Santa Bernadete Soubirous

Aos olhos de um século orgulhoso e cheio de incredulidade, Santa Bernadete Soubirous não passava de uma camponesa pequena e miserável, insignificante e pobre. Aos olhos da Providência, porém, ela era a escolhida para ser o arco através do qual um raio de sol das maravilhas divinas iluminaria o mundo inteiro.

Aceitando sua humilde condição e suportando o desprezo e o descaso de seus semelhantes, soube ela conduzir sua alma até os limites da sublimidade. E seu amor ao sofrimento, aceito como algo mais precioso que as próprias aparições de Lourdes, transformou-a numa das mais rutilantes estrelas do firmamento católico.

O ARCANJO DA ANUNCIAÇÃO

São Gabriel Arcanjo foi o embaixador escolhido para a Anunciação por causa de virtudes inerentes à sua essência. Eis o pensamento desenvolvido por Dr. Plinio nos presentes comentários.

No mês de março a Igreja celebra a Anunciação de Nossa Senhora e Encarnação do Verbo, um dos maiores mistérios da fé católica. Muito se tem falado de belos e profundos  aspectos desta festa, como, por exemplo, o maravilhoso significado da união da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade com a natureza humana, em ordem à Redenção do  mundo, ou a grandeza e a humildade de Maria, aceitando a sublime vocação de ser a Mãe do Criador. Menos ressaltada é a atitude do Arcanjo São Gabriel neste  acontecimento de primordial importância para a humanidade.

Creio, portanto, não ser sem interesse voltarmos um pouco nossa atenção para a figura e o papel do angélico portador da mensagem de Deus para a modesta Virgem de  Nazaré. Pelo teor da missão se percebe a magnitude do príncipe celeste Podemos ter uma certa ideia de quem é São Gabriel se considerarmos o valor da missão de que foi  incumbido pelo Altíssimo.

Com efeito, sendo os Anjos constituídos de uma natureza muito mais elevada que a nossa, as tarefas a que são prepostos têm relação direta com suas características e perfeições próprias, motivo pelo qual as funções angélicas não são assumidas por eles tão arbitrariamente como se faz entre os homens. Quer dizer, no nosso caso, ninguém    será, por exemplo, datilógrafo ou embaixador por natureza: na hora do aperto, um embaixador se avia como datilógrafo, e um datilógrafo, por relevantes interesses pessoais, acaba sendo bom embaixador.

No caso dos Anjos, pelo contrário, cada um está destinado a desempenhar uma função específica, de acordo com sua própria essência. Não se tratará, necessariamente, de  tarefas tão extraordinárias como a da Anunciação, mas das ordinárias dos Anjos no Céu em face de Deus.

Na aplicação desse princípio, houve uma decisiva razão de conveniência para se conferir a missão de anunciar a Encarnação do Verbo a São Gabriel: era ele o Arcanjo que, por sua essência, estava à altura dessa dignidade.

E, portanto, medindo o valor da incumbência dada a ele, podemos deduzir algo de sua glória, virtudes e esplendor. Que dizer dessa missão? Antes de tudo, é elevadíssima. É  a missão-chave na História da humanidade. Esse Anjo foi enviado a Nossa Senhora para revelar-Lhe a chegada da plenitude dos tempos, o fim do reino do demônio, o  esmagamento do domínio do mal, a remissão do gênero humano, a abertura das portas do Céu. O Anjo incumbido de pedir a Nossa Senhora seu consentimento para isso, e  de anunciar o mistério da Maternidade Virginal, esse Anjo portou a mais elevada mensagem que se possa ter transmitido em toda a História.

Segundo o ensinamento dos teólogos, os astros são movidos por Anjos. Procuremos imaginar a grandeza de um Anjo que mova, por exemplo, toda a Via Láctea. Que valor,  que força, brilho e categoria de espírito deve ter um Anjo desses! Agora, o que é mover uma poeira de estrelas como a Via Láctea, em comparação com o tocar a alma de  Nossa Senhora, com o agir sobre o coração imaculado d’Ela, transmitindo-Lhe essa mensagem única e obtendo sua adesão?

Não há comparação possível. Daí se compreende a excelsitude da missão e do missionário. Por outro lado, gradua-se a importância do mensageiro não só pela natureza da  mensagem, mas também pela importância respectiva de quem a mandou e de quem a recebe. Um rei que tem uma comunicação muito importante para alguém de categoria  superior, a envia por meio de um fidalgo da sua corte. Mas, se a mensagem for de menor alcance e o destinatário, uma pessoa comum, ele a mandará através de um  empregado qualquer.

Ora, a Santíssima Virgem era a Rainha do Céu e da Terra, a obra prima de Deus, destinada a ser Mãe do Verbo. Logo, somente um Anjo da mais alta dignidade poderia ser  escolhido para levar a Ela as palavras divinas. Mais uma vez, vemos por aí a estupenda grandeza do celeste mensageiro.

Senso hierárquico e exaltação da virgindade A partir desse sublime acontecimento, poderíamos deduzir também duas perfeições do espírito de São Gabriel, a meu ver muito salientes nos quadros de Fra Angélico que retrataram a cena da Anunciação.

Em primeiro lugar, um notável senso de hierarquia. Quando São Gabriel se dirigiu a Nossa Senhora, Ela ainda não era a Mãe de Deus. Passou a sê-lo no momento em que aceitou a comunicação e, em conseqüência, a milagrosa e fecunda intervenção do Espírito Santo. Como, por natureza, os Anjos são superiores aos homens, até o instante em que a Virgem pronunciou o “fiat”, São Gabriel estava se dirigindo a alguém que lhe era inferior, embora A estivesse convidando para ser sua Rainha.

De outro lado, a mensagem trazida por ele significava uma tal predileção de Deus por Nossa Senhora que A situava acima do paralelo com qualquer Anjo, por mais elevada  que fosse a categoria deste, incluindo São Gabriel. Donde o singular senso de hierarquia que o vemos manifestar, e que Fra Angélico expressa de modo inexcedível nos seus  afrescos: é o Anjo imbuído de um respeito profundo e de uma entranhada veneração por Nossa Senhora,  como quem toma a superioridade de sua própria natureza e a põe abaixo, por causa dessa grandeza da missão de Maria. Por sua vez, Nossa Senhora responde ao Anjo também inclinada e com toda a deferência, porque Ela recebia a  mensagem de Deus e porque, como criatura humana, era inferior ao Anjo.

O episódio tem o perfume de um mundo de respeito mútuo, de superioridades recíprocas, nas quais Nossa Senhora acaba sendo incomparavelmente maior do que o Anjo,  indicando bem o senso de hierarquia incluído nesse ato.

E, cumpre frisá-lo, senso de hierarquia e de disciplina oposto ao non serviam (não servirei) de Satanás. Muitos teólogos afirmam que o demônio se revoltou contra Deus  porque não quis reconhecer o Verbo encarnado como objeto de sua adoração, e menos ainda aceitar uma mera criatura humana como sua rainha. Parece ter sido este o  ponto que exacerbou ao extremo o seu orgulho e polarizou de forma irrefreável o movimento de insubordinação que grassava no seu espírito em relação à vontade divina.

São Gabriel fez o contrário. Cheio de adoração e amor a Deus, foi portador dessa mensagem que colocava, sob certo ponto de vista, o reino angélico abaixo do reino humano.  Colocado diante de sua nova Rainha, tão inferior a ele por natureza, dobrou- se como o mais respeitoso e venerador dos súditos e cortesões. A esse alto senso de hierarquia  podemos acrescentar outro aspecto: uma como que castidade celestial. Ao se dirigir à Virgem das Virgens para anunciar que Ela será Mãe sem deixar de ser virgem, São  Gabriel faz uma esplendorosa exaltação da virgindade, além de revelar uma espécie de obra-prima de pureza realizada por Deus: diante desse fato tão imenso da  Encarnação, Nosso Senhor resolveu violar todas as regras da natureza para salvar a virgindade perfeita de Nossa Senhora, e conferiu uma nova glória ao gênero humano,  fazendo d’Ela a Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe de um Filho gerado milagrosamente, sem concurso de homem.

São Gabriel estava, assim, incumbido de trazer à Terra a mensagem que é uma das maiores glorificações da castidade já conhecidas na História. Não será difícil  compreender, portanto,  a ligação toda especial com a virtude da pureza que esse Arcanjo deveria ter.

Senso de hierarquia, de disciplina, humildade, vinculação com a pureza e a virgindade, virtudes do embaixador divino, contrárias ao orgulho e à “sensualidade” do demônio, inimigo irreconciliável de Deus e de Nossa Senhora. A velha serpente foi pisada e esmagada de modo avassalador nesse sublime mistério da fé cristã. E se um Fra Angélico  acrescentasse na sua  pintura o detalhe da cabeça do demônio sob os pés de São Gabriel, retrataria um fato profundamente real.

Pedir a humildade, a pureza e o amor a Nossa Senhora Dessas breves considerações podemos inferir que motivos não nos faltam para pedirmos a São Gabriel que interceda por nós junto a Nossa Senhora e ao Sagrado Coração de Jesus, a fim de alcançarmos essas duas graças tão indispensáveis para nossa perfeição espiritual: primeiro, a de  termos genuíno senso de hierarquia, humildade sincera, intenso amor à superioridade (ainda que aqueles que sejam mais do que nós em certos aspectos, sejam menores por vários outros); em segundo lugar, a graça de possuirmos o gosto ilibado da pureza, da castidade, enquanto princípio, valor moral, e não apenas como predicado físico.

Humildade e pureza que, sem dúvida, são dois dos traços distintivos da santidade específica de São Gabriel. Sabe-se que os Santos e os Anjos são chamados a favorecer os católicos, obtendo-lhes o fortalecimento nas virtudes peculiares com que eles mais glorificam a Deus. São Francisco nos alcança o espírito de pobreza; Santo Inácio, a lógica soberana, inflexível e incomparável dos Exercícios Espirituais; São Bento, o gosto da liturgia e da contemplação.

E assim por diante, o que os Anjos e os Santos mais têm, mais eles dão.

Se São Gabriel espelha as mencionadas virtudes em tão alto grau, ele foi posto por Deus para obtê-las em favor dos mais necessitados. Não deixemos, portanto, de recorrer a  esse extraordinário intercessor que nos foi dado pela Providência, rogando-lhe conceder-nos a mesma veneração, o mesmo entranhado respeito e amor que ele manifestou por sua Rainha e Senhora, Maria Santíssima, Mãe do Verbo Encarnado.

 

Caro Christi, caro Mariæ; sanguis Christi, sanguis Mariæ

Desde o primeiro momento de sua concepção, Jesus começou a adorar o Pai Eterno, o Divino Espírito Santo e a alimentar-Se dos elementos que o santíssimo e  virginalíssimo corpo de sua Mãe Lhe proporcionava. Nossa Senhora tinha consciência inteira do que se passava em seu interior, e sentia a sublimação de seu sangue que  estava sendo transformado n’Ele.

 

Antes da Santíssima Virgem Maria saber que seria Mãe do Redentor e Esposa do Divino Espírito Santo, tudo n’Ela se orientava nesse sentido. Não que Ela aspirasse ser a  Mãe do Messias, mas a fim de que Ele viesse logo.

“Mandai o Messias, mandai o Messias…”

As orações de Nossa Senhora para a vinda do Messias devem ter acelerado muito essa chegada, pois Ela é onipotente em suas súplicas. A partir do momento em que Deus A criou, Maria Santíssima teve conhecimento da situação da humanidade e começou a rezar para vir logo o Salvador.

Com o nascimento d’Ela levantou-se, portanto, como que uma coluna de fumo odorífero de cor maravilhosa, de movimentação encantadora e ao mesmo tempo majestosa na  presença de Deus. Era a oração de Nossa Senhora que subia do Coração Imaculado d’Ela até o trono do Criador, pedindo: “Mandai o Messias, mandai o Messias…”

A Virgem Maria possuía tanta admiração e adoração pelo Messias o qual devia vir, que se acredita – a meu ver com muito fundamento – ter Ela pedido para ser escrava da  Mãe d’Ele e poder, assim, servi-La de todos os modos, como uma forma indireta de servir o próprio Salvador.

Essa oração também foi ouvida, como acontecerá com tantas  preces de Nossa Senhora, mais até do que Ela esperava. Segundo a narração do Evangelho, a Anunciação se deu sem preparação extraordinária.

A Santíssima Virgem estava muito normalmente rezando naquele claustrozinho da casa d’Ela, quando apareceu um Anjo e A saudou: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28). Com certeza, na medida em que isso se pode entender de puros espíritos, ele se inclinou profundamente diante d’Ela.

A Santíssima Virgem julgava-Se indigna

Isso dito por um Anjo! Os Anjos são seres de uma beleza, de um esplendor incomparável. Podemos calcular a impressão que isso deve causar, ainda mais para uma pessoa humílima como Nossa Senhora.

Foram surpresas sobre surpresas: Por que um Anjo vai aparecer para Ela? Por que A saúda reverentemente? Por que Lhe faz esse elogio? Depois, surpresa ainda maior: Maria Santíssima tinha pactuado com São José de ficar sempre virgem. E Ela vê que o Anjo lhe fala de um Filho ao qual deverá dar o nome de Jesus.

Ora, Nossa Senhora estava longe de imaginar que o Messias seria Filho d’Ela e, para se manter longe dessa suposição, tinha uma razão que em sua psicologia era invencível: a indignidade d’Ela. Sendo Ela  tão indigna – pensava –, estava claro que não era para Ela que viria isso. E chega a revelação de que Ela – com sua promessa de virgindade – dará à luz um Filho chamado Jesus e, com certeza, o Anjo quando pronunciou esse santíssimo nome reluziu num esplendor muito maior.

Talvez as miríades de Anjos que deveriam encher, nesse momento, o pequeno claustro da casa de Nossa Senhora também tivessem indicado, de algum modo, a festiva  presença deles, anunciando o nome de Jesus. Então Ela perguntou como isso seria possível, pois fizera o voto de permanecer sempre virgem.

O Anjo deu a  entender que isso não seria impedimento, porque para Deus não há obstáculos e, portanto, Ela não se preocupasse, pois seria assim, desde que Ela consentisse. O bonito está nisto: que Ela consentisse. E Maria Santíssima deu aquela resposta perfeita: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). Deu-se, então, a Encarnação do Verbo de Deus, e naquele momento Ela sentiu-Se Esposa do Divino Espírito Santo.

É uma situação tão colossal, tão fabulosa que ninguém imagina bem o que seja. Houve muitos santos que tiveram revelações do Espírito Santo, a quem Ele manifestou-Se de  algum modo. Isso não é nada em comparação com o fato de Se tornar Esposa do Espírito Santo!

Início do processo da Encarnação

Quer dizer, houve um determinado momento em que o Espírito Santo se manifestou a Nossa Senhora tão profundamente que gerou n’Ela um Filho. Se tudo quanto os  Santos sentiram na hora da manifestação do Divino Espírito Santo fosse somado, não daria nada em relação ao momento em que Ela, sendo uma criatura humana, passou a  ser a Esposa do Divino Espírito Santo, por toda a eternidade.

Essa situação gerou, necessariamente, tanta felicidade, tanta intimidade, tanto fogo dentro da alma d’Ela, que nós não podemos conceber, e teve como resultado o início do processo da Encarnação.  Ou seja, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Se encarnou no claustro d’Ela e, desde o primeiro momento da concepção, começou a adorar o Pai Eterno, o Divino Espírito Santo e a alimentar-Se dos elementos que o santíssimo e virginalíssimo corpo de sua Mãe Lhe proporcionava.

Nesses atos simultâneos, na medida em que Ele Se nutria, o seu Corpo ia tomando consistência e também a união da alma d’Ela com Ele ia aumentando. Nesse período da gestação, a intimidade entre Ele e Ela, seus colóquios, como se amaram, são coisas inefáveis. É algo superior a toda cogitação!

Pensarmos que tudo quanto rezamos no “Veni Creator Spiritus” deu-se com a Santíssima Virgem em grau superlativo!

“Veni, Creator Spiritus, mentes tuorum visita”. Considerem o que significa pedir que o Divino Espírito Santo visite as nossas mentes. A entrada d’Ele e sua ação em nossas  mentes, o que é uma coisa dessas?! “Imple superna gratia quæ Tu creasti pectora”: Os corações que Tu criaste, enche com a tua graça superior”.

“Qui diceris Paraclitus, donum Dei altissimi…”: Tu que és chamado o Paráclito, dom de Deus altíssimo… “Fons vivus, ignis, caritas, et spiritalis unctio”: Fonte viva da graça e  de todos os bens espirituais que a pessoa possa ter, e unção espiritual.

Essa presença do Espírito Santo nos enche de graça e de unção espiritual.

A gruta de Belém se torna mais augusta que qualquer outro palácio

Mas como essa presença é  tênue, leve, pequenina, em comparação com a de Nosso Senhor em Nossa Senhora!

Imaginem esse ato de comunhão perpétuo – no sentido de que será durante todo o período da gestação –, em que Ele está dentro d’Ela e vai Se nutrindo do sangue puríssimo d’Ela, e a carne do Homem-Deus vai cada vez mais se constituindo. Ela sabe disso, tem a consciência inteira do que se passa em seu interior e sente a sublimação de seu sangue que está sendo transformado n’Ele.

Diz-se “caro Christi, caro Mariæ; sanguis Christi, sanguis Mariæ: a carne de Cristo é a carne de Maria; o sangue de Cristo é o sangue de Maria”.

Assim, no corpo d’Ela vai se modelando o d’Ele. Aí se dão certos fenômenos, como o da hereditariedade, por onde Ele herda elementos de sua Mãe, tornando-Se parecido  com Ela, e a inter- relação entre os dois vai aumentando de intimidade, à medida que vai se definindo essa semelhança.

Imaginem, quando o processo está terminado e Nosso Senhor prestes a manifestar-Se aos homens na noite de Natal, até que ponto a intimidade, a relação mútua entre Eles  é grande!

Naturalmente, à medida que no Presépio de Belém a complementação da geração d’Ele vai se tornando perfeita, tudo anuncia em volta de Nosso Senhor que Ele está para   nascer, e a gruta vai ficar augusta com nunca nenhum palácio ficou. Os Anjos enchem aquele ambiente, há uma respeitabilidade,  mas, ao mesmo tempo, uma doçura, um amor, uma confiança inexprimíveis.

Só no Céu ter-se-á uma ideia exata do que foi a gruta de Belém naquela noite. Chega, por fim, a hora bendita entre todas as horas como Maria é bendita entre todas as  mulheres. Por um modo de fazer que só Deus sabe,  Aquela que era a Porta do Céu e sempre Virgem Se torna Mãe de Deus. Porque a maternidade se completa quando Maria  Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou. Afinal, aparece na manjedoura o Filho de Deus vivo.

Os olhares se entrecruzaram

Um artista comum representa o Menino Jesus como uma criança que ainda não tem consciência muito completa de si, batendo um pouco as perninhas, os bracinhos numa posição bonita, mas que não é diretamente racional; são mais ou menos movimentos reflexos. E Nossa Senhora, com o olhar profundamente sábio, santo, etc., observando-O   analisando-O. Mas não é essa a realidade das coisas. Como Ele, desde o seu primeiro instante de ser, refletiu e refletiu…

Ao seu lado, pouco favorecido e ignorante aquele que foi o mais inteligente dos homens: São Tomás de Aquino! Pobre, rústico e bárbaro quem foi o mais civilizado dos  homens – digamos que tenha sido São Luís! E daí  para fora, diante do Menino, o mais lúcido, mais fino, mais nobre, mais casto e mais piedoso de todos.

Ele olhou-A no momento em que Ela O viu, os olhares se entrecruzaram, mas Ele A olhou com mais lucidez do que Ela a Ele. Porque Ele era Ele. Nós devemos fazer a pergunta: Que fisionomia Jesus fez ao ver a Mãe que Deus Lhe tinha dado? Ele já A conhecia, mas com os olhos humanos observava-A com a análise amorosa,  completamente embevecida, etc….

Então podemos imaginá-La sentindo-Se assim analisada, querida, sem a mínima timidez porque Nossa Senhora era puríssima, perfeita, nunca tinha tido a menor falha, em nenhum ponto, jamais deixara de crescer e progredir em toda a medida do necessário. Enfim, Eles se  olham e Eles se reconhecem e cada um vê o outro pela primeira vez.

Que momento de afeto deve ter sido esse! Eu acho que não é possível imaginar. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1995)

Escrava do Senhor

Na Anunciação, Nossa Senhora ouviu a mensagem do Anjo e procurou logo o seu significado profundo. Recebida a explicação, Ela imediatamente entendeu e deu a resposta: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.

Ela notou que era preciso um consentimento d’Ela, e disse: “Sou escrava d’Ele, faça-se o que Ele quiser. E, segundo a tua palavra, aceito!”

Isso se realizou na singeleza diáfana da narração evangélica, representada no luminoso quadro de Fra Angelico, naquelas duas arcadas de uma casinha simples, limpinha, onde Nossa Senhora está sentada e São Gabriel A saúda.

Entretanto, aquele ato de vontade teve mais firmeza, aquele ato de inteligência mais nitidez do que tudo quanto se possa encontrar no universo. Nesta força de alma nota-se a inocência de Quem, sendo Filha diletíssima do Pai Eterno, era destinada a ser a Mãe de Deus Filho e Esposa do Divino Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/5/1981)

Ideal de humildade e elevação

Em seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, São Luís Grignion de Montfort salienta que os devotos de Nossa Senhora terão especial apreço pelo Mistério da Encarnação, pois desta forma “imitam a dependência em que Deus Filho quis estar de Maria. Dependência que transparece particularmente nesse Mistério no qual Jesus Cristo se torna cativo e escravo no seio de Maria Santíssima, aí dependendo d’Ela em tudo” (cap. 8, art. 1, § IV). Exímio nessa imitação do divino exemplo, Dr. Plinio deixou-nos estes comentários expressos numa Festa da Anunciação do Senhor.

 

Ao comemorarmos data de tão precioso significado, devemos considerar que Jesus Cristo tornou-se Escravo de Nossa Senhora desde o momento em que Ela, diante do convite apresentado por São Gabriel, aceitou de dar à luz o Messias, e o Espírito Santo então concebeu em seu claustro materno o Verbo encarnado.

Elevada acima de todos os anjos e santos

A Santíssima Virgem tornou-se, assim, Esposa do Divino Espírito Santo a um título muito particular, e passou a receber d’Ele orientações, diretrizes, atos de amor, de consolação, “flashes” (por assim dizer) de uma sublimidade indizível. Graças essas em estreita relação com os vínculos que o próprio Jesus, naquele seio puríssimo, mantinha com sua Mãe. Estabelecia-se, assim, um maravilhoso convívio no qual Nossa Senhora era, ao mesmo tempo, a Filha predileta do Pai Eterno, a Mãe admirável do Verbo humanado e a fidelíssima consorte do Espírito Santo.

Tudo isto foi concedido a Nossa Senhora em virtude do fato da Encarnação. Quer dizer, no instante em que Ela concebeu o divino Filho, tornou-se objeto dessa assombrosa promoção (se pudéssemos empregar o termo), por onde foi elevada a uma condição incomparavelmente superior à de todos os anjos e santos reunidos, o que significa uma perfeição tão imensa que escapa à nossa capacidade de imaginá-la.

O ideal de toda alma humilde

Porém, cumpre ressaltarmos essa verdade: se quisermos crescer na virtude, no amor a Deus, na devoção à Santíssima Virgem, devemos pedir a Nossa Senhora a graça de conhecer, intuir, avaliar tanto quanto é possível à debilidade do intelecto humano, a santidade d’Ela. Se assim o fizermos, cresceremos nós mesmos em santidade. E, portanto, em humildade, sem a qual não há autêntico progresso espiritual.

Para a alma humilde, disposta a obedecer seus legítimos superiores, afeita à admirar os que merecem admiração, amante da modéstia e da discrição, para essa alma, digo, o ­ideal nesta vida é fazer-se escrava de amor da Santíssima Virgem, imitando ao primeiro Escravo d’Ela, Jesus.

Ideal todo particular, pois é o de ser aos pés de Maria — conforme escreveu São Luís Grignion — um vermezinho e miserável pecador, a quem Deus dá a vida e a tira, concede saúde ou permite a doença. Somos completamente dependentes d’Ele, para tudo quanto de nós deseje.

Mas, que felicidade para nós ao pensarmos: “Somos tão minúsculos perto do Criador e, contudo, quanto mais reconhecemos nossa pequenez, mais nos unimos a Ele e mais Ele nos acolhe em seu Sagrado Coração!”

E assim, correspondendo a esse ideal de humildade, servidão e amor, estreitamos nossa união com Deus, com Maria e a Santa Igreja.

Como gota de orvalho transformada em sol

Pensemos, nesta festa da Anunciação, nas glórias concedidas a Nossa Senhora, nos esplendores de perfeição aos quais Ela foi exaltada como Filha do Pai Eterno, Mãe do Verbo encarnado e Esposa do Espírito Santo.

Pensemos, igualmente, como dessas magníficas alturas Ela olha para nós e acompanha com incansável solicitude materna a vida de cada um de seus devotos. Estejamos certos de que a Virgem nos considera com bondade e insondável clemência; obtém-nos o perdão de nossas misérias e fraquezas; dirige, em nosso favor, um irresistível sorriso à Santíssima Trindade, dizendo:

“Meu Pai, meu Filho, meu Esposo. Vejam estes que vos amam no mundo: tenham compaixão deles, ajudem-nos a serem inteiramente aquilo para o que foram criados, a se tornarem fiéis como verdadeiros escravos de amor, fazendo sempre a minha vontade, que é a vossa, Trindade beatíssima.”

Essa é a mais valiosa graça que devemos suplicar a Deus, pelas mãos de Nossa Senhora, nessa festa da Anunciação e Encarnação do Verbo. Tornarmo-nos esses servos amorosos e fiéis, imitadores de Jesus em sua obediência à Mãe, unidos à Santa Igreja a exemplo da própria Virgem Santíssima, de modo a sermos como ela, assim como a gota de orvalho sobre a qual incide o raio solar assemelha-se a um minúsculo sol.

A gota é linda, pura, encantadora. O raio do astro soberano que a toca, a faz brilhar inteira. Mas, o que é a gota em relação ao sol? Pois muito maior, a perder de vista, é a desproporção entre Nossa Senhora e cada um de nós. Porém, podemos e devemos pedir que, como gotas de orvalho, humildes e pequenos, puros e fortes, sejamos um reflexo d’Ela; e que do entusiasmo de nossa humildade, pureza e fortaleza emane um constante ato de amor, obediência e servidão à Rainha do Universo, à Mãe do Verbo de Deus feito carne.

Plinio Corrêa de Oliveira

Anunciação de Nosso Senhor

Admirados ficamos ao pensar que, por um momento, o destino da humanidade inteira pendeu da resposta afirmativa de uma donzela. E o “sim” que Ela deu, abriu caminho para o Redentor que, por assim dizer, batia às portas do mundo. Abriu caminho para a salvação, para as graças de Deus, para a regeneração dos homens.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Como devemos carregar a nossa cruz

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo nos serve de lição para a vida: devemos, também nós, carregar nossa cruz todos os dias! Ao meditar o sofrimento do Redentor, Dr. Plinio haure valiosos princípios para nossa vida espiritual.

Sendo hoje Quinta-feira Santa, pareceu-me conveniente comentar alguns trechos da “Concordância dos Santos Evangelhos”(1), a fim de nos prepararmos para a grande comemoração que amanhã se dará: a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz e a Redenção do gênero humano.

Acontecimentos trágicos que viriam depois

“Depois dessas palavras, tendo recitado o hino de ação de graças, saiu Jesus com os discípulos para além da corrente do Cedrão. Dirigindo-se para o Monte das Oliveiras segundo costumava, chegara a um lugar chamado Getsêmani, onde havia um jardim em que entrou com seus ­discípulos.

“Chegando a esse lugar, disse-lhes Jesus: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.’”

Vemos que há uma delimitação clara entre a festa de instituição da Eucaristia, da primeira Missa, e a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Santa Ceia tem um caráter festivo, sobre o qual já se projetam as sombras e as tristezas dos acontecimentos trágicos que virão depois. Concluída a ação de graças, a festa cessou, e Ele começa então a enfrentar a dor, o drama, a grande luta. Sua vida já fora de lutas, mas nesse momento ela chega ao auge, ao apogeu.

Para bem saborear os acontecimentos que o Evangelho narra, nessa linguagem tão simples, devemos imaginar o estado de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, as disposições do Sagrado Coração de Jesus ao longo desses fatos.

A Santa Ceia para Ele foi triste por dois motivos: em primeiro lugar porque o Redentor via a Paixão que começaria logo após, pois, evidentemente, Ele tinha o conhecimento de tudo.

E também por causa da situação tristíssima dos Apóstolos. Na narração da Santa Ceia aparecem manifestações da insuficiência e da mediocridade dos Apóstolos. E o que deveria cortar o Sagrado Coração de Jesus, transpassá-Lo mais do que a lança de Longinos, era a infidelidade dos Apóstolos, o insucesso da obra que Nosso Senhor havia começado com eles.

O Redentor, dando-lhes a maior manifestação de seu amor até aquele momento, instituindo a Sagrada a Eucaristia e oferecendo-Se a Si próprio em comunhão a eles, vê aquelas almas receberem esse dom incomparável com frieza: São Pedro, grandiloquente; Judas, nas condições abomináveis que não vale a pena referir; os outros Apóstolos se preparando para a fuga.

Há aquele episódio tão bonito de São João Evangelista, discípulo amado, que reclina a cabeça sobre o peito de Jesus e pergunta-Lhe quem seria o traidor; e Nosso Senhor, então, disse quem era. Ora, esse discípulo “a quem Jesus amava”, ia fugir como os outros.

Quer dizer, tudo são sombras que vão baixando e ao mesmo tempo os clarões da Missa se vão acendendo. E Nosso Senhor Jesus Cristo, que conhecia todos os tempos e tudo quanto haveria de acontecer, se deleitava com a ideia de toda a glória que a Sagrada Eucaristia e a Missa dão ao Padre Eterno, com as adorações que Ele receberia dos Santos e das almas eleitas, até o fim do mundo. Todos esses sentimentos penetraram no Coração d’Ele e constituíram um claro-obscuro de tristeza e alegria; em certo momento o clarão se retira e Nosso Senhor vai entrando cada vez mais nas sombras de sua dor e de sua morte. Cada passo que se aproxima é mais trágico do que o outro.

Ele caminha, mas caminha seguramente, sem um minuto de distensão, de alívio — a não ser quando recebeu o Anjo que o consolou, e na hora em que viu Nossa Senhora e teve a presença d’Ela ao longo da via sacra —, tendo no alto do Calvário, no auge da dor, exclamado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”(2)

E até o “consummatum est”, ou seja, tudo quanto era para sofrer está sofrido, as coisas vão se tornando mais densas para Ele.

A Paixão, uma luta travada na solidão

Então, podemos imaginá-Lo triste após a Ceia, andando pelas ruas de Jerusalém com os Apóstolos, até o Getsêmani, onde começa sua agonia — agonia, em grego, quer dizer luta; os atletas eram chamados agonistas, porque lutavam na arena —, ou seja, a grande luta que Ele vai travar sozinho. E a solidão é uma das tragédias d’Ele durante a Paixão, até o momento em que Nossa Senhora aparece.

Ele se isola, porque sente que ninguém é digno de estar perto d’Ele nesta hora, e diz aos Apóstolos sonolentos e indiferentes:
“Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.”
Quando Ele se afasta, em vez de algum Apóstolo perguntar-Lhe “Senhor, por que Vos isolais?” ou “Senhor, não precisais de mim?”, eles nesse lance começam a vacilar, e a tragédia de alma de Jesus já se faz sentir.

“Depois, tomando consigo a Pedro e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João, começou a sentir pavor e angústia, e caiu em tristeza e abatimento. — Minha alma está triste até a morte, lhes disse Ele. Ficai aqui e velai comigo.”

Esses Apóstolos, Ele quis ter consigo — os outros, deixou para trás —, e numa maior intimidade lhes explica: “Minha alma está triste até a morte.” E pede-lhes: “Velai”, ou seja, “Ficai acordados comigo. Eu quero ter o reconforto de vossa presença e de vossa compaixão, enquanto estiver passando por esta dor tão grande.”

“Adiantando-se um pouco, afastou-se deles à distância de um tiro de pedra, prostrou-se com a face no chão e começou a orar para que, se fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora.”

Tenhamos em mente o Santo Sudário de Turim: aquele olhar, aquela majestade de Nosso Senhor. O que significaria, para quem tivesse um pouco de alma, ver aquela fronte na qual estava resumida toda a glória do universo, aquele olhar que sintetizava, em grau excelso, de superação inimaginável, a santidade possível em todas as almas em todos os tempos, a inteligência, a força, a bondade, enfim todas as qualidades; contemplar aquela face, o mais perfeito espelho de Deus, que jamais tinha sido criado!

“Faça-se a vossa vontade e não a minha”

Podemos imaginar Nosso Senhor — que era um varão alto —, com uma túnica branca, numa noite que talvez tivesse a claridade da lua, com as sombras do arvoredo produzindo um claro-obscuro. O que teria de pungente, ver esse varão majestoso, inteiramente só… De repente, uma grande forma branca que se inclina e põe sua face em terra! Então, o Rei de toda glória rezava prostrado, acabrunhado por uma tristeza que O tomava até a morte.

E Ele dizia na sua oração, que os Apóstolos ouviram para depois poder contar, e assim ficasse constando para todo o sempre, estas palavras memoriais:

“Meu Pai, se é possível, afaste-se de Mim este cálice. Todavia, faça-se a vossa vontade e não a minha.”

É a oração mais doce, mais forte e mais contrarrevolucionária que talvez se tenha feito em toda a Terra.

Mais doce porque, vendo que o Padre Eterno quer o tormento, o martírio d’Ele, e vai tomá-Lo como vítima, Jesus Se apresenta cheio de amor e O trata “Meu Pai”, as palavras mais suaves que uma pessoa possa dizer a outra.

“Meu Pai”, diz Ele como quem geme! Sabe que vai sofrer aquele tormento, necessário segundo os desígnios de Deus, para sua glória. E Jesus, na sua humildade Santíssima, como que abandonado, seccionado de sua divindade, fica naquelas trevas. Sua natureza humana pede: “Se for possível evitar esse tormento, afastai-o”. Como quem diz: “É tão grande o peso da dor, que sou levado a Vos perguntar: Por misericórdia, não existe um modo de afastá-lo?”

Mas, logo depois Nosso Senhor acrescenta: “Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha.” Vemos, então, além do afeto, a força: “Não sendo possível, embora não aguente, não tenha recursos, Eu começarei; porque nada existe que Eu não esteja disposto a empreender para fazer a vossa vontade. Sou o Varão forte por excelência, esmagado, quebrado, aniquilado. Estou, entretanto, disposto a lutar até o fim. Mandai-me a vossa força, que farei a vossa vontade”.

É, portanto, uma submissão completa, uma obediência total, um ato amoroso sem nenhuma revolta, nem a sensação de que Deus não vai ser misericordioso para com Ele; vê a misericórdia até no momento em que ela pareceria ­impossível.

Há aqui um mistério. Poder-se-ia perguntar: Deus Pai não poderia ter aceitado uma gota de Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e assim redimir os homens?

Realmente, uma gota de Sangue de Cristo tem valor infinito. E os teólogos dizem que simplesmente o Sangue que Ele derramou na circuncisão teria sido não só suficiente, mas superabundante, para resgatar o gênero humano. Porém, havia um desígnio de Deus, para nós misterioso, segundo o qual era preciso aquela enormidade de tormentos.

O colóquio entre Ele e o Padre Eterno, tão trágico, mas ao mesmo tempo tão íntimo, nos desvenda algo que podemos sondar nas relações entre o Homem-Deus e Deus Pai. Vê-se que, por algo, o Padre Eterno e Ele mesmo, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não quiseram tornar isto possível. Um pouco disso se soube e esse pouco é de uma sublimidade ­extraordinária.

Cada homem deve carregar sua cruz

Jesus quis que os homens vissem todo o sofrimento d’Ele, para que cada um de nós tivesse a coragem de carregar o seu próprio sofrimento. Se o Homem-Deus passasse pela Terra e sofresse um pouquinho, derramando uma gotinha de sangue, remidos estávamos. Mas faltaria a lição de conformidade com a dor, de aceitação do sofrimento como sendo a mais alta coisa da vida — não um desastre, um trambolho, algo que não se compreende e não deveria ter sucedido —, o caminho necessário para que o homem chegue até onde deve chegar, a estrada para a qual ele se dirige como sendo a realização de seu próprio destino.

Quer dizer, cada um de nós nasceu para carregar uma cruz, passar por um horto das oliveiras, beber um cálice, ter as suas horas de agonia e em que diz a Deus Nosso Senhor: “Meu Pai, se possível, afastai de mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.

A idéia de que o homem nasceu para dar glória a Deus, antes de tudo sofrendo, esta ideia retriz, fundamental na formação do verdadeiro católico, não a teríamos se não fosse apresentada pelo mais sublime e arrebatador dos exemplos, que é Nosso Senhor Jesus Cristo morrendo na Cruz.

Vemos aqui um contraste com o espírito moderno, segundo o qual a finalidade do homem na Terra é ter êxito, saúde, enriquecer, gozar a vida e morrer bem tarde, quando não mais houver remédio. E, durante toda a existência, ter a maior quota possível de segurança, de maneira tal que, não digo o sofrimento, mas o medo do sofrimento, não o assalte. Tal visualização é pagã por essência. Calcular a vida assim é calculá-la à maneira de um pagão. A formação católica prepara as pessoas para o sofrimento, pois está fundamentada em Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja vida foi centrada nesta hora suprema da dor.

Como consideramos os sofrimentos de nossa vida?

Isto nos leva a perguntar como consideramos os sofrimentos de nossa vida, dos quais o maior, sem dúvida nenhuma, é a nossa própria santificação. Toda santificação séria faz sofrer, e sofrer muito. E se alguém me disser que não sofre, eu teria vontade de perguntar-lhe, de imediato: “Então tu não te santificas?” Porque não há santificação que não venha acompanhada de dor.

Visando nossa santificação, devemos fazer perguntas como as seguintes:
Combatemos os maus impulsos que, em consequência do pecado original e das nossas más ações, existem dentro de nós? Como fazemos, não só para reprimir os maus impulsos, mas para praticar as virtudes que lhes são opostas?

Aceitamos as nossas limitações de inteligência, físicas de toda ordem, sociais, tais como: falta de posição, de fortuna, de atrativos? Há pessoas sem graça, com as quais os outros não gostam de ter relações; passam diante delas e, quando muito, as cumprimentam. Existem também as muito engraçadas, procuradas por todo o mundo para se divertirem com elas, e que nos solicitam à palhaçada. Como aceitamos a necessidade de resistir a essa solicitação?

Para tudo isto, cada um tem a sua cruz. E Nosso Senhor Jesus Cristo nos mostra o papel fundamental do sofrimento. Uma das razões pelas quais não foi possível ao Padre Eterno atender à oração de Jesus foi que os homens tivessem esse exemplo.

Quando Napoleão estava na fase ascensional de sua carreira, antes ainda de se tornar imperador, um bajulador disse-lhe: “General Bonaparte, por que vós não vos fazeis proclamar deus?” Os antigos heróis romanos, e os da Antiguidade em geral, quando “megalavam”(3) muito, acabavam sendo divinizados. Ele olhou para o sujeito de frente e deu esta resposta esmagadora: “Depois de Jesus Cristo, só há um jeito de alguém ser tomado a sério como deus: subir no alto do Calvário fazendo-se crucificar. Eu não estou disposto a isto.”

O exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo calou tão fundo que nunca mais nenhum candidato à divindade foi tomado a sério, porque só a cruz é séria, e apenas são verdadeiramente sérios os homens que querem carregar sua cruz. Portanto, devemos amar a nossa cruz e meditar sobre os pontos acima referidos.

Ele sofreu para que, por exemplo, no dia 30 de março de 1972, neste pequeno auditório, pudéssemos meditar isto juntos, e cada um sair daqui mais resolvido a combater o seu bom combate. Quer dizer, a carregar sua cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1972)

1) “Concordância dos Santos Evangelhos” ou “Os quatro Evangelhos reunidos em um só”, de autoria do Arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva. São Paulo: Ave Maria, 3ª ed., 1940, p. 365-368.
2) Mt 27,46.
3) “Megalar”, termo criado por Dr. Plinio, derivado de magalomania (mania de grandeza). Usado no sentido de “exagerar as próprias qualidades”, “envaidecer-se”, etc.

Oração para pedir almas que amem a Cruz

Senhor Jesus, Varão das dores, em vossa Alma e em vosso Corpo sofrestes tudo quanto é dado a um homem sofrer. Contemplo vosso cadáver descido do patíbulo, vossa humanidade como que aniquilada, e vosso Sangue infinitamente precioso vertido até a última gota ao longo da Paixão. 

Por todos os séculos dos séculos, representareis a dor no horizonte interior de nossas almas. A dor, com tudo quanto ela tem de nobre, de forte, de grave, de doce e de sublime. A dor elevada do simples âmbito das considerações filosóficas para o firmamento infinito da Fé. A dor compreendida em sua significação teológica, como expiação necessária, e como meio indispensável de santificação. 

Pelo mérito infinito de vosso preciosíssimo Sangue, dai à nossa inteligência a clareza necessária para compreender o papel da dor, e à nossa vontade a força para amá-la com todas as veras de nossas almas.

É só pela compreensão do papel da dor e do mistério da Cruz que a humanidade pode salvar-se da crise tremenda em que está afundando, e das penas eternas que aguardam os que até o último momento permanecerem fechados ao vosso convite para trilhar convosco a via dolorosa.

Maria Santíssima, Mãe das Dores, por vossas preces obtende que Deus multiplique sobre a Terra as almas que amam a Cruz. É a graça de valor incalculável, que Vos pedimos, no crepúsculo desta nossa pobre e estropiada civilização.

 

Provações e glória do Cireneu

Dr. Plinio imagina as reações de alma de Simão Cireneu ao presenciar a Paixão e ser obrigado a ajudar Nosso Senhor a carregar a Cruz. Essas explicitações mostram não apenas seu requintado senso psicológico, mas sobretudo sua ardente, elevada e nobre piedade.

 

Ao lermos no Evangelho o episódio a respeito de Simão Cireneu, devemos imaginá-lo como um homem miúdo, pobretão, que levava a sua vida com uma felicidade própria aos pobres. Os pobres são mais despreocupados que os ricos Em geral, tem-se a impressão de que o pobre vive preocupado porque lhe falta dinheiro, e que o rico passa a vida despreocupado porque lhe sobra dinheiro.

Mas não é assim. Neste nosso século todas as fortunas estão continuamente abaladas, no risco de serem perdidas. Se um homem tem uma pequena indústria, de um momento para outro pode vir uma greve e jogar a sua fábrica no chão.

Se possui um consultório médico ou um escritório de advocacia, de repente pode surgir uma calúnia e acabar com a reputação dele. Todas as profissões trazem hoje preocupações muito grandes.

Uma das vezes em que estive em Roma, visitei um seminário dos Jesuítas. O padre que me mostrava o colégio disse-me:
– Aqui morou e morreu o nosso Padre Fulano.
Perguntei:
– Quem é o Padre Fulano?
– Não ouviu falar?! Antes de ser padre, ele fora engenheiro e construiu uma ponte célebre aqui no Tibre.
– Ah!… está bem.

O Tibre está cheio de pontes, uma a mais, uma a menos não faz diferença; eu não vi a considerada especialmente  “célebre”. Mas, em todo caso, celebrei um pouco a coisa. São as gentilezas e as banalidades da amabilidade.

Então ele contou uma coisa que achei interessante:
– O senhor não imagina que antes de ser padre ele foi um engenheiro de mão cheia. E, por coincidência, deram-lhe um quarto aqui, donde se  via a ponte que ele havia construído. 

Quando ele estava à beira da morte e já não podia se mover, de vez em quando pedia ao irmão jesuíta que tomava conta dele para levá-lo até à janela, a fim de ver se a ponte não tinha caído. Não tinha razão nenhuma, coitadinho. Mas levava essa preocupação até o fim da vida.

O pobre é menos preocupado porque não tem a aflição do que fazer com o seu dinheiro. Ele vai tocando a vida. Quando olhamos para as pessoas pobres na rua, notamos terem a fisionomia mais  despreocupada do que as ricas. Um dos Santos mais alegres que houve na Igreja foi São Francisco de Assis. Ele escreveu até uma famosa reflexão a respeito da perfeita alegria. 

Certa vez, meu pai foi apresentado a um rapaz riquíssimo, uma das maiores fortunas de São Paulo. Estavam também outras pessoas da família. Começaram a conversar e meu pai, já bem idoso, começou a dormir. Mas eu percebi, pelo jeito dele, que estava meio dormindo, meio prestando atenção na prosa. Então o rapaz começou a contar que ele precisava ir para tal fábrica, etc.

Meu pai abriu ligeiramente os olhos e disse: 

– Olhe rapaz, o dinheiro é bom escravo e mau senhor. Se você tem essa fortuna toda para aproveitar, aproveite, mas para carregar o seu dinheiro como você carrega, isso não é vida.

Lembro-me ainda da surpresa do rapaz, mas ele percebeu que ali tinha qualquer coisa de verdadeiro. 

A tragédia irrompe na vida do Cireneu 

Então o Cireneu deveria andar despreocupadamente, pensando nas pequenas coisas da vidinha dele: a sandália estava meio desgastada, como ele iria fazer para mandar consertar, ou arrumava ele  mesmo… Ou, então: “Qual é a espécie daquele passarinho que está piando lá; será que serve para comer? Se servir, posso levá-lo a fim de alimentar meu filho; se não, para minha mulher pôr numa gaiola e ficar nos divertindo em casa.” E coisinhas assim… Podemos imaginar até que ele ia alegre, cantarolando. É a despreocupação da vida do pobre.

De repente depara-se com uma turbamulta gritando: “Pega! Mata! Crucifica!” Ao longe, o Cireneu ouvia uns gemidos. A tragédia irrompera na sua vida. Ele nunca escutou ninguém gemer assim. 

Que dor lancinante!

Quem seria o homem que gemia? Talvez pensasse ele: “Mas eram gemidos ou um cântico? Que voz harmoniosa, que timbre bonito, que vontade eu teria de ajudar esse homem, o qual geme de um modo tão celeste! Quem será esse homem?” Pela primeira vez sentiu-se meio atraído por algo que nunca o atraíra na vida. Quando ele via alguém sofrer, tinha vontade de fugir. A dor era precisamente o que a sua alegria despreocupada não queria ter; ele queria fugir de todos os sofrimentos, de todos os que sofrem, porque de repente aquela dor poderia contagiá-lo.

Alguém roga ajuda, um apoio, ele está com pena, mas pode acabar entrando na tragédia; isso ele não quer, é um securitário. Por isso tem vontade de sair, de afastar-se daquele caminho.

Mas ao mesmo tempo a voz vinha chegando mais perto, o vozerio dos algozes também ficava mais alto.

Simão pensava: “Que contraste! Quando esse homem geme é uma música; mas esses que gritam contra  ele, o perseguem, que barulho medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem harmonia, que gente  má! Eu estou com vontade de tomar partido”.

Era uma graça que, sem ele saber, batia em sua alma, penetrava nela e o Cireneu ficava inclinado a fazer o bem.

Mas de outro lado vinha a sugestão do demônio: “Cuidado! Fuja! Olhe, entre por aquela porta, isto aqui dá encrenca! De repente misturam você com isso e o levam para a dor junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova!” Ele pondera: “Olhe que é verdade, hein! Se eu desse uma volta por lá, pela outra porta, seria um pouco mais longe, porém eu ficaria longe desse barulho”.

O Sangue de Cristo brilha como um rubi Nesse momento ele ouve os gemidos novamente. 

Com o coração rachado de compaixão, a graça pousando nele, contudo com o egoísmo soprado pelo demônio dizendo-lhe o contrário: “Pense em si, não se incomode com esse homem! Se ele estivesse no seu lugar, fugiria; fuja você também, bobo!” Na indecisão, o Cireneu continua a caminhar. Em certo momento dá-se o encontro: ele vê um Homem de trinta e três anos com os longos  cabelos desalinhados, gotejando sangue, o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num ponto e noutro, com o nariz naturalmente arqueado, quebrado por uma pancada brutal, com a cabeça coroada de espinhos, com uma Cruz pesadíssima às costas e que Ele arrastava penosamente.

Simão ficou horrorizado e pensou: “Mas na vida, há tanta dor assim? Nunca pensei que isso pudesse  acontecer a alguém, e de repente sucedeu a ele. E não pode, de repente, acontecer a mim?” O demônio sussurra: “Fuja! Fuja!” 

Um Anjo dizia: “Fique aqui, tem alguma coisa para você!” Um dos soldados romanos viu-o nessa indecisão e lhe ordenou brutalmente: – Pegue a ponta da cruz! Os romanos dominavam a Terra Santa, eram os senhores e a nação judaica fora conquistada por eles; por isso, mandavam em tudo. Quem estivesse com aquele capacete romano, com aquela armadura, com as armas de César, esse tinha que ser obedecido. 

“Como – pensava Simão –, é essa cruz ensopada de sangue que ele me mandou pegar? Vejo o sangue que escorre e goteja no chão, e eu vou me molhar com ele…” Enquanto cogitava nisso, o Sol incide no Sangue e brilha uma cor rubi. 

Algo lhe diz: “Esse Sangue é a salvação, agarre-O.” “Mas – pensa Simão – e a dor, o peso dessa cruz?” – Pegue já – insiste o soldado –, porque ele não está aguentando e tem que subir até o alto daquela montanha. 

O Cireneu cogita: “Eu então tenho que levar essa cruz até o cimo da montanha. Subir uma montanha com uma cruz, atrás desse pobre coitado gemendo assim?! Não tenho coragem, é muito esforço, e não gosto de fazer esforço.”

– Pegue! Se não, você apanha. Simão pensa: “Agora a coisa complicou, porque então vai escorrer o meu sangue. Dessa não fujo… Já devia ter escapado, agora tenho que pegar a cruz.” Ele, então, decide carregar a Cruz.

A bondade de Jesus dedilha sua alma

Quem leva a Cruz olha para ele. E Simão percebe que aquele olhar o penetrou completamente, e ele sente uma coisa que nunca sentiu na vida. O Cireneu é um homem casado, possui filhos, alguns deles pequeninos, teve bons pais e relações de família comuns, como havia naquele tempo. Mas ele se sente objeto de um olhar como nunca ninguém o olhou assim. Ele sentia que esse olhar lhe penetrava no fundo da alma, e era de Alguém que o conhecia antes mesmo de ele nascer, sabia quem era e quem havia de ser. Um olhar extraordinário, que o envolvia de um afeto como nunca ninguém tinha tido.

Ele se sentiu compreendido nas suas peculiaridades e percebeu que aquele olhar conhecia a sua vida inteira, todas as suas dores, e que tinha pena dele. O Cireneu sentiu-se atraidíssimo mais do que nunca; tendo tomado a Cruz, o Sangue quente que escorria lhe tocou nas mãos, ele sentia-se meio envolvido naquela tragédia, e cada vez mais atraído por esta. 

Mas o medo procede por solavancos e, em determinado momento, ele diz para o romano: – Eu não quero continuar! – Se não carregar, apanha! Ele, então, mal-humorado toma a Cruz e  prossegue. 

Um diálogo mudo se estabelece entre os dois homens. O Homem-Deus e o Cireneu. O Homem-Deus dizia a ele:

– Meu filho, é por você que Eu sofro. Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último ponto do desprezo dos homens, mas olhe para Mim, note que misteriosa grandeza há em Mim.

Que bondade envolvente, a qual dedilha a sua alma como um bom médico toma uma chaga para nela pôr um unguento. Você não percebe que está sofrendo fisicamente com o peso da minha Cruz, mas que a sua alma está sentindo uma leveza como nunca sentiu? Não está percebendo que um horizonte novo se põe para você? Encontram-se ao pé do Calvário, é preciso continuar a subir  e a Cruz para Simão se torna cada vez mais pesada. Ele pensa: “É terrível  isso, entretanto mais terrível seria se eu largasse a cruz e Ele caísse sob o peso dela e esfolasse as palmas das  suas mãos nas pedras deste solo. Eu não suportaria isso, agora vou até em cima.” 

E ajudou a carregar a Cruz até o cume do Calvário. Os carrascos dizem a Jesus: – Põe a cruz no solo! Ele, humilde e bondosamente, coloca a Cruz no chão e ao Cireneu que O ajudava fitou com um olhar de reconhecimento. Foi o último olhar que Ele deu para Simão. O Cireneu afastou-se e percebeu que os romanos já não estavam pensando nele, estava fora da tragédia. 

Disseram a Nosso Senhor:
– Abra os braços, estenda bem as pernas, nós vamos cravar estes pregos nas suas mãos e nos seus pés! 

E Ele, como quem queria sofrer aquilo, fez o que mandavam e a pancadaria começou. “Transpassaram as minhas mãos e os meus pés, posso contar todos os meus ossos” (Sl 21, 17-18). Este Salmo se referia ao Messias. De fato, puseram cravos um em cada mão e depois nos pés. Segundo uma tradição, não foi um prego em cada pé, mas um grande cravo que atravessou os dois pés, prendendo-os na Cruz.

Apavorado e ao mesmo tempo fascinado

Quando isso estava feito, levantaram a Cruz e Ele ficou pendente daqueles pregos de maneira tal que, quando Se apoiava nos braços, os cravos começavam a rasgar as mãos; quando Se sustentava nos pés, para evitar que se rasgassem as mãos, o prego iniciava a dilacerar os pés, e tudo não era senão aumento de dor. O Cireneu, de longe, olhava apavorado e ao mesmo tempo fascinado, não falava com ninguém, ele tinha voltado a ser um anônimo na multidão.

Em determinado momento, ele percebeu que do alto da Cruz Nosso Senhor conversava com os dois ladrões, os quais estavam de um lado e de outro. Ele notou que um ladrão blasfemava e Nosso Senhor fingia não ouvir. E o outro olhava com tristeza e tomava a defesa de Jesus, dizendo: 

– Por que você blasfema dessa maneira? Estamos aqui porque somos criminosos; o destino de um criminoso é morrer como nós. Ele é o inocente, Ele é o justo, Ele é o Santo, e morre assim…
E Simão ouviu Nosso Senhor responder:
– Tu hoje estarás comigo no Paraíso. 

Perdoou todos os seus pecados e profetizou que Ele iria para o Céu e levaria consigo o bom ladrão. O povinho passava de um lado para o outro, alguns apedrejavam, outros vaiavam, outros se calavam, alguns choravam. O céu foi se escurecendo cada vez mais. Em certo momento fez-se noite sobre Jerusalém e, entretanto, eram três horas da tarde.

E nessa “noite” se ouviu o brado d’Ele: “Eli, Eli, lamá sabactâni? – Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E, em seguida: “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30). E morreu.

Nossa Senhora lhe dá um sorriso machucado, mas florido

Um grupo de mulheres estava lá, das quais uma exercia sobre Simão uma atração parecida com a produzida por aquele Homem. O Cireneu perguntou: 

– Quem é aquela?
– É a Mãe d’Ele – respondem.
– A mãe dele? Mas isso para mim vale mais que uma rainha, uma imperatriz, mais do que todo o mundo. 

Que honra ser mãe desse homem fracassado, tão inábil que sendo inocente não evitou a própria morte. Que sabedoria desse homem derrotado, e que vitória essa cena! Jesus morreu e o céu todo se toldou, escureceu, e quando ele pensava nisso um tremor começou a sacudir a terra.

O Cireneu continuou olhando aquilo, teve medo, sobretudo, quando viu figuras andando de olhos fechados, todas envoltas em tiras de panos brancos, que era como naquele tempo se envolviam os cadáveres quando sepultados e, com a boca fechada, diziam terríveis censuras ao povo. E com os olhos cerrados pareciam que olhavam e radiografavam o corpo e a alma daqueles bandidos. Eram os justos da Antiga Lei que saíam das sepulturas para increpar o povo que acabava de matar o Filho de Deus. Ao longe, ele viu o Templo todo tremer Ele quis falar com aquela Senhora, mas não ousou, tal a pureza que via naquela Dama. 

Tiraram da Cruz o Corpo sagrado de Jesus, ungiram-No sobre o colo d’Ela e levaram-No para a sepultura. Organizou-se, então, o cortejo de umas dez ou quinze pessoas: São João Evangelista, as mulheres, Nicodemos, José de Arimateia. 

Simão não teve coragem de acompanhar. Ele pensou: “O que vai me acontecer? Vejo-me tão cheio de ideias, de preocupações, que já estou perdendo a esperança, porque, afinal de contas, sou um miserável, um medroso, um homem carregado de pecados. Nunca estarei à altura de tudo quanto eu vi.”

O cortejo aproxima-se e aquela Senhora faz pousar sobre o Cireneu um olhar de bondade e lhe diz apenas duas palavras: “Meu filho!” “Ganhei o dia – pensa ele –, ganhei a vida, estou perdoado, vou para casa.”

Em sua residência a mulher e as crianças dormiam, tudo estava tranquilo. O primeiro cuidado que ele teve foi de trocar de túnica, pegar a usada e osculá-la com reverência; era o seu primeiro ato de adoração. Ele terá pensado: “Esse Homem é Deus”. Foi o primeiro ato de Fé, de adoração. Dobrou a túnica considerando-a o maior tesouro do mundo, osculou as manchas de Sangue como se fossem a coisa mais preciosa que há na Terra – e era mesmo –, guardou-a num lugar onde ninguém podia mexer; pôs outra túnica e sentou-se do lado de fora do jardim.

O tempo corria… De repente, ele percebe que aquele cortejo estava se dispersando. O Cireneu saiu de novo atrás deles e viu a casa para onde se dirigiam. Abriram a porta e, pouco antes de entrar, aquela Senhora olha para trás e, do fundo de sua dor, dá-lhe um sorriso, machucado, mas florido. 

Ele entendeu, era um convite. O Cireneu começou a frequentar os Apóstolos e tudo leva a crer que se santificou, talvez tenha morrido mártir. O silêncio paira sobre esta vida que começa no silêncio. Era um homem adulto que de repente saía da banalidade, da vulgaridade, e entrava nesse arco de dor e de glória. Acabou cumprindo o seu dever depois de mil dificuldades e sumiu de novo no anonimato, mas a alma dele, assim podemos esperar, foi recebida no Céu quando ele morreu. O Cireneu tinha tido a honra, a vocação única de, sozinho, carregar a Cruz do Cordeiro de Deus. 

O Cireneu não era um combatente e nós o somos

Nós podemos carregar a Cruz de Nosso Senhor?

Da Cruz resta apenas um pedaço em Roma, mas dele, de vez em quando, obtém-se algum minúsculo  fragmento com um valor moral e religioso inapreciável: é o Santo Lenho. Figura na cruz peitoral de alguns bispos, nos relicários de algumas igrejas, etc. 

Há mil modos de carregar a Cruz. Nós A levamos quando sofremos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo. Por exemplo, há muita gente que nos odeia porque amamos a Nosso Senhor, somos puros, castos, acreditamos na Santa Igreja Católica Apostólica  Romana como ela deve ser, sem embustes e falsificações. Por isso todos quantos se entregaram ao paganismo contemporâneo nos odeiam. Sempre que esse ódio bater em nosso peito, acompanhado desta ameaça: “Você vai ser vaiado e isolado por todos. Bobo, deixe isso!”, lembremo-nos de que estamos carregando a Cruz do Redentor, e de que temos um prêmio demasiadamente grande diante de nós. Quem é perseguido, odiado e desprezado por amor à virtude, à Fé, a Nosso Senhor Jesus Cristo, esse tem um prêmio
enorme no Céu. 

No sermão das bem-aventuranças Nosso Senhor disse expressamente que uma delas era para aqueles que sofrem perseguição por amor à virtude, ao bem. O bem e a virtude naquele tempo eram designados pela palavra “justiça”, que dava o nome a todas as outras virtudes. Esses bem-aventurados receberão recompensa nesta vida e no Céu. 

Mas o Cireneu não era um combatente e nós o somos. Nós não devemos nos limitar a levar a pancada,  temos que tomar o trabalho de dar a pancada também.

Quer dizer, quando caçoam de nós, não devemos fazer uma cara de bobo que apanha; isso é ridículo, não digno do nome de Nosso Senhor. Precisamos levantar a cabeça e responder taco a taco:

“Eu menosprezo o seu desprezo e me orgulho d’Aquele de Quem você fala mal. Você está falando mal de Nosso Senhor Jesus Cristo e eu me ufano de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu O adoro como Homem-Deus, ria quanto quiser, que debocho de sua risada.”

“Está vendo aquele jovem lá? Você vai corrompê-lo com maus conselhos. Eu vou junto com você defendê- lo contra suas más palavras, porque quero retê-lo junto à Cruz de Cristo. Terei batalhas por isso, mas responderei a uma ofensa com uma defesa, a um argumento com outro argumento, serei denodado como um batalhador, e levarei muitos atrás de mim; são centenas de derrotas que você encontrará no seu caminho, as quais são as vitórias de Nosso Senhor Jesus Cristo.” 

O Homem-Deus conhecia o passado, o presente e o futuro. E quando Flávio Lourenço carregava a Cruz, teve ciência de cada  um daqueles que ajudariam a Igreja e a Civilização Cristã nas lutas contra seus adversários. Ele via todos os ataques, todas as defesas. Observava, numa cidade chamada São Paulo, um auditório cheio de jovens chamados pela graça para O ajudarem a carregar a Cruz. Via essas almas se abrindo para a beleza da vocação do Cireneu e para a glória de carregar, combativamente, a Santa Cruz do Redentor. E isso O consolava na sua dor. De maneira que hoje nós consolamos a Nosso Senhor Jesus Cristo carregando a sua Cruz. 

Fomos, portanto, Cireneus. Resta-nos pedir a Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia, que nos faça Cireneus cada vez mais autênticos, mais amigos da Cruz e mais batalhadores pela Igreja e pela Civilização Cristã.

Perfeição do espírito da Contra-Revolução

Encarnação do Verbo é a Festa da escravidão a Nossa Senhora e da Contra-Revolução, na qual se celebra o espírito de obediência, o amor à hierarquia, à ordem, à dependência, a tudo quanto a Revolução odeia.

O espírito humilde e contrarrevolucionário de Maria Santíssima se manifesta em face deste mistério, pois quando Ela soube que o Verbo Se encarnaria n’Ela, sua reação não foi de Se vangloriar, mas de proferir esta frase humílima: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.

Como se dissesse: “Se Deus quer de Mim essa coisa inimaginável, isto é, que Eu mande n’Ele, por obediência a Ele, n’Ele mandarei. Porque Ele é o Senhor, e em tudo farei a sua vontade”.

À luz deste mistério, ganha especial realce a atitude da Santíssima Virgem dizendo-Se escrava de Deus no momento em que Ele queria fazer um ato de escravidão em relação a Ela.

Aí vemos a perfeição do espírito da Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira – (Extraído de conferência de 16/3/1971)

Revista Dr Plinio (Março de 2016)