Apóstolo da santa violência

Ao Apóstolo São Paulo, para quem a palavra de Deus era como um gládio de dois gumes que atinge até a juntura da alma com o espírito (cf. Hb 4, 12), a Providência concedeu a graça de fazer violência às almas e ser capaz de operar conversões extraordinárias, ou pela qualidade ou pela quantidade das pessoas por ele convertidas, de maneira que abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica se desenvolveu.

Foi Nossa Senhora quem obteve para São Paulo esse dom, porque ele tinha muitos obstáculos a vencer naquela época de luta, em que era preciso derrubar o paganismo.

Nós devemos pedir também essa santa violência para derrubar a Revolução que é hoje muito mais poderosa do que foi o paganismo no tempo do Império Romano. Compreende-se, portanto, que os Apóstolos dos Últimos Tempos tenham uma violência como a de São Paulo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1965)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

Feerias de sol, belezas de Deus

Depois de Zurbaran e do Beato Fra Angélico, o pintor cujas obras mais me impressionaram foi Claude Lorrain. Artista do século XVII, seu estilo é diáfano, encantador, que revela uma habilidade única de reproduzir em suas telas aquilo sem o que – no dizer de um poeta francês – as coisas não seriam senão o que elas são: a luz do sol.

Lorrain é o pintor do sol. Seus quadros são fantasias em torno do astro diurno, que ele se compraz em representar na sua beleza plena, esplendorosa e régia, projetando a feeria dessa luz sobre naturezas e cenários os quais, sob a ação dela, parecem se transformar em imensas e suntuosas cortes.

Em geral, os temas de suas pinturas são frutos de uma privilegiada imaginação, misturando-se neles elementos antagônicos e quase se diria contraditórios. Por exemplo, um porto em que as águas do mar penetram por um lado da cidade e formam uma espécie de enorme laguna, cercada de magníficos palácios, que ombreiam com ruínas de construções  romanas. As ondas banham prestigiosas escadarias de mármores policromados,  ou investem contra uma torre medieval que está posta naquele panorama como a proa de um navio apontada para o amplo oceano.

Nesse porto estão ancoradas várias embarcações, grandes e pequenas, a bordo das quais se vêem camponeses tocando e dançando uma tarantela. São pessoas do fundo do país, de regiões onde não há mar, e que ele coloca ali, em tombadilhos enfeitados, junto a marinheiros e estivadores que desembarcam mercadorias.

Tudo isso é irreal, imaginário, e chega a ser inconciliável: escadas de mármore banhadas pela água do mar (que corrói essa pedra facilmente), ruínas romanas ao lado de torres medievais,  próximas a palácios clássicos, camponeses fazendo festas a bordo de navios, personagens bíblicos ao lado de homens do século XVII… Ele toma esses elementos díspares e pinta quadros de realidades que nunca existiram.

Pergunta-se, então, qual o mérito dessa concepção artística. A resposta, a meu ver, é que tudo isto convém ao pintor para iluminar por um certo tipo de luz de sol, também ela mirífica e transcendente da realidade.

Ele cria coisas em ordem a um sol igualmente criado pelo seu talento. Ao término de uma fabulosa tela, Claude Lorrain terá composto uma situação natural que ele gostaria muito fosse verdade, e cuja existência encheria a sua alma. Não se trata, pois, de uma pura fantasia, mas de uma criação. Ele gerou tudo aquilo para formar um mundo dourado e irreal, que atrai profundamente o senso artístico de incontáveis pessoas apreciadoras da arte pictórica.

Algum espírito menos afeito a idealizações poderia objetar contra o valor e a admira ação que se tributam aos quadros de Lorrain, porque  não se deve gostar do que é imaginário. E nas pinturas dele tudo — incluindo a própria luz do sol, “sans lequel les choses ne seraient que ce qu’elles sont” — é imaginário e, por conseguinte, anorgânico.

Esta é uma objeção perfeitamente estúpida, porque faz parte da organicidade do homem ter uma certa saudade do Paraíso, perdido após o pecado de nossos primeiros pais. E ter, portanto, uma necessidade equilibrada, sem descabelamentos, de imaginar coisas que ele sabe não existirem nesta terra de exílio, mas que podiam ter existido no Éden, e que poderão existir no Paraíso Celeste.

Assim, longe de merecerem nosso desprezo, os quadros de Claude Lorrain são quase uma pré-visão do Céu Empíreo.

* * *

Há, todavia, nas telas de Lorrain uma simbologia de algo ainda mais elevado. Quando consideramos o conjunto de sua obra, podemos perceber que sua especialidade é pintar muros velhos, leprosos, escalavrados, que perderam pedaços de reboco e os tijolos se tornaram aparentes, sobre os quais, porém, bate um sol magnífico. E o muro, feíssimo, fica agradável de ver e contemplar.

Aqueles fabulosos raios solares, ao conferir à parede derruída algo do esplendor e da vida deles, fazem com que ela se torne linda, realçam-lhe o valor, o significado e o ideal.

Quer dizer, o muro alquebrado, que enfrentou tempestades, suportou vilipêndios, aguentou terremotos e continua sempre de pé, sob a ação de um luz feérica, adquire um ar de velho granadeiro da guarda que lutou em todas as batalhas, e agora serve como sentinela do lado de fora do palácio real, e cuja beleza consiste em ter sido surrado pelos acontecimentos e ter resistido. É o herói de todas as intempéries e de todos os combates. Tornou-se um homem feio, enrugado, o bigode branco manchado de tabaco, a face e o corpo marcados de cicatrizes. É rude e pouco educado. Porém, ao vê-lo… prestamos-lhe continência.

Reverenciamos o sol de seu passado, de suas dores e de seus sofrimentos, que incide sobre ele, leva-nos a interpretá-lo, e arranca de nossos lábios a exclamação: Que maravilha!

Do fundo do muro emerge então, pelo toque do sol de Lorrain, o que já não aparecia, mas nele estava, e que é o “arqui ele”. Ora, assim é também a ação da graça divina. Ela é, digamos, a tinta celestial que Nosso Senhor utiliza, como se fosse um infinito Claude Lorrain da criação. O genial talento do pintor francês não foi senão pálida e pequena representação das perfeições  incomensuráveis de Deus no que diz respeito a esta forma de talento.

Visto à luz da graça concedida por Deus, tudo o que é árido e difícil se torna belo. A perda desse modo de ver as coisas pode ocorrer por culpa nossa, porque cedemos aos nossos egoísmos, caprichos e manias.

Ou por decisão de Deus que, nos seus insondáveis desígnios, deseja nos provar: depois de nos cumular com seus dons, de nos favorecer com maravilhosas situações à la pintura de Claude Lorrain, permite que tudo se apague de repente.

Agindo assim, Nosso Senhor como que nos pergunta: “Meu filho, considerando a formosura da graça, tu, por assim dizer, me viste e compreendeste o que é a maravilha das coisas. Agora Eu vou te provar. Sabes me ser fiel nas horas em que Eu não te visito pela graça sensível?”

Nas horas em que anoitece, tu continuas a crer no sol? Ou és daqueles que pensam ter-se tornado cegos porque escureceu? Ou seja, porque há aridez, tu pensas que as consolações não voltarão jamais? “Quero conhecer tuas disposições, para saber se tu me és grato. Se o fores, dir-me-ás: Nas sombras da morte, Senhor, acreditarei em Vós como se estivesse na plenitude da vida, porque sei que é verdade tudo o que vi antes da escuridão”.

Saibamos ter esse reconhecimento para com o Sol da Justiça, cujos raios são graças sob cuja ação o que é feio e velho torna-se belo e admirável.

Compreendamos que, assim como nos quadros de Claude Lorrain não é ilusão o aspecto fabuloso que o muro derruído assume sob a luz de um sol magnífico que lhe penetra na superfície e faz reviver a grandeza dos primeiros dias, assim também nesta nossa vida mortal não são ilusões as coisas sobre as quais incidem as cintilações da graça divina, que nos faz ver tudo o que elas têm de ensolarável, de maravilhoso e de arqui-verdadeiro.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 22 – Janeiro de 2000

Os Reis Magos

Na vida espiritual pode haver momentos em que pensamos trilhar um caminho incerto, sem vislumbrarmos o almejado objetivo. Dizemos: “Afinal, andamos, andamos, andamos, como se à nossa frente estivesse a estrela que guiava os Reis Magos, mas, até agora, não chegamos a Belém…”

Ora, nesse instante de dúvida procuremos nos convencer de que, se diante de nós reluz a estrela, importa confiarmos, pois logo a Providência nos confirmará em nossa certeza, assim como os Magos se viram confirmados na sua esperança: ajoelharam-se aos pés do Menino Jesus, a Quem ofereceram ouro, incenso e mirra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 13/3/1984)

A Epifania do Senhor

A Epifania — palavra grega que significa “manifestação” — celebra a primeira aparição de Jesus a todos os povos, representados pelos Reis Magos ajoelhados diante do Menino-Deus.

Sentado no colo da Virgem-Mãe, como se fosse num trono, Nosso Senhor começou a receber a adoração de todas as nações que, no decorrer da História, haveriam de desfilar, reverentes e transidas de amor, aos pés d’Ele, em um longo cortejo. E a todas, o Redentor cumulará de graças, favores e dons celestiais.

Plinio Corrêa de Oliveira

Intimidade cerimoniosa

Uma bela gravura do século XVIII(1) retrata uma cena quotidiana na Praça Santa Maria Novella, em Veneza. Local de pequenas dimensões, no qual se leva, sem dúvida alguma, uma existência de intimidade. Entre os personagens ali presentes, entre as próprias casas, nota-se uma espécie de fraternidade. Essas moradias parecem irmãs, aconchegadas umas nas outras, assim como as pessoas, envoltas numa certa suavidade, uma certa familiaridade.

Porém, cumpre observar, trata-se de uma intimidade cerimoniosa.  Nessa praça não há ambiente, por exemplo, para se sair de pijama. Há, sim, uma calma feita de tradição, uma forma de bom gosto difuso em todos os seus aspectos. Cada coisa manifesta seu estilo: duas ou três fachadas, discretas e bonitas; um palacete ao mesmo tempo exíguo e pomposo, ornado de uma coroa de conde e com seu átrio imponente. É um valioso detalhe no cenário.

Observando-se a movimentação dos personagens, tem-se a impressão de que houve, ou haverá uma representação teatral sobre um palco armado num dos lados da praça. Ao fundo ergue-se a fachada da igreja paroquial, de graciosos contornos e, sobretudo, a torre do campanário, elegante, de linhas harmônicas e distintas; a parte inferior forte e vigorosa, como que suportando a leveza do segmento superior e contrastando de modo bonito com o ligeiro do resto.

Na fachada de uma das casas, mais bela que as outras, embora de tamanho comum, apenas com um jogo de distância e proximidade de janelas obteve-se um efeito de muita categoria. Compõe-se de duas partes: uma, feita de aberturas estreitas, cujo exíguo é compensado pela grandeza das portas embaixo e pela base robusta. A outra parte constitui quase uma fachada diversa, e essas duas frentes juntas dão ideia de largueza agradável, movimentada, interessante.

Talvez fosse exagero qualificá-la de uma obra-prima, mas é preciso reconhecer que a escola segundo a qual isto foi construído é uma grande escola. Não se trata de investir mais ou menos dinheiro na edificação. É questão do bom gosto, do critério acertado, do espírito, da alma bem orientada que deu forma a isto e o situou de maneira esplêndida neste local.

Outras fachadas também nos chamam a atenção pela simetria e o estilo bem trabalhado. Algumas compensam a simplicidade pelo jogo de janelas, pelas portas grandes e ricas, e por quaisquer imponderáveis, presentes aqui e ali, conferindo singular beleza a tudo.

Vale notar como essa praça ficaria falha se não houvesse o poço no centro dela. Na verdade, faltar-lhe-ia alguma coisa, e ela pareceria imensa, desproporcional. Donde o papel extraordinário do poço, que constitui o que poderíamos chamar de centro psicológico superior.

Também nos fazem sorrir alguns aspectos que indicam a presença do povo. Este constitui o elemento calorífico das coisas. Onde há povo, há calor humano. Sem ele, o ambiente se transforma numa espécie de cristaleira… Então se vê, por exemplo, uma chaminé, verdadeira maravilha no seu gênero, e uma escada apoiada nela. Logo imaginamos o italiano que a limpa, coberto de fuligem, cantarolando sua ária preferida. Dali a pouco ele encosta os esfregões e desce para almoçar. Enquanto ele se distancia, sopra um vento forte, toca na escada e a derruba: ela vai caindo sobre uma menina que passa brincando, mas a matrona na casa em frente invoca Santo Antônio e a escada desvia. É um momento da vida na Praça Santa Maria Novella!

Todos esses pormenores me parecem assaz pitorescos. Como é pitoresco o gradeado que serve para se bater os tapetes das casas: chega até ele a “mamma”, braços roliços acostumados a amassar o macarrão, estende o tapete, a cortina, a colcha, etc., e começa a espaná-los vigorosamente. Claro, trocando animados comentários com a vizinha, enquanto a poeira sobe e se confunde nos ares da praça. Noutro canto, vê-se um instrumento para servir a alguma arte manual, ele também maravilhosamente encaixado neste panorama urbano.

Analisada assim essa gravura, poder-se-ia dizer que fizemos uma forma de contemplação. Pois a consideramos com espírito contemplativo, procurando discernir naquele ambiente do século XVIII o que ele possuía de afim com o espírito católico, buscando perceber e apreciar a alma humana que o engendrou, uma alma naturalmente virtuosa, que seja a imagem de Deus e para Ele se oriente.

Se nos acostumássemos a observar as coisas desse modo, imitaríamos o sábio que faz reflexões sobre a vida, que a conhece e a entende, inspirado pelo senso comum dos valores da existência que elevam seu espírito ao mais alto, até a Sabedoria infinita.  v

 

1) Essa gravura decorava a sala de trabalhos e atendimentos de Dr. Plinio, na sede principal de seu movimento, em São Paulo.

 

A escada das escadas

Encerrando com fecho de ouro seus comentários a diversas escadas, Dr. Plinio se refere com enlevo àquela por ele considerada arquetípica: a “Scala Santa” de Roma. Erguida no antigo pretório de Pilatos, em Jerusalém, Nosso Senhor a subiu e desceu na Sexta-Feira Santa, e do alto dela, chagado e coroado de espinhos, foi apresentado ao povo sob o anúncio de “Ecce Homo!” .

 

Analisamos nas exposições anteriores como a construção de uma escada deve se orientar no sentido de fazer desta um ornato para a ação de subir e descer, seja do homem, seja da mulher, impondo-lhes a arte de realizá-la. É uma forma de dignificar a natureza humana, inclusive nos seus atos mais corriqueiros.

O mais esplendoroso subir de escada

Passemos, agora, ao ponto pinacular dessas cogitações.

Qual foi o personagem que com mais nobreza e esplendor subiu a rampa, a escada, a montanha mais majestosa da História?

Trata-se de um perseguido, humilhado, desprezado, fustigado, coberto de feridas do alto da cabeça à planta dos pés, condenado à morte, diante de cujo nome todo joelho deve dobrar-se: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Tudo o que Ele fazia era infinitamente nobre, mesmo nas situações mais próprias a significar opróbrio, repúdio e humilhação. Em sua natureza humana aliava uma simplicidade e uma magnificência insondáveis. Jamais houve alguém que se comparasse a Ele em humildade e nobreza.

Podemos imaginá-Lo em diversas ascensões. Por exemplo, escalando com os três Apóstolos o Monte Tabor, em cujo cimo haveria de se transfigurar. A cada passo Ele se tornava misteriosamente mais glorioso, e irradiava seu esplendor para os discípulos os quais, atônitos, encantados, mudos de admiração, acompanhavam seu Mestre.

Podemos vê-Lo galgando a escada do Pretório de Pilatos. O Redentor, digno, afirmativo, seguro de si, fitando o ímpio governador com a tristeza de um pai, mas ao mesmo tempo com a majestade de um Deus.

Para o alto, rumo ao supremo sacrifício

Ou ainda O contemplarmos — que sublimidade! — vencendo as encostas do Calvário com a cruz às costas. Desfigurado, triturado como um verme, sem se deixar abater pelas três quedas, subia, subia, subia rumo ao sacrifício supremo para redimir os homens.

Quem O acompanhava?

Simão de Cirene, por certo sumido em adorações que ateavam fogo em sua alma. Provavelmente, sentia ele receber do Céu uma disposição particular para servir de socorro ao Cordeiro de Deus naquele momento. E percebia então que, enquanto prestava auxílio a Jesus, o próprio Nosso Senhor o ajudava a carregar o peso do madeiro.

Seguiam-No também as santas mulheres, as quais, devido à dilaceração da dor, não se sabe até que ponto percebiam a majestade da cena. Porém, entre elas se achava uma, incomparavelmente superior às demais, que compreendia e admirava não só o sacrifício, mas igualmente a glória e o esplendor daquela subida. Era Nossa Senhora. Conhecia a majestade do próprio Filho e O adorava. Ela, a mãe do Rei, via-O caminhar para algo de infinitamente mais alto que o trono…

Como é nobre um monarca galgar os três ou quatro degraus que o conduzem a seu régio assento. Contudo, como é mais glorioso, a perder de vista, o Homem-Deus subir o Calvário, levando a cruz na qual deveria morrer por nós! Não é capaz de ter ideia da verdadeira nobreza, nem a noção global da Paixão, quem não compreender a majestade de Nosso Senhor subindo o Gólgota.

A “Scala Santa”: simples e inigualável

Por essa razão, a escada mais nobre que conheci, a qual não galguei de pé, mas de joelhos, foi a “Scala Santa”, em Roma. Transportada de Jerusalém, onde Nosso Senhor a subiu durante a sua Paixão, é uma escada construída em mármore comum, sem maiores requintes. Os cuidados por sua preservação determinaram que fosse recoberta de madeira, evitando-se assim que a ascensão dos incontáveis peregrinos a desgastasse.

Em cada local onde caíram gotas do preciosíssimo sangue de Jesus, há um óculo com revestimento transparente: o fiel pode osculá-los, recitar suas orações e depois continuar, de joelhos, o caminho que os pés divinos, chagados, feridos, machucados — e em seguida perfurados na crucifixão — subiram por amor a nós.

Embora seja simples, sem ornatos, é a escada das escadas. Comparada com ela, as outras nada são. Falam-nos de beleza, de nobreza, de dignidade humana, sim. Porém, a existência nesta Terra não consiste apenas nisso. Ela é, sobretudo, a participação na vida, paixão e morte de Nosso Senhor.

É, antes de qualquer coisa, a luta pelo reino de Cristo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

A tentação e nossa confiança em Deus

A propósito de um edificante ensinamento de São Francisco Xavier, Dr. Plinio responde a essa nevrálgica pergunta que muitos se fazem: a tentação é castigo, sinal de desagrado de Deus, ou  favorece superiores desígnios d’Ele em relação ao homem?

 

Entre os preciosos escritos que nos deixou, ditados pela profunda sabedoria e senso apostólico que o distinguia, São Francisco Xavier assim se refere à luta contra as tentações, pela qual todos passamos em nossa vida espiritual: “O meio mais seguro para triunfar do inimigo é ter uma grande coragem, desconfiando de si mesmo e se apoiando em Deus, de sorte que, após ter colocado toda vossa esperança n’Ele, e só n’Ele, nada mais temereis e nem duvidareis da vitória.

“E como o demônio não tem poder senão sobre aqueles que Deus lhe permite, quanto mais seus assaltos são terríveis, mais é preciso redobrar de confiança na Divina Providência, porque Ela permite ao inimigo assaltar e atormentar só os seres fracos que n’Ela não confiam, que desdenham de se amparar n’Ela e colocam em outros as suas esperanças. É esta fraqueza que gangrena os corpos e faz com que tantas pessoas que começam a servir a Deus terminem por levar uma vida cheia de tristezas e angústias.”

Coexistência de fatores naturais e preternaturais

Para bem aproveitarmos esse pensamento de São Francisco Xavier, devemos antes de tudo considerar que a tentação pode ter causa natural ou preternatural (isto é, proveniente do demônio). Por exemplo, o impulso de se irritar contra alguém será talvez motivado por uma disposição natural, explicável se aquele faz algo que nos desagrada; inexplicável, se se tratar de uma mera  suscetibilidade de nossa parte. Porém, esse ímpeto para se agastar pode ter uma causa preternatural se, de repente, somos tomados por um acesso de irritação, injustificável e insensato, em relação a uma pessoa que em nada nos incomodou.

Entretanto, cumpre notar que, nas tentações, os dois fatores habitualmente coexistem. Assim, ao sermos assaltados por um mau desejo de cunho natural, haverá um concurso do demônio, secundando-o. Por outro lado, quando nos assedia com sua ação maléfica, este último em geral cria ou explora uma circunstância natural, para então entrar com sua influência preternatural.

Duas categorias de tentações

Isso posto, as tentações podem ser classificadas pelo menos em duas categorias. Umas são tentações-castigos; outras serão apenas provações e até estímulos para progredirmos na vida espiritual. Esse ponto merece insistência, pois não é raro ouvirmos queixas como estas: “Ando tão mal que me sinto tentado a querer tal coisa péssima”. Ou: “A tentação é um castigo para os que não se comportam bem, e Deus me puniu com uma. Se estou tentado, é porque fiz alguma coisa errada”.

Importa compreender que esse raciocínio não se aplica a todos os casos de tentação.

Certo, quando alguém se deixa levar por determinada atitude espiritual ruim, abre o flanco para a investida do demônio. O próprio São Francisco Xavier nos cita exemplos dessas perigosas  disposições de alma. Ele adverte as pessoas que não se dedicam nos serviços a elas confiados e que arrastam a obrigação preguiçosamente. Essa preguiça já constitui uma meia guarda  desamparada para que o inimigo se apresente e as incite a abandonar o dever. Risco análogo corre o religioso que cumpre uma obediência cheio de cismas e de ressalvas interiores, mais ou menos  arbitrárias. É óbvio que, de um momento para outro, será tentado pelo demônio a não seguir as ordens de seu superior. Em ambos os casos, a tentação pode ser vista como um castigo pela má  predisposição de espírito dessas pessoas.

Contudo, muitas vezes é outra a razão de sermos tentados. Vamos muito bem na vida espiritual, e por isso mesmo Deus permite travarmos um combate com o adversário d’Ele, para que vençamos  e alcancemos um incremento de glórias na nossa piedade.

Motivo para confiar em Deus

Em outras ocasiões, verificar-se-á o fato de não estarmos num bom momento espiritual, e Deus então dispõe que sejamos tentados para que a luta nos estimule a melhorar. Assim, muitas  tentações são permitidas por Ele, pois constituem um verdadeiro tônico para os necessitados de incentivo.

Mais ainda. Na vida espiritual, o perigo consiste, não tanto em ser tentado, mas em não sofrer os ataques do demônio. Com efeito, não é sinal favorável que uma pessoa passe anos sem tentações,  pois provavelmente será do número daquelas almas às quais o demônio logrou paralisar no caminho da perfeição. Elas se deixaram cair na modorra, na indolência e mediocridade, embora  conservem um resto de consciência de seu estado lamentável: se forem tentadas, começam a se erguer e a reagir.

Por isso o demônio não as provoca, para que continuem  a se decompor de modo imperceptível ao longo dos tempos. Por tudo quanto foi dito, vê-se que este raciocínio: “Estou tentado; logo, vou  mal espiritualmente e estou  sendo castigado”— é uma imensa simplificação, e mutila  o panorama da nossa vida de piedade. Até mesmo para alguém que sofre tentações porque abriu o flanco ao demônio, a reação contra elas pode colocá-lo numa posição melhor do que antes das investidas diabólicas, humilhando e rechaçando o seu inimigo.

A tentação não nos deve, pois, levar ao desânimo ou ao semi-pânico, mas, como diz São Francisco Xavier, a um aumento de nossa confiança em Deus. Ainda que tenhamos sido culpados e,  portanto, tentados por castigo, Deus continua sendo nosso Pai, e Maria Santíssima, nossa Mãe. Ela é o Refúgio dos Pecadores: qualquer um que tenha cometido uma falta e se refugie junto a Ela,  recebe sua materna proteção, seu infalível auxílio e incansável assistência.

A oração da confiança

Nesse sentido, devemos ponderar muito as palavras magníficas do “Lembrai-Vos”, essa tocante oração atribuída a São Bernardo de Claraval, o Doutor Melífluo. Diz ela: “Lembrai-Vos ó Piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que têm recorrido à vossa proteção, implorado vossa assistência e reclamado o vosso socorro fosse por Vós desamparado”.

Como se vê, nessa prece se fala de proteção, assistência e socorro. Proteção para evitar que cedamos às tentações; assistência, ou seja, auxílio em nossas dificuldades; socorro, quando estivermos  periclitando e afundando.

Pois bem, nunca alguém que tenha pedido a Ela socorro, assistência e proteção, foi desamparado. Cumpre salientar que a palavra “nunca” é muito categórica: não houve um só caso de alguém que  recorreu a Nossa Senhora e não foi atendido.

“Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem entre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me valho.” Quer dizer, “se Vós jamais deixastes de proteger alguém, aqui estou eu, homem batizado na Igreja Católica e filho vosso, que venho Vos pedir auxílio. Estou tentado, tive culpa na causa da tentação e, lamentavelmente, até cedi a ela. Mas, eu existo e vossa clemência me mantém nesta vida. Estando vivo, tenho o direito e o dever de Vos dirigir essa oração. Por isso me apresento diante de Vós, cheio de confiança”.

“E gemendo sob o peso dos meus pecados me prostro a vossos pés”. Note-se como essa expressão é animadora. Não está dito: “Eu, o inocente, o puro, o límpido, o homem sem mancha me dirijo a  Vós e peço socorro. A minha inocência me dá garantias de vosso auxílio”. Não. Afirma-se o contrário: “Gemendo sob o peso dos meus pecados…”

Ou seja, tantas são as faltas cometidas que até me prostraram no chão. Acho-me deitado sob o peso delas. E, no  solo, eles me oprimem de tal forma que me arrancam gemidos. Pois bem,  amargando a dor dos meus pecados, eu venho para junto de Vós e me arrojo aos vossos pés”.

“Não desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus humanado, mas dignai-Vos de as ouvir propícia e de me alcançar o que Vos rogo. Assim seja”. O pensamento não podia ser mais belo.  O pecador pede à Santíssima Virgem que o ouça com benignidade, com bondade, pois espera da parte d’Ela um sorriso, e que lhe alcance a graça implorada.

É a oração da confiança. Qualquer alma, em qualquer estado ou situação em que se encontre, sobretudo nas tentações e na tibieza, deve se voltar para Nossa Senhora e dizer: “Rogo-Vos a vossa  assistência; tende pena de mim e auxiliai-me”.

E o raciocínio que justifica essa confiança é simplíssimo: “Vós nunca abandonastes alguém. Ora, eu sou alguém. Logo, Vós não me abandonareis”. Não podia ser mais lógico, mais concludente,  mais convincente, mais singelo na sua esquematização e mais irresistível.

Um raciocínio expresso numa linguagem de fogo e muito bela, como é a de São Bernardo, mas encerrando um verdadeiro conteúdo teológico: “Nossa Senhora é Mãe de cada homem; portanto, não  e abandonará”.

Voltamos, então, ao ensinamento de  São Francisco Xavier. Ele nos deixa claro que a alma tentada deve, mais do que tudo, confiar, rezar e não ter medo. E não só nas horas das tentações, mas em todas as dificuldades, grandes ou pequenas, da vida espiritual ou da nossa existência quotidiana, devemos sempre cultivar essa firme confiança no auxílio de Maria Santíssima, nossa Mãe e  onipotente intercessora junto ao Sagrado Coração de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Catarina de Alexandria

Sobre a morte da Santa Catarina, virgem e mártir,  o Abbé Daras, na “Vida dos Santos”, tem essa narração:

“Maximiliano, imperador, ordenou a morte de santa Catarina. Foi ela conduzida ao lugar do suplício em meio a uma multidão, sobretudo de mulheres de alta condição, que choravam a sua sorte.

A virgem caminhava com grande calma. Antes de morrer, fez a seguinte oração: ‘Senhor Jesus Cristo, meu Deus, eu vos agradeço terdes firmado meus pés sobre o rochedo da fé e terdes dirigido meus passos na via da salvação. Abri agora vossos braços feridos sobre a cruz, para receber minha alma, que eu sacrifico à glória de Vosso Nome. Lembrai-vos, Senhor, que somos feitos de carne e sangue. Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância e lavai minha alma no sangue que vou derramar por vós. Não deixeis meu corpo, martirizado por vosso amor, em poder dos que me odeiam. Baixai vosso olhar sobre esse povo e dai-lhe o conhecimento da verdade. Enfim, Senhor, exaltai em vossa infinita misericórdia aqueles que Vos invocarão por meu intermédio, para que Vosso Nome seja para sempre bendito’.

“Em seguida mandou que os soldados cumprissem as ordens, e sua cabeça foi decepada de um só golpe. Era o dia 25 de novembro. Numerosos milagres logo foram constatados. Os anjos, como ela o desejara, transportaram seu corpo para a santa montanha do Sinai, a fim de que repousasse onde Deus escrevera sobre pedra sua Lei, que ela guardava tão fielmente escrita em seu coração.”

Esse trecho é de uma tal elevação que quase se lamenta ter que comentá-lo. Ficaria mais satisfeito deixando assim o texto brilhando no céu, no horizonte, suspenso, sem apoio nenhum na realidade, emitindo luzes. Mas já que é preciso comentar, vamos aos pormenores.

“Ela foi conduzida ao lugar do suplício em meio a uma multidão, sobretudo de mulheres de alta condição, que choravam a sua sorte.”

Se os senhores pensarem que são sobretudo as senhoras de alta condição que encabeçam as extravagâncias hoje em dia, os senhores vêem como as situações têm mudado. E quanto ainda tem de possibilidades um país onde as senhoras de alta condição acompanham, ao lugar do suplício, solidarizando-se com ela, chorando junto com ela, uma mártir que foi fulminada pela cólera do imperador. Um imperador onipotente, que pode mandar matar todos aqueles que se desagradarem de alguma atitude dele. Entretanto, essas damas vão todas, com Santa Catarina, e vão chorando.

O bonito, para verem a diversidade dos dons do Espírito Santo e dos efeitos da graça, é que elas vão chorando e está bem que elas vão chorando. Mas contrasta, pela sublimidade, com isso, com esse dom das lágrimas que as mulheres tiveram nesse momento, o fato de que Santa Catarina não chorava. Ela permanecia quieta, e com uma grande calma. Ela caminhava de encontro à morte, inundada de graças do Espírito Santo de outra natureza, por onde ela não chorava para si aquilo que a graça queria que as outras chorassem para ela. E como deveria ser impressionante esse cortejo de damas, andando, no meio dos soldados, e ela no meio, a única calma, a aconselhar a todas que tivessem tranqüilidade, que tivessem consolação, até chegar o momento em que ela devia morrer.

Aí, no fim da vida, ela faz uma oração. Essa oração é muito bonita e tem aquela forma especial de beleza que tem certas coisas muito bonitas quando não são inteiramente consequentes na sua lógica. São um conjunto de afirmações, como raios de luz que procedem de um mesmo foco, mas que brilham com uma beleza própria no horizonte. Então, os senhores vêem aqui a ideia dela:

“Senhor Jesus Cristo, meu Deus”…

… é para afirmar que Ele era o Deus dela e que ela não reconhecia outro Deus senão Ele. Então, a primeira coisa que ela diz, no momento de morrer, a primeira graça, a primeira palavra, o primeiro pensamento dela é para essa primeira graça:

“Eu vos agradeço por terdes firmado meus pés sobre os rochedos da fé, e terdes dirigido meus passos na via da salvação.”

Quer dizer, eu vos agradeço por ter pertencido a vós. Vós que sois a fonte de minha salvação, Vós que sois o ponto de partida de todo o bem que pode haver em mim, Vós que, se eu sou boa, é porque Vós sois bom e porque Vós me destes o ser boa: eu vos agradeço a fé que me destes e a firmeza que me destes na fé; eu vos agradeço o amor à virtude que me destes e a firmeza que vós me destes no amor à virtude. Isso é o primeiro que vos agradeço, reconhecendo que tudo que em mim há, à vossa iniciativa eu devo.

“Abri agora vossos braços feridos sobre a cruz para receber minha alma que eu sacrifico à glória de Vosso Nome.”

Pode haver uma coisa mais bela do que isso? O Divino Crucificado, com os braços todos sangrando, que os desprende da cruz para receber a alma dela que sai também inundada do sangue do martírio, para ser recebida por Ele. Que maravilhosa intimidade! Que encontro do Mártir dos mártires com uma mártir heroica e grandiosa! Que ideia do sangue dela misturando-se ao Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo! Que noção do Corpo Místico de Cristo há nisso! Que sacratíssima e augustíssima intimidade com Nosso Senhor! Ela tinha de tal maneira a ideia de que a alma dela estava unida a Ele, que a morte selava essa união, que ela pedia que Ele a abraçasse, logo que ela entrasse na eternidade. Que certeza de ir para o Céu!

Depois dizia:

“Lembrai-vos, Senhor, que somos feitos de carne e sangue. Perdoai-me as faltas …” – ou seja, que somos feitos os dois! – “Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância e lavai minha alma no sangue que vou derramar por vós”.

Quer dizer, ela tinha medo de, por ignorância, ter cometido alguma falta: era o que ela tinha para se acusar. Então, lavai a minha alma no vosso Sangue. Antes de ir para o Céu, antes de derramar o meu sangue por vós, eu quero que vós laveis a minha alma no vosso Sangue.

“Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância… Não deixeis meu corpo, martirizado por vosso amor, em poder dos que me odeiam. Baixai vosso olhar sobre esse povo..Agora outro pensamento. Ela, depois de ter pensado em sua alma – pede que seja recebida por Nosso Senhor, que seja lavada das faltas que tenha, – pensa no corpo dela. Então pede que o corpo dela não seja deixado em mãos dos inimigos dela, daqueles que a odeiam porque odeiam a Ele.”

Vejam que respeito pelo corpo próprio! Que respeito pela santidade do corpo que foi um conosco na realização da virtude! Também, que atendimento magnífico dessa oração! Foi só ela morrer, que os anjos vieram e levaram o seu corpo. Para onde? Para a montanha mais augusta que há na terra, depois do Gólgota, depois do monte Calvário, e que é o Sinai, aonde a Lei de Deus foi dada aos homens. A coisa mais bela do Sinai é, certamente, a Lei de Deus, e para ali seu corpo foi levado. Os senhores sabem que até hoje o corpo dela está lá, e há um mosteiro de monjas contemplativas, no deserto do Sinai, que guardam esse corpo, e que meditam sobre a Lei de Deus que ali foi concedida aos homens.

“Baixai vossos olhos sobre esse povo e dai-lhe o conhecimento da verdade.”

Ela já não pensa em si, mas nos circunstantes.

“Enfim, Senhor, exaltai em vossa infinita misericórdia, aqueles que Vos invocarão por meu intermédio, para que vosso Nome seja para sempre bendito”.

Ela pede desde já a Deus que atenda a todo mundo que por meio dela pedir alguma coisa.

“Em seguida mandou que os soldados cumprissem as ordens, e sua cabeça foi decepada de um só golpe. Era o dia 25 de novembro.”

A calma e a resolução! Feita a oração, nenhum tremor, nenhum desejo de contemporizar um pouco. Também nenhuma precipitação de quem tem medo de enfrentar a morte correndo em direção a ela. Não, ela diz tudo quanto tem que dizer. E terminado isso, ela se entrega às mãos de Deus. Os soldados a matam e a oração dela se atende.

“Era o dia 25 de novembro. E numerosos milagres foram logo constatados..

Fala dos anjos que foram lá. E assim nós temos as considerações dessa grande santa, mártir, para algum efeito de caráter espiritual em nós.

Qual é o efeito que nós devemos pedir? Devemos pedir a ela que se, na luta ideológica contra o comunismo, contra outros adversários da Igreja, tivermos que sofrer riscos, ou talvez perder a vida, tenhamos aquela serenidade perante a morte que só a graça dá.

Porque perante a morte só há duas espécies de pessoas serenas: o cretino ou o homem movido pela graça de Deus. A morte é uma coisa tão tremenda – a separação entre a alma e o corpo, a liquidação do ser, o aparente afundar no nada -, que a gente só compreende a serenidade diante da morte ou do cretino, que está cronicamente habituado a não medir a importância do que lhe vai acontecer, ou então do homem que está dominado pela graça.

Vamos pedir, pois, que em todas as ocasiões da vida, tenhamos essa calma diante do risco; e calma que seja levada até o sacrifício extremo, caso essa seja a vontade de Nossa Senhora.

Plínio Corrêa de Oliveira (extraído da conferência de 24 de novembro de 1965)

“Stella Clarissima”

A aparente desordem dos corpos celestes constitui, na realidade, uma ordem dirigida pela sabedoria divina. Entretanto, Deus presta mais atenção a uma Ave-Maria que rezamos, do que ao movimento de todos os astros.

  Ao contemplarmos um céu estrelado temos, ao mesmo tempo, uma impressão de beleza e de uma pontinha de desordem. As estrelas estão, aparentemente, meio jogadas de cá e de acolá. Dir-se-ia que elas foram atiradas no azul profundo da noite por uma mão distraída…

Todos os seres têm seu papel

Então impressionam pelas distâncias, pela beleza de cada uma delas, pela grandeza do conjunto, mas não notamos certa ordenação a qual gostaríamos que existisse. Parece-me haver nisso um sentido mais bonito e profundo do que nos seria proporcionado por uma ordenação evidente. Talvez Deus queira nos dar a entender que Ele não faria essas maravilhas em meio a uma espécie de desordem; e que, quando conhecermos bem como se compõem as constelações, perceberemos realidades que ainda não vemos, as quais indicarão uma ordem magnífica dentro disso. Nos corpos celestes acontece de tudo: vulcões que entram em erupção dentro de alguns deles, estrelas cadentes, outras explodem de repente… Havendo, então, uma catástrofe qualquer numa estrela, nós pensamos: “Deus nem toma conhecimento, porque não tem tempo de prestar atenção nisso. Essas estrelas são como um farelo luminoso que, numa hora de generosidade, Ele jogou por aí e depois nem olhou mais; deixou isso completamente de lado, não Se preocupa”. Essa impressão não é verdadeira, e corresponde a uma ideia absolutamente deformada da grandeza do Criador. Tais são a ciência e o poder divinos que, para Ele, tanto faz tomar conhecimento do que acontece em todas as estrelas ao mesmo tempo, como o ocorrido em uma estrela só. Deus sabe de cada estrela como se somente esta estivesse diante d’Ele. Ademais, não há estrelas inúteis nem repetidas. Deus não gagueja, ou seja, não faz criaturas supérfluas como um gago pronunciaria determinadas sílabas. Na Criação, todos os seres têm seu papel para a realização dos planos divinos, e estaria fora da sabedoria e abaixo do poder d’Ele criar entes inúteis. Portanto, todos os acontecimentos — mesmo as explosões, estrelas cadentes, etc. — têm sua razão de ser e obedecem a um plano por Ele traçado. E aquilo que para nós é um desastre, como o desaparecimento de uma estrela, Deus assim o quis e calculou para fazer parte da ordem universal instituída por Ele.

Tudo está calculado para a glória de Deus

É como um músico que, ao executar uma peça num piano ou num órgão, interrompe uma nota que vinha sendo tocada. Isso não é um desastre, mas está calculado para dar continuidade à harmonia. Também na ordem do universo tudo está calculado para a glória de Deus. E faz parte dessa glória que contemplemos as estrelas para melhor entendermos a Ele. E se o Altíssimo está de tal maneira atento ao que se passa com as estrelas, quanto mais prestará atenção em nós, que somos uma razão para Ele as ter criado! De maneira que tudo quanto acabo de dizer a respeito das estrelas é particularmente verdadeiro em relação aos homens. Deus tem a alma de cada um de nós mais em vista e, por assim dizer, presta mais atenção numa oração — uma Ave-Maria ou, a “fortiori”, uma Comunhão — que façamos, do que na rotação geral de todo o universo. Por exemplo, a Santíssima Trindade está contemplando esta reunião e a disposição das almas de todos nós. Compreendemos bem, dessa maneira, quanto Deus é atento às orações, quanto Ele se inclina para ouvir aquilo que temos a Lhe dizer, e como podemos, portanto, ter a confiança de que não nos perdemos no vácuo nem no caos.

O herói da Fé que morre no campo de batalha

A humanidade não é um vácuo. Será talvez um caos por culpa dos homens. Mas quanto Deus ama aqueles que são as “estrelas” fiéis que continuam a brilhar! E quanto a bondade d’Ele está pronta a amparar as “estrelas” não fiéis que começam a cair, e solícito a tirar do fundo dos abismos as que caíram para repô-las em seu devido lugar e continuarem, assim, a executar as ordens d’Ele! Consideremos, por exemplo, que quando Deus criou as estrelas, pensou em cada um dos homens que haveria de criar. E ao fazê-las cintilar nos espaços vazios, uma das intenções d’Ele era que elas iluminassem a morte dos que morressem com heroísmo, por amor a Ele; e, na hora de criar as estrelas, Deus — que conhece o presente, o passado e o futuro perfeitamente, até nos seus últimos pormenores — viu essas estrelas brilharem e pensou nos heróis da Fé que haveriam de, um dia, morrer debaixo da cintilação delas, aceitando voluntariamente aqueles padecimentos e dizendo: “Vim aqui e estou morrendo assim porque eu quis. Deus, quando olhou para sua Criação, viu-me no campo de batalha. E, como todos os que morrem combatendo por amor à Fé, cintilei aos olhos d’Ele como essas estrelas do céu.”

A mais brilhante de todas as criaturas

Há um hino a Nossa Senhora que A invoca como “Stella Clarissima”: Estrela Luminosíssima. Esse título vem muito a propósito porque no firmamento há muitos astros, mas Ela é o mais luminoso dentre todos eles, ou seja, a mais brilhante das criaturas. Por que se fala de estrela? Porque a estrela brilha na escuridão noturna, e é uma consolação para quem, de noite, está olhando para o céu. Esta vida é para o católico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação, de perigo, de apreensão. Na eternidade vamos ter o dia; esta vida terrena é noite para nós, mas temos uma Estrela que nos guia, e constitui nossa consolação em meio às trevas. Sem dúvida, existem algumas relações entre a estrela que guia um navegante no mar ou um viandante pelo deserto, e o destino para onde se dirigem. Uma delas está em que a rota da estrela é indicativa da chegada. Outra relação muito bonita é o modo pelo qual a estrela já faz prever como será o destino. Está no senso popular da Fé que a estrela de Belém seja representada de tal modo, que ela dê uma ideia da coruscação incomparável que os Reis Magos vão contemplar, ao encontrarem a Sagrada Família. De maneira que a estrela indicava o caminho, mas também simbolizava, de algum modo, Aquele que seria encontrado. Por essa razão, analogamente, Nossa Senhora é aclamada pela Igreja como a Estrela da Manhã. A estrela d’alva se manifesta quando, em plena noite, de repente o céu começa a ficar um pouco pálido. Então ela brilha. Maria Santíssima é, pois, em meio às trevas deste mundo, o sinal de que o Sol de Justiça está por nascer(1). v   Plinio Corrêa de Oliveira. 1) Cf. conferências de 24/8/1965, 16/1/1978, 28/4/1981, 25/1/1982, 21/12/1988, 1/12/1991 e 15/4/1994.  

Serenidade, doçura e força

Em viagem pela Europa, no ano de 1988, Dr. Plinio visitou a Catedral de Aachen, a cidade onde o Imperador Carlos Magno instalou sua capital, e na qual morreu. Voltando ao Brasil, comentou com seus jovens discípulos os diversos aspectos dessa igreja que o marcou profundamente.

 

Há na Catedral de Aachen uma fusão de estilos com diversos elementos arquitetônicos: o domo propriamente dito — que é a cúpula central grande, encimada por outra pequena, tendo no alto uma cruz — é românico; as torres, as ogivas e as rosáceas de cristal são de estilo gótico.

Do lado de fora da catedral, há figuras muito bonitas, nas quais se nota — como é patente nas incontáveis esculturas existentes no interior e exterior das igrejas medievais — uma paz, uma serenidade extraordinárias: são homens grandes, fortes, muito másculos, com certo ar de quem tem um avô ou bisavô bárbaro.

Uma nota componente da Idade Média é a serenidade, da qual o mundo de hoje perdeu a fórmula: ligação harmoniosa entre a força e a doçura. Os varões aí representados são fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos germânicos — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E esse ambiente de serenidade provinha de um passado cheio de lutas e também de oração, de piedade e de obras de misericórdia.

Podemos imaginar o que seria uma igreja repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando canções religiosas ou aguardando, num silêncio muito meditativo, a hora da Consagração. E o grande Carlos assistindo, resplandecendo de piedade e de glória.

Observando tudo isto paralisado na pedra e nas recordações históricas, percebe-se ser uma planta que produziu depois um esplêndido ramo de flores douradas. Dir-se-ia que a glória da posteridade reluz nesses heróis esculpidos na pedra.

Apesar dos recursos que havia naquele tempo, a cúpula, vista do lado de dentro da catedral, é riquíssima. O lustre fica muito bem dentro dessa cúpula e nessa atmosfera.

Há altas arcadas, com dois andares de colunas, e por detrás se vêem os vitrais que eram lindos, famosos, e que foram destruídos durante a última guerra mundial. Foram eles substituídos por outros muito inferiores, mas bonitos vitrais, perfeitamente dignos, permitindo avaliar qual é o efeito ótico desejado por aqueles que os fabricaram. Essas arcadas lembram vagamente o estilo da Basílica de São Marcos, em Veneza. O estilo da Catedral de Aachen é clássico-românico, e o da Basílica de Veneza, bizantino.

A cúpula internamente é constituída por mosaicos dourados, muito bonitos, com cenas sacras.

Numa capela lateral, há uma bela imagem de Nossa Senhora com flores e um bom número de velas acesas, colocadas num móvel a fim de permanecerem de pé.

Para o meu gosto, o relicário que contém os restos mortais de Carlos Magno é uma das mais bonitas peças de ourivesaria que existem. Quando examinado de perto, verifica-se cada uma de suas facetas, e depois aprecia-se o conjunto. A harmonia é perfeita!

Compreende-se, assim, como as populações nascidas do esforço de Carlos Magno, que eram descendentes dos antigos bárbaros e dos romanos decadentes, foram se civilizando, se aperfeiçoando, trabalhadas pelas mãos — que eu chamaria divinas — da Igreja Católica.

Há também, próximo deste, outro relicário, o qual, como objeto de arte, é um encanto. Pergunta-se qual a autenticidade das relíquias que ele contém(1). Quer dizer, são realmente das santas e sagradas personalidades referidas? Como chegaram a Carlos Magno?

Se dependesse de mim, eu mandaria fotografar todos esses documentos para ver se apareciam neles sinais à maneira — pelo menos nos que são de pano — do Santo Sudário de Turim. E realizar testes a fim de averiguar de que época são eles, para se obter alguma probabilidade a respeito de sua autenticidade.

Encontra-se na catedral o trono de Carlos Magno.

Há uma espécie de vão abaixo do local onde está o trono. Em dias de peregrinação, pode-se passar por esse vão, tendo-se, assim, contato especial com essa gloriosa reminiscência do Império.

Do ponto de vista estritamente artístico, esse trono é muito inferior ao relicário. Entretanto, nota-se a preocupação de fazer uma coisa bela e nobre, pela quantidade de mármores que não havia no território do Império de Carlos Magno. Era necessário importá-los de outros lugares e transportá-los, com proteção de grupos armados, em dorso de mula, por estradas difíceis, enfrentando perigos como cair em abismos. Os grampos de ferro que existem no trono e o enfeiam, parecem-me ter sido postos muito tempo depois, para assegurar a coesão de suas várias partes.

Há também um busto de Carlos Magno, no qual vemos que em seu traje figuram uma série de águias e, na orla inferior, flores de lis, que são símbolos do Sacro Império Romano Alemão e da França, respectivamente. O artista que elaborou esse busto procurou colocar-se na perspectiva daquela época, e o fez de modo acertado.

Dificilmente se poderiam sintetizar duas nações tão gloriosas quanto a Alemanha e a França, e Carlos Magno conseguiu realizá-lo. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/12/1988)

1) O relicário contém: o manto de Nossa Senhora; as faixas de Jesus, usadas no presépio; o tecido que envolveu a cabeça de São João Batista, depois de sua decapitação; e o pano que cobriu Nosso Senhor na Cruz.