Per lucem ad crucem

A constatação de nossa insuficiência em face dos sofrimentos pode nos levar a fugir do caminho da cruz, indispensável à nossa santificação. Como estarmos preparados para oferecer, sem pânicos nem desânimos, os sacrifícios que nos venham a ser pedidos?

 

Devo tratar nesta conferência a respeito de como acondicionar a cruz para que a pessoa saiba andar com ela, entendendo-se desde já como cruz não apenas os sofrimentos lancinantes que dilaceram e estraçalham, mas também a vida cotidiana nos seus aspectos normais, com uma dose de felicidade ou de bem-estar normal, que não é a alegria de delirar, e as dores também normais.

Portanto, a matalotagem que o indivíduo precisa levar no caminho da cruz, e como ele deve ver esse caminho e a suportabilidade da cruz para nele andar.

Os grandes e os pequenos sacrifícios

Muitos pregadores — não os censuro por isso, acho normal — quando falam da cruz, querem levar as almas num só voo para a admiração e a eventual aceitação da dor no que ela tem de mais lancinante e terrível.

Então dizem: “Eu vou falar da cruz. Olha, São Vicente sofreu tal martírio assim… Este outro fez isso e suportou tal situação, etc.” Pergunto: Isso é bom ou não?

Para tratar da questão da cruz é preciso, antes de tudo, um discernimento dos espíritos, porque de fato a graça chama a alma para a cruz conforme as ocasiões, os momentos. Há determinados lampejos em que ela convida de uma vez a pessoa para o pináculo da cruz, e pode ser um principiante. Às vezes, ela não chama para o pináculo, mas vai se revelando lentamente, gradualmente.

Então, pode ser que para um auditório, em certo momento, em determinada situação, um pregador seja levado, pelo discernimento dos espíritos, a ensinar a cruz no que ela tem de mais terrível: “Meus caros irmãos, quereis saber o que é a cruz? Ouvi essas palavras: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’”(1). Começar por aí e produzir um choque. Como também pode acontecer que inicie pela doutrina dos pequenos sacrifícios, de Santa Teresinha do Menino Jesus, porque a cruz é tão divina, tão enorme, tão complexa, que não a pega quem quer, do jeito que deseja. Cada um é atraído pelo Espírito Santo, pela graça, a apanhá-la de um jeito. E se pegar do jeito errado, não entra no caminho da cruz.

Admirar as pessoas mais perfeitas

A grande maioria dos fiéis tem que viver a cruz nas condições de vida comum, porque, do contrário, a sociedade temporal desaparece. Isso está ligado à teoria do estado de perfeição. A perfeição é sempre uma cruz, e uma cruz insigne. E o estado de perfeição, vivido em toda a sua autenticidade, é um estado de cruz.

Entretanto, o estado de perfeição deve ser praticado por muitos, não porém por todos. E esses muitos constituem uma multidão e ao mesmo tempo uma minoria. Porque, em absoluto, o número dos que seguem a perfeição é muito grande. Por exemplo, podemos dizer que a Igreja tem um número colossal de Santos. Não há exagero nem mentira nisso. Mas, se for comparado com o número de homens, é um pingo.

Então, são tantos que se poderia falar que há um número infindável de Santos. Mas, de outro lado, se poderia dizer também: é pequeno o número de Santos canonizados.

Na perspectiva de que esse número é pequeno, que há uma quantidade infindável de almas que não são chamadas para determinada perfeição, mas a admiram, embora sabendo que não irão adquirir aquela perfeição, elas devem ter uma espécie de tristeza de não serem chamadas para aquela perfeição. E só a alma que admirou profundamente a cruz para a qual ela não é chamada consegue ser correta.

Aqueles que admiram os mais corretos e os mais exímios conseguem ser corretos. A partir do momento em que o indivíduo deixa de ter um amor abrasado, um entusiasmo pela perfeição para a qual não foi chamado, ele começa a relaxar.

É um modelo que ele sabe que não tem proporção para seguir, e fica com certa nostalgia de não poder acompanhar. Este ponto é muito importante.

Um cuidado ao se levantar o estandarte da cruz

Então, pode-se pregar a cruz no que ela tem de mais terrível, tranquilizando as pessoas: “Não se tomem de um escrúpulo torturante ao verem que não são capazes disso, mas compreendam que podem amar sem ser tragadas por esse sofrimento que não lhes será pedido. Ou, se for pedido — porque não se sabe qual é o futuro do homem —, vocês receberão outras graças que não têm agora. Sentirem-se proporcionadas com isso no momento, não é sua obrigação”. Tenho a impressão de que, ao levantar o estandarte da cruz, a primeira precaução é essa; do contrário, perde-se o rumo.

Lembro-me de uma experiência pessoal. Eu tinha muita admiração pelos mártires, mas um medo enorme de passar pelos sofrimentos que eles tiveram. E me perguntava: “Você está embevecido de admiração por eles. Do que vale essa sua admiração? Eu queria ver se você, diante de um leão, tomaria a atitude deles. Não toma! É um fracalhão. Essa sua admiração é hipócrita!”

Eu sentia que isso me perturbava a fundo. Parecia uma increpação virtuosa, tinha seu quê de virtude, mas com algo mal visto, mal compreendido. Até que ouvi um padre dizer, de passagem, diante de mim: “A maior parte desses mártires tinha a graça no momento de chegar diante da fera”.

Para mim foi uma descoberta! Comecei a admirar os mártires sem me causar nenhum arrepio. Isso eu vi repetido, depois, em mil situações e de mil modos.

Portanto, eu colocaria como primeiro problema entender bem isso. Com o seguinte acréscimo: aquilo que se dá com os sofrimentos lancinantes, ocorre também com os padecimentos menores que conhecemos na vida de todos os dias. Vemos, de repente, alguém fazer um sacrifício de que nós não somos capazes. Admiremos! E admiremos sem remorsos, nem increpações tontas contra nós mesmos.

Alguém poderia dizer: “É bem verdade, essa cruz no momento não tenho que carregar. Eu terei que carregar algum dia? Como vai ser de mim quando precisar levá-la?”

A resposta é a seguinte: Não se ponha o problema. Admire debandadamente e sem restrições, e peça a graça — caso se ponha para você esse sofrimento — de ter a coragem de enfrentá-lo, mas sem certa forma de angústia que faz mal à alma.

O cálice por onde algo de superior penetra em nós

Quem de nós seria capaz de arcar com o sofrimento que teve Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora? Não há um! Nem de longe nós temos substância para isso. Mas, de tanto admirar aquilo de que não somos capazes, algo daquela graça entra em nós.

A admiração é o cálice por onde a coisa superior entra em nós.

E, na medida em que eu admiro a capacidade de outro sofrer, entra em mim essa capacidade. Não quero dizer que entre tanto quanto há nele, mas, dentro de minhas proporções, recebo esta capacidade à força de admirar.

A alma capaz de admirar é aberta a todas as estrelas, a todos os sóis. A alma fechada à admiração está entregue a si mesma. Da alma invejosa, então, nem sei o que dizer! Esta apedreja, insulta as estrelas!

Como entrada no caminho da cruz, devemos admirar a cruz, naturalmente antes de tudo o Crucificado e a Corredentora, mas não nos limitemos a exemplos históricos. Procuremos ver a cruz naqueles que, em torno de nós, praticam o amor à cruz.

Porque ficar no mundo do que passou, é permanecer no zero. Eu só entro em nexo com aquilo que passou quando admiro algo de congênere que ocorre em torno de mim, e por aí chego até o passado. A Paixão de Nosso Senhor não passou, pois de algum modo ela é permanente.

Então deveríamos olhar admirativamente em torno de nós. E se não temos o costume de fazer exame de consciência para saber o que se passa em nossas almas, entram pedregulhos de inveja que causam relutância em relação a essas considerações. Não tenhamos ilusões, porque entram. A inveja é tal que, ou temos a certeza de tê-la expulsado, ou ela habita em nós. Não é alentador, mas é a pura verdade. Tratemos de vencê-la, portanto, e procuremos admirar, pois temos importantes razões para querer que nossas almas progridam nisso.

Pedir forças a Nossa Senhora

Se fosse possível fazermos uma meditação sobre nossa própria cruz, precedida de uma cuidadosa preparação na linha do que estou dizendo, sairíamos da pura teoria e teríamos condições para entrar no caminho da cruz. Se não for assim, não entramos verdadeiramente.

Pode acontecer que alguém tenha diante de si um sacrifício que não tem coragem de fazer. E o pior é o seguinte: não se trata de algo extraordinário, mas está abaixo das reais resistências do indivíduo. Porém, por ser ele um poltrão, não tem forças.

Então, se sou um poltrão, rezo: “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!” Vou pedir para Ela me dar as forças que eu deveria ter e não possuo, que Ela tenha pena de mim. Vou rezar, rezar, e acabarei obtendo. Mas nunca devo me aproximar da cruz em seco, porque isso costuma causar muitos desvios!

Com essa postura a cruz se torna manuseável. Fora disso, não. E o exemplo foi Nosso Senhor, o Qual como que Se manifestou sem proporção com a Cruz d’Ele, a tal ponto que disse “Pater, si fieri potest…”(2); e a oração d’Ele, como não podia deixar de ser, foi gratíssima a Deus Pai que Lhe mandou um Anjo. E depois o Cireneu no percurso da “Via Crucis”, que O ajudou a carregá-la; a Verônica; o encontro com Nossa Senhora, etc.

Tudo isso é muito matizado, e sem essas matizações nós fugimos da cruz, o que é um disparate, pois se Deus matiza tanto para nós o caminho do sofrimento, por que havemos de imaginá-lo sem matizes?

A meu ver, para percorrermos esse tema sem constrição para nossas almas, seria absolutamente necessário considerar esses matizes como pórtico do tema da cruz.

Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição

Outro lado que ainda está no condicionamento da via da cruz é o seguinte: essas multidões de pessoas a quem nos referimos acima, aparentemente não são chamadas à perfeição. Por quê? Seria pelo fato de estarem destinadas à sociedade temporal? Esse é um erro.

É verdade que todos os que pertencem a Ordens religiosas são chamados para o estado de perfeição. O religioso que, consciente e voluntariamente, deixe de tender para a perfeição comete pecado grave. Essa é a doutrina da Igreja.

Contudo, se não houver entre os membros da sociedade temporal um bom número de pessoas que, dentro das condições próprias ao âmbito civil, pratiquem intencionalmente a perfeição, a sociedade temporal fenece, perece. De maneira tal que não devemos identificar a perfeição com a condição eclesiástica ou religiosa, e a imperfeição consentida e desavergonhada com a sociedade temporal. Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição. Para o grau de perfeição dos religiosos, a grande maioria não é chamada, mas sim a um determinado teto de perfeição, dentro da vida que leva, e para isso deve tender.

Tomemos, por exemplo, a Igreja de São Basílio, em Moscou, com aquelas cúpulas. Aquilo poderia ser o gráfico das perfeições. Algumas perfeições são enormes, outras são pequenas, como os torreõezinhos que têm na ponta uma cúpula pequenininha também. Assim é a multidão das almas: cada uma é como um torreão que tem no alto uma cúpula, ou seja, uma perfeição própria para a qual deve tender.

Considerar que alguém pode até chegar ao Céu sem passar pelo Purgatório, por ter vivido retamente na sociedade temporal para uma perfeição menor que foi atingida, faz com que a pessoa esteja animada por ter encontrado para si um ideal muito belo. Com isso, creio que a alma fica arejada e balizada para entrar no caminho da cruz.

Esse caminho é lindo e cheio de surpresas, como uma navegação num mar ignoto, que apresenta as borrascas e as ciladas mais tenebrosas, mas também os panoramas mais magníficos.

Deus nos pede o sacrifício, mas nos sustenta com sua graça

Assim, há certas coisas que, para o comum das pessoas, constituiriam um sacrifício medonho a praticar; entretanto, quando se é chamado pela graça a uma vocação, a alma se enche de alegria e de consolação.

Exemplifico com a Gruta de Lourdes. Há voluntários que se esmeram em dar banho aos doentes em piscinas apropriadas.

Alguém diria: “Olhe, você vai ter contato com o que há de mais repugnante, mais terrível. Você precisará mexer naquela água de banhos imundos, onde há as cascas de feridas, o pus de todos os que por ali passaram e os micróbios mais ameaçadores de todas as doenças. Aquelas piscinas são anti-higiênicas no sentido mais violento e literal da palavra, e você porá as suas mãos limpas, que desinfetou antes, naquela água para lavar aqueles doentes! Isso será para você uma tortura todos os dias”.

Para quem se sentiu chamado por uma graça para fazer isso, não é uma tortura. Vá lá, mexa naquilo, a graça vai mexer na sua alma de outro jeito e você dará os banhos com naturalidade. Não considere, portanto, a situação como ela não vai ser.

Com muitas modalidades de sofrimento se dá isso. Sofre-se muito, mas não se percebe que a Providência pôs uma suavidade na alma a propósito daquele padecimento, de maneira que, quando o sofrimento acabou, tem-se gosto de se lembrar dele. E às vezes vai-se ao lugar onde se padeceu, para dar graças a Nossa Senhora por aquele sofrimento.

Convém, pois, cada um compreender que não deve confrontar o sofrimento futuro com o seu estado de espírito atual, porque, quando chegar a hora de sofrer, Maria Santíssima obterá as forças. Ainda mais, Ela, que é Mãe de Misericórdia, providenciará os meios para se padecer aquilo potavelmente.

Diz-se que quando Deus permite que fiquemos doentes, Ele mesmo prepara a cama para nos deitarmos.

Existe uma doçura especial no âmago do sofrimento, quando nos lembramos de que ele nos foi dado por Deus: é o travesseiro suave que a Mãe de Misericórdia nos preparou para aguentarmos tal padecimento. Vamos adiante porque, quando isso terminar, teremos saudades desses dias. Parece-me muito importante considerar isso também.

São das tais graças como a de Jesus com os discípulos de Emaús: no momento de ir embora, revela-Se. Na hora do sofrimento cessar, percebemos que uma mão estava nos segurando, e ficamos encantados!

Aversão à atitude de Múcio Cévola

Entretanto, as pessoas que tratam habitualmente da dor não a apresentam assim, mas à maneira de um Múcio Cévola(3). Sempre tive aversão àquele tipo de atitude. Queimar minha mão? Não! Fico apavorado, tenho horror ao fogo e não vou pôr nele meu braço! Porém, se eu receber uma graça especial, ponho. Mas numa perspectiva católica, como São Lourenço na grelha.

Há, portanto, atenuantes, acolchoados que nos conduzem àquilo. Não nos apavoremos! A entrada no caminho do sofrimento é, ao mesmo tempo, uma resolução heroica e viril, mas também uma ponderação dos mil acolchoados que entram dentro disso. Do contrário, não se viveu e não se sofreu catolicamente.

Fizemos juntos uma preparação para a entrada da cruz em nossas vidas e para o modo pelo qual devemos ver a cruz. Foi apresentado um equilíbrio entre a luz e a cruz, de tal maneira que se poderia dizer “per crucem ad lucem”(4), mas também “per lucem ad crucem”, que é o reverso da medalha que poucas pessoas consideram.

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 6/12/1985)

1) Mt 27, 46.
2) Do latim: “Pai, se for possível…” (cf. Mt 26, 39).
3) Conta Tito Lívio, historiador romano, em sua obra História de Roma desde a sua fundação, que em 508 a.C. Roma foi cercada por um rei etrusco de nome Porsena. Ante o perigo, um jovem romano chamado Gaio Múcio Cévola se voluntariou a matar o rei. Mas, ao entrar no acampamento inimigo, foi aprisionado. Levado ante o rei e questionado sobre a estratégia dos romanos, Gaio disse: “Sou um cidadão de Roma e vim para matar um inimigo ou morrer com valentia, e muitos como eu estão dispostos a fazer o mesmo.” O rei o ameaçou de queimá-lo vivo se não contasse detalhes dos planos romanos. Então, Gaio Múcio colocou sua mão direita em um fogo que havia ao seu lado, deixando-a queimar até os ossos, diante do rei e de outros nobres assombrados com tal ato de valentia.
4) Do latim: “pela cruz à luz”.

Na extrema aflição, a hora da Providência

Incutir em seus filhos espirituais a mesma confiança sem limites em Deus e na Santíssima Virgem que o animava, era este um dos cuidados constantes de Dr. Plinio. Ótima oportunidade para isto foi-lhe oferecida por uma maravilhosa narração do livro do Conde de Montalembert, “Les Moines d’Occident”, comentada por ele numa das conferências denominadas “Santo do dia”.

O Conde Raul de Chester voltava da Cruzada, na qual havia se coberto de glórias tomando Damieta [no Egito], quando uma violenta tempestade caiu sobre o navio em que viajava.

Eram já dez horas da noite. Como o perigo aumentava a cada instante, o conde exortou, pois, os viajantes a redobrar os esforços [para estabilizar a embarcação] por mais um minuto, prometendo que a tormenta passaria logo. Ele próprio se pôs a manobrar e a trabalhar mais do que os outros. O vento parou dentro em pouco, o mar serenou e, quando o piloto perguntou a Raul porque ele lhe tinha ordenado trabalhar apenas um minuto a mais, o nobre respondeu: “Porque, a partir dessa hora, os monges e outros religiosos que meus ancestrais e eu estabelecemos em vários lugares se preparavam para cantar o Ofício. Sabendo que nesse momento eles estariam rezando, eu esperava do Céu que, graças às orações deles, cessasse a tempestade”.

Embora não falte quem julgue controvertida a autenticidade histórica de acontecimentos como este, é muito provável que as coisas se tenham passado assim como narra o autor, não havendo, portanto, nenhuma razão especial para duvidarmos de sua veracidade. Para os que não têm espírito cético nem incréu, esse é um lindíssimo episódio que indica um igualmente belo princípio da doutrina católica.

Deus, o “vértice” para o qual olham os que oram e os que se afligem

O fato nos apresenta a imagem poética de um grupo de cruzados singrando o Mediterrâneo, numa época em que os meios de navegação eram ainda tão insuficientes que atravessar esse mar constituía uma façanha náutica.

Não é difícil imaginar o aperto da situação: uma forte tempestade que sopra, a nau repleta de combatentes extenuados, alguns feridos, cheia de pesadas armas das quais não podiam se desfazer, atirando-as às águas, pois sempre havia a possibilidade de, ao abordarem em terra firme, necessitarem delas para se defender de algum ataque. É noite, uma noite escura, sinistra, o mar povoado de incógnitas, e a tormenta que uiva e cai sobre os homens, deixando-os apavorados. É uma cena que evoca em algo o episódio da tempestade no Lago de Generazé, quando os Apóstolos se tomaram de medo e foram despertar Jesus, que dormia tranquilamente na barca.

No navio dos cruzados não estava Nosso Senhor, mas “christianus alter Christus”: encontrava-se ali presente um homem de fé, o Conde Raul de Chester. Ele sabe que a gratidão dos verdadeiros religiosos jamais se desmente e que, portanto, pode contar com as orações dos monges que viviam nas numerosas abadias fundadas por seus ancestrais. Ele tem a firme confiança de que, na hora costumeira, começará o Ofício Divino rezado naqueles mosteiros. E tem a certeza de que, desde as primeiras palavras recitadas, essas preces seriam feitas também nas intenções dos nobres fundadores e dos seus descendentes. Logo, nas intenções dele, Raul de Chester, provavelmente o primogênito na linha de descendência.

Então ele pede apenas mais um minuto de atenção, mais um minuto de paciência, de perseverança. Ele luta, mas roga que esperem ainda um pouco, porque a tempestade não demoraria em amainar. A tormenta cessa, e ele diz: “Os monges começaram a recitar o Ofício”. O Mar Mediterrâneo cede.

É o poder da prece, que ignora as distâncias. Naquele tempo de primitivos meios de locomoção, era muito longo o caminho por terra que ia do Mediterrâneo à Inglaterra. Devia ser percorrido devagar, atravessando regiões habitadas por povos muito diferentes e com estradas incertas. Por isso, no episódio do qual tratamos, a extensão que se interpunha entre o cenário da tragédia iminente o mar e os locais onde a salvação devia se operar, isto é, as abadias inglesas, era bastante considerável, física e psicologicamente.

Os monges não sabiam que os descendentes de seus benfeitores estavam em perigo. Tudo os separava, exceto um traço de união, o vértice para o qual as duas partes se voltavam: Deus Nosso Senhor. Os religiosos olham para Deus, ao recitar o Ofício nas intenções de seus fundadores; os cruzados olham para Deus, ao implorar o seu onipotente socorro. Em Deus se encontram a oração daquele que pede e a necessidade do que dela carece. E a prece de uns liberta os outros.

De passagem, é interessante notar uma circunstância que confere ainda maior beleza a esse episódio. A se tomar a narração ao pé-da-letra, é provável que os monges ingleses

 não estavam começando a cantar o Ofício no exato momento em que o imaginava o Conde Raul, devido à diferença dos fusos horários. Ou seja, a hora não podia ser a mesma no relógio (ou outro mecanismo para determinar o tempo) do navio e nos das abadias.

Contudo, Deus, que não se atrapalha com a ciência nem se deixa prender por esses pormenores, quis fazer jogar algo à maneira de uma coincidência de horários na realidade, inexistente e operou essa maravilha cuja narração nos enche de entusiasmo, e da qual podemos tirar algumas lições.

Prevalência da oração sobre todos os recursos humanos

A primeira delas, e a mais importante, é ficar compreendendo a prevalência da oração sobre todos os outros recursos humanos.

O Papa Leão XIII, ao redigir um de seus célebres documentos, escreveu umas frases que nunca mais me saíram do espírito. Dizia ele que, no tempo de seu pontificado, havia muitos homens que agiam para promover a causa católica, porém trabalhavam mais do que rezavam. Ora, afirmava o Pontífice, se esses homens rezassem tanto quanto agiam, obteriam eles resultados maiores do que os alcançados simplesmente pela ação. Porque o grande meio de vitória do homem é a prece. É um meio impreterível e supereminente em relação à ação: ele não a dispensa, ele a prepara e a torna fecunda.

Essa tese vem ilustrada de modo perfeito no episódio que acabamos de recordar. O Conde de Chester foi um cruzado. Atraído pela graça de Deus, ele se dirigiu até o Oriente. Ação. E uma forma de ação das mais belas e nobres, que é a luta por um ideal católico. Ele chega ao Oriente e arranca do poder dos maometanos uma cidade importante: Damieta. Êxito no seu empreendimento. Entretanto, logo se faz patente a necessidade da oração. O Conde tem a sua vida exposta a um perigo imenso, onde quase não lhe adiantaria nenhuma indústria humana: a tempestade açoitando o mar em cujas águas ele navegava de volta para casa.

Como se salvar? Oração. E a prece fervorosa assegura o regresso de Raul à terra de seus ancestrais, a preservação da sua própria vida e a dos seus bravos. Porém, muito mais do que isso, dá um exemplo de como Deus atende as nossas súplicas, e como Ele vela por aqueles que confiam na oração dos outros. Mostra-nos o dogma da Comunhão dos Santos, por assim dizer, funcionando e fazendo com que essas duas formas de heroísmo se encontrem: o heroísmo do cruzado no alto mar, e o do monge pontual na igreja de sua abadia, rezando com fé por aqueles que estão expostos a riscos.

Daí podemos deduzir como é importante nossa vida de oração, como tem um peso inestimável a reza diária do Rosário ou do Terço, e de nossas demais práticas de piedade, desde que imbuídos da certeza e da fé de que, para o êxito da causa católica, esse esforço de oração encerra um valor maior do que o próprio esforço nobre e indispensável da ação. Mesmo quando se trata de grandes guerreiros, que empreenderam feitos extraordinários e conquistaram magníficas vitórias e vantagens para a Igreja, o papel da oração ainda é preponderante. Essa é a principal nota que devemos tirar desse episódio.

Nas horas da extrema aflição, o sorriso de Nossa Senhora

Entretanto, outra lição há para se colher em tudo isso. Por que Deus permitiu que chegasse ao extremo de angústia a situação desses cruzados, para só então intervir?

Exatamente para provar a confiança n’Ele. As horas de extrema aflição são as horas da Providência, são as horas da misericórdia. O verdadeiro católico, quando sabe que tudo está perdido, reza e confia mais do que nunca, porque é a hora do sorriso de Maria Santíssima para ele, assim como o foi para aqueles valorosos guerreiros em meio à tempestade no Mediterrâneo. Quando já não havia mais esperanças nos recursos humanos, Nossa Senhora, a Estrela do Mar, interveio, libertou-os e resolveu a angustiante situação em que se encontravam.

Lembremo-nos sempre disso: nos momentos de nossas maiores provações e aflições, rezemos com redobrado fervor  e  confiança.  Nossa  Senhora  não  tardará  em  nos sorrir.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 36 (Março de 2001)

Frutos esplendorosos do Sangue de Cristo

Segundo o ensinamento da Igreja, no Paraíso Celeste, além da visão beatífica que inunda de gáudio as almas dos justos, há também uma realidade material — o Céu Empíreo — onde Deus semeou maravilhas inimagináveis, para que os corpos ressurrectos vivam imersos num universo físico que lhes fale das grandezas de seu Criador.

Por essa disposição divina percebe-se quão necessário é ao homem alimentar o seu espírito, não só na consideração dos aspectos teóricos e doutrinários da Religião, mas igualmente através das coisas temporais que o façam desejar aquelas superiores belezas da bem-aventurança eterna.

Compreenderam-no muito bem os filhos da velha Europa, a Europa da Civilização Cristã, os quais corresponderam de modo único às graças que receberam da Providência, alcançando realizações magníficas nesta terra. Por isso, até hoje olha-se para os esplendores europeus como para uma espécie de mito que a Religião Católica elevou à condição de ante-câmara ou de “seminário” do Éden celestial.

Tempo houve, pois, em que todo o teor da vida era diverso do de nossos dias, num continente onde foi possível ao homem idealizar e construir um mundo de maravilhas, de coisas arquitetônicas e sapienciais capazes de nos falar do Céu e, ao mesmo tempo, deleitar de maneira virtuosa o “irmão corpo” de quem as contempla. São os símbolos excelentes e nobres daquelas magnificências que nos aguardam no Céu Empíreo.

Dado, porém, que o efeito é sempre menor que a causa, comprazo-me em salientar que a maior dessas pulcritudes da antiga Europa é precisamente o espírito daqueles que as conceberam, as almas sedentas das grandezas celestiais, os corações nos quais se sentia este anseio de modo mais intenso do que naquilo que produziram e legaram à posteridade.

***

Pensa-se nisto, ao considerar uma Sainte Chapelle e o monarca que a construiu, São Luís IX; ao admirar um Eremo delle Carceri e seu mais ilustre habitante, São Francisco de Assis; ou ao examinar a pujança e beleza de formas de uma Torre de Belém, diante da qual poderia se  passar uma noite inteira, sob as refulgências do luar, meditando no heroísmo dos valorosos portugueses de que ela é portentosa expressão.

E por que não lembrar do palácio do Rei Sol, do Versailles de Luís XIV, cujas linhas e arquiteturas, no que têm de virtude e catolicidade, nasceram da Igreja e, a “fortiori”, estavam contidas na mentalidade e no modo de ser dos homens e instituições sagrados que incutiram nos seus artífices o espírito católico? Logo, num São Vicente de Paulo, por exemplo, insigne santo do tempo do pai de Luís XIV e que frequentava a corte, proporcionando uma abertura de alma para as virtudes que realizaram Versailles.

O mesmo se poderia dizer do Escorial, concebido por Felipe II de Espanha, o qual era mais “Escorial” que todo o seu famoso palácio. E como não imaginar a influência sobre essa idealização de uma alma que sobrepujava a do próprio Rei: a grande Santa Teresa de Jesus, ela mesma um “Escorial do Céu”?

***

Portanto, na causa de tantas maravilhas que duram há séculos e que ainda hoje encantam o mundo, havia toda uma estrutura moral, virtudes e qualidades de alma, havia um portentoso vínculo entre Igreja, Religião e civilização, concorrendo para realizá-las.

Para se dizer tudo, havia o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e as lágrimas de Nossa Senhora, fontes de graças inapreciáveis que fecundaram e geraram um mundo inteiro posto na perspectiva das grandezas eternas, apetecendo-as e procurando espelhá-las do modo mais perfeito possível nesta terra de exílio.

***

E assim são os esplendores da Europa cristã, da Europa sacrossanta, cujos passado e relíquias nos enchem do desejo de, ali chegando, oscular o solo em que primeiro pousam nossos pés. Porque, seja como for, é a parte do mundo por excelência onde os sofrimentos de Cristo e as dores de sua Mãe Santíssima engendraram uma grandiosa civilização, antecâmara do Paraíso Celeste.

Arca da Aliança e velo de Gedeão

No Ofício consagrado a Nossa Senhora, Ela é cognominada Arca da Aliança e Velo de Gedeão. Conforme prefigurado pelo manto deste guerreiro bíblico, apenas Maria Santíssima foi isenta, desde o momento de sua concepção, na mancha original, enquanto toda a terra a seu redor estava úmida de pecado. E porque concebida sem mácula, na alma d’Ela estão gravados os Mandamentos do Altíssimo, de modo mais perfeito do que nas tábuas de Moisés, encerradas na Arca da Aliança.

É a partir do Imaculado Coração de Nossa Senhora que, pelo ministério da Santa Igreja Católica, a Lei de Deus se irradia para a humanidade inteira.

Ardorosa certeza

Na hora trágica da dúvida e do abandono, enquanto o Corpo do Redentor jazia no sepulcro, para todos tudo parecia acabado. Todos, exceto Aquela em cuja alma a crença nas promessas divinas jamais vacilara. Como uma tocha de fé e de convicção, Maria Santíssima ardia na certeza de que Nosso Senhor ressuscitaria conforme dissera. Fé sem sombra de hesitações. Certeza absoluta. E uma expectativa imensamente dolorida (porque pensava nos cruéis padecimentos de seu Filho), mas imensamente calma, serena, porque confiante na vitória d’Ele que se aproximava.

“Durante a noite que é belo acreditar na luz”, escreveu o poeta. Na noite mais escura da história cristã, só a Virgem acreditou na luz. Por isso, foi esse um dos mais belos instantes de sua gloriosa existência…

Hosana

Passar por reveses, derrotas, angústias, ansiedades, ver-se à beira da extinção, diante de imensos perigos, enfrentar aparentes decadências e, entretanto, pela graça de Deus acabar vencendo — eis o sentido cristão da palavra “admirável”. Exemplo paradigmático, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os maiores milagres, os maiores êxitos, uma verdadeira aclamação como Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e uma súbita e inesperada derrocada que desfecharia nas dores e aflições da cruz. Pouco depois, o espetacular triunfo da Ressurreição. Isto é ser, na inteira força do termo, admirável!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A verdadeira devoção a Maria

Damos início neste número à publicação de alguns trechos dos comentários de Dr. Plinio ao “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, escrito por São Luís Maria Grignion de  Montfort. Conhecida por Dr. Plinio quando moço, esta obra era por ele considerada como um marco fundamental de sua espiritualidade.

 

São Luís Maria nos explica o motivo que o levou a escrever o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser” (nº 12). 

Eis a razão da introdução e de todo o livro. Maria Santíssima é desconhecida, e deve ser conhecida, pois assim virá o reino de Cristo. O livro se destina, portanto, a propagar a devoção a Nossa  Senhora para que venha o reino de Nosso Senhor. Por “desconhecida” entenda-se “muito menos conhecida do que sua excelência e seus admiráveis predicados exigem”. 

Trata-se, por conseguinte, de uma obra de larga visão e alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, através da devoção a Maria Santíssima. 

O fundamento teológico, São Luís Grignion o coloca no tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo”, isto é, se Maria Santíssima não tivesse existido, Jesus Cristo não teria vindo; “e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve expandir-se a toda a humanidade por intermédio de Maria Santíssima. Difundir a devoção a Nossa Senhora é, pois, nesta perspectiva, de importância capital. O afervoramento da piedade: passo essencial Esse objetivo de São Luís Grignion se presta desde logo a um comentário. 

O Santo profeta se propõe a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial,  importante, urgente, e que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: difundir a perfeita devoção a Maria. 

A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização baseada nos princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência.

Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos. O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, nos fundamentos religiosos da vida de um povo. O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, educar na piedade, formar caracteres; as outras coisas são conseqüências, complementos, importantes realmente, mas complementos.

Eis a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do Tratado, e depois desenvolve mais longamente: na formação dos caracteres a condição básica e indispensável é a devoção a Nossa Senhora. Possuindo-a de modo autêntico, as pessoas terão todos os meios sobrenaturais necessários para, com a correspondência da vontade, florescerem. Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição vital para tudo quanto diz respeito à salvação individual e da civilização, bem como à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante. 

São Luís Grignion tinha, pois, em mente, com este livro, fazer uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros. Cabe-nos, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora por ele pregada. Em outros termos, fomos chamados pela Providência para uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção. Sendo ela, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, se queremos com este escopo trabalhar, é necessário ir em busca desta devoção.

O Tratado não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode ou não ter, indiferentemente, “conditio sine qua non” para nosso trabalho. E só a atingiremos no mais alto grau, utilizando a forma com os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort;

Maria é a obra-prima do Altíssimo

Escreve o Santo: “Maria é a obra prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si” (nº 5).  Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que São Luís Grignion, sendo apenas um seu pequeno menestrel, é quase inesgotável quando fala d’Ela. Ele afirma ser Nossa Senhora tão extraordinária, colossal — pouco dizem estes adjetivos, aos quais de longe Ela transcende — que só Deus conhece em toda a extensão suas perfeições. Não podemos sequer ter uma pálida ideia disto. Há n’Ela belezas, culminâncias, encantos, perfeições, excelências 
que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e são somente por Deus contempladas. Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas que o  homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, cujas maravilhas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus:  assim é Maria Santíssima. 

N’Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a seus pés, compreendendo que, após ter entendido muito, quase nada compreendemos. Estamos sempre no seu pórtico, que é para nós demasiadamente grande, tal a sua excelência.  

Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus — pensamento aliás muito louvável — sabemos contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros do céu e do que todos eles no seu conjunto? Porque, sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, grandeza, excelência que Deus colocou no firmamento é pequena em relação às postas n’Ela pelo Criador; este céu não é senão uma imagem, uma figura da magnificência de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n’Ela há, excede muito em perfeição todas as belezas criadas, de um modo inexprimível. Continua São Luís Grignion: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprovou humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher — mulier — (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma estrangeira, conquanto em seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens” (nº 5). O Santo defende aqui a ideia de que, durante sua vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele A conhecia.

“Maria é a fonte selada (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar” (idem). É o retorno à ideia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus.

“Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins…” Os anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste. 

Porém, tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela se ajoelhou, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias de suas aparições, os homens julgavam tratar-se do próprio Deus. E no Céu há miríades de anjos. Em que assombro ficaríamos se os víssemos todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está  acima de todos eles reunidos. Assim, diante de sua insondável alma, deparamo-nos novamente com termos de comparação, embora os melhores que possamos empregar, imperfeitos e totalmente insuficientes. 

“…e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio”. Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora. Tais criaturas, o Santo no-lo explica, são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora conforme o modo especial por ele ensinado. E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, possuirão este dom; por isso, serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem. Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora.

O paraíso do novo Adão

Continua São Luís Grignon: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão…” 2 (nº 6). 

O paraíso terrestre era cheio de encantos, delícias, perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima de modo análogo àquele — excelente e perfeito — com que Adão permanecia no Éden. Portanto, durante  gestação, Nossa Senhora era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo. Quando, na comunhão, recebemos este mesmo Jesus Cristo acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos o que Ele achará da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos, a Ele que condescende em descer à nossa choupana, o modestíssimo luxo de uma casa limpa? “… no qual Este se encarnou por  obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis…” 

Nosso Senhor, durante sua vida em Maria Santíssima — e esta é uma belíssima ideia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde —, quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas. 

São Luís Grignion compôs inclusive uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima — “O Jesu, vivens in Maria”… “É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. 

É a magnificência de Deus (Ricardo de S. Lourenço, De Laud. Virg., lib IV.), em que Ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e n’Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: ‘Fecit mihi magna qui potens est’” (Lc 1, 49).

O sentido inteiro do cântico do Magnificat só o entenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso nos lembrarmos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n’Ela operou. “O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno”. Se antes o Santo nos falou que Deus concede a pessoas privilegiadas o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção, agora se refere a uma geração (no sentido teológico e não biológico) que por sua maldade, impureza, indignidade, de detesta tudo isto. É o reverso da medalha. 

A devoção mariana é característica de todos os santos 

Afirma São Luís: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes — eles o confessam — que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos” (nº 7). 

Esse trecho nos evidencia uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion, ou levado por ele ao último grau de intensidade. A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos. E, embora não se possa dizer que todos a tenham conduzido ao ponto levado por São Luís Maria, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, a qual é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor.

Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares. É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha cultivado um aspecto novo de piedade em relação à Nossa Senhora. E nenhum deles desconhece dever à intercessão d’Ela, não só seu progresso espiritual, mas até mesmo sua perseverança. 

Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d’Ela. São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação. Pensando no assunto, ficou quase tragado pelo abismo do tema e foi duramente assediado pelo demônio, o qual lhe insuflava que estava condenado. Isto lhe causou uma tremenda depressão. Começou a emagrecer, perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma. Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe, ainda que tivesse de ir para o inferno, lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra — pois seu pavor do inferno não provinha do tormento, mas da ideia de ultrajar eternamente a Deus — e recitou a ração
“Memorare o piíssima Virgo Maria”, a qual estava escrita no pedestal da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável; percebeu então, claramente, o jogo do demônio de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de sua vida espiritual.

Encontramos, assim, na existência de todos os santos, esta constante de uma particular devoção a Nossa Senhora. Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua. Seria sofisma dizer: algo que é especial para todos não o será, por isso, para ninguém. A isto se pode responder: uma mãe com muitos filhos tem, para cada um deles, um carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular. Assim, cada um de nós deve amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho, que não será genérico, como de quem dissesse: “Eu amo toda aquela gente”; mas sim um afeto particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

SOBERANA INTERCESSORA

No alto do Calvário, Maria teve presente a vida de todos os homens que passaram e passariam sobre a Terra, até o fim dos tempos. Ela conheceu as virtudes de cada um, assim como seus lamentáveis pecados. E a cada um amou, por todos rezou, e para todos alcançou o perdão de seu Divino Filho, que acabara de ser imolado na Cruz. Mais do que nunca, com o Redentor exânime em seus braços, Ela era a nossa soberana intercessora, a incansável medianeira que jamais abandonou e jamais abandonará qualquer homem.

Plinio Corrêa de Oliveira 

O mundo aos pés do Trono da Verdade

Já tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais Dr. Plinio manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão, pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo para o “Legionário” em 1946.

 

As notícias provenientes da Cidade do Vaticano informam que o Corpo Diplomático junto à Santa Sé fez uma démarche coletiva para obter da Secretaria do Estado o privilégio de participar de Consistório em que vão ser concedidos os chapéus vermelhos aos Cardeais recentemente nomeados. A atitude dos diplomatas não terá sido tomada sem o consentimento, pelo menos tácito, dos  respectivos governos. 

Assim, pode-se considerar que quase todas as nações do mundo  quiseram expressamente estar presentes àquele ato, manifestando de modo delicado e nobre, seu agradecimento pela honra que o Papa Pio XII lhes concedeu, com a internacionalização ainda mais ampla do Sacro Colégio.

Por sua vez, este gesto vem demonstrar o alto grau de importância moral e política que todos os governos do mundo reconhecem ao Papado. 

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma talvez, a universalidade da Igreja se tenha patenteado de modo mais evidente. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos. 

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da terra. Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas  fortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja ajudada por Deus chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos
corações. 

Do esplendor desta magnifica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”! Do que adiantou a [tantos inimigos] investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou […] procurar infiltrar-se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram.

Está dito, porém, que as alegrias neste vale de lágrimas nunca serão completas. Uma sombra passa diante de nossos olhos. Se é tal, tão universal, tão incontrastável o prestígio da Igreja, como explicar que ela esteja à margem da Organização das Nações Unidas? Como explicar que, precisamente neste fastígio de sua universalidade, ela seja mantida à margem da universal organização dos povos? Se a circunda uma auréola de prestígio, é impossível não reconhecer que é no exílio, é fora de seu trono natural, que é a presidência das nações cristãs, é fora  de tudo isto, que nasce em torno dela este arrebol de glória. Extraordinária expressão de sua força, que brilha até mesmo no isolamento. Mas motivo não menos extraordinário para que temamos por esta humanidade que vê a Luz, mas que não se utiliza dela para “iluminar a casa inteira”, para iluminar e dirigir a sociedade universal das nações. […] 

Como de direito, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia” (Onde está Cristo, aí está Deus; onde esta a Igreja, aí está Cristo; onde está Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus. Dizem as notícias telegráficas que o Santo Padre pronunciará nesta ocasião um discurso de grande importância, seguido poucos dias depois de mais outro, igualmente importante. Aguardamos sua palavra com amor e confiança. Amor e confiança que, como de costume, se traduzem num inabalável propósito de adesão e submissão. 

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo- lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos; significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro, e o que ele ensina e a nossos olhos mortais pareceria fraco e errôneo. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 706, de 17/2/1946. Título nosso.)

IX Estação: Jesus cai pela terceira vez

Nesta meditação extraída de uma Via Sacra composta por Dr. Plinio em 1943, ele nos ensina a evitar uma concepção errada sobre uma importante virtude cardeal: na maior parte das vezes é mais  prudente recuar do que avançar.

 

Há mistérios que o vosso Santo Evangelho não narra. E entre eles eu gostaria de saber se me engano ao supor que essa vossa terceira queda foi feita, meu Senhor, para expiar e salvar as almas dos prudentes. 

A prudência é a virtude pela qual escolhemos os meios adequados para obter o fim que temos em vista. Assim, os grandes atos de heroísmo podem ser tão prudentes quanto os recuos estratégicos.

Se o fim é vencer, em noventa por cento dos casos é mais prudente avançar do que recuar. Não é outra a virtude evangélica da prudência. 

Entretanto… entende-se que a prudência é só a arte de recuar. E, assim, o recuo sistemático e metódico passou a ser a única atitude reconhecida como prudente por muitos de vossos amigos, meu Senhor. E por isto se recua muito… A realização de uma grande obra para vossa glória está muito penosa? Recuasse por prudência. A santificação está muito dura? A escalada na virtude multiplica as lutas em vez de as aquietar? 

Recua-se para os pântanos da mediocridade, para evitar, por prudência, grandes catástrofes. A saúde periclita?  Abandona-se, por prudência, todo ou quase todo apostolado, mediocriza- se a vida interior, e transforma-se o repouso no supremo ideal da vida, porque a vida foi feita, antes de tudo, para ser longa. Viver muito passa a ser o ideal, em vez de viver bem. 

O elogio já não seria como o da Escritura: “Em uma curta vida percorreu uma longa carreira” (Sab. 4, 13). Seria, pelo contrário, “teve longa vida, para o que teve a sabedoria de renunciar a fazer uma grande carreira nas vias do apostolado e da virtude”. Vidas longas, obras pequenas. E vossa prudência como foi, ó Modelo divino de todas as virtudes?

Quantos amigos tendes, que Vos conselhariam a renunciar quando caístes da primeira vez? Da segunda vez, seriam legião. E vendo-Vos cair pela terceira, quantos Vos não abandonariam escandalizados, achando que éreis  temerário, falto de bom senso, que queríeis violar os manifestos desígnios de Deus!? Que esse passo de vossa Paixão nos dê graças, Senhor, para sermos de uma invencível constância no bem, conhecendo perfeitamente o caminho do verdadeiro heroísmo, que pode chegar a seus limites mais extremos e mais sublimes sem jamais se confundir com uma vil e presunçosa temeridade. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 18/04/1943)