe dava certo fundo de brutalidade e grandeza selvagem, tem-se a impressão de que cada um deles ainda carregava alguma árvore dos tempos pré-históricos debaixo do braço. Mas, ao mesmo tempo, sabem ser imponentes como marajás e finos a ponto de frequentarem, com garbo, qualquer corte europeia. Aquilo já é outro tom, completamente diferente do Grande de Espanha. É um outro mundo e uma outra atmosfera de cerimonial.

Para a coroação dos reis da Hungria, entravam na praça os Magnatas, todos a cavalo — e cavalos fortes —, no meio ficavam os Bispos, e exigia-se destes que fossem homens fortes também.

Eu vi um filme sobre a coroação do Rei Carlos, último monarca da Hungria — o Imperador Carlos da Áustria e Rei da Hungria. Estavam presentes três Bispos do rito oriental, com coroas, e outros Bispos ocidentais, com mitras altas, e todos cavalgando. Ao descerem dos cavalos, jogavam as rédeas com garbo para os escudeiros e entravam.

O rei, quando era coroado — acho que isso ocorria na Hungria, mas não tenho certeza —, tinha de saltar por cima de um monte de trigo em grãos, com uma espécie de vasilha na mão, enchê-la de trigo e jogar para o povo, a fim de provar que ele era um bom cavaleiro e um bom guerreiro, mas que ao mesmo tempo era generoso e prometia ao povo grande abundância.

Esse vago resquício de selvageria dá uma força e uma grandeza à majestade, que é uma coisa extraordinária! Entretanto, não tem as mil finuras da coroação de um rei da França. Por exemplo, a coroa de Luís XV, no Louvre, é uma coisa extraordinária, única no gênero.

Novas formas de cortesia e de cerimonial

Os reis da França, que eram os “Reis Cristianíssimos”, depois de toda a pompa da coroação, saíam da Catedral e ficavam diante da fila dos escrofulosos, parados do lado de fora da igreja, nos quais tocavam com as suas régias mãos, e diziam a cada um: “Le roi te touche, Dieu te guérisse — O rei te toca, Deus te cure.” Afirma-se, e eu creio nisso, que vários eram curados. O soberano acabara de receber do Bispo a unção, era o ungido do Senhor, com o óleo trazido do Céu por uma pomba, na santa ampola utilizada por Saint Rémy na coroação do primeiro rei católico dos francos, Clóvis. Aqui já é outra feeria!

Feérico também é o velho Kremlin, com a velha coroa dos imperadores da Rússia, ainda tão primitivos que a orla da coroa é de pele. Eu acho essa coroa forte como a força de um magiar, e possui algo de selvagem, que não faz mal ao homem.

Essas coisas constituem uma espécie de “lumen honoris” próprio. Esses eram os excelentes do povo. E cada povo elaborava assim uma excelência correspondente à sua luz primordial(7), e algo que era a matriz de sua própria civilização e cultura.

Esses homens inspiravam os poetas, os artistas, realizavam os grandes feitos. Eram propriamente a tintura-mãe da nação, segundo a qual esta se modelava, conforme um processo muito natural, a partir da formação primeira de um núcleo excelente. Encontra-se esse processo de formação em mil fenômenos naturais. Por exemplo, se alguém quiser ter um grande exército fará muito bem possuindo, antes de tudo, um arqui-regimento, e depois constituindo outros regimentos segundo aquele. Ou se faz primeiro o excelente, e depois o resto, ou nada se realiza como deveria ser feito.

A todos esses “lumens” de honra próprios correspondiam escolas de cortesia, estilos, modos próprios etc., que eram as honras das várias nações. Em determinado momento a Europa soube perceber como eram essas honras das várias nações, e cada nação soube tributar à outra o apreço correspondente a isso. Houve, então, uma espécie de sinfonia de harmonia cristã por toda parte.

E o Reino de Maria continuará isso? Ou essas serão tradições que morreram e o Reino de Maria inovará coisas que vão servir de tintura-mãe para toda uma nova escola de “lumens” de honra e de estilos de cortesia muito mais quintessenciados? É uma pergunta diante da qual eu não tenho muito o que responder.

Só sei uma coisa: que, além de muito mais cerimoniosas, essas escolas de cortesia vão ser muito mais sérias porque serão a réplica a um mundo que pecou por falta de seriedade e por “nhonhozeira”(8). E evidentemente muito mais sacrais.

O pensamento religioso e o caráter da origem religiosa de toda superioridade, qualquer que seja a sua natureza, serão muito mais marcados do que antigamente. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1980)

 

1) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.

2) Penetrada, embebida. Neologismo usado por Dr. Plinio, derivado do verbo latino pervadere.

3) Antigo Regime. Período da História da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa. Naquele período, a sociedade caracterizou-se por um requinte de bom gosto e pela elevação no convívio humano.

4) Duque de Saint-Simon (1675-1755), cujas Memórias abrangem o reinado de Luís XIV e a Regência.

5) Obra em versos (1897), de Edmond Rostand.

6) Do francês: penacho, adorno de penas.

7) A “luz primordial”, segundo a conceitua Dr. Plinio, é a virtude dominante que uma alma — ou um povo no seu conjunto —, é chamada a refletir, imprimindo nas demais sua tonalidade particular.

8) Termo usado por Dr. Plinio para designar o espírito acomodatício, apegado ao conforto, à despreocupação e à vida  sem dedicação a um ideal.

Santa desde o primeiro instante

Conforme a sentença comum dos teólogos, Nossa Senhora, concebida sem pecado original, foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Portanto, já no claustro materno possuía altíssimos e sublimíssimos pensamentos, nele vivendo como num verdadeiro tabernáculo. Assim, pode-se acreditar que a Bem-aventurada Virgem, com a elevada ciência que recebera pela graça de Deus, ainda no seio de Sant’Ana começou a pedir a vinda do Messias e, com Ele, a derrota de todo mal no gênero humano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 8/9/1963)

São Nicolau

Personagem envolto na áurea e inocente legenda natalina, São Nicolau foi um modelo de caridade cristã, desvelado benfeitor do próximo mais necessitado, ao qual prodigalizava seu auxílio, sem que ele soubesse de onde viera o inestimável socorro.

Príncipe da Igreja, sucessor dos Apóstolos, sua compaixão e generosidade o tornaram para sempre essa figura mítica, repassada de bondade e carinho, fonte das alegrias e sorrisos com que as crianças festejam seus presentes de Natal.

Também eu, quando menino, aguardava ansioso a manhã do 25 de dezembro, na certeza de que o bom São Nicolau viria durante a noite depositar aos pés de nossa cama os brinquedos que tanto desejávamos. E ele os trazia sempre…

 

Plinio Corrêa de Oliveira