Altivez, segurança, sobranceria

A primeira impressão que se tem diante do Castelo de Chinon, na França, nos vem da consideração do panorama em que ele se situa. Natureza agradável, e as plácidas águas de um rio nas quais o castelo se espelha. Águas que não assustam e correm, amistosas e doces, atravessando a pequena cidade, rumo ao oceano.

A localidade, que tem o mesmo nome do castelo, vive confortavelmente, entre as ruínas daquelas muralhas e a beleza do rio Levienne. Talvez, até há pouco, olhando com devoção para seu próprio passado, na moderada, mediana mas real distinção de seu modo de ser e de viver, despreocupada com o resto do mundo.

A massa impressionante do castelo, ou do que dele resistiu ao tempo e às guerras europeias, sobressai, dando-nos ideia do que terá sido nos seus dias de glória, quando, numa de suas salas, a pequena pastora de Domrémy, Santa Joana d’Arc, reconheceu o Delfim de França e o convenceu de se deixar sagrar e coroar como Rei dos franceses. Vendo-o hoje, alguém poderia duvidar de sua beleza: muros caídos, janelas sem madeirames nem molduras góticas, pedras desgastadas e quebradas, torres incompletas.
Entretanto, qualquer coisa nesses pedaços de edifício nos faz vê-lo como muito bonito. De onde lhe vem esse esplendor?

De uma altivez, de uma segurança de si mesmo, de uma sobranceria no olhar de cima para baixo o mundo à sua volta que, na verdade, nos encanta. Dissemos, de propósito, altivez e não orgulho. Pois não se pode afirmar que o castelo exprima a mentalidade de alguém que “serra de cima”, mas sim a de algo que tende para o mais alto.

Tem-se a impressão de que esse castelo foi construído com um certo dinamismo pelo qual ele se ergueu como uma pessoa viva que, com toda a sua estatura, tende para o mais alto possível. No fundo, tende para o Céu. As almas daqueles que o levantaram, certamente estavam imbuídas desse anelo das coisas celestiais, do anseio de reproduzir na Terra algo do paraíso. Elas procuraram traduzir nas pedras, a sua elevação, dignidade e nobreza de pessoas católicas, amorosas da hierarquia do que lhes estavam acima como da dos seus inferiores.

Em suma, é a altivez e a sobranceria de cavaleiro, de herói católico, de cruzado. Nessas pedras estão expressos o sacrifício, o risco, a fé, o ideal e a consciência do valor de todas essas nobres atitudes de alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 9/8/1989)

Imponente e majestoso, mas sorridente e afável

No Castelo de Versailles há um contraste muito inteligente entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente, e o risonho, afável, amável, aprazível, convidando a pessoa que o contempla a ficar à vontade junto de tanta grandeza.

 

Na paisagem dentro da qual se insere a fachada do Castelo de Versailles que dá para os jardins, veem-se quatro elementos distintos. Em primeiro lugar, o próprio castelo, depois o lago ou tanque, os jardins e, por fim, o céu com as nuvens. Cada uma dessas coisas, dentro da perspectiva francesa, merece ser mencionada.

A arte que não tem mistérios manifesta a mediocridade

É interessante notar como tudo isso, para olhar de um relance só, é simples e completo. Porque ao se contemplar esse panorama gosta-se dele diretamente. É bonito, agradável e não oferece mistérios.

Aliás, uma característica da arte desse tempo, que por um lado manifesta a mediocridade e, por outro, a grandeza – mas onde o aspecto de mediocridade é enormemente maior do que o de grandeza –, é precisamente não ter mistérios; tudo está explicado.

Nota-se nos jardins uma riqueza de coloridos, de formas e de contornos extraordinária. Sucedem-se linhas sinuosas ora compostas de folhagem, ora de grama, ora ainda de flores em abundância, onde prepondera o formato arredondado.

O lago, com um bordo de mármore, tem no centro um chafariz. Nos ângulos há também pequenos esguichos, de maneira que, quando soltam as águas, forma-se uma espécie de imensa catedral  aquática com arcos e volutas; a água jorra de um lado e de outro produzindo uma fantasia de movimentos, todos muito harmoniosos e sóbrios, dentro da sua pluralidade, e constituindo uma  espécie de castelo de água em frente ao castelo de pedra.

O castelo propriamente dito é de uma cor meio indefinível, um pouco parecida com âmbar, um material um tanto dado a creme, tão discreta que quem olha acha bonita, mas não pensa diretamente na cor do castelo; a ideia da cor passa meio desapercebida.

O edifício apresenta em relação ao jardim um contraste flagrante porque, enquanto o jardim é todo feito de sinuosidade  e policromias, o palácio é composto de ângulos, linhas retas, onde há quase o excesso do duro contrastando com o quase excessivo do sinuoso. Exatamente ao se tocarem, esses quase excessos descansam a vista e dão uma espécie de harmonia.

As nuvens compensam o que falta ao castelo

Há, portanto, um contraste muito inteligente, bem pensado, entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente – de uma coerência cartesiana e quase hirta – e o risonho, afável, amável, aprazível, convidando a ficar à vontade junto de tanta grandeza.

A água confere ao panorama uma variedade agradável. Nem tudo é flor, mas também nem tudo é água. Imaginem que isso fosse um aguaceiro; esse castelo, todo hirto e reto, tendo sua hirteza dentro da água: que melancolia! Por outro lado, se não tivesse a água, mas apenas flores, ficava um pouco monótono. A água dá uma nota nova diante de tanta variedade e confere ao todo uma  poesia tão natural, que se tem a impressão de que isso não foi pensado. Para o gosto da época, o suprassumo era fazer algo artificial tão bem elaborado que desse a impressão de ser natural.

O mesmo se dava com as boas maneiras. A elegância deveria ser tão natural que desse a impressão de proceder da natureza humana, sem a necessidade de estudo nenhum. Daí um empenho em  apresentar as coisas de tal jeito, que a elaboração mais requintada não parecia senão uma decorrência suave e natural de todas as coisas.

Por cima de tudo isso, vemos o céu. O fotógrafo apanhou as nuvens num momento muito feliz. Evidentemente, essas nuvens não foram postas aí por Luís XIV, mas creio ter havido uma grande coincidência ou um fotógrafo muito inteligente que soube quais nuvens apanhar, porque elas estão com a configuração exata para adornar a fotografia.

Nota-se aí o gênio francês. Um suíço, por exemplo, preferiria um céu inteiramente azul, quanto mais azul, mais bonito. Isso ficaria bem em outro panorama, aqui não. Essas nuvens compensam o  que falta de mistério.

Inicialmente muito brancas e até luminosas, mas com uma massa um pouco grande, a partir de certo ponto vão se diluindo e escurecendo. Tem-se a impressão de ser algo que sobe e vai se avolumando por cima do castelo, construindo o começo de um drama sobre o castelo risonho e o céu azul. Dir-se-ia serem os primeiros sinais da Revolução Francesa misturados com as últimas  glórias da monarquia.

Tudo quanto é grande, ou tem algo de heroico ou de um pouco trágico, ou perde a sua grandeza. Ao Castelo de Versailles, em alguns dias falta essa nota trágica, heroica, misteriosa. As nuvens compõem isso perfeitamente.

Temos, assim, uma paisagem aparentemente tão simples que se diria que uma criança riscou essa fachada, outra plantou esse jardim e tudo ficou muito bonito por coincidência.

Confronto entre a mentalidade francesa e a norte-americana

Para compreendermos bem a diferença de uma civilização para outra e sabermos fazer o confronto entre essa mentalidade e a norte-americana, por exemplo, tomemos o papel da costura na moda francesa e na moda norte-americana.

Na moda francesa, quanto menos a costura aparecer, mais bonito é. Porque as coisas devem dar a impressão de não modeladas, espontâneas. E quando numa roupa não há remédio senão  aparecer costura, na moda francesa de outros tempos punham-se sobre a costura alamares de ouro e de prata para dar a entender que aquele tecido não tinha sido costurado, mas constituía um pedaço homogêneo da fazenda, no qual com toda a naturalidade o marquês, por exemplo, tinha entrado.

O sapato era de verniz e, quando o homem era nobre, com salto alto e vermelho, fivelas de ouro ou de prata. O ideal era também dar a ideia de que o calçado não tinha costura, de maneira tal que o único lugar onde ela aparecia era atrás, porque era inevitável, e assim mesmo, a menor possível, por onde só uma pessoa com olho agudo percebesse.

O norte-americano transformou a costura numa pretensão a adorno. Então, sapatos em que a costura é feita no peito do pé e ainda se faz um babado e cose por cima para ficar uma sutura  evidente. Nas roupas, bolso postiço por fora numa tentativa de transformar a costura, outrora escondida, num enfeite.

São dois mundos, duas épocas, duas mentalidades. A época simbolizada por Versailles é a da naturalidade diáfana, leve risonha, ultra pensada, e que, depois de chegar à obra-prima de si mesma, apresenta-se com naturalidade e diz: “Eu sou assim”. É a última expressão de elegância, dentro da concepção francesa.

Poder-se-á dizer a respeito dessa concepção tudo quanto se queira; entretanto, ninguém poderá afirmar que ela é medíocre. A meu ver, ela é propriamente extraordinária.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/6/1969)

Confiança especial para cumprir a vocação

Nossa Senhora concede a certas pessoas a vocação especial de lutar pela Santa Igreja e pela Civilização Cristã. Ela as chama para uma via que supõe renúncias, privações, exigindo delas esforços para os quais se sentem fracas; por vezes, na hora da tentação elas cambaleiam e correm o risco de não terem coragem de seguir esse caminho. Mas devem ter a confiança inabalável de que a Santíssima Virgem lhes dará graças especiais para o cumprimento da vocação.

 

A virtude da confiança, como descrevê-la? No que ela consiste, definidamente? Para termos disso uma ideia, valeria a pena entrarmos nos pormenores do problema da vida de um homem.

Providência geral e especial

A Providência Divina é Deus enquanto amoroso para com cada homem, e provendo todo o necessário a fim de que ele realize aquilo para o que foi destinado.

Há homens que estão debaixo da regra comum da Providência, os quais recebem uma intenção de Deus a respeito deles muito genérica. Por exemplo, é intenção de que os homens se casem, com o  próprio trabalho ali mentem suas famílias, tenham uma progênie numerosa que se multiplique e deixe uma descendência vasta sobre a Terra.

Esses são os desígnios divinos sobre o comum dos homens, e que fazem parte da providência geral. Deus guia e auxilia de um modo genérico essas pessoas que Ele ama.

Assim, as chuvas se sucedem ao bom tempo e irrigam, preparam a terra, as plantações se formam, são colhidas, alimentam os homens, estes caminham para os seus trabalhos, os governos administram o trabalho humano, as pessoas dão uma educação cada vez melhor aos seus filhos, há uma cultura cada vez mais aprimorada, os povos progridem e, de um modo geral, a humanidade vai indo para a frente.

Existem certas pessoas sobre as quais Deus tem uma providência especial, ou seja, quer delas uma vida que não é a do comum dos outros homens e deseja que elas realizem uma missão especial. Para essas pessoas,  A Deus dá auxílios também incomuns. A Providência chama-as de um modo especial para o serviço da Santa Igreja em dois ramos distintos: inscrevendo-se nas fileiras sagradas do clero, das ordens religiosas; ou, continuando no estado laical, servindo a Esposa de Cristo por meio de um trabalho prestado à Civilização Cristã, esforçando-se para que a sociedade civil se organize de acordo com a Lei do Evangelho e, por esta forma, colabore com a Igreja para a salvação das almas. Dou um exemplo.

Também o Estado precisa cumprir o primeiro Mandamento

Deus ordenou dois Mandamentos a respeito da família: o sexto e o nono. Diz o sexto Mandamento: “Não pecarás contra a castidade”. E o nono: “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Esses dois Mandamentos devem ser cumpridos por todo o mundo, são imperativos; enquanto o homem não se case, ele deve ser casto.

Quando se casa, ele vai praticar não mais a castidade perfeita, mas a castidade segundo o seu estado, que vem a ser a fidelidade matrimonial. Se a sociedade é toda católica, as pessoas não vão procurando praticar o ato impuro antes do casamento, também não se tentam umas às outras.

O marido e a mulher têm horror à infidelidade e são mais resistentes às tentações. As famílias se mantendo, a sociedade toda sendo assim, há poucas tentações para os homens, e as almas, então, se salvam em quantidade. A Civilização Cristã serve de meio para facilitar aos homens o  cumprimento dos Mandamentos. Com isso, ela dá  glória a Deus e ajuda aos homens a irem para o Céu.

Está escrito no primeiro Mandamento da Lei de Deus: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o coração”. Este é um preceito que todo homem deve praticar no domínio de sua vida particular, enquanto membro da Igreja. Mas também o Estado está sujeito ao mesmo Mandamento e toda nação é obrigada a servir e amar a Deus de todo o coração.

As cerimônias e solenidades da Igreja são grandes dias do Estado também. Por exemplo, dia 25 de janeiro é festa de São Paulo Apóstolo, patrono da cidade e do Estado de São Paulo. Em um país no qual a Igreja seja oficialmente unida ao Estado, todas as autoridades deveriam ir incorporadas assistir à Missa na catedral. Terminada a celebração, precisaria haver desfile solene de tropas diante das autoridades eclesiásticas e civis, reunidas no mesmo palanque. Seria natural que no dia de “Corpus Christi” o Santíssimo Sacramento desfilasse pelas ruas com as tropas formadas em alas de um lado e de outro, ajoelhadas ou apresentando armas. Por esta forma fica muito mais fácil aos homens darem toda a importância à Religião e, consequentemente, amarem a Deus sobre todas as coisas.

Compreende-se, assim, como a Civilização Cristã é preciosa para a realização dos desígnios de Deus. E Ele pode escolher determinados homens para a missão especial de figurar no mundo, como leigos, servindo a Civilização Cristã sob a inspiração da Igreja Católica. A esses, Deus escolhe e chama especialmente, dizendo: “Meu filho, olha como a sociedade civil está desgarrada! Não queres dedicar-te inteiramente para que ela sirva à salvação e não à perdição das almas?” A Civilização Cristã é fruto desse tipo de apostolado, e nós fomos chamados a fazer essa maravilha de dentro desse horror, de um mundo que caiu onde caiu, e está ao revés de tudo quanto Deus quer.

Como se constitui uma vocação

Se analisarmos como se constituiu essa vocação, notaremos, em quase todos os casos, verificar-se uma pequena história individual. Ora é um menino nascido em um ambiente ruim, cuja alma  anseia por algo melhor, o que o leva a sentir uma fricção, um desagrado em contato com os lados maus desse ambiente. Por vezes ele não sabe explicitar, mas é como se elevassem na sua alma harmonias que a inocência canta no seu interior. Ele experimenta em si algo de mais luminoso, e começa por se sentir incompreendido, com necessidade de migrar para um meio onde as coisas sejam de outra maneira.

Se, ao contrário, ele vive em um ambiente bom, digno, agradável, sereno, que convida à prática da virtude, mesmo assim em sua alma há anseios do maravilhoso e não apenas do suficiente. Ele pensa em combates, riscos e aventuras que não sabe como são, mas tem sede de outra coisa que não seja aquele casulo onde ele nasceu, e ao qual, entretanto, ele quer tão bem.

Como há larvas que em determinado momento se transformam em borboletas, assim também o menino sente que nasceu larva, mas há nele asas se formando e ele quer voar. Eis o início do chamado de Nossa Senhora, uma vocação, porque era a graça de Deus que punha na alma desse menino aqueles anseios que o levavam a procurar a Igreja, a Civilização Cristã.

Esses fatos são, mais ou menos explicitamente, passos da alma para conhecer mais de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe Santíssima, amá-Los e servi-Los.

Ora, ensina a Igreja Católica que ninguém é capaz de dar um passo em direção a Deus sem o auxílio sobrenatural da graça. Sem essa ajuda o homem não pode sequer dizer de um modo amoroso os nomes de Jesus e Maria.

Então, conclui-se que a graça, pondo na alma aquele desejo, chamou. “Vocare”, em latim, é chamar. Vocação é chamado. Não se trata, portanto, de uma fantasia, mas é uma questão de Fé.

Necessidade da graça para realizar qualquer boa obra

Como se insere nisso o tema da confiança? Aqueles sobre os quais Deus tem um desígnio geral precisam ter a confiança também geral de que realizarão esse desígnio. Mas aqueles a quem a Providência destina para uma missão específica, devem ter uma confiança especial de que Deus concederá auxílios excepcionais para o cumprimento daquela tarefa.

Suponhamos um clérigo que, sendo um grande orador, é sagrado bispo para dirigir uma diocese. Talvez ele julgue que, assim como outrora arrebatava as multidões com os seus discursos, agora, como bispo, irá ao púlpito e arrebatará as multidões para as verdades da Fé.

Por certo, a eloquência é um dom natural concedido por Deus e que, uma vez recebido, pode desenvolver-se naturalmente. Contudo, se esse bispo não acreditar que necessita de uma ajuda especial da graça, ele não converterá nenhuma alma, pois suas palavras não produzirão nenhum aumento do amor de Deus em quem as ouvir, e ele não trará ninguém para a Igreja Católica.

Dou outro exemplo. Imaginem uma pessoa que monta um grande orfanato católico. Um modo de combater a limitação da natalidade, o aborto, é erigir casas onde os pais desalmados, que não querem educar os seus filhos, os deixam nos braços amorosos da Igreja. Como para a primeira infância nada é comparável ao carinho materno, são Ordens religiosas femininas que se dedicam a acolher essas crianças.

Ora, essas Ordens têm problemas, falta de dinheiro, necessidade de remédios, de médicos, de mil coisas. São necessárias pessoas com boa capacidade administrativa para levar a bom termo a fundação e a organização de um orfanato.

Como se trata de uma obra destinada a servir a Deus, se o organizador do orfanato não entender que deve pôr sua principal confiança, não nas suas capacidades nem nos seus meios de ação – como parentesco, relações, etc. –, mas no auxílio divino, o orfanato vai água abaixo.

Prece do homem desconfiado e do confiante

Se Nossa Senhora nos chama para uma via que supõe renúncias, privações, exigindo de nós esforços para os quais nos sentimos fracos, e na hora da tentação cambaleamos, por vezes corremos o risco de não ter coragem de seguir esse caminho, então é preciso ter confiança de que a Santíssima Virgem nos dará graças especiais. Nunca é válido o seguinte raciocínio: “Esse caminho é muito  bom, mas não vou seguir, pois não tenho forças”. Porque o contrário é verdade: Dê um passo e mais outro… Basta que para este minuto você tenha força, o minuto que vem Nossa Senhora proverá. Ande para a frente e peça o auxílio d’Ela; a Virgem fará milagres! Maria Santíssima é a Mãe de Misericórdia  que nos pede muitas coisas, mas nos dá muitas outras também.

Às vezes, para realizar a nossa vocação, nós precisamos de certo dom natural. Por exemplo, uma boa saúde, um pouco de repouso para nos refazermos, e desejamos isso para tornar o nosso caminho um pouco mais leve. Devemos acreditar que, na maior parte das vezes, Nossa Senhora nos concederá tais favores. Então, precisamos rezar com confiança: “Salve Rainha, Mãe de  misericórdia, vida doçura, esperança nossa, salve!” Ou então: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenha recorrido à vossa proteção, fosse por Vós desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem singular, como a Mãe recorro e de Vós me valho…”

Nesse caso, a confiança é a virtude por onde confiamos na sabedoria e na bondade de Deus pelos rogos de Maria; no amor materno especialmente misericordioso e próprio a perdoar de Nossa Senhora, que fez d’Ela como que uma longa manus da misericórdia divina, pois até onde Deus, por assim dizer, não poderia chegar em sua misericórdia, Ele criou Nossa Senhora para que Ela chegasse.

A confiança é, pois, a virtude pela qual, tomando isso em consideração, pensamos: “Fui chamado, preciso de tais circunstâncias especiais para realizar meu apostolado. Confio em que Nossa Senhora as dará.” Quer dizer, Ela é lógica, segura, bondosa, Ela não fará essa coisa monstruosa de me chamar para que eu não realize aquilo para o qual Ela me chamou.

Essa certeza de que Ela dará, Nossa Senhora quer como condição para atender o nosso pedido. Ela atende, mas quer que confiemos. A prece do desconfiado sobe a Deus com mais dificuldade do que a prece do homem confiante. A prece do desconfiado em relação a Ela é como quem subisse ao Céu passo a passo. Pelo contrário, a prece do homem confiante faz com que ele voe.

Às vezes, a graça nos submete a provações tremendas

Há um matiz delicado nisso. Às vezes, não há uma razão especial para termos a certeza de que Nossa Senhora vai nos dar aquilo que que remos, e podemos pensar o seguinte: Nossa Senhora sabe o que me convém, eu não o sei. Como vou ter confiança nessa oração? Se Ela é minha Mãe e me dá o melhor, eu peço uma coisa que talvez não seja a melhor, não obtenho. É uma reflexão razoável, inteiramente conforme à Fé. Como é que vou confiar?

Às vezes, Nossa Senhora põe em nossa alma uma certa doçura, uma certa esperança especial de conseguir que é uma forma de promessa de que Ela dará se pedirmos. Quando vem essa moção interna da graça, a alma cometeria uma ingratidão se não compreendesse que, por causa daquilo que ela sentiu, deve esperar com confiança. É muito delicado, porque a pessoa pode se enganar e tomar como voz da graça algo que não é. Mas, normalmente, quando se sente uma forma de alegria especial e sobrenatural, um certo pressentimento bondoso de que aquilo se vai realizar, muitas vezes é algo dito pela graça que fala em nossa alma e nós devemos confiar.

Por vezes, a graça nos submete a provações tremendas. Considerem o episódio de São Pedro no Lago de Genesaré (cf. Mt 14, 22-31). Nosso Senhor estava caminhando vi sobre as águas, e chamou São Pedro para ir até Ele. O Apóstolo não teve dúvida, saltou da barca e principiou a andar. Em certo momento, olhou para a água e sentiu como aquilo era mole debaixo dos pés, teve medo e começou a afundar. Isso pode dar-se conosco. Começamos a fazer uma coisa desejada por Nossa Senhora, e aquilo parece afundar… Nesses momentos devemos nos ajoelhar e dizer a Ela:

“Minha Mãe, nesses transes permiti-me que Vos diga com todo o respeito que uma criatura Vos possa ter: Eu não tomo a sério o que está se passando. Sei que é uma provação permitida por Vós e que me põe numa situação dificílima, mas Vós fazeis isso para ver se eu confio. Se eu confiar, obterei. Minha Mãe, continuo a confiar em Vós e a ir para a frente!”

Às vezes, é preciso rezar e esperar anos, com uma série de fracassos pelo meio. Um dia, inesperadamente, aquilo tudo se realiza. Esta é a virtude da confiança!

Uma das maiores alegrias que o homem possa ter na vida é quando ele passa por um período onde parece que tudo vai contra a sua confiança, mas, apesar disso, em certo momento, ele vê que aquilo se realizou.

“Ainda que eu caminhe em meio às sombras da morte, não temerei os males”

Lembro-me de que eu era professor de História Medieval, Moderna e Contemporânea numa das faculdades da Universidade Católica de São Paulo, onde havia uma capela com o Santíssimo  Sacramento. Sempre que eu ia a essa faculdade, após as aulas, rezava diante do Santíssimo Sacramento, fazia uma visita à imagem de Nossa Senhora que estava lá e saía. Como em todas as épocas de minha vida, essa era também de muitas provações e da necessidade de muita confiança.

Certo dia, eu estava na capela – onde havia uma galeria de vitrais de um lado e de outro, com cenas da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo; e ao levantar-me, olho para um dos vitrais que estava mais abaixo, o qual representava, se não me engano, a Ressurreição do Redentor, onde estava escrito o seguinte: “Nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala…” (Sl 22, 4) – Ainda que eu caminhe em meio às sombras da morte, não temerei os males. E em outro vitral ao lado havia a frase: “…in lumine tuo autem vi debimus lumen” (Sl 35, 10) – Na tua Luz veremos a luz.

Aquilo me encheu a alma e compreendi: é preciso ter mais confiança. Plinio, anima-te! Nossa Senhora te ajudará! Então eu disse a Ela: “Nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala. Minha Mãe, ainda que eu ande nas sombras da morte, não temerei os males porque Vós me ajudareis. Minha Mãe, na luz de vosso olhar eu verei a Luz!” Pensei nessas coisas a propósito de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano. Maria Santíssima olha com o olhar tão interior, tão embevecido, não se sabe bem se para o Filho que Ela tem nos braços, ou para um filho ajoelhado diante d’Ela e que é qualquer fiel que vai ali rezar.

E temos a impressão de que podemos dizer-Lhe: “In lumine tuo videbimus lumen”. Na luz de vosso olhar veremos a verdadeira Luz, que é Jesus Cristo Nosso Senhor, que Vós trazeis nos vossos braços.

Vocação da Bem-aventurada Petruccia

Vejam a história da Bem-aventurada Petruccia. Ela recebe uma vocação: trabalhar para reconstruir e reformar uma igreja de Nossa Senhora nesse lugarzinho chamado Genazzano. De fato, a vocação era muito maior, ela não sabia. Não era só para Genazzano, mas para abrigar um dos maiores milagres da História, uma devoção que tem expansão pelo mundo inteiro. Ela gasta tudo o que tem e fracassa!

Aos 80 anos de idade, Petruccia, que esperava morrer depois de ver a igreja construída, recebe de todo o mundo sarcasmos e censuras: – Louca, gastou o seu patrimoniozinho, está aí vivendo de esmola, pesando sobre os outros e levantando aqui esses muros que nem chegaram até uma altura normal. Louca! Ela, com doçura, responde: – Não vos incomodeis… eu sei.

Ela poderia acrescentar: “Deus me falou na alma! Sei que antes de eu  morrer, essa igreja estará construída. Um dia, como tantos outros, a Bem-aventurada Petruccia devorava em silêncio a demora da promessa, quando, de repente, as nuvens se fazem sonoras, luminosas, e desce o afresco de Nossa Senhora, e permanece ali. Todos reconhecem o milagre: a pintura fica de pé, sem em nada se apoiar, e até agora ali está, sem ser segura por nada.

Entram as doações para a construção do templo que começa a se erguer logo, porque o afresco paira em cima da igreja apenas iniciada, no lugar onde, sem dúvida, Nossa Senhora desejava que fosse construído o altar.

Portanto, Ela queria aquela igreja. Assim, antes de Petruccia morrer, a igreja estava garantida. Pode-se imaginar a morte de Petruccia, em paz, dizendo um pouco como Simeão conforme narra o Evangelho: “Agora, Senhor, levai em paz a vossa serva porque meus olhos viram a igreja que me prometestes!” É a virtude da confiança.

“Você não morrerá sem ter realizado a finalidade de seu apostolado!”

No caminho que nós seguimos, devemos esperar de Nossa Senhora muito mais do que os outros homens esperam. Precisamos aplicar todos os nossos talentos e recursos para servir a Santíssima Virgem, mas compreendendo  que tudo isso, embora indispensável, não é suficiente. As coisas só funcionam se a Mãe de Misericórdia nos ajudar pela sua graça e pela sua providência.

É necessário termos confiança de que Ela nos ajudará, antes de tudo, para perseverarmos e sermos santos; e, em segundo lugar, para vencermos a grande batalha da Contra-Revolução. Em 1967, eu tinha passado por dissabores enormes devido a dificuldades de nosso apostolado. Foram tais os desgostos e os estorvos que adoeci gravemente. Fui levado ao hospital para exames médicos e, em face dos resultados, os médicos resolveram fazer-me uma operação.

Portanto, por cima de uma série de terríveis insucessos de apostolado, vinha uma doença grave que trazia, entre outros inconvenientes, o de constituir para minha mãe uma grande preocupação. No período que antecedeu a essa doença, caiu-me nas mãos fortuitamente – vejo que foi por desígnios da Providência, mas não lembro mais por que vias o fato aconteceu – um livro a respeito de uma devoção da qual eu já ouvira falar: Nossa Senhora do Bom Conselho, em Genazzano.

Apesar da amargura em que eu me encontrava, a leitura do livro causava na minha alma um bem-estar interno tão grande, que eu me dizia: “Não compreendo por que, mas isto me faz um bem espiritual extraordinário!”

Precisamente, alguém teve a caridade de me mandar vir da Europa uma estampa da Mãe do Bom Conselho, e levaram-me quando eu ainda me encontrava no leito do hospital. Quando fiquei colocado diante da estampa, deu-se comigo um fato que o livro, aliás, contava que acontecia frequentemente. Sem ocorrer nenhum milagre, sem haver movimentação na face de Nossa Senhora, a imagem mudava de expressão para estes ou aqueles que rezavam diante d’Ela.

E eu tive a noção de que a face da Santíssima Virgem mudava de expressão diante de mim e me olhava com muita ternura, muita bondade, muito materna, dando-me a certeza relativa ao ponto que mais me atormentava, e que era o seguinte: Quem sabe se esses insucessos de apostolado se devem a alguma imperfeição espiritual minha? Quem sabe se vou morrer prematuramente como castigo dessa imperfeição?

E por mais que eu faça exame de minha consciência, não encontro resposta para essas indagações. Há uma falta em mim e em que ponto? Tive a impressão de que a imagem respondia ao mais candente da pergunta: “Meu filho, esteja seguro de que você não morrerá sem ter realizado a finalidade de seu apostolado!”

Essa certeza me alentou depois em todas as outras provações. Posso garantir que os dissabores sofridos por mim posteriormente foram tão numerosos e terríveis que, se eu não tivesse essa promessa, teria morrido. Não tenho dúvida nenhuma. Se com os meus 76 anos tenho a alegria de estar rememorando esses acontecimentos, é porque essa imagem me deu esta confiança: a finalidade de meu apostolado, no fim, se realizará!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/2/1985)

“Momento há anos anelado!”

A visita de Dr. Plinio ao Santuário de Saint-Laurent-sur-Sèvre, onde descansam os restos mortais de São Luís Maria Grignion de Montfort,  marcou profundamente sua alma, pois desde a leitura  do “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” desejara peregrinar por aquele abençoado local.

 

 

Em setembro/outubro de 1988, Dr. Plinio viajou à Europa movido por importantes intuitos de vida interior, e objetivos de apostolado em diversos países desse continente. Um dos pontos altos dessa viagem- peregrinação foi, sem dúvida, a visita que fez ao túmulo de São Luís Maria Grignion de Montfort, missionário francês e autor do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, que tanto impressionara Dr. Plinio na sua primeira juventude.

Junto ao túmulo de São Luís Grignion

O automóvel que conduzia Dr. Plinio até Saint-Laurent-sur-Sèvre — pequena cidade na região francesa da Vendée, onde São Luís Grignion morreu e está sepultado — deslizava suavemente pela belíssima campina francesa. Desde o início do percurso Dr. Plinio ia recitando o Rosário, terços de jaculatórias e outras de suas orações diárias. Em certo momento, impactado pelo esplendor da paisagem, comentou: “Dir-se-ia que, em qualquer desses recantos, as árvores foram dispostas por um grande artista…” Quando já se aproximava de seu destino, o carro passou junto ao Rio Sèvre que atravessa a cidade, e Dr. Plinio pôde avistar as torres da Basílica onde se veneram as relíquias de São Luís Maria Grignon de Montfort. Ao distingui-las, exclamou: “Sim, senhor! Afinal, o encontro há anos por mim anelado. Desde o dia em que li o Tratado, formei o propósito de vir aqui”.

Uma vez na Basílica, Dr. Plinio dirigiu-se primeiramente ao túmulo de São Luís, situado numa ala lateral, e ali rogou por todos os seus discípulos e filhos espirituais, para que Nossa Senhora lhes concedesse a plenitude da devoção a Ela, o amor perfeito à Cruz, bem como o pronto advento do reinado de Maria, tudo conforme o ensina- mento de São Luís Grignion nas suas obras, especialmente no Tratado e na Carta Circular aos Amigos da Cruz. Ainda junto ao túmulo, rezou várias séries de jaculatórias, entre as quais a de “Regina Cordium” — Rainha dos Corações —, invocação muito fomentada pelo Santo, além de outra dezena de jaculatórias ao próprio São Luís.

A pedido de Dr. Plinio, os que o acompanhavam entoaram os cânticos do “Ave Maris Stella” e do “Veni Creator” (também recomendados pelo Santo), após os quais rezaram, em francês, a Consagração de si mesmo à Sabedoria Encarnada pelas mãos de Maria, composta por São Luís. Em seguida, como outra forma de súplica a São Luís Grignion, Dr. Plinio depositou seu próprio terço sobre o mármore da sepultura, gesto repetido pelos seus companheiros.

Um consolador sorriso do Santo

Logo depois, embora o tivesse feito durante a viagem, Dr. Plinio quis recitar novamente o Rosário, bem como a Ladainha Lauretana. Entre as intenções postas para essas preces, incluiu a da canonização das duas pessoas enterradas junto ao Santo: a religiosa co-fundadora do Instituto das Filhas da Sabedoria, Marie-Louise Trichet, (Marie-Louise de Jesus, em religião) e o Marquês de Magnanne, grande amigo e benfeitor de São Luis(1).

Quando terminava de rezar os Mistérios Gloriosos, um raio de sol penetrou através de um vitral da Basílica, coando uma bonita luz azulada que veio incidir apenas sobre ele. Após alguns instantes em que permaneceu iluminando Dr. Plinio, e conferindo essa coloração como que celestial àquele ambiente, a luz se dissipou, deixando a todos com a grata impressão de que, a partir da bem-aventurança eterna, São Luís lhes dirigia um consolador sorriso.

Cumpridas essas devoções junto ao sepulcro do Santo, e depois de venerar o crucifixo utilizado por ele em suas últimas missões apostólicas, Dr. Plinio se recolheu para receber a Sagrada Comunhão, ministrada por um dos padres do Santuário, no altar em que se encontra uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual São Luís Grignion costumava rezar. Durante a ação de graças, outro raio de sol osculou os vitrais e veio tocar a face de Dr. Plinio, desta feita com uma linda coloração avermelhada.

Supérfluo dizer que ele e seus acompanhantes saíram do Santuário com a alma repleta, decididos a retornar ali ainda uma vez, naquele mesmo dia.

Venerando as relíquias de São Luís

Quando se afastavam, o automóvel o levou novamente através das belas paisagens francesas. Ao contemplá-las, recordou-se Dr. Plinio de um dos seus brinquedos de menino: uma caixa — feita na França! — na qual podiam ser formados diversos cenários e panoramas. Comentou ele: “Eu, então, ia dispondo aqui e ali o produto de minha imaginação, com uma macieira, uma montanha, uma aldeiola, etc., concebendo uma França maravilhosa. Já mais velho, comecei a pensar: ‘A França será mesmo o que sem- pre imaginei, ou aquela ideia que fazia dela era uma fantasia de criança?’. Ora, viajando pelo interior desse país pude ver que, como afirmou Santa Joana d’Arc, Deus é o Rei da França, e fez coisas muito mais bonitas do que aquelas paisagens de brinquedo. Há lugares onde se vêem uma árvore, uma pedra ou a curva de um rio, e se tem a impresdíssimo. Na realidade, foi o próprio Criador quem realizou essas maravilhas”.

A fim de se refazer um pouco da viagem, Dr. Plinio se hospedou num pequeno hotel, a poucos quilômetros da Basílica de Saint-Laurent-sur-Sèvre. Conforme havia planejado, à tarde retornou ao templo. Infelizmente, porém, o encontrou fechado, não lhe sendo possível rever o túmulo de São Luís. Contudo, uma religiosa teve a delicadeza de abrir para ele a sala das relíquias do Santo, onde pôde ad- mirar seus aramentos, oscular várias imagens esculpidas por São Luís, e repousar suas mãos sobre a escrivaninha utilizada pelo autor do Tratado da Verdadeira Devoção.

Saindo dali, Dr. Plinio visitou uma imagem miraculosa, também entalhada pelo Santo, numa capela das Filhas da Sabedoria, chamada por essa razão La Sagesse. Durante as perturbações da Revolução Francesa, essa imagem havia sido escondida dentro de uma parede. Tempos depois, freiras que passaram pelo local em diversas ocasiões ouviram uma voz que suplicava: “Tirem-me daqui!”. Mandaram então abrir a parede, e lá estava a preciosa imagem da Santíssima Virgem…

Mais do que mil Chambords!

Ao deixarem a Sagesse, um dos acompanhantes de Dr. Plinio comentou-lhe:

Este foi um grande dia, não? Ao que Dr. Plinio respondeu:

Este dia de peregrinação a Saint-Laurent-sur-Sèvre foi para mim inesquecível. Tudo ali nos falava mais densa- mente do Céu, da ordem espiritual, além de tonificar em nós a ideia de que nossa vocação está ligada à de ser mestre, profeta e homem de fogo que foi São Luís Grignion.

E quando perguntado se Saint-Laurent-sur- Sèvre o havia impressionado mais do que o Castelo de Chambord e a sala gótica da “Conciergerie”, em Paris, aos quais ele muito elogiara, Dr. Plinio ponderou:

“Não podemos nos esquecer de que as ordens espiritual e temporal estão uma para a outra numa relação parecida com a chama e a lamparina junto ao Santíssimo Sacramento. A lamparina é a ordem temporal: convém que a parte de metal seja muito bonita, o recipiente de cristal vermelho para o azeite seja ótimo, e o próprio azeite, mui- to puro. Porém, a chama é a ordem espiritual.

“Assim também, em Saint-Laurent, sentindo-se a presença de São Luís Grignion, conhecemos e desfrutamos algo que vale não sabemos quantos mil Chambords, “Conciergeries” e outros esplendorosos monumentos engendrados pelo genial talento francês…”

 

Plinio Corrêa de Oliveira 73 (Abril de 2004)

1 ) O Papa João Paulo II beatificou Marie-Louise em 1993, e, sendo devoto de São Luís Grignion, fez uma peregrinação ao túmulo dele em 1996.

 

 

Inocência e as noções primárias do ser

O desenvolvimento do senso do ser, a construção da mentalidade e das reflexões no homem fiel à sua inocência batismal era tema sobremaneira caro a Dr. Plinio, a respeito do qual discorreu em diversas oportunidades ao longo de sua vida. Sempre permeando tais exposições com expressivos e didáticos exemplos, como poderemos constatar nas considerações transcritas a seguir.

 

Pediram-me que tratasse sobre a inocência, tema tão vasto quanto complexo. Por isso, abordarei apenas um aspecto dele, fazendo o apanhado do ponto de vista filosófico-prático, sobre a coerência e a contradição na alma do inocente.

Aceitação, rejeição ou indiferença

Imaginemos uma criança nos passos iniciais de sua vida. Ainda não fala, exprime-se por gestos ou pelo balbucio de algumas sílabas, e em sua mente desenham-se esboços de pensamentos. Ao lhe ser mostrado algo, ela tem um conhecimento elementar e superficial, do qual decorrem três atitudes: deseja aquilo e estende a mão para apanhá-lo; rejeita-o, afastando-o ou virando o rosto para outro lado; ou pode não manifestar reação alguma em relação ao objeto. Portanto, a criança toma uma dessas posições: aceitação, rejeição ou indiferença.

Então, antes mesmo de formar um juízo elaborado a respeito do que tem diante de si, ela sente e assume uma dessas três atitudes.

Suponhamos que o menino esteja deitado num berço, coberto na parte da cabeceira por pequeno dossel. Alguém toma uma bonita bola, brilhante, usada para enfeitar árvore de natal, e a pendura no dossel. A criança pode ficar encantada e querer segurar a bola, ou permanecer indiferente, ou, se for de maus bofes, olhar meio vesga e fazer careta.

Por que razão ela toma tais atitudes? Se alguém analisasse várias reações assim de uma criança, poderia discernir alguns movimentos que irão determinar a orientação dela durante a vida?

Tais indagações me vinham freqüentemente ao espírito no tempo em que havia muitas crianças passeando na Praça Buenos Aires(1), conduzidas por uma “nurse”, “Fräulein”, “mademoiselle”, babá, ou pela própria mãe. Eu notava suas reações diante dos fatos. Passava, às vezes, um caminhão fazendo seu barulho característico e medonho, o menino permanecia indiferente. Dali a pouco um cachorro latia, a criança se assustava. Mais adiante via uma flor e queria apanhá-la. Sucedia em certas ocasiões que, levada pela mãe, esta encontrava uma pessoa conhecida e parava para conversarem. A amiga fazia um agrado no pequeno, e este virava o rosto, causando desapontamento na sua progenitora, desejosa de provar que seu rebento herdara o bom gênio da família…

Notícia e seletivo

Qual a razão desse movimento? O que se passa na alma da criança? Ela já conhece algo, tanto é que reage. Se não conhecesse, não reagiria.

Na realidade, ela não tem propriamente ciência, mas o que, em filosofia, chama-se notícia. A visão e os demais sentidos lhe transmitem notícia sobre os fatos. Mas, nota-se que a criança possui um seletivo. Selecionar é uma operação que supõe aceitação de umas coisas e recusa de outras. E esta última, por sua vez, apresenta duas modalidades: rejeição na sua totalidade (a qual é manifestada, por exemplo, empurrando o objeto que lhe é mostrado); e a segunda, por indiferença. Como já dissemos, se a criança aceita, ela procurar segurar o que lhe interessa.

Esse seletivo possui certos critérios de escolha antes mesmo de a inteligência ter elaborado raciocínios. Essa faculdade trabalha ainda de um modo rudimentar, incompleto, enquanto o seletivo já inicia seu operar.

Tal tabela de valores, de preferências, recusas e indiferenças é desenvolvida pela criança ao longo de sua vida, sofrendo algumas modificações, de vez em quando perdendo algum atributo, adquirindo outros, etc., mas em suas linhas gerais ela o conserva até o fim da existência.

Manifestação do senso do ser

Retomamos, então, a pergunta: quais são esses elementos iniciais, esse ponto de partida no qual se acha escrito o fim da vida?

 Pensemos naquela criança deitada no berço, olhando a esmo para o ambiente que a cerca. De súbito, uma mão materna, afável, pendura diante dela uma bola lustrosa, azul “bleu-de-roi”, dourada ou vermelha, presa por uma fita de seda cor-de-rosa ou azul claro. Ela tem noção de que ali não estava a bola, que em determinado momento surgiu à sua frente.

O bebê não se pergunta por que a bola apareceu, quem a pôs, etc. Sua reação simples, primária, é: a bola. Talvez nem saiba dizer “bola”, mas o primeiro pressuposto consiste na noção de que ele é e a bola é, e daí se estabelece uma relação entre os dois, aceitação ou recusa, etc.

Verifica-se aqui o processo mental humano de se desprender da noite do não-criado para o criado, do não-ser para o ser. A criança é, mas há pouco tempo atrás ela não era. Vê-se que na primeira atitude tomada por ela há um primeiro olhar da inteligência, no qual seu espírito capta, pelos dados que lhe fornecem os sentidos, o fato de que algo é: “a bola é, eu sou”.

O que significa o verbo “ser”? O menino nem chega a definir isso, a primeira noção é que ele é, e a bola é. Segunda: ela e a bola não são a mesma coisa. Terceira: uma vez que as duas coisas são, tem de haver uma relação entre ambas. Normalmente a criança não pode ser indiferente à bola e talvez a bola não seja, sob certo aspecto, indiferente a ela. O menino vê a bola e acha que esta constitui um bem para ele, o completa em algum ponto, estende a mãozinha e pega a bola. Logo depois, instintivamente, a põe nos lábios. É a ideia incipiente de que aquele bem contido na bola fica participando dele, se a lamber e morder.

O grande problema da vida: somos incompletos

Portanto, esse movimento vem acompanhado da noção obscura, profunda, de que a ela, criança, faltam coisas existentes em outros seres. Ela tem vontade de se apropriar daquilo que contém um grau de beleza que não sente em si mesma. E não só de possuir, mas também de comer. Suponhamos que ela visse uma bonita cereja ou nêspera. Estando ao seu alcance, ela iria diretamente comê-las, pois sente a necessidade de complementação.

A criança tem, então, a impressão de que algumas coisas a completam, e outras não. Ela quer as primeiras e afasta as últimas, pois as julga malfazejas. Assim, juntamente com o conhecimento de que ela é, aparece a ideia confusa, instintiva, tendente a ser quase um circuito de sensações, pela qual percebe no que é completa, e, por outro lado, os pontos em que não o é. E procura realizar em si uma totalidade de algo que ela sente não ter. Começa aí, para cada um de nós, o grande e verdadeiro problema da vida: eu sou incompleto. Sinto falhas, lacunas em mim, talvez instintivas, não sou capaz de exprimi-las em palavras. E sinto-as de tal modo que algumas coisas causam-me a impressão de me completarem, outras, pelo contrário, constituem uma demasia e me deformam. Outras, ainda, me deixam indiferentes.

Esse problema da complementação de si mesmo vai se estender ao longo de toda a vida do homem. E embora sem dizer, se formos analisar tudo quanto ele procura na sua existência, perceberemos tratar-se de algo que acha necessário ter; e todas as coisas que evita, o faz por julgá-las supérfluas ou nocivas. Ele tem, portanto, um seletivo originado de um conhecimento instintivo e elementar de si próprio, de suas atrações, fobias, bem como do que lhe é conveniente ou inconveniente.

Errôneo seria pensar que a criança não é passível de engano nessa seleção. Afirmo mesmo o contrário: com freqüência ela se equivoca. Por exemplo, deseja comer a bola a qual não é comestível e lhe causaria graves danos se fosse ingerida. Além disso, a criança toma toda a aparência como contendo a realidade, pensa que a bola é maciça, feita de uma substância daquela cor. De fato, a bola é vazia e quebradiça, como tantas outras coisas da vida.

A pergunta interessante que se põe é como seria esse seletivo no homem antes do pecado original. Suponhamos que Abel — o perfeito, o predileto, pré-figura de Nosso Senhor Jesus Cristo — tivesse sido concebido por Adão e Eva antes da queda, e nascido no Paraíso terrestre. Como seria a inocência de Abel? Como ele tomaria contato com as maravilhas do Paraíso? Qual seria a conduta dos animais, das plantas, etc., para com Abel pequenino?

  Respondendo a essas indagações teríamos ideia do “plano A de Deus”(2) quanto aos homens, e como se desenvolveria a inocência da criança de modo perfeito, sem as claudicações e desordens oriundas da culpa original.

Disso trataremos em próxima exposição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio 85 “Abril de 2005”)

 

1) Situada em frente ao apartamento em que Dr. Plinio residia com seus pais, desde o início da década de 1950.

2 ) Conforme ensinava Dr. Plinio, para cada pessoa, família, nação e até para a humanidade, Deus tem um plano, cumprido o qual elas atingem a perfeição e, assim, dão glória ao Criador: é o plano A. Sendo infiéis a este desígnio primeiro, o Altíssimo lhes oferece um plano B. Mas, além de ser justo, Deus é misericordioso. E, na sua infinita bondade, a alguns que não seguiram seu plano A, Ele lhes proporciona um plano A+A.

Oração: Ó Mãe boníssima

Cada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos em determinada celebração.

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o “mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo, a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.

(Extraído de conferência de 7/4/1966)

Despretensão: ensinamento e exemplo divinos

Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deu-lhes o divino exemplo de despretensão: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero humano, Jesus indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor e mais apagado, deve sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu apostolado seja fecundo.

 

Comentarei um trecho do Evangelho de São Lucas, muito propício para as comemorações da Paixão de Nosso Senhor.

Ora, houve uma discussão entre eles sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus, porém, lhes disse: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo. Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações. Por isso, assim como o meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Havereis de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e vos sentareis em tronos para julgar as doze tribos de Israel(1).

Desigualdade das classes sociais

Trata-se de uma discussão entre os Apóstolos durante a Ceia. É curioso que, depois de Jesus lhes ter lavado os pés, instituído a Eucaristia, eles discutam entre si a respeito de quem seria o maior.

Isso poderia ser chamado de pretensão, e tenho a impressão de que estaria perfeitamente bem designado. Na hora mais augusta, mais sagrada, quando eles deveriam se preparar para os maiores sacrifícios, sua preocupação era de quem seria o maior. É uma coisa completamente extrapolada, colocada fora da linha em que deveria estar.

E Nosso Senhor lhes dá uma lição, dizendo-lhes incidentalmente uma série de coisas, que valeria a pena comentar. Afirma o Redentor: Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve.

Vemos aqui uma afirmação muito interessante da legitimidade da desigualdade das classes sociais, feita por Nosso Senhor. Ele pergunta: o que é mais, ser servido ou servir? E responde: ser servido é mais do que servir; o servidor é menos do que aquele a quem ele serve.

A autoridade existe para o bem dos subordinados

Quer dizer, há uma desigualdade que vem da natureza das coisas. E essa desigualdade, que é um fato legítimo, o Divino Mestre toma como ponto de partida para exprimir a posição d’Ele: Jesus está no meio dos discípulos como aquele que veio servir.

E aqui está a enorme lição de despretensão, como quem diz: “Se Eu Me coloco como servidor, como cada um de vós quer ser considerado o primeiro em relação aos outros?” Aqui está a coisa acachapante. É contrária ao espírito de Nosso Senhor, a toda a lição de sua vida, à doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação de se fazer valer, de se colocar acima dos outros. Em sentido oposto, diz o Redentor, os que mandam devem ser como os que servem.

Qual o significado disso? No caso d’Ele, o sentido é evidente: Jesus veio para remir, salvar os homens. Ele estava ali como pastor que salva suas ovelhas, portanto, para o bem deles. É a autoridade constituída para o benefício daqueles sobre os quais deve mandar. Daí vem a ideia de que a autoridade tem um fim dentro de uma ordem posta por Deus; ela precisa ser servidora desse fim, e por isso deve cercar-se de esplendor, de grandeza, de pompa. Nosso Senhor louvou a mulher que derramou unguento precioso sobre a cabeça d’Ele.

Quem manda existe para o bem de seus subordinados. E aqueles que obedecem devem compreender e amar a autoridade e o princípio de autoridade, o qual é altamente benéfico.

Megalice de certos soberanos da antiguidade

Continua o Divino Salvador:
Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo.

A megalice(2) dos reis nas épocas anteriores a Nosso Senhor era uma coisa incrível. Os monarcas assírios, por exemplo, mandavam esculpir nas pedras dos rochedos os relatos dos seus feitos. E, para que não se apagassem, era colocada uma espécie de porcelana coberta com vidro, de maneira que eles tinham a esperança de que durante séculos ainda se lessem aquelas inscrições. E em muitos lugares ainda hoje podem ser lidas. Eles contavam coisas que eram evidentemente falsas. Uma dessas inscrições, que eu li, narrava que, numa caçada, o rei tinha domado um leão, pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava de um leão velho, que havia sido embebedado previamente pelos cortesãos, ou era simplesmente uma megalice sem nome!

Aqueles imperadores romanos… quanta megalice! A veneração que faziam lhes prestar, o modo pelo qual dominavam e oprimiam os outros, dirigiam tudo pela força, e tantas outras coisas. Já tive ocasião de comentar neste auditório o respeito que se tributava aos faraós. Li aqui certa vez uma carta ao faraó, escrita por seu agente consular na Assíria, na qual dizia: “Eu, que sou indigno de beijar os vossos pés, indigno de beijar as patas de vossos cavalos; beijo o pó onde as patas de vossos cavalos se puseram”. Esse era o clima de megalice que os soberanos daquele tempo criavam.

Nosso Senhor mostra que quem é católico deve servir. Embora sua autoridade seja muito grande e transpareça bastante, ele, como indivíduo, deve eclipsar-se por detrás de sua própria autoridade.

O princípio, o cargo, a missão, o poder valem muito, o indivíduo vale pouco.

Jorge V e Rainha Mary

Certa vez li numa revista de História um fato a respeito de Jorge V, esposo da Rainha Mary. Todas as noites em que não recebiam visitas no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola, enquanto um secretário ia trocando os discos. Quando chegavam às dez horas em ponto, os monarcas se levantavam e o secretário colocava o disco com a música “God save the King” — Deus salve o Rei —; Jorge V tomava atitude de continência, e a Rainha ficava em posição de oração. Terminada a audição, iam dormir.

E Rudyard Kipling(3) comentou que isso era a verdadeira humildade. Jorge V, detentor da autoridade, compreendia que o cargo, a dignidade, era grande, mas a pessoa dele, nada. E por isso tomava uma atitude de respeito diante de seu próprio cargo. Nesse ato, o Rei prestava continência à realeza; e a Rainha rezava, como uma fiel qualquer, por aquela que era a Rainha da Inglaterra. Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa e o engrandecimento do cargo.

Reis de França e Imperador Francisco José

Nos tempos de monarquia cristã havia fatos nesse sentido. Quando os Reis de França saíam da Catedral de Reims, após serem coroados, o povo acreditava — e parece que algum fundamento havia nisso — que eles tinham o poder de curar a escrófula(4). Então, filas de escrofulosos repugnantes ficavam à espera do novo Rei na saída da catedral, o qual tocava cada doente com a mão e dizia: “Le Roi te touche, Dieu te guérisse — O Rei te toca, Deus te cure”. Diziam os cronistas do tempo que muita gente ficava curada. Quer dizer, depois daquele esplendor máximo da realeza — a coroação de um Rei de França era uma cerimônia fabulosa, em que aparecia o cargo e não o homem —, o monarca condescendia em tocar com suas mãos régias os enfermos mais repelentes do seu reino, para curá-los, usando de um carisma que reconhecia não proceder dele. A frase “O Rei te toca, Deus te cure” queria dizer: “O Rei sabe que não cura nada, quem cura é Deus. O Rei é um mero instrumento para que a ação de Deus se exerça”.

O exemplo de Nosso Senhor foi imitado nos tempos em que a Igreja era unida ao Estado, em todas as monarquias europeias. Pouco antes da guerra de 1914-18, em que quase toda a Europa era monárquica, na Quinta-feira Santa os reis iam lavar os pés dos pobres. Francisco José, por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria, lavava os pés dos pobres na Catedral de Viena. E um dos significados desse ato era este: uma é a dignidade do Imperador, e outra, a situação dele enquanto indivíduo, que devia estar sujeito a todas as humilhações, por mais que o cargo por ele ocupado fosse excelente.

O Papa, “servidor dos servidores de Deus

Os próprios Papas realizavam o lava-pés. De um lado o Papa imita Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade pontifical, como a dignidade régia, deve tocar os pobres —; mas, de outro lado, esse ato significa a humilhação do homem, indicando o desaparecimento da pessoa, mesmo no esplendor do cargo e da função.

Vemos assim, na tradição cristã, a aplicação do ensinamento do Divino Mestre. O Papa, chamando-se a si próprio “servidor dos servidores de Deus”, evoca uma reminiscência do que Nosso Senhor disse.

Então, para praticarmos adequadamente a despretensão, devemos compreender que toda grandeza terrena deve existir — porque Deus quis que houvesse grandes na ordem espiritual, como na ordem temporal —, e precisa cercar-se do esplendor que lhe é próprio; mas o homem que está colocado nesse lugar de grandeza deve saber apagar-se. E aqueles que estão longe da grandeza, não possuem o cargo, não o devem invejar. Para o vaidoso, o que adianta ter um cargo se não pode se gabar dele? Nenhum cargo, nenhuma situação pessoal, na qual o indivíduo não possa consentir no envaidecimento, não lhe adianta de nada.

São Vicente Ferrer: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”

Lembro-me que li, numa biografia de São Vicente Ferrer, um fato muito curioso. Ao chegar a Barcelona — ele era grande missionário —, foi-lhe preparada uma recepção apoteótica. Todo o povo estava reunido, das janelas pendiam tapetes preciosos, ele caminhava debaixo do pálio, carregado pelos nobres da cidade. Durante o cortejo, alguém desconfiado perguntou-lhe: “Irmão Vicente, não estás vaidoso?” Ele respondeu: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”.

O que adianta para um homem receber todas essas homenagens, se ele é obrigado a resistir à tentação de se envaidecer? Não adianta nada. Porque, se é para ficar vaidoso, há um prazer terreno. Mas, se não pode se envaidecer, andar devagar no meio daquele povo aplaudindo, e ele resistindo contra a tentação, é muito cansativo. Quando termina, ele desabafa: “Uf! Acabou a tentação; ao menos estou trancado na minha cela, sozinho”. Esse é o verdadeiro dinamismo das coisas.

Quem deseja aparecer não imita Nosso Senhor Jesus Cristo

Precisamos ser muito cautelosos. Sempre que estamos apetecendo uma situação de mando, de destaque, de influência, devemos tomar cuidado, pois facilmente nos apegamos a isso para nos mostrarmos. E, se consentirmos ao desejo de aparecer, não estaremos imitando o exemplo de Nosso Senhor, o qual indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor, apagado, sacrificado, e imolar-se.

Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção: “Mas, Dr. Plinio, o senhor nos diz isso com uma ênfase, como se estivéssemos na iminência de sermos eleitos presidentes da república! Ora, acontece que nós, sendo membros do Movimento, não estamos em via de ser eleitos para nada e nem temos, ao menos de momento, um eleitorado muito grande. Então, por que o senhor nos fala essas coisas?”

Digo isto porque não se trata apenas de cargos, mas de situações nas quais se exerce alguma influência numa roda de pessoas: querer ser o primeiro numa conversa, numa mesa de refeições; aquele que conta a piada mais engraçada; conhece a última novidade ou comentário sobre nossa vida interna e o transmite para o pobre basbaque que ainda não sabe; está a par das coisas mais importantes; diz a coisa mais audaciosa em matéria de doutrina. Tudo isso são coisas que significam preeminência e dão apego. E disso tudo devemos mostrar-nos desapegados, lembrando o ensinamento e o exemplo de Nosso Senhor.

A pretensão torna estéril o apostolado

Quanto maior é a pretensão de uma pessoa, mais estéril é seu apostolado, porque só faz apostolado fecundo quem está unido ao Divino Mestre. Quem não está unido ao Redentor é como a vinha que está destacada do sarmento.

Como podemos estar unidos a Ele, se temos pretensão? Não estou afirmando que sejamos todos uns poços de pretensão. Mas quero dizer que todo homem, na melhor das hipóteses, é como São Vicente Ferrer: está sempre com a pretensão esvoaçando em torno dele. Isso é evidente. Então, cuidado! Ainda que recebamos manifestações tão mais modestas do que as prestadas a São Vicente Ferrer, devemos lutar contra a pretensão, de todos os modos e com todo o empenho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1969)

1) Lc 22, 24-30.
2) Megalice: termo criado por Dr. Plinio a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.
3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), escritor inglês.
4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos do pescoço.

Num olhar de Maria, a imensidade de suas virtudes

Entre as características de Dr. Plinio que mais impressionavam seus circunstantes estava sua profunda devoção à Santíssima Virgem. Eram patentes sua veneração, enlevo e entusiasmo pela Mãe  de Deus na maneira de ele rezar, no modo respeitoso e ao mesmo tempo carinhoso de a la se referir, no costume de em tudo se reportar a Ela, e até nos imponderáveis de seu agir.  Em vista disso, certa feita, durante uma reunião, um de seus discípulos lhe pediu que abrisse um pouco o coração a respeito do seu relacionamento de alma com Nossa Senhora. Abaixo transcrevemos as palavras com que Dr. Plinio procurou atender a tão justo pedido.

 

Buscando explicitar para mim mesmo o que tanto me atrai em Nossa Senhora, encontrei uma figura tão simples como mais não se pode conceber, e que exprime bem o meu pensamento. Com a ressalva de que o exemplo talvez não se verifique inteiramente exato no que concerne a Geometria (da qual possuo sumários conhecimentos…), imaginemos um poliedro regular.

Analisando-se uma de suas faces, é possível intuir como são as outras, com suas características e dimensões. Assim é Nossa Senhora. Em virtude de sua perfeição supereminente, possui Ela em grau igualmente incomensurável todas as qualidades de que seja capaz uma criatura humana. E, portanto, ao considerarmos  uma delas, podemos perceber o valor e a magnitude das demais.

Contemplando, digamos, o teor da virtude da Caridade em Maria, nos será dado discernir a riqueza de sua Fé e de sua Esperança. O mesmo sucede com as suas virtudes cardeais e com todos os excelsos predicados de que A enriqueceu a Santíssima Trindade.

Atraído pela inesgotável compaixão de Nossa Senhora

Contudo, o que primeiramente mais me tocou em Nossa Senhora não foi tanto a virginal, régia e insondável santidade dEla, mas a compaixão com que essa santidade olhava para quem não é santo, atendendo com pena, com desejo de dar, com uma misericórdia cujo tamanho era o das outras qualidades.

Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca um suspiro de cansaço, de extenuação, de agastamento. Sempre disposta, não só a repetir-se a Si própria, mas a superar-se a Si própria. De maneira que, dispensada tal misericórdia, e sendo ela mal correspondida, vem uma misericórdia maior. E, por assim dizer, nossos abismos de ingratidão vão atraindo a luz para o fundo. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as suas graças se prolongam e se iluminam em nossa direção.

Um olhar que comunica calma para a vida inteira Eu mesmo experimentei essa maternal compaixão quando, na infância, pela primeira vez atinei com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Naquela hora, não tive nenhuma visão, nenhum êxtase, nenhuma revelação. Mas, pela ação da graça, senti-me tocado como se a imagem me olhasse.

Se fosse possível comparar o miosótis com o sol, eu diria que esse olhar de Nossa Senhora operou em mim um efeito análogo ao do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, durante a Paixão. O Príncipe dos Apóstolos O renegou, o galo cantou, e Jesus olhou para o discípulo infiel. Nesse instante, São Pedro se sentiu tomado por inteiro. E ele, que havia visto tudo quanto os Evangelhos narram — ou como testemunha direta, ou tendo recebido uma repercussão imediata dos acontecimentos — foi objeto de uma graça ímpar, que reavivou em sua alma, de modo intenso e  esplendoroso, tudo o que ele conheceu da infinita bondade de Nosso Senhor. E essa lembrança venceu a ingratidão dele. Por isso, diz a Escritura:

“Et flevit amare — E chorou amargamente”. Daí vem a grande contrição de São Pedro, que constitui um dos mais belos fatos da história dos Santos.

Também eu, no momento daquela graça diante da imagem de Nossa Senhora, tive conhecimento como que pessoal da indizível misericórdia d’Ela, de sua inexcedível bondade a me envolver todo, de maneira tal que, quisesse eu fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou…”

Como resultado desse celestial favor, tornei-me calmo para o resto de minha vida. Porque, seja o que for e como for, uma vez que nós, homens, estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar. No fundo, aquele que não é brutalmente insensível com Nossa Senhora, e para Ela se volta, d’Ela acaba recebendo sempre proteção e socorro em suas dificuldades.

E precisamente uma das coisas que mais me enlevaram, e que, dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto ficou-me bem clara, foi o fato de que aquela solicitude materna não representava um privilégio para mim, mas é a atitude d’Ela para com todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em tratar alguém como um privilegiado, porém não foi disso que eu tive cognição. Antes, compreendi o contrário: “Veja que você é um Zé da rua, e Ela trata da mesma forma a todos os Zés da rua. Para qualquer um, para todos os homens que existiram, existem e existirão, para todos os pecadores que transitam pelas cidades, que enchem as casas, os ônibus e os automóveis, Ela é exatamente assim”.

Volto a dizer que fiquei calmo para a vida inteira. Causa-me muita pena ver alguém, sobretudo um jovem, nervoso e com problemas. “Por que não lhe ser comunicado um olhar como o que recebi de Nossa Senhora?” — penso eu. “Ele ficaria calmo até o fim dos seus dias”.

Medindo a profundidade dessa clemência sem limites, vêm-me ao espírito aquelas palavras que a Santíssima Virgem, no Magnificat, diz do Padre Eterno: “Et misericordia ejus a progenie in progenies timentibus eum”.

Ou seja, a misericórdia divina se estende de geração em geração a todos os que O temem. A tal propósito, sempre pensei: “É bem verdade, e isto se dá por meio d’Ela. Maria é a misericórdia inesgotável, que não se extingue, que se multiplica solícita, bondosa, que toma nossa dimensão, que se faz até menor do que nós para nos pegar, de pena de nós.”

Pureza, fortaleza e sabedoria

Na dimensão dessa misericórdia, e nela contida, vem a ideia da virginalidade. Nossa Senhora é pura, de um grau de pureza do qual não se tem noção. Conhecida a misericórdia, se conhece a pureza. É novamente a figura do poliedro. Todas as purezas que se possam imaginar não chegam nem de longe aos pés da pureza d’Ela, que é feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um impulso de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém. É um ímpeto inteiro, de uma força, de uma integridade, de um desejo de Absoluto como também não se pode medir. Está na dimensão da misericórdia.

Supérfluo dizer que, nessa concepção de pureza, entra também o sentido de castidade, perto da qual a neve seria um carvão.

Essa pureza, no meu modo de entender, traz consigo a ideia da fortaleza. E fortaleza aqui não significa apenas algo que nada quebra. É diferente. Nada tem comparação possível com essa fortaleza.

O que Ela, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte e se liquida, e o universo inteiro é zero, pela força da vontade de Nossa Senhora. Quando Ela decide, é uma resolução que torna impossível a resistência de quem e do que quer que seja. É uma soberania e um domínio de igual dimensão da misericórdia e da virginalidade, uma envergadura para a qual não há palavras humanas. Todas as armas modernas são pobres e inofensivos brinquedos em comparação com um ato de vontade d’Ela. Por sua vez, essa misericórdia, essa pureza e essa fortaleza trazem uma idéia da sabedoria da Fidelíssima Esposa do Espírito Santo.

Ela conhece tudo, e as inter relações de todas as coisas, com acuidade tão superior que Ela penetra até as entranhas de todo ser, vê como é cada qual e discerne a ordem de Deus no universo, tão  grande, tão inabarcável! Diante de sua sabedoria lúcida, adamantina, na qual não cabe nenhuma dúvida, compreendemos mais uma vez qual é a imensidade da pureza e da fortaleza da Virgem Santíssima.

Essas são as virtudes marianas que mais me chamam a atenção quando me lembro daquele olhar da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, eu te quero”  — “Minha Mãe, eu sou vosso”

Alguém poderá me dizer: “Mas, Dr. Plinio, o senhor contemplou esse olhar como um menino de onze ou doze anos. E depois, nunca mais houve algo assim?” Respondo que, para mim, essa graça foi tão excepcional que permaneceu como um sol a iluminar toda a minha existência. É como se tivesse acontecido ontem. Como se, naquele momento, Ela me houvesse dito: “Meu filho, eu te quero”, e ouvisse de mim: “Minha Mãe, eu sou vosso”.

Poderão, ainda, perguntar-me: “E nesse relacionamento do senhor com Nossa Senhora, onde se encontra Nosso Senhor Jesus Cristo?”

Eu respondo: em tudo! É a ideia desenvolvida por São Luís Grignion de Montfort no seu célebre “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”. Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está Nosso Senhor Jesus Cristo, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos d’Ele.

Minha devoção a Ele passa por Ela, e, por isso, nunca alguém me vê proferir uma palavra de adoração a Nosso Senhor, sem que logo depois eu não fale de sua Mãe Santíssima. É sistemático. Outros poderão todavia observar: “Muitas vezes o senhor se refere a Ela sem mencioná-Lo”. É isso mesmo. Porque, sendo Jesus infinitamente maior do que Nossa Senhora, está Ele contido de  modo implícito em toda referência que eu faça a Ela. A recíproca, porém, não se verifica. Razão pela qual procedo dessa forma e, se Ela me ajudar — queiram ou não queiram, agrade ou não agrade — assim procederei até morrer.

Plinio Corrêa de Oliveira

A Santa Igreja, espelho das virtudes de Maria

Ao comentar os ardorosos louvores que Santo Agostinho dirige a Nossa Senhora, Dr. Plinio tece um paralelo entre os excelsos predicados de Maria e a Santa Igreja Católica Apostólica Romana — virgem na sua perfeição sem mácula, e mãe de todos homens nela batizados e engendrados como filhos de Deus.

 

O grande Santo Agostinho deixou-nos esse belo texto a propósito das virtudes de Nossa Senhora:

Ó Maria, cumpristes perfeitamente a vontade do Pai Celeste. Vossa maior honra, vossa maior felicidade não foi de ter sido a Mãe, mas a discípula de Cristo. Bem‑aventurada sois por terdes ouvido o Verbo de Deus e conservado [sua palavra] em vosso coração. Vós guardastes a verdade de Cristo em vossa inteligência, mais ainda que sua carne em vosso seio. Não se saberia comparar‑vos às mulheres do Antigo Testamento, a Ana, a Suzana. A que alturas não vos elevastes acima delas? Aqui ainda não falamos na santa virgindade; vossas outras virtudes, ó Maria, há no mundo alguém que as ignore?

Maria, “beleza e dignidade da Terra”

Para exemplo e ensinamento para todas as mulheres, convém somente não esquecer vossa santa e admirável modéstia.

Cumpre ressaltar que, na linguagem católica, modéstia não significa acanhamento, nem a pessoa estar de olhos baixos, apagada, sumida. Trata-se de ter boas maneiras, compostas e elevadas, de acordo com a virtude cristã. Prossegue o comentário de Santo Agostinho:

Vós fostes julgada digna de conceber o filho do Altíssimo e, entretanto, permanecestes a mais humilde de todas as criaturas; porque fizestes sem cessar a vontade de Deus, sois segundo a carne e o espírito, a Mãe de Cristo, sua Mãe e sua irmã, mulher única, mãe e virgem, e o sois corporal e espiritualmente.

Mãe da nossa cabeça, que é o Salvador,  sois também, e perfeitamente, mãe de todos os membros de Cristo, porque cooperastes, por vossa caridade, para o nascimento dos fiéis na Igreja.

 Única entre todas as mulheres sois, ainda uma vez, mãe e virgem. Mãe de Cristo e virgem de Cristo. Foi por vós, ó Mãe do Senhor, que a dignidade virginal começou sobre a Terra. Por Vós, ó Maria, que merecestes ter um filho, mas que o merecestes sem deixar de ser virgem. Para honra do Salvador Jesus, o pecado não se aproximou de Vós. Sabemos que para vencer o pecado, e vencê-lo por completo, foi dada a graça abundante à criatura digna de conceber e de cuidar do Impecável.

A beleza e a dignidade da Terra sois Vós, ó Virgem, que fostes sem cessar a figura da Santa Igreja. Por uma mulher, a morte; por uma mulher, a vida. E essa última sois Vós, ó Mãe de Deus.

Assim como Nossa Senhora, a Igreja é virgem e mãe

Desse lindo trecho de Santo Agostinho parece-me oportuno salientar o pensamento final, quando ele se refere a Nossa Senhora como sendo a figura perfeita da Santa Igreja Católica. Se ousarmos aprofundar a ideia do insigne autor, poderíamos nos perguntar em que sentido a Igreja, assim como Nossa Senhora, é igualmente virgem e mãe, tornando-se, por sua vez, imagem magnífica de Maria Santíssima.

A Igreja é virgem no sentido de que manifesta uma santidade inteira, sem nenhuma forma de condescendência para com o mal. Por causa disso, nela não se acha mácula alguma e é, portanto, intacta como uma virgem consagrada a Deus.

Por outro lado, ela é mãe, pois todos os homens nascem para a vida espiritual de dentro da Igreja; no seio desta são batizados e engendrados como filhos de Deus e irmãos de Nosso Senhor Jesus Cristo. E ela procede como uma mãe em relação a seus rebentos, nutrindo-os com os sacramentos, propiciando-lhes os dons sobrenaturais da graça, formando-os por meio de seu magistério infalível e os guiando em bom caminho por meio da autoridade da hierarquia eclesiástica. Dessa forma, ela exerce junto a cada católico todos os ofícios e misteres que uma boa mãe dedica a seu filho.

Estabelecido esse paralelo, pode-se aplicar à Esposa Mística de Cristo a mesma afirmação — repassada de beleza e de veracidade — que se faz de Nossa Senhora: ninguém é mais virgem do que a Igreja, e ninguém mais do que ela é mãe, pois entre todas as instituições e todas as mães da Terra, nenhuma teve uma maternidade mais copiosa do que a Igreja Católica. Desde o momento em que foi fundada, até o fim do mundo, a maioria dos homens que se salvarem serão gerados em seu grêmio e por ela conduzidos à bem-aventurança eterna.

Remédio para as dificuldades espirituais

 Daí se compreende como o amor à Igreja Católica é uma fonte de todas as virtudes. Quem a considera e a ama como à melhor das mães, alcança graças e forças para se santificar.

Não raro, ouço lamentações de pessoas que sentem dificuldade em perseverar na prática dos Mandamentos ou em progredir na vida espiritual. Ora, uma das muitas soluções — pois a Igreja é a cidade da salvação onde para toda doença há diversos remédios — é exatamente aumentar nosso amor a ela. Crescendo nesse amor, nossa determinação para praticar o bem e repudiar o mal também aumentará.

Fixemos, então, esse pensamento valioso: a Igreja é a figura de Nossa Senhora, ela é resplandecente e bela na Terra, e devemos procurar amá-la como desejamos amar a Santíssima Virgem hoje e no Céu. Amemos a Igreja acima de todas as coisas no mundo, na sua hierarquia, nos seus mil aspectos autenticamente divinos.

Três elementos da beleza da Igreja

Por exemplo, evoquemos apenas três elementos da Igreja, dignos de nosso amor e de nosso entusiasmo. Primeiro, a infalibilidade pontifícia: a figura de um homem infalível, governando a todos e ensinando à humanidade o caminho da salvação. Nunca se concebeu, em matéria de autoridade e orientação, algo mais belo e mais nobre do que o Papado.

Admiremos, por outro lado, a Eucaristia. Sob as espécies consagradas, de modo misteriosamente oculto, está Nosso Senhor Jesus Cristo, realmente presente entre nós, em corpo, alma e divindade. E é a Igreja que oferece essa possibilidade de o homem estabelecer com Deus um convívio tão íntimo e até insondável. O Criador vem ao homem e como que se faz um com este. Pode-se imaginar algo mais esplêndido do que o Onipotente condescender em ter tal familiaridade com cada um de seus filhos?

Por fim, pensemos no sacramento da Penitência. Difícil seria conceber nossa existência neste vale de lágrimas se não nos fosse dado abrir sobre os nossos pecados e não tivéssemos a certeza do perdão de Deus através da absolvição ministrada pelo sacerdote no confessionário. Um confessionário: que obra-prima de sabedoria e de discrição, com a inviolabilidade do segredo de consciência nunca traído!

Então compreendemos melhor quão maravilhosa é a Igreja e quão digna de nosso amor. Meditemos nessas verdades e, com o misericordioso auxílio da Virgem Mãe, encontraremos em nós maior resolução para combater nossos defeitos e  praticar a virtude.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 24/9/1969)

Revista Dr Plinio 121 (Abril de 2019)

Santo Adalberto: Um Santo que se opôs à ala má da Igreja

No dia 23 de abril comemora-se a festa de Santo Adalberto. Sobre ele o Padre Jean-François Godescard, em sua obra Vida dos Santos (não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada), diz o seguinte:

Terrível morte do Bispo de Praga

Adalberto  nasceu em 956 de uma das mais ilustres famílias da Boêmia. Atacado, na infância, por uma doença mortal, seus pais fizeram um voto à Santíssima Virgem de consagrá-lo ao sacerdócio se ele se curasse. Suas preces foram ouvidas e o menino recobrou a saúde. Eles entregaram Adalberto ao Arcebispo de Magdeburgo, que lhe deu ótimos mestres, correspondendo a criança em tudo ao que dela se esperava em santidade e ciência.

Em 973, recebeu as ordens sacras das mãos do Bispo de Praga, que pouco tempo depois morreu desesperado, soltando gritos horríveis e dizendo que ia se condenar porque havia negligenciado os deveres de seu estado e procurado com paixão as honras, as riquezas e os prazeres do mundo. Testemunha desse triste fim, Adalberto nunca mais pode esquecê-lo, tomando a lição para si o resto de sua vida. Escolhido para substituí-lo, entrou de pés descalços em Praga onde foi recebido com extraordinária alegria pelo povo, principalmente pelo Rei Boleslau.

Essa diocese estava em deplorável estado: uma parte de seus habitantes ainda era idólatra. Os que professavam o Cristianismo o desonravam pelos vícios mais vergonhosos. Em vão Adalberto procurou fazer florir a piedade e a Religião. Lidava com um povo incorrigível. Desesperado por não conseguir nenhum bem, obteve do papa permissão para deixar o bispado e ir a Roma tomar o hábito monástico.

Cinco anos depois foi mandado de volta, sendo-lhe prometido que poderia deixar seu rebanho novamente, se este não se mostrasse dócil. Recebido com alegria, seus diocesanos prometeram corrigir-se. Vãs promessas logo esquecidas. O Santo decidiu abandoná-los para sempre e retomar o caminho de seu mosteiro.

Atravessando a Hungria, evangelizou-a com sucesso, mas o papa mandou que retomasse o governo de sua igreja. À notícia de sua volta, os habitantes de Praga enfureceram-se, massacraram inúmeros parentes do Santo, roubaram seus bens e queimaram seus castelos. Adalberto, informado dos acontecimentos, permaneceu perto de Boleslau, seu amigo, filho de um duque da Polônia.

Conseguiu nesse país converter numerosos idólatras e dirigiu-se à Prússia, país ainda não evangelizado, onde parte dos habitantes de Dantzig pediram que fossem batizados. Mas foi numa pequena cidade prussiana que encontrou a morte, atacado por um grupo de pagãos. Quando, após o primeiro golpe, Adalberto agradeceu a Deus por poder sofrer por sua causa, o grão-sacerdote dos ídolos, atravessando-o com uma lança, disse “Alegra-te então agora, já que não desejas outra coisa senão sofrer por teu Cristo”. Era o dia 23 de abril do ano de 996.

Ao longo da Idade Média, a vida da Igreja foi uma luta

Essa narração é tão cheia de episódios quanto de ensinamentos. O primeiro deles é a respeito da situação da Igreja na Idade Média. Não se deve imaginar o período medieval como uma espécie de noite de rosas sobre as quais a Esposa de Cristo dormiu, coroada de glória, durante mil anos. Ao longo desse milênio, a vida da Igreja foi uma luta. Entretanto, ela venceu esse combate porque as almas generosas, chamadas por Deus para fazerem o sacrifício de sua vida, disseram “sim”.

Há épocas em que a Igreja não mantém essa luta, porque as almas chamadas para sacrificarem sua vida a Deus dizem “não”; ou “talvez”, que é um dos mais detestáveis modos de dizer “não”. O resultado é que a Igreja é mal servida e, então, a Civilização Cristã degringola.

Vejam essa situação na Idade Média. Praga já era uma das cidades importantes daquele tempo, uma espécie de sertão novo, porque toda aquela parte da Boêmia estava apenas recém-evangelizada e as terras pouco aproveitadas. A civilização estava pouco implantada e todos os olhos se voltavam para lá.

Em Praga, nós encontramos um bispo investido da grande responsabilidade de consolidar o Reino de Nossa Senhora naquela zona: em primeiro lugar, confirmando na Fé os verdadeiros católicos; em segundo lugar, convertendo aqueles que não eram católicos.

Qual é a situação do bispo? Trata-se de um homem que desempenha mal o seu cargo, e que morre em transes de desespero na presença desse jovem, depois chamado à santidade. Qual o ensinamento que nos dá a morte desse bispo?

Atualmente existe uma insensibilidade moral péssima

Notem a diferença entre o modo pelo qual o mal se apresentava na Idade Média e como ele se mostra hoje. Em nossos, dias, ninguém morre em transe de desespero. Pecadores iguais ou piores do que esse bispo morrem ouvindo música, completamente inconscientes de suas responsabilidades, despedindo-se de todo mundo e fingindo não perceber que estão morrendo. Quase mais ninguém tem um arrependimento “in extremis”. Por mais carregadas de vergonha ou de opróbrio que tenham suas consciências, morrem com indiferença.

É uma insensibilidade moral péssima que multiplica o péssimo pelo péssimo. Essa insensibilidade era mais rara na Idade Média do que em nossos dias. E, embora a Igreja tivesse que lutar com muitas almas pouco recomendáveis, não se dava, ou era raro, o fato de uma morte insensível, cínica, simplesmente indecente como ocorre hoje. Pelo contrário, os maus morriam blasfemando, desesperando-se, ou se convertendo e se salvando. Mas era muito raro o mau morrer com esse cinismo com que a quase totalidade dos maus morre hoje.

Quer dizer, a maldade de nossos dias não está em que se peca muito, mas no estilo de pecado, na indiferença e no cinismo dentro do pecado, o que antigamente não havia. O mau tinha, pelo menos, uma certa vibração diante do pecado.

Esse mau bispo morreu com esses sinais de horror. Qual é o resultado? Ele é observado por um futuro Santo. E a vista desse horror faz bem e sacode a alma do jovem Adalberto. Este, então, entra na cidade de Praga de pés descalços e é recebido com extraordinária alegria pelo povo, principalmente pelo Rei Boleslau.

Com esse modo de tomar posse, ele queria fazer sentir a sua execração à vida do antecessor e o seu propósito de ser um bispo penitente, enquanto o outro fora um bispo devasso, escandaloso. Era uma manifestação de reação, uma oposição à ala má da Igreja daquele tempo. Ele tomava posse de seu cargo por meio dessa atitude.

Graves consequências para a Boêmia por ter rejeitado Santo Adalberto

Fato curioso, que entra em contradição com o que ocorre depois: Santo Adalberto é recebido muito bem, com extraordinária alegria pelo povo e também pelo rei. Entretanto, apesar de fazer esforços, ele lidava com um povo incorrigível, que resistiu durante  toda a vida à ação dele. E foi, naturalmente, a cruz da sua vida. Ele pregou a esse povo, mas não conseguiu nada. Renunciou ao episcopado, e quis ser frade.

Foi para Roma, e depois converteu gente na Hungria, na Polônia, na Prússia, mas o seu próprio povo ele não converteu.

Vê-se, por aí, como não há nada de automático na vida da Igreja. E se é verdade que, muitas vezes, um Santo basta para converter uma região, um povo mau pode resistir à ação dos maiores Santos, como o povo de Israel se opôs à ação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Homem-Deus.

Qual é o resultado e a responsabilidade da rejeição a um Santo? A Boêmia continuou a ser uma região má até o protestantismo. Pouco antes da heresia protestante, começou a rebentar nela, com João Huss, explosões, manifestações de autêntico protestantismo. Os católicos perseguiram João Huss e mandaram matá-lo, mas o pré-protestantismo continuou a lavrar nas fileiras desse povo.

Durante toda a luta contra a pseudo-Reforma protestante, a Boêmia foi uma das forças do protestantismo. Embora sujeita à Casa d’Áustria, foi uma nação sempre muito pouco católica. Separada da Casa d’Áustria, ela constituiu uma república de caráter socialista. O povo checo não apresentou nenhuma reação ponderável quando, afinal de contas, os comunistas tomaram conta da Checoslováquia.

Quer dizer, era uma velha rejeição de um povo que gerou gente má até nossos dias. Com exceções, evidentemente. Houve ali gente muito boa, Santos, grandes homens de piedade, cruzados, vocações esplêndidas. Entretanto, um filão mau, apesar das pessoas boas, continuou e fez com que a Boêmia fosse, dentro do Império de Francisco José, um perpétuo problema.

A América Latina encontra-se numa encruzilhada

Temos que pensar muito nesse assunto, porque há algo disso com os povos latino-americanos no presente momento.

As nações latino-americanas estão numa encruzilhada: ou elas ouvem a voz daqueles que as chamam para a verdadeira causa católica e as convidam a uma posição contrarrevolucionária, ou rejeitam. Se receberem, são séculos de glória católica, de salvação das almas que se abrem para um florescimento. Se rejeitarem, não há o que não possamos recear.

Há na América Latina algo sobre o mistério da aceitação ou rejeição de um povo que nos deve levar a rezar muito e a compreender nossa responsabilidade.

Alguém dirá: “Mas se Santo Adalberto não conseguiu nada, como é que nós vamos conseguir?”

Essas são coisas que só no dia do Juízo Final se saberão. Não era desígnio da Providência que outros, além de Santo Adalberto, fossem chamados para evangelizar a Boêmia e não o fizeram? Não sabemos se havia ali, dentro da própria Boêmia, gente chamada a constituir um núcleo em torno de Santo Adalberto e que resistiu ao chamado, não formou esse núcleo e agiu frouxamente. No dia do Juízo Final essas coisas se saberão. O fato concreto é que Santo Adalberto cumpriu o seu dever. Provavelmente outros não o cumpriram, e daí veio o triste fim da nação boêmia.

Devemos concluir, portanto, considerando a gravidade da nossa responsabilidade e a necessidade de rezarmos muito uns pelos outros, pedirmos a todos nossos Padroeiros, todos os Anjos e Santos do Céu, especialmente a Nossa Senhora, que nos deem forças para estarmos à altura da nossa missão. Porque nada há de mais glorioso do que ser os homens dos quais a Providência espera a salvação de um continente. E nada mais triste do que dizermos “não” ou “talvez” à Divina Providência. 

(Extraído de conferência de 22/4/1966)