O mistério da vida…

Quem nunca terá pensando no que consiste a vida? Analisá-la em seus mais variados graus pode deixar qualquer um estarrecido diante dos mistérios que ela contém. Diante de tão interessante tema, Dr. Plinio discorre magnificamente à maneira de um navegador que perscruta os mares desconhecidos.

 

O tema a respeito do qual me pediram que tratasse é de tal vastidão, imensidade e complexidade, que se fizéssemos um simpósio de um ano não teríamos senão aflorado o assunto.

Considerações sobre heráldica

Imaginemos, por exemplo, um leão heráldico. O leão é, sem dúvida, um espécime magnífico do que a vida pode produzir. Como a figura desse animal, pintada sobre uma superfície, é pouco em comparação com um leão de verdade! Entretanto, ela tem, sob certo ponto de vista, uma beleza maior do que o próprio leão vivo, pois apresentando suas formas de modo mais característico, pode ele ser mais bem compreendido. E, para se entender bem uma série de leões vivos, nada melhor do que ter visto um leão bem pintado.

Representar bem um leão, procurando, não propriamente imitá-lo, estilizá-lo, mas sublimá-lo, é o que faz a heráldica. Através desta, tudo é idealizado de um modo esquematizado, captando ao mesmo tempo a anatomia e a fisiologia; mais ainda, aquilo que se poderia chamar a vitalidade e a “mentalidade” do animal. E, se olharmos para cem leões vivos, teremos aprendido menos do que vendo um leão heráldico.

Leão heráldico, tintura-mãe da “leonicidade”

O que de misterioso tem a vida do leão, por onde ele parece melhor, em alguns aspectos, quando não está vivo, mas esquematizado? É que ele foi visto, considerado, por um ser com um tipo de vida mais alto, que é o homem. E o leão, depois de ter formado uma imagem na mente humana, ter criado no espírito humano uma impressão tão forte, propiciou ao homem talentoso, após uma análise, a vontade e os meios de exprimi-lo.  E isto pintado pelo homem tem, sob certo ponto de vista, mais vida do que propriamente quando vivo no leão.

Por quê? Porque a imagem do leão desprendeu-se deste e entrou na mente do homem, passando assim para um circuito e um grau de vida superior. O leão corre, salta, ruge, mas não entende a si próprio porque ele não entende nada. Mas alguém que entende e tem, portanto, um grau de vida incomparavelmente mais elevado, olhou para o leão e tirou de dentro dele algo mais alto do que o próprio leão e pintou este algo. Assim, o que há de precioso na vida do leão, mas meio escondido, disfarçado, a vida da alma conseguiu apresentar melhor à nossa atenção.

De maneira que o pensamento de quem concebeu o leão heráldico, hirto, “figé”(1), faz com que este seja como que o leão dos leões, uma tintura-mãe da “leonicidade”. O conceito de leão deixou de ser um leão concreto e passou a ser um leão de quintessência.

Talento de um pintor ao representar uma fisionomia

Outro dia, ao folhear um álbum e deparar-me com uma pintura representando uma mulher, eu pensava o seguinte: “O imponderável de um talento! A fisionomia desta mulher é de uma velha, mas neste rosto o artista pintou uma pele de moça”. Aquilo produzia uma sensação de contradição, que causava mal-estar.

Entretanto o mais curioso é que a pele, sendo ao mesmo tempo de moça, tinha qualquer coisa de ensebado, de uma pessoa que se lava pouco. E de uma forma de ensebamento que dá um brilho falso e ruim à pele. Não era o brilho da limpeza, mas um lustre de sujeira que foi aplicado naquela pele de moça.

Que talento tem aquele pintor para saber exprimir, por meio de tintas sucessivas sobre uma superfície lisa, até a sensação da ligeira pátina de sujeira que pode tornar repugnante a pele mais brilhante! O que há na pele de uma pessoa que parece agradável de ver, e o que nela existe por onde engendra algo que lhe é mortal e, se ela deixa durar, a torna repugnante? Que quintessência de talento precisa ter um homem para saber ver isto e passar, por cima de uma pele que ele pintou, não sei que lustrina ou verniz imitando exatamente a sujeira! Que tesouros de observação tem ele sobre a vida! O que existe na vida humana, por onde ela algumas vezes frutifica a plenitude de si mesma, e outras vezes produz sua própria deterioração e degenerescência? Fonte, ao mesmo tempo, do que há de mais admirável e mais repugnante? De uma pedra não sai nada de repugnante, também não emerge nada de admirável.

 Alguém poderia dizer:

— O brilho!

Eu digo:

— O brilho é uma coisa admirável, mas é algo que, posto na pedra, ela devolve. A pedra é inerte, não tem vida. O homem, entretanto, para elogiar um olhar, diz: “Esse olhar é brilhante”. Mas o olhar vivo é tanto mais, que ele nunca elogiará um brilhante dizendo: “Parece o olhar”.

Um dos brilhantes mais conhecidos e bonitos, o “Koh-I-Noor”, está na coroa da Rainha da Inglaterra. Pode-se fazer daquele brilhante qualquer elogio, afirmar que ele lembra uma inteligência rútila etc. O olhar humano tem tal vida que se pode dizer a uma pessoa: “Seus olhos são como o “Koh-I-Noor”. Mas não se pode afirmar a este último: “Tu és como um olho!”

Metáfora da floresta

Quais as reciprocidades, qual o jogo das analogias, o que é, no fundo, esse mistério da vida que se oculta e se mostra de um modo fugaz em todos esses exemplos que apresentei, de maneira a termos, ao mesmo tempo, a impressão de apanhar coisas finas e definidas, mas, quando se vai apalpar, vê-se que algo foge, é indefinido e resiste a qualquer definição?

Com efeito, a palavra “vida” não se define, e também o vocábulo “morte”; sendo a morte a cessação de algo que não é definido, ela mesma não pode ser definida. Porque o termo “não”, posto diante do indefinido, não define o indefinido.

Isso não nos impede de ter certa noção de vida e de vitalidade. Que uso fazer dessas noções, tendo em vista as finalidades para as quais estamos reunidos aqui? O que é a vida natural da alma? O que é vida sobrenatural? O que é a vida de Deus? O que é vida?

Aí nós esbarramos com um mistério; podemos apalpá-lo, como faz um cego, mas sem o ver, e é para apalpações que vos convido nesta reunião. Apalpações que faremos tanto quanto possamos, não procurando abarcar o tema inteiro.

Realizaremos algumas incursões no assunto, à maneira de um viajante que penetra numa floresta grande demais; ele sabe que jamais poderá percorrê-la inteira, mas, para ter algumas ideias a respeito da floresta, nela faz algumas incursões. Depois disso, ele não sai com um mapa da floresta, mas leva na alma exemplos do que há dentro dela, algumas noções sobre a vida da floresta. Percebendo que a floresta era variável quase ao infinito, ele compreendeu que as incursões o ajudariam a ter uma ideia dela, a qual é mais rica do que se apenas a contemplasse de fora para dentro.

A vida é uma floresta; alguns estão no meio da picada, outros perto do fim, e outros no começo, mas a picada é a mesma. Convém fazer nela, de um lado ou de outro, incursões, apalpar pontos, a fim de extrair ideias e depois fazermos algumas considerações. Mais do que isso não nos permite o tempo, ainda mais numa reunião como esta. Vou tomar a vida de baixo para cima, desde o que ela tem de mais elementar e mais simples, até chegarmos ao mais complexo.

Modo de agir dos antigos navegantes portugueses

Empregaremos a marcha de “proche en proche”. O espírito humano funciona exatamente à maneira dos antigos navegantes portugueses, que chegaram até a Índia. Eles desciam um trecho ao longo do litoral africano, depois voltavam para Sagres e desenhavam o mapa. Descansavam e desciam mais um tanto. Regressavam e anotavam o que tinham visto, em conexão com o anteriormente feito. E assim, navegando de ponto em ponto, chegaram até a dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Lá, eles estavam tão longe que o caminho da certeza já não lhes era possível. Em vez de voltar para Sagres, resolveram seguir em frente. No Cabo, segundo Camões, apareceu o gigante Adamastor para intimidar o gênio lusitano. Nossos ancestrais portugueses vararam o espectro do Adamastor e entraram pelo Oceano Índico. Então, mais valia a pena continuar, e assim chegaram à Índia; e mais tarde até a China e o Japão.

Há certo ponto atingido pelo espírito humano, do qual ele não volta atrás para formar certezas, mas embarca nas hipóteses. Ou ele, pela experiência, encontra a certeza na ponta da hipótese, ou não sossega, não se sente satisfeito. Vamos então viajar um pouco e lançar algumas hipóteses; assim teremos obedecido à segurança e à ousadia do gênio luso, do qual tantos de nós procedemos.

A pedra, a grama, o homem

Consideremos a coisa mais simples, comum, que a ordem natural pode oferecer aos nossos olhos. Imaginemos que um indivíduo, andando pelo campo, encontre uma pedrazinha sobre uma graminha. Quantas pedrinhas e graminhas haverá pelo mundo?  Só a sabedoria divina conhece.

Sendo reflexivo, ele se detém e vê que a pedrinha está colocada ligeiramente em cima da grama, a qual cresceu inicialmente sob a pedra, fez algumas voltas e continuou a se desenvolver.

O indivíduo tem uma impressão de superioridade e, ao mesmo tempo, de inferioridade da pedra. Esta pesa sobre a planta de tal maneira que a tornou torta; a pedra é, portanto, mais forte do que a planta.

Entretanto, a planta tem algo dentro de si por onde ela não se conforma com a pedra; apesar de ser mais fraca, ela empurra a pedra como que com o cotovelo. Ela se adapta à forma da pedra e encontra o caminho do sol. A grama tem uma superioridade de outro gênero, que só uma palavra, de quatro letras, pode explicar bem: “v”, “i”, “d”, “a”. Ela tem vida, e por isso resiste, encontra um caminho, se esgueira, fura e brilha à luz do Sol, embora a pedra queira atrapalhá-la.

E a pedra, que foi colocada ali, fica estupidamente naquele local, se ninguém a retirar, enquanto o mundo for mundo. Se for uma pedra enorme, ela pode comprimir tudo quanto é vivo. Mas se quem tem vida não se deixar comprimir por ela, o ser vivo é tão superior à pedra que faz dela o que entende.  Assim, se compreende o que é a matéria não-viva, e se tem um sinal do que é a vida.

O Pão de Açúcar, por exemplo, tão colossal. Quantos milhares de homens ele esmagaria; entretanto, chegou um dia em que o homem conseguiu esticar um fio até seu topo e fazer passar uma carreta, dominando o Pão de Açúcar, servindo-se dele para um passeio. E o Pão de Açúcar não pôde nem mover-se.

Embora enorme e majestoso, ele não sentiu sequer o que lhe acontecia. E essa formiga chamada homem construiu um torreão em cima dele, amarrou-o com um fio de linha e se diverte com ele.

O que é então a vida?

Heliotropismo

No que diz respeito ao vegetal, a vida se apresenta — estou indicando sintomas externos — como uma possibilidade de tirar de si mesmo uma mudança de sua situação. A planta cresce, se desenvolve, fenece. Ela existe dentro do tempo, está sujeita a mil condições, a mil infortúnios, mas de si tem uma coisa que o mineral absolutamente não possui: uma energia pela qual, por um princípio que lhe é próprio, crava raízes na terra e seleciona o que lhe convém. Ela se expande na direção dos minerais que lhe são úteis.

O melhor dos mineralogistas não conhece tão bem os minerais como uma planta, incapaz de conhecer-se a si própria ou qualquer outra coisa. E o trabalho dela, por debaixo da terra, é de antenas delicadas, por onde ela faz esta coisa admirável que o ser inerte não é capaz de realizar: encontrar, sugar e transformar em si mesma algo que não é ela.

Quer dizer, ela faz um encontro e um trabalho de assimilação, de apropriação, que é o crescimento dela. E, da noite de suas raízes, ela tira a parte dela que brilha e frutifica.

O mais extraordinário é que ela não conhece nada; a planta não tem nem sequer sensibilidade. E sem ter sensibilidade ela, entretanto, porque tem isto chamado vida, possui determinada ordenação por onde pega o que lhe convém e se desenvolve.

O heliotropismo é a procura que a planta faz do sol. Algumas até giram, fazem torções para encontrar o astro rei, como o girassol. Se alguém quisesse caricaturar o Sol, imaginaria o girassol, que é a figura do bajulador procurando imitar o bajulado, voltando-se para este, mas sem conseguir imitá-lo em nada; sol vulgar, rasteiro, amarelo, quando o outro é dourado. O girassol tem uma bordadura que imita o dourado e um cebolão marrom, no seu interior. O marrom é o estado plebeu do ouro e o estado mortal do amarelo. 

O que é propriamente o heliotropismo? Os cientistas já o estudaram. Eles conseguem tornar tantas coisas sem graça; entretanto, aprofundando-se o que dizem, pode-se verificar a existência de alguma graça no assunto. O Sol traz consigo certas transformações do ar e determinados graus de calor necessários para que a planta, a qual, movida pela vida, procura — notem bem — a sua própria conservação e seu próprio desenvolvimento. Trata-se, portanto, de uma forma de energia nascida de dentro do próprio vegetal, que procura sua conservação e depois a plenitude — o que não se conserva não alcança a plenitude; mas às vezes o que não alcança a plenitude, se conserva. Isto que está na planta, e dessa forma se desenvolve, o que é?

A graminha e o “Koh-I-Noor”

É um mistério. Mas um mistério ordenadíssimo, que torna o vegetal muito superior ao mineral e faz da graminha — mesmo a mais insignificante, que não é alimento para o nobre cavalo, nem tapete para um leão, mas comida de formiga — algo intrinsecamente mais nobre do que o “Koh-I-Noor”.  Este não reage, não opera, não cresce, não tende para perfeição nenhuma, é parado; dentro dele não habita nenhuma energia vital. A planta, porque é capaz dessas coisas, vale mais que o “Koh-I-Noor”. Isso de tal maneira é verdade que se imaginássemos dois artistas, um fizesse o “Koh-I-Noor” e o outro elaborasse um vegetal, diríamos que muito maior é aquele que soube fazer uma planta. Em outros termos, a grandeza de Deus se reflete muito mais numa plantinha feita para alimentar formiga do que no “Koh-I-Noor”.

O “Koh-I-Noor” vai para a coroa da Rainha da Inglaterra. A graminha… Se um lacaio relaxado deixar que uma graminha fique no caminho da Rainha, no dia da coroação ou da inauguração do Parlamento, ela pisa em cima da graminha sem perceber. Ela calca o tesouro, mas leva sobre a fronte a coisa secundária!

Metafisicamente falando, a obra-prima de Deus é mais a graminha do que o “Koh-I-Noor”. De fato, o Criador colocou as coisas graduadas para nossas vistas, de maneira a podermos percebê-Lo mais no “Koh-I-Noor” do que na graminha; mas na realidade a graminha é mais do que o “Koh-I-Noor”.

A graminha não sabe nada, mas dela se pode dizer o que Nosso Senhor afirmou sobre os lírios do campo: “Olhai para os lírios do campo, não tecem nem fiam, entretanto Salomão, em sua grandeza, não se vestiu como eles!”(2). Poderíamos dizer: “Olhai para a graminha, não tem ciência nem sensibilidade, entretanto nenhum botânico sabe, com tanto acerto, o que convém a ela; a graminha procura nas trevas, na escuridão, aquilo que lhe convém e o encontra”.

Gramado de uma grande fábrica

Considerem uma fábrica moderna fabulosa. Ela não realiza o que faz uma graminha, quando deita um milímetro a mais de seu próprio vegetal.

Houve até quem dissesse que os vegetais eram fábricas feitas por Deus: por ordem de seu Criador, a natureza fabricava coisas que o homem não sabia produzir. A comparação só não me agrada porque diminui a importância da grama. A vida, que está no vegetal, é mais do que algo organizado pelo homem para produção de caráter material, remexendo coisas minerais, químicas etc.

Imaginem uma fábrica na qual há um gramado. Quem haveria de dizer que, no fundo, o gramado é mais do que a fábrica? Um técnico poderia explicar tudo o que se faz na fábrica, mas nenhum grande cientista seria capaz de dizer o que é a vida que anima aquele gramado.

Se compreendêssemos a lição de sabedoria que Deus nos dá! Enquanto estamos aqui conversando, a grama de nosso jardim está respirando. O Criador sabe o que cada folha de vegetal está fazendo, por causa desta vida que lhe deu. E numa hierarquia tão bem calculada que cada vegetal faz tudo quanto está na sua natureza, mas não sobe um milímetro, um grau, além de sua natureza; faz o que está de acordo com a ordem vegetal, mas não é capaz de realizar nada de animal; pelo contrário, serve de moldura e de comida para o animal. O gramado é um banquete das formigas e dos passarinhos, e não vive senão voltado para os seres de ordem superior. Então compreendemos que tesouros da sabedoria divina existem num simples canteiro.

Glorificar a Deus por ter criado os vegetais

Se fôssemos capazes de entender isto, nos ajoelharíamos e glorificaríamos a Deus pelo que a planta faz na sua raiz e na parte que aparece acima da terra. Diríamos:

“Meu Deus! Vós fizestes, entre outras coisas, as plantas tão feias na sua raiz e tão belas na parte que aparece. Mas, de outro lado, para que vossas regras, dentro do imobilismo de certos padrões, tivessem todas as mobilidades possíveis, fizestes em algumas plantas raízes tais que elas formam os mais bonitos parques para os palácios.

“E algumas dessas raízes se comparam ao trigo, para alimentar o homem: o cará, a mandioca, a batata e tantas outras. Vós quisestes que a planta, às vezes, desse no fundo da terra aquilo que ela costuma apresentar, a título de fruto, balançando ao céu. Desejastes fazer tudo isso diverso e, apenas neste grau primeiro de vida, nos destes uma possibilidade quase infinita de meditação.

“De todo esse formigamento de vida, Vós sois o Autor. Mas um Autor sem esforço, sem o trabalho da aplicação, que faz tudo isso com a serenidade e a facilidade que nenhum de nós homens conhece.”

Eis aí uma primeira noção da vida, que nos aproxima diretamente de Deus. E nos faz compreender que esse primeiro degrau da vida, debaixo de certo ponto de vista, já é um santuário. Nós nos sentimos pequeninos, desconcertados, mas temos uma experiência interna curiosa. Olhando para a planta, na perspectiva em que estou falando, nós dizemos: “Como somos grandes em relação aos vegetais!”

O que qualquer homem é capaz de falar sobre uma planta, ou fazer dela, é uma coisa fenomenal! Pobre planta! Mas Deus põe ali mistérios, perto dos quais somos pequeninos e então dizemos: “Aquele que conhece o que não conhecemos e fez o que não podemos fazer, e nos fez a nós mesmos, é superior a nós, assim como somos superiores à planta”

Podemos então imaginar, vagamente, como Ele nos vê. Somos incomensuravelmente superiores a um vegetal, o Criador é infinitamente superior a nós. Como será Ele, que criou a mim e a planta, e fez que eu pensasse o que acabo de dizer sobre ela, e quis esse contraste, essa comparação, para que me reportasse a Ele, tivesse uma figura d’Ele, e me enchesse de respeito e de amor para com Ele, mas me sentisse face a Ele menor do que a menor das plantas diante do Himalaia? Oh, meu Deus! Que lição! E quanta sabedoria d’Ele para que, sem me revelar nada, nem me falar nada a não ser o que está nos livros da Revelação, entretanto, me desse um espírito por onde eu fosse capaz de calcular tudo isso e ver quem Ele é!

O homem criou uma planta imaginária: o lírio heráldico

Deus aparece ao homem e lhe diz algumas coisas a respeito da vida que Ele criou; mas não se sabe quando surgiram os seres vivos. Que coisa gloriosa o homem receber essa comunicação de Deus! E como Deus me amou fazendo com que eu conhecesse tal comunicação; e, de outro lado, deu-me inteligência por onde algo eu descobrisse e me dignificasse. Porque descobrir não é de nenhum modo criar, mas tem analogia com criar. E o Criador, que é infinito, deu-me a possibilidade de fazer essa analogia.

Um homem colhe uma planta, um lírio, por exemplo, e o transforma num lírio que não existe: o lírio da heráldica. Esse homem criou uma planta imaginária. E nisso ele se parece um pouco com Aquele que criou a planta real.

Isso é uma analogia que Deus, a propósito dos vegetais, bondosamente concedeu ao espírito humano.

É bonito receber a Revelação! Mas também é bonito andar com os passos da inteligência e construir uma determinada coisa. Como é bonito viver! Porque isso é viver. E como é bela a vida!  v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1980)

Revista Dr Plinio (Abril de 2011)

 

 

1) Fixo, imobilizado.

2) Mt 6, 28-29.

O perigo começa com a vitória! – II

Após analisar a primeira fase medieval, Dr. Plinio nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se a corrupção da sociedade.

 

Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornado progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado.

Tratava-se de um relaxamento e não uma deliberação explícita em fazer o mal

É uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, que já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar.

Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência.

Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação.

Não se pode, entretanto, afirmar que havia má intenção nesta atitude. Tratava-se apenas de um relaxamento e não de uma deliberação em praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver, a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres.

Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados.

Está na substância da santificação o desejo da cruz

É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas.

Isto interessa muito aos contrarrevolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme sua promessa em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contrarrevolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contrarrevolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações.

Há depois, uma segunda fase, de estabilização, em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se devem temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de cruz.

As várias etapas da decadência medieval

A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval produz uma sensação muito agradável.

O agradável encontra sua melhor expressão no Gótico “Flamboyant”. Mas o “Flamboyant” vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes.

Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de Cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval.

Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval, é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, constituía a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes.

A corrupção da sociedade a partir das elites

Antes de prosseguirmos, seria conveniente lembrar um princípio.

Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos — sobretudo caso se trate de um liberal — várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista e o republicano, o católico e o protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem.

Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos.

O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de “proche en proche”(1), para as demais classes sociais.

A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz.

Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero.

Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas.

Entre as camadas inferiores do povo a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir, uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim, tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo nas camadas superiores da sociedade.

A decadência deveu-se à tolerância dos bons

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero, que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância agressiva, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes oferecem a intolerância e resistência que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalhação interna, que produz o estertor dos revolucionários. Poucos têm coragem para argumentar contra quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido, dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de maio de 1959)

 

1) Pouco a pouco.

 

Quando o Céu e a Terra estavam próximos…

O jovem cônego Pedro González estava penetrado pelo pior dos mundanismos: o das coisas sagradas. Tocado pela graça divina, rompeu com o mundo e entrou para a Ordem dos dominicanos. Tornou-se célebre pregador e influenciou, com seus conselhos, o Rei São Fernando.

 

No dia 14 de abril comemora-se a festa de São Pedro González, dominicano, do qual tiramos umas notas do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Gritos de admiração se transformaram em vaias e zombarias

Eis a síntese histórica:

Pedro González nasceu no ano de 1190 na cidade de Astorga, na Espanha, da qual seu tio era bispo. Após brilhantes estudos, foi nomeado, ainda jovem, cônego da catedral.

O tio lhe obteve de Roma a dignidade de deão do capítulo. Pedro devia tomar posse do cargo na festa do Natal. Jovem vaidoso, quis que tudo lhe ocorresse com pompa, e que toda a cidade assistisse ao ato.

Montado em um cavalo magnificamente ajaezado, atravessava as ruas da cidade. Chegando a um lugar repleto de pessoas, ferroou o animal para fazê-lo trotar com mais graça e assim aumentar a admiração do povo. Mas o cavalo deu um passo em falso e atirou o cavaleiro numa poça cheia de lama. Os gritos de admiração se transformaram imediatamente em vaias e zombarias.

Pode-se imaginar a confusão que sentiu González. Esta, porém, lhe foi salutar. No mesmo lugar exclamou bem alto: “Como! Este mesmo mundo que eu procurava agradar ri-se de mim? Pois bem, zombarei dele por meu turno. De hoje em diante dar-lhe-ei as costas para começar uma vida melhor.”

E, de fato, abandonou o mundo e entrou para a Ordem de São Domingos. Foi um ótimo religioso e mais tarde não menos excelente pregador.

Sua fama chegou até o Rei São Fernando, que lhe pediu um conselho a respeito da guerra contra os sarracenos. Mais tarde foi evangelizador dos pobres e particularmente dos marinheiros, tendo sido agraciado com o dom dos milagres. Pregou sem cessar, até seus últimos dias.

Predisse sua morte, falecendo em Tuy, assistido pelo bispo da cidade que muito o estimava. Os marujos de Espanha e Portugal o invocavam em todas as tempestades sob o nome de Santo Elmo.

Uma tradição muito razoável, pitoresca e psicológica

A vida dele é realmente pitoresca a começar por essa manifestação de mundanismo canonical. Era sobrinho do bispo que conseguira que ele fosse nomeado deão do capítulo, quer dizer, a principal figura do cabido.

Fazia parte dos costumes do tempo que quando uma pessoa assumia uma dignidade nova passeava pela cidade, revestida das insígnias de sua dignidade. Por exemplo, quando alguém era nomeado professor de universidade passeava pela cidade, com foguetório, alunos, etc., vestindo a beca e os trajes de mestre, montado a cavalo. Naturalmente era preciso saber montar a cavalo, porque a coisa não deixa de comportar alguns riscos.

Assim, quando o estudante se formava e voltava para a cidade de origem, tomava o traje da profissão que exerceria e passeava pelo meio da cidade. E o povo todo ficava vendo o novo profissional graduado, novo doutor, que iria adornar os meios sociais e intelectuais da cidadezinha à qual pertencia.

Algo disso conservou-se durante algum tempo no interior do Brasil. Até 1920, mais ou menos, se não me engano, quando um rapaz do interior se formava em São Paulo, ele ia para sua cidade e era acolhido, com banda de música, pelas autoridades municipais, e todos os que estavam na estação para recebê-lo acompanhavam-no até a casa, onde havia uma coisa horrendamente chamada “boca livre”, quer dizer a família oferecia, ao menos quando podia, uma refeição para todo mundo que quisesse comer quanto quisesse. E assim ficava entronizado o novo doutor.

Essa tradição que, aliás, é muito razoável, pitoresca e psicológica, aplicava-se até aos reis. A rainha, quando se casava com o rei e ia pela primeira vez à sua capital, tinha a “joyeuse entrée”, a alegre entrada, em que havia recebimentos e pompas.

Por exemplo, Luís XVI e Maria Antonieta, depois de casados, fizeram uma “joyeuse entrée” em Paris, porque era a primeira vez que ela ia àquela cidade oficialmente. Então, grande recebimento, grande reboliço. Isso é muito conforme à ordem natural das coisas.

No momento do sumo mundanismo, a hora da graça

Então, o novo cônego estava para entrar a cavalo na cidade, e este acontecimento deveria ser envolto em grande pompa e circunstância. Imaginem um homem guapo, montado num belo cavalo, com aqueles trajes bonitos de cônego, deão do cabido. Provavelmente havia clérigos acompanhando e confrarias fazendo coro.

Era uma época em que não existia anticlericalismo. Hoje não há mais propriamente anticlericalismo, mas é meio secundário aos olhos da opinião pública ter um cargo eclesiástico. É melhor um cargo eclesiástico do que não ter nenhum cargo, nem civil. Mas é muito melhor ter um cargo civil do que um eclesiástico, mais ou menos em igualdade de condições. Mas naquele tempo, não. Os cargos eclesiásticos eram de uma alta atração mundana.

Entra, pois, nosso cônego elegante a esporear o cavalo para trotar com mais graça. É que não havia ainda a “heresia branca”2. Esta não gostaria de um cônego que trotasse depressa. No conceito “heresia branca”, isso seria contra a caridade, não ter bom coração. Um homem que anda depressa a cavalo não tem pena nem das viúvas, nem dos pobres, nem do cavalo. Segundo esta ideia deturpada da piedade, o cônego, mesmo quando moço, deveria montar um bicho bem manso, largar as rédeas e seguir lentamente pelas ruas. Então todos diriam: “Como ele é bom!”

Mas vê-se que não havia ainda “heresia branca” e ficava bonito um cônego mostrar que montava bem a cavalo. Então a hora da graça o esperava nesse momento de sumo mundanismo, e o pior dos mundanismos que é o mundanismo das coisas sagradas. Ele monta a cavalo, esporeia o animal que começa a trotar, e espera os aplausos que principiam a se delinear. De repente, ele cai num monte de lama.

Modo da graça operar em um espanhol

Certa vez, Napoleão andava a cavalo pelo “Bois de Boulogne” ou “Champs Élysées” e o povo começou a aplaudi-lo. Então, o embaixador da Dinamarca que estava ao lado dele lhe disse:

— Majestade, que trono sólido!

Ao que ele respondeu:

— Senhor Embaixador, é um engano. Os povos se vingam dos aplausos que nos dão.

De fato, quem aplaude está pronto para vaiar. Esta é a miséria humana. Resultado: estavam aplaudindo, escarrapachou-se, irrompe a vaia. Neste momento vem a graça de Deus e converte o homem. Toca-o mostrando o vazio de todas essas vaidades, e dando-lhe um sentido de desafio àquele povo: “Como é, esse pessoal que me aplaudia, agora está vaiando? Romperei e não terei mais nada que ver com eles.”

Esse é um modo da graça operar em um espanhol. Porque a coisa se converte imediatamente em desafio tendente à tourada. Atitude sumamente bonita, que me agrada muito. Se rompeu, faça o desafio e pule em cima; e vá logo ao fim, seja radical! É bom que as coisas se passem dessa maneira, e assim fez o nosso Santo. Ele foi tocado pela graça e entrou para uma Ordem religiosa. Tornou-se dominicano e se celebrizou como pregador. Aliás, é bonito vê-lo influenciar, com seus conselhos a respeito da Cruzada, o Rei São Fernando.

Evocando um fato com saudade

Vejam que cena bonita: um chefe de Estado santo que manda chamar um pregador santo para confabularem a respeito da luta contra os infiéis. Como tudo isso está longe! Onde se encontra hoje o pregador santo? E o rei santo? Tudo isso se dissipou. E que nostalgia devemos ter desses valores que dizem tanto às nossas almas!

Imaginemos esse encontro: um rei sentado numa cadeira de espaldar alto, com braços, sobre um pequeno estrado na sala; o santo pregador entra e lhe faz uma profunda reverência desde a entrada, e o monarca lhe diz com amenidade:

— Frei Pedro, entre, esteja à vontade.

Então começam a falar e, de repente, a conversa sobe de ponto e dali a pouco estão tratando a respeito de Religião, de temas elevados, e isso dentro do palácio real.

Qual é o palácio onde hoje uma cena como essa se dá? Como isso nos faz sentir a desgraça do nosso distanciamento em relação a tantas coisas magníficas que, por essa forma, podemos entrever dentro da luz do passado. E como é útil, portanto, uma ficha biográfica que nos dê a possibilidade de nos recordarmos de toda essa felicidade.

Dante diz que nenhuma tristeza é maior do que no dia da miséria lembrar-se da ventura que se foi. Nós sofremos em parte isso. Estamos no dia da miséria e nos lembramos desses dias que se foram. Mas pelo menos ficamos sabendo que houve isso e que as coisas voltarão a ser assim. E nesse vale profundo, tão longe do que foi e – ao menos na ordem real das coisas, não cronologicamente – tão distante do que vem, nós evocamos isso com saudade.

Um modo de morrer na doçura e na paz de Deus

Depois, esse Santo exerce vários ofícios: evangelizador dos pobres e, sobretudo, dos marinheiros. Estes constituíam, então, uma ralé sem Fé nem lei, eram aventureiros. Ele se mete nesse ambiente e, sem nenhuma necessidade de ser padre operário nem de fazer concessões malucas, move essas almas porque é um Santo.

Até o fim de seus dias ele pregou, e previu a sua própria morte. É uma das graças especiais que Deus dá a alguns de seus servos: preverem a chegada da própria morte. É um modo de morrer na doçura e na paz de Deus. Isso não lhes causa pânico, porque lhes dá a esperança precisamente de chegarem ao Céu. Antigamente, isso se fazia com tal naturalidade que se conta que o Padre Anchieta, no vilarejo de São Paulo, soube com antecedência o dia de sua morte e avisou várias famílias, despedindo-se e explicando com toda a candura: “Eu vou morrer no dia tanto, tive uma comunicação a esse respeito, e queria agradecer-lhes tanta gentileza”.

É o modo mesureiro e cortesão, no sentido nobre da palavra, de se fazer visita de despedida no século XVI: “Vou morrer, preciso me despedir dos amigos”.

Podemos imaginar o assombro! Entretanto, não causava tanto espanto assim porque muitas vezes pessoas que nem eram tidas como santas viam-se favorecidas com essa graça, e anunciavam a própria morte. E quem as ouvia achava meio provável que acontecesse. Essas comunicações entre o Céu e a Terra não eram excepcionais.

Conaturalidade magnífica com o sobrenatural

Que susto se um padre hoje tocasse a campainha de nossa Sede e dissesse:

— Dr. Plinio, eu vim me despedir do senhor porque vou morrer.

Eu me sentiria, no primeiro momento, tão desconcertado que me julgaria obrigado a dizer:

— Não! O senhor ainda vai ter uma longa vida…

É o “happy end” idiota das coisas modernas.

Naquele tempo, não:

— Ah, o senhor vai morrer? Não diga… O senhor teve uma visão? Olhe, muito obrigado por ter vindo se despedir. Quando chegar no Céu lembre-se de nós. Diga de minha parte a Nossa Senhora tal coisa, fale com meu Anjo da Guarda tal outra, por obséquio não se esqueça.

— Ah, pois não, não tem dúvida, não esquecerei. Até logo.

— Até logo.

Quer dizer, é exatamente a conaturalidade magnífica com o sobrenatural. A harmonia com o celeste, o hábito do convívio com o sobrenatural que cria coisas magníficas como essas.

Por exemplo, no convento, o Santo caminhando de um lado para outro, de repente diz para o Prior:

— Padre Prior, eu julgava necessário que Vossa Reverência provesse alguém que me substituísse no apostolado dos marinheiros.

— Mas por que isso?

— Porque recebi um aviso de que vou morrer.

— Ah, então, está bem.

Já deixa o substituto indicado. O Santo morre na hora marcada, a comunidade está presente e assiste à morte. Ele adormece no Senhor, enterram-no em paz. Uma alegria geral, uma unção no pequeno local onde a morte se dá; o próprio bispo era muito amigo dele e assistiu a sua morte. Assim, ele morre sob as bênçãos e as vistas de seu pastor e com essa naturalidade vai para o Céu.

Como o Céu e a Terra ficam próximos! Que abismos se suprimem dentro desse florilégio da civilização católica! E quanta coisa bonita desapareceu também, as quais vamos rever no Reino de Maria!

Creio que no Reino de Maria não vai ser raro pessoas saberem com antecipação a data de sua própria morte. Quem sabe? Resta-me augurar que essa graça seja dada a todos nós.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1967)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Volume VI, p. 360-362.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Oração pedindo a graça de rezar bem

Ó minha Mãe, olhai misericordiosamente para minha alma e obtende-me o espírito de oração pelo qual eu recorra sempre a Vós. E tanto mais recorra quanto mais me atenderdes, pois vossos favores nos incitam a pedir dons maiores.

Rogo-Vos ainda outra graça: a de Vos pedir tanto mais quanto menos parecerdes me atender. Pois Vós amais a oração insistente e confiante; quanto maior for a aridez ou a demora, mais apreciável será a graça que desde já nos preparais. Amém

Plinio Corrêa de Oliveira, Composta em 30/7/1971

Oração a Nossa Senhora do Brasil

Ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças e, mais do que todas, concedei-nos a graça das graças: Ó Mãe, uni intimamente a Vós este vosso Brasil!

Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes. Tornai sempre mais largo e misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

Fazei-nos sempre mais fortes na luta por Cristo-Rei, Filho vosso e Senhor nosso. De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para Lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina do cêntuplo nesta Terra e da bem-aventurança eterna.

Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil, com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece? Onde encontrá-las senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superiora a qualquer louvor humano? De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito palavras que amorosamente aqui repetimos: “Tu gloria Ierusalem, tu lætitia Israel, tu honorificentia populi nostri” (Jt 15, 10).

Sois Vós a glória, a alegria, a honra deste povo que Vos ama!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do Jornal “Última Hora” de 12/10/1983)

Oração pedindo a sabedoria

Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles, e de ser impelido por um amor desinteressado à contemplação das perfeições que a alma humana possui pela natureza e pela graça.

Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica e puramente espiritual, e, por fim, à de vosso Divino Filho que, na sua humanidade santíssima, é o ápice e a síntese de toda a Criação.

Fazei-me, em seguida, por um voo ainda mais possante de despretensão e de enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me desse modo para entrar nele e Vos louvar por toda a eternidade. Amém.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São Pio V, herói em meio às angústias!

A célebre batalha de Lepanto, na qual a Armada Católica logrou afastar o poderio otomano que se acercava do Ocidente Cristão, foi assinalada por insigne heroísmo. Entretanto, houve quem, apesar de não empunhar armas físicas, obteve de Deus o bom êxito dos guerreiros da Fé.

 

Tantos foram os comentários feitos a respeito da batalha de Lepanto, em vários anos sucessivos, que quase não há algo para acrescentar. Mas vou destacar um herói da batalha de Lepanto, a propósito do qual poucos historiadores falam. Esse herói foi o Papa São Pio V.

No século XVI, os cristãos da Europa estavam divididos

Em que sentido ele foi um herói, e por que é importante para nós reconhecermos o heroísmo dele?

São Pio V via o poder otomano crescer cada vez mais e o perigo de que eles se lançassem sobre a Itália, por exemplo, ou qualquer outra parte da Europa, e operassem uma invasão com efeitos talvez mais ruinosos do que a dos árabes na Espanha, no começo da Idade Média.

Isto porque no tempo de São Pio V, século XVI, os cristãos da Europa estavam divididos entre católicos e protestantes. Já havia, portanto, instalada entre os cristãos, essa lamentável divisão a qual enfraquece tanto as forças católicas e que nós desejamos remediar pela conversão de todos.

No século XVI, o protestantismo tinha um vigor incomparavelmente maior do que hoje;  estava ainda na sua fase de expansão, de luta. E era muito de se temer que os protestantes aproveitassem a agressão feita pelos maometanos a um país católico, para eles mesmos invadirem outros países católicos. Tanto mais que já havia disso uma experiência.

À Casa d’Áustria, que governava a Áustria e a Hungria, pertencia habitualmente, por eleição, o título de Imperador do Sacro Império Romano Alemão. Várias vezes ela se viu em dificuldades seríssimas por causa de combinações, ou ao menos de convergências claras, entre protestantes, do interior do Sacro Império, e otomanos, de fora dele, visando forçar a capitulação da Casa d’Áustria e liquidar de imediato o Catolicismo, pelo menos nos povos de língua alemã.

Assim, para a Santa Sé, a ameaça otomana era muito mais forte do que foi a ameaça árabe, a qual, entretanto, fora tão terrível. Porque no tempo de São Pio V os cristãos estavam divididos.

Indecisão de Felipe II

Nessa situação, São Pio V precisava apelar, naturalmente, para quem era o apoio temporal da Igreja em seu tempo: Felipe II, Rei da Espanha. Com efeito, o Papa só podia encontrar apoio, dentre as grandes potências católicas, em Felipe II e depois em Veneza, uma grande cidade marítima, a qual constituía uma república aristocrática, com largo desenvolvimento em todo o Mediterrâneo e com muitos bons navegadores e boas frotas. Se bem que o poder de Veneza fosse ponderável, o grande poder decisivo era de Felipe II.

Os historiadores reconhecem — mesmo aqueles que admiram Felipe II, e têm muitas razões para isso; eu sou um admirador dele —, entretanto, em Felipe II um homem extraordinariamente indeciso. Quando precisava resolver alguma questão, tinha vaivéns: concordava, depois discordava, mandava embaixadores, pedia prazo, deixava passar o prazo… Não era fácil vencer a indecisão de Felipe II.

São Pio V via o perigo crescer e todo o assunto ser resolvido numa sala do Palácio Real de Madri, ou do Escorial, por Felipe II sozinho, ou com seus auxiliares. Se, em última análise, Felipe II se retraísse, de repente a horda maometana desataria sobre a Itália, e depois atingiria toda a Cristandade; seria o fim da Civilização Cristã no Ocidente. Não seria o fim da Igreja porque Ela é imortal; mas ao que a Igreja poderia ficar reduzida ninguém sabe.

Pástor(1) narra as tratativas de São Pio V com Felipe II, e diz que constituíram para o Papa um verdadeiro martírio, tanto teve ele que pedir ao Rei de Espanha. Felipe II fazia exigências; São Pio V solicitava apoio para uns e para outros, a fim de atender as exigências financeiras e outras de Felipe II. Afinal conseguia, porém Felipe II queria mais. Depois Felipe II pedia que o Papa mandasse seus navios, mas o Pontífice não os possuía. São Pio V acabou arranjando os navios, e Felipe II já não queria enviar a esquadra dele. Entretanto, apenas os navios da Santa Sé não adiantariam…

É certo que, se não fosse a pressão de São Pio V, não haveria a batalha de Lepanto, porque a Espanha não teria mandado sua esquadra, a qual era o grande contingente decisivo entre as forças navais aliadas. Dessa forma, os historiadores de São Pio V reconhecem que para ele foi, ao pé da letra, um martírio lutar em tais condições; ele foi um verdadeiro herói em aguentar a angústia de tal situação, e ao mesmo tempo combater até o último momento, para conseguir afinal de contas que as tropas saíssem e a batalha se travasse.

Nossa Senhora aparece a São Pio V

Assim compreendemos melhor a razão pela qual houve a famosa aparição a São Pio V, quando ele estava reunido com cardeais, em Roma, tratando de algum assunto. Enquanto a reunião se desenvolvia, em certo momento ele se levantou e rezou um terço pela vitória dos católicos sobre os maometanos, porque ele tinha a noção de que, cedo ou tarde, deveria realizar-se uma grande batalha, a qual seria decisiva para a Cristandade.

Enquanto ele rezava, ou terminada a oração do terço, Nossa Senhora Auxiliadora apareceu-lhe e comunicou-lhe a vitória cristã na batalha de Lepanto. São Pio V, então, foi ao local da sala onde estavam reunidos os cardeais e informou-lhes: “Nós podemos nos tranquilizar. A batalha foi ganha. Eu tive uma revelação neste sentido.”

Naquele tempo não havia rádio, telégrafo ou televisão; e uma notícia dessas levaria um tempo enorme para, desde Lepanto, chegar até Roma. Entretanto, ele a recebeu no próprio dia da vitória. Ou seja, foi uma revelação sobrenatural feita por Nossa Senhora a São Pio V.

Por que a ele? Porque era o chefe da Cristandade, não tem dúvida. Mas também porque São Pio V tinha lutado a propósito dessa guerra e desenvolvido um esforço igual ou maior do que os batalhadores de Lepanto. Foi um verdadeiro herói, como Dom João d’Áustria e os outros grandes guerreiros que venceram em Lepanto.

Muitas vezes as dores morais atormentam mais que as físicas  

Alguém dirá: “Isso, Dr. Plinio, eu não compreendo, porque ele não arriscou a vida, mas ficou comodamente em Roma à espera de que viesse uma notícia. Se ele não arriscou a vida e não combateu, não pode ser herói”.

Este é o ponto, o prisma falso que devemos tirar de nossa cabeça.

Por certo, quem luta com as armas na mão é um herói. Mas a Doutrina Católica jamais admitiu a tese de que esta é a única forma de heroísmo.

O heroísmo não é apenas o ato pelo qual o homem enfrenta o risco de perder a vida ou a integridade física. Mas é a atitude pela qual o homem enfrenta qualquer grande dor ou grande infortúnio. Isso caracteriza o herói.

Há dores morais e dores físicas. E muitas vezes as dores morais atormentam incomparavelmente mais, sendo mais difícil enfrentá-las do que as dores físicas.

Um exemplo da heroicidade que há em enfrentar dores morais é a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual se divide claramente em duas partes: a Agonia e a Paixão propriamente, onde Ele foi preso, torturado e depois crucificado.

Na primeira parte, a Agonia, o Redentor desenvolveu um verdadeiro e perfeito heroísmo, no mais alto sentido da palavra. Porque todos os sofrimentos morais ocasionados pelos pecados, pela ingratidão da Humanidade, pela maldade de que Jesus seria vítima, atingiram tal ponto que Ele pediu a Deus que, se fosse possível, afastasse o cálice. Ele chegou a suar sangue, dentro da perspectiva do que ia acontecer.

Sofrimento moral de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

A aceitação antecipada do sofrimento, a dor moral que Nosso Senhor teve no Horto das Oliveiras foi um autêntico heroísmo, embora ali não tenha combatido fisicamente contra ninguém. Mas Ele deliberou aceitar o tormento e a morte, apesar da inutilidade de seus sofrimentos para quem não correspondesse à graça e acabasse se perdendo.

Essa deliberação foi heroica. A dor de alma que tal deliberação Lhe causou foi uma dor autêntica, embora Ele fisicamente não estivesse combatendo.

Alguém dirá: “Mas Jesus ofereceu o risco da vida d’Ele; e esse risco é um elemento integrante do heroísmo.”

É verdade; entretanto Nossa Senhora não o ofereceu. N’Ela ninguém tocou. Seu sofrimento foi, de ponta a ponta, moral, sem nenhuma dor física. Ora, Maria Santíssima é chamada, invocada, aclamada pela Igreja como “Regina Martyrum” — Rainha de todos os mártires. Apesar de não ter sofrido fisicamente, ninguém, em toda a História do mundo, padeceu como Nossa Senhora pela Paixão e Morte de seu Filho.

Vemos assim que ter a força de alma para aguentar as decepções, calúnias, frustrações, enfim, tudo quanto o homem pode sofrer na vida, é um verdadeiro heroísmo. É uma tolice imaginar ser herói apenas quem combate de armas na mão.

Quanto a São Pio V, alguém poderia perguntar: “Dr. Plinio, na comodidade da sala do Palácio Pontifício, qual era o heroísmo dele?”

Foi um heroísmo de alma, que consistiu em enfrentar este sofrimento: ter lutado com Felipe II em condições tão difíceis, em vez de entregar os pontos e procurar não ver o perigo iminente. O que ele fez caracteriza o verdadeiro herói.

Confiança heroica

Devemos entender que, na nossa vida de todos os dias, temos ocasiões de praticar verdadeiramente o heroísmo. Inclusive aguentando os quotidianos  “rios chineses”, que nos fazem estar ziguezagueando continuamente em torno de algo que nunca chega ao fim. Isso é heroísmo.

Como foi heroico o profeta Simeão, esperando sempre, até a extrema velhice, para, afinal de contas, ver o Salvador que lhe tinha sido prometido! E Abraão que ofereceu Isaac, o filho da promessa, o qual ele teve na velhice!

Há uma confiança heroica pela qual nunca se desiste de esperar. Essa confiança dói, e a alma fica às vezes como que sangrando, mas a pessoa continua a confiar, dizendo: “A promessa interior, inefável, feita por Nossa Senhora não falhará! Eu confio na palavra d’Ela, cumprirei a minha missão. Vou para a frente. Que Maria Santíssima me ajude!”

 Qual é a palavra de Nossa Senhora? É uma voz da graça, uma apetência que sentimos, a qual nos leva a praticar a virtude e o amor de Deus. É com base nisso que devemos estruturar a nossa confiança.

Uma alma assim tem uma confiança heroica: por isso a oração dessa alma move as montanhas.

Em que consiste o verdadeiro heroísmo

Nossa Senhora só revelou a São Pio V o que tinha acontecido, depois de ele ter rezado um terço. Quer dizer, Ela quis mostrar o quanto Lhe é grato pedirmos tudo quanto precisamos por meio do rosário; por isso, resolveu esperar aquela ocasião para dar-lhe esse enorme galardão.

A Fé heroica move as montanhas.  Fé que crê apesar de todas as aparências em sentido contrário. Não desanima, não volta atrás. Continua a lutar apesar de ter apenas um palito, porque possui o que vale mais do que tudo: um terço na mão.

A nossa principal arma é a oração. E a oração é vitoriosa quando inspirada pela Fé que move as montanhas, segundo a expressão empregada por Nosso Senhor no Evangelho.

Imaginemos um exército católico, que se encontra bloqueado diante de uma montanha cujo túnel foi destruído. Um santo começa a cavar a montanha e milagrosamente a levanta com as mãos. O exército passa e o varão de Deus deixa baixar a montanha, abre o túnel e sai do outro lado. Consideraríamos esse santo um colosso. Um homem que carregou com as duas mãos uma montanha! Oh! Fantástico! Seria admirável. Porém, muito mais bonito é carregar uma montanha com a oração, do que com as duas mãos. Isso fez São Pio V por meio de sua prece.

Percebemos assim como é o verdadeiro heroísmo.

Nós devemos ter apetência de derramar o nosso sangue pela Igreja?

Pode ser que a graça nos dê essa apetência. Será uma coisa esplêndida!

O desejo de verter o sangue pela Igreja é uma vontade de doação total. É magnífico. Não tenho palavras suficientes para encorajá-los. Os mártires tinham esse desejo, e muitos morriam na alegria do sacrifício que faziam. Porém não posso aceitar que se entenda ser essa a única forma de heroísmo; que outras formas de lutar pela Igreja não são verdadeiro e autêntico heroísmo.

Então o que é o heroísmo? É a aceitação enérgica, firme, com espírito de Fé, de qualquer sofrimento extraordinário, seja físico ou moral, que põe em risco a nossa vida ou outros bens.

Heroísmo de um sacerdote que guardou o segredo de confissão

Houve um caso que se contava no Brasil antigo. Um assassino acabava de matar alguém numa igreja, e pediu ao padre que o atendesse em confissão. O sacerdote, vendo que ele estava contrito, deu lhe absolvição e logo depois foi ver no templo — cidadezinha do interior, de manhãzinha, a igreja ainda vazia — quem estava morto. Encontrou um homem apunhalado. O padre começou a tirar o punhal, que estava cravado no corpo da vítima. Entram pessoas na igreja que começam a gritar, dizendo que o sacerdote havia matado aquele homem.

O padre foi processado, condenado, preso, e passou muitos anos na cadeia, tido como um sacrílego, um degradado, um infame. O assassino tinha fugido e o sacerdote aceitou essa pavorosa humilhação, mas não declarou quem era o criminoso.

Uns dez ou quinze anos depois, certo dia o padre vê chegar à cadeia, onde ele cumpria a pena, pessoas tocando música, dando brados de viva ao nome dele.

O que sucedera? O assassino havia morrido e, pouco antes de falecer, tinha confessado que ele era o autor do crime e que o padre era inocente. Então o sacerdote foi absolvido e depois reintegrado no exercício do ministério sacerdotal.

Embora não tenha levado pancadas, esse padre sofreu intensamente. Acho que vários dos que estão aqui presentes prefeririam morrer a passar por isso. Ele foi um autêntico herói.

Heroísmo é a disposição de aguentar qualquer grande sofrimento, por amor a Nossa Senhora. E foi o que São Pio V suportou. Portanto, foi herói.

Compreendamos, então, o valor do heroísmo, ainda quando incruento. Admirando a quem Deus pede o sangue corpóreo na luta pela Igreja e pela Civilização Cristã, devemos entender que a muitos outros Ele pede o sangue da alma.

Quando temos uma grande dor, devemos dizer: “Quero sofrer isto, porque não há outro meio para chegar à finalidade que tenho em vista. Mas eu olho de frente tudo quanto estou sofrendo e meço grão por grão, milímetro por milímetro, todo o sofrimento que preciso aceitar. Está bem, eu aceito. Nossa Senhora me ajude e me dê força. Isto eu quero, porque o resultado vale mais do que eu sou”. Esse é o sofrimento heroico. 

(1) Ludwig von Pastor (1854-1928), historiador alemão, célebre por sua História dos Papas

(Extraído de conferência de 7/10/1975)  (RDP 164, novembro 2011)

 

A confiança não será decepcionada

A Providência permite muitas vezes que as circunstâncias mais desalentadoras se acumulem uma sobre a outra de um modo inimaginável, mas continuamos a confiar. No fim, há um sucesso que coroa a nossa insistência, porque coroa a nossa confiança. Daria para ter desanimado, mas confiando, Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano acaba dando-nos a vitória. 

Há vitórias às quais se chega tendo passado por decepções e desagrados de toda ordem, dando-nos a impressão de que Deus nos abandonou, mas em certo momento nos mostram a presença da Providência na sua bondade, na sua generosidade, premiando a nossa confiança e a nossa coragem; esta é a glória do verdadeiro contrarrevolucionário.

Virá um momento em que meus filhos espirituais terão que lutar sem mim. Então, poderá haver movimentos de desalento com a ideia de que nada tem solução.

Tudo tem solução desde que confiemos sempre e, dentro dos maiores absurdos, digamos: “Confio em Deus, em Nossa Senhora; e essa confiança não será decepcionada. Vamos para a frente com passo firme e seguro, olhar para o Céu e terço na mão. A vitória será nossa!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/1/1994

Nossa Senhora

Meu filho, aqui estou eu sozinha, no canto a que teu desprezo me relegou, cheia daquele amor que tua rejeição comprime em mim e impede que se expanda.

Tal amor, porém, se conserva intacto em sua intensidade e sua abundância, palpitando de ansiedade, tristeza e pressa, à espera de que retornes, para envolver-te, lavar-te e te cumular do dom de habitar nele, como do dom da inocência primeva e de todos os outros dons.