Atitudes erradas em face dos “slogans” da Revolução

Reafirmando a necessidade de se combater a Revolução como esta age em concreto junto à opinião pública, Dr. Plinio alerta os contra-revolucionários sobre o triste equívoco de se apresentarem sob uma luz “simpática e positiva”, esquivando-se de atacar o adversário. Com essa atitude, adverte-os, a Contra-Revolução só tende a perder em conteúdo e dinamismo.

 

O mais importante para combater a Revolução é ler muitos livros?

“O esforço contra-revolucionário não deve ser livresco, isto é, não pode contentar-se com uma dialética com a Revolução no plano puramente científico e universitário.  Reconhecendo a esse plano toda a sua grande e até muito grande importância, o ponto de mira habitual da Contra-Revolução deve ser a Revolução tal qual ela é pensada, sentida e vivida pela opinião pública em seu conjunto.  E neste sentido os contra-revolucionários devem atribuir uma importância muito particular à refutação dos ‘slogans’ revolucionários” (p. 119).

Sem polêmica, diminui a reação contra-revolucionária

Não seria mais eficaz eliminar os aspectos polêmicos da ação contra-revolucionária?

“A ideia de apresentar a Contra-Revolução sob uma luz mais ‘simpática’ e ‘positiva’, fazendo com que ela não ataque a Revolução, é o que pode haver de mais tristemente eficiente para empobrecê-la de conteúdo e de dinamismo” (p. 119).

Poderia desenvolver este ponto?

“Quem agisse segundo essa lamentável tática mostraria a mesma falta de senso de um chefe de Estado que, em face de tropas inimigas que transpõem a fronteira, fizesse cessar toda resistência armada, com o intuito de cativar a simpatia do invasor e, assim, paralisá-lo.  Na realidade, ele anularia o ímpeto da reação, sem deter o inimigo.  Isto é, entregaria a pátria…” (p. 120).

O exemplo do Divino Mestre

Mas às vezes não é necessário empregar uma linguagem matizada?

“Não quer isto dizer que a linguagem do contra-revolucionário não seja matizada segundo as circunstâncias.

“O Divino Mestre, pregando na Judeia, que estava sob a ação próxima dos pérfidos fariseus, usou de uma linguagem candente. Na Galileia, pelo contrário, onde predominava o povo simples e era menor a influência dos fariseus, sua linguagem tinha um tom mais docente e menos polêmico” (p. 120)(1).  v

 

1) Para todas as citações: Revolução e Contra-Revolução, Editora Retornarei, São Paulo, 2002, 5ª edição em português.

 

Verdadeiros súditos de Maria

Segundo nos ensina São Luís Grignion de Montfort, nosso amor à Santíssima Virgem deve ser tal que conformemos nossa vontade inteiramente à d’Ela, de maneira que os caminhos pelos quais trilhamos e as ações que praticamos, sejam as ações e os caminhos desejados por Nossa Senhora.

Sejamos almas tão unidas à Mãe de Deus, que nossas cogitações e vias com as d’Ela se identifiquem. Assim, Maria estabelecerá em nossa alma o reino de seu Coração Imaculado: será verdadeiramente nossa Rainha e nós, seus verdadeiros súditos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/1/1971)

Apóstolo da mediação universal de Maria

Num século em que o jansenismo e outros erros demonstravam aversão à verdade da mediação universal de Nossa Senhora junto a seu Divino Filho, o apostolado e a obra de São Luís Grignion de Montfort — afirma Dr. Plinio no artigo transcrito a seguir — constituiu um dos “maiores monumentos à Santíssima Virgem”.

 

Muitos são hoje (…) os católicos que conhecem e admiram a obra do grande e fogoso missionário popular da França do século XVIII, São Luís Maria Grignion de Montfort, autor do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.

Nasceu ele em Montfort-la-Cane, na região da Bretanha, em 1673. Ordenado sacerdote em 1700, se dedicou à pregação missionária, principalmente na Bretanha, Normandia e Vandeia. As cidades em que pregou, inclusive as mais importantes, viviam em grande medida da agricultura e estavam profundamente marcadas pela vida rural. De sorte que São Luís Maria, se bem que não haja pregado exclusivamente a camponeses, ainda pode ser considerado essencialmente um apóstolo das populações rurais.

Suavidade e santa firmeza

Em suas pregações, que em termos modernos poderiam chamar-se sumamente “aggiornate”, ele não se limitava a ensinar a doutrina católica em termos que servissem para qualquer época e qualquer lugar, senão que sabia dar realce aos pontos mais necessários para os fiéis que o ouviam.

O gênero de seu “aggiornamento” (era muito original). Os erros de seu tempo, ele não os via como meros frutos de equívocos intelectuais oriundos de homens de insuspeitável boa fé: erros que por isso mesmo um diálogo destro e ameno sempre dissiparia.

Capaz de diálogo afável e atraente, ele não perdia de vista, entretanto, toda a influência do pecado original e dos pecados atuais, assim como a ação do príncipe das trevas na gênese e no desenvolvimento da imensa luta movida pela impiedade contra a Igreja e a Civilização Cristã. A célebre trilogia demônio, mundo e carne, presente nas reflexões dos teólogos e missionários de boa lei em todos os tempos, a tinha ele em vista como um dos elementos básicos para o diagnóstico dos problemas de sua época. E assim, conforme as circunstâncias o pediam, ele sabia ser ora suave e doce como um anjo, [ora firme e severo, como apóstolo] incumbido de anunciar as ameaças da Justiça Divina contra os pecadores rebeldes e endurecidos.

Esse grande apóstolo soube alternadamente dialogar e polemizar, e nele o polemista não impedia a manifestação das doçuras do Bom Pastor, nem a mansidão pastoral aguava os santos rigores do polemista. (…)

Mundanismo e jansenismo afastavam as almas da Igreja

A sociedade francesa dos séculos XVII e XVIII estava gravemente enferma. Tudo a preparava para receber passivamente a inoculação dos germens do Enciclopedismo, e desmoronar-se em seguida na catástrofe da Revolução Francesa.

Resumindo um pouco a visão de conjunto da sociedade francesa, pode-se dizer que nas três classes — clero, nobreza e povo — preponderavam dois tipos de alma: os laxistas e os rigoristas. Os laxistas, tendentes a uma vida de prazeres que levava à dissolução e ao ceticismo. Os rigoristas, propensos a um moralismo hirto, formal e sombrio, que levava ao desespero quando não à rebelião. Mundanismo e jansenismo eram os dois pólos que exerciam uma nefasta atração, inclusive até em meios reputados dos mais piedosos e moralizados da sociedade de então.

Um e outro – como tantas vezes acontece com os extremos de erro – levavam a um mesmo resultado. Com efeito, cada qual por seu caminho, afastava as almas do sadio equilíbrio da Igreja. Esta, efetivamente, nos ensina em admirável harmonia  a doçura e o rigor, a justiça e a misericórdia.

O maior louvor à Virgem Mãe de Deus

São Luís Maria Grignion de Montfort, como ardoroso pregador da austeridade cristã genuína, nada tinha da austeridade taciturna, biliosa e estreita de um Savonarola ou um Calvino. Ela era suavizada por uma terníssima devoção a Nossa Senhora. Em torno da mediação universal de Maria, o missionário francês construiu toda uma mariologia  que é o maior monumento de todos os séculos à Virgem Mãe de Deus.

 

(Extraído do “Última Hora”, de 29/5/1984)

 

Santo Anselmo, varão de muitas lutas

Os grandes homens que marcaram a Idade Média — entre os quais se destaca Santo Anselmo — patenteiam a solidez, a força, a grandeza dessa época histórica, que contrastam com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias.

Dia 21 de abril comemora-se a festa de Santo Anselmo de Cantuária, bispo, confessor e Doutor da Igreja, cuja biografia apresenta os seguintes traços(1):

Mansidão do cordeiro e vigor do leão

Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte, de família nobre. Como o pai o afastasse da vida religiosa, entregou-se aos prazeres durante alguns anos. Mas aos 26 anos entrou na abadia de Bec, na Normandia, onde se entregou à pratica das virtudes religiosas e ao estudo das Escrituras. Aos 30 anos, tornou-se prior e em seguida abade.

 Governou sua abadia com uma bondade incansável que lhe permitiu triunfar de todas as dificuldades. Os Papas Gregório VII e Urbano II manifestaram-lhe grande estima. “O bom odor de vossas virtudes chegou até nós”, escrevia-lhe Gregório, e Urbano II diz: “Vinde cá o mais depressa possível a fim de podermos gozar juntos da afeição que nos une”.

Chamado à Inglaterra em 1092, não pôde voltar à França, pois foi nomeado Arcebispo de Cantuária. Nesse cargo muito sofreu do Rei Guilherme o Ruivo pela defesa dos direitos e liberdade da Igreja. Exilado, foi a Roma, onde o Papa o cumulou de honras e lhe deu ocasião, no Concilio de Bari, de convencer do seu erro os gregos que negavam que o Espírito Santo procedesse do Filho como do Pai.

Voltando à Inglaterra após a morte de Guilherme, Santo Anselmo morreu a 21 de abril de 1109. Clemente XI, em 1720, o declarou Doutor da Igreja.

Monge, bispo, Doutor, Anselmo reuniu em sua pessoa os grandes apanágios do cristão privilegiado. E se a auréola do martírio não veio completar tanta glória, pode-se dizer que a palma faltou a Anselmo, mas que ele não faltou à sua palma. Sua vida foi toda entregue às lutas pela liberdade da Igreja. Nele o cordeiro revestiu-se do vigor do leão. “Cristo, dizia, não quer uma escrava para esposa. Nada Ele ama tanto no mundo quanto a liberdade de sua Igreja”. O nome de Anselmo lembra a mansidão do homem do claustro unida à firmeza episcopal, a ciência junto com a piedade. Nenhuma memória foi mais suave e, ao mesmo tempo, mais brilhante do que a sua.

Um varão que marcou o século XI

Notem as lutas que esse santo precisou enfrentar em plena Idade Média. Ele parece não ter tido — ao menos segundo esses traços biográficos — especiais lutas em seu convento. Mas ele teve dois grandes inimigos a vencer: um rei prepotente que queria sujeitar a Igreja à sua autoridade; e os cismáticos gregos que, reunidos no Concílio de Bari com os católicos, ele conseguiu persuadir, mas de maneira efêmera, de que a doutrina católica era verdadeira.

Ele ao mesmo tempo foi um homem que viajou muito. Era italiano, depois foi para a Normandia, Inglaterra, Bari, Roma. E numa época em que essas viagens representavam empreender um enorme esforço. Eram feitas em estradas péssimas, com riscos de toda ordem, muita dificuldade, lentidão, etc.

Um homem favorecido por Nosso Senhor por especiais graças, e que levou a bom termo tudo aquilo de que foi incumbido: como abade foi muitíssimo estimado; Arcebispo de Cantuária, ele empreendeu uma luta rigorosa contra o rei e acabou sendo reintegrado na sua sede episcopal; lutando contra os cismáticos, conseguiu persuadi-los de seus erros. Depois, extinguiu-se na alegria e no amor de todos pela vida que tinha levado, porque a morte dos santos é muito mais uma alegria do que uma fonte de tristeza.

Vemos, entretanto, qual a natureza da verdadeira grandeza da Idade Média: esse homem marca o século XI pela sua ciência, sua piedade, pelas suas lutas, e leva a Causa Católica à vitória.

Então, considerando a vida dele, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, de um homem que encheu o seu tempo, venceu, e cuja glória perdura por todos os séculos por causa das vitórias que ele obteve em favor da Fé. Quando se olha isso, fica-se com a sensação da solidez, da força, da grandeza de toda a Idade Média, que contrasta com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias. E essa impressão não é falsa; é verdadeira porque nos mostra a solidez da estatura dos grandes homens que marcaram a Idade Média.

Precisamos lutar sempre, com os olhos postos em Nossa Senhora

Mas de fato ele teve muitas lutas. E se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria perecido. Na Idade Média havia uma batalha contínua; a solidez não consistia em não haver luta, mas em que a boa reação vencia sempre e era, portanto, nesse sentido, sólida. Entretanto, por um pouco que os homens fraquejassem, a coisa poderia cair.

Podemos vislumbrar, de antemão, qual vai ser a solidez e a precariedade do Reino de Maria. A solidez será enorme enquanto houver homens de uma grande firmeza, dispostos a lutar em todos os sentidos. Então, o Reino de Maria poderá durar séculos e séculos.

Se encontrar homens fracos, ele soçobrará imediatamente, porque o reino do demônio se tornará forte, pois estamos numa humanidade marcada pelo pecado original e num mundo imerso na presença dos tais demônios dos ares de que falava São Paulo(2).

Portanto, é preciso estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua, um desprendimento de si inteiro, tendo os olhos postos completamente em Nossa Senhora, para que a luta seja levada a bom termo. Mas encontrando autênticos lutadores, verdadeiramente dependentes da Santíssima Virgem, a causa é solidíssima, ela vence mesmo. A questão é haver quem lute por Ela. 

Peçamos a Nossa Senhora que nos dê forças e nos compenetre da verdade, para entendermos bem o seguinte: agora, como durante o Reino de Maria, a nossa vida deve ser de luta constante, e no dia em que não tivermos lutado precisamos nos compenetrar de que não carregamos a Cruz de Cristo, e que esse foi um dia frustrado em nossa existência.

Não lutar é não sofrer; não sofrer é não carregar a Cruz de Cristo. Para um católico, um dia passado longe da Cruz de Cristo, longe de Maria Santíssima, é um dia cancelado, um dia em branco.

Ordenado arcebispo, apesar de seus protestos

Temos agora uma nota sobre a sagração de Santo Anselmo, extraída da “Vida dos Santos”, do Padre Rohrbacher(3).

Decidiram os bispos ingleses sagrar Santo Anselmo Arcebispo de Cantuária, mas ele recusou terminantemente porque sabia da intromissão real neste cargo.

Mostraram-lhe os prelados as consequências de sua negativa para a Inglaterra. Replicou o Santo que conhecia tais problemas, mas que era velho, mal conseguindo carregar a si próprio; como poderia levar o fardo de toda uma Igreja? Por outro lado, não era de sua índole cuidar de negócios temporais.

“Conduzi-vos somente nos caminhos de Deus, nós nos encarregamos dos negócios temporais”, replicaram os prelados.

Alegou Anselmo suas múltiplas obrigações e a impossibilidade de abandoná-las. Resistindo ainda, levaram-no ao soberano que se encontrava gravemente enfermo.

O rei aflito disse-lhe: “Anselmo, que fazes? Por que me envias ao Inferno? Lembra-te da amizade que meus pais tinham por ti e não me deixes perecer, porque sei que estou condenado a morrer conservando este Arcebispado”. Todos os assistentes, comovidos, insistiam com Santo Anselmo acusando-o de matar o rei.

O Santo voltou-se para os dois monges que o acompanhavam e disse: “Meus irmãos, por que não me socorreis?”

Um deles respondeu: “Se esta é a vontade de Deus, quem somos nós para resistir-Lhe?”

“Ai! — disse Anselmo — Vós vos rendestes mui prontamente”.

Vendo-o assim obstinado, acusaram-no de covardia. Buscaram uma cruz, tomaram-lhe o braço direito e o aproximaram do leito. O rei lhe apresentou a cruz, mas ele fechou a mão. Os bispos empenharam-se em abri-la até fazê-lo gritar. Por fim seguram-lhe a mão com a cruz dizendo: “Viva o bispo!”; e entoaram o “Te Deum”. Levaram-no à igreja vizinha e, sob seus protestos, sagraram-no.

Fato estranho e magnífico ao mesmo tempo!

Maus reis queriam eliminar a liberdade da Igreja

Para compreender um pouquinho o conjunto dos acontecimentos, é preciso tomar em consideração o seguinte: Cantuária é a mais antiga diocese, portanto a sede primacial, da Inglaterra. E naquele tempo, mais do que hoje, os arcebispos e os primazes tinham certa jurisdição, certa influência sobre os bispos de seu país.

Estava-se num período de comunicações com Roma, devido à distância, muito difíceis, e não havia um corpo de núncios apostólicos inteiramente organizado. De maneira que se fazia sentir, mais do que hoje em dia, a necessidade dos bispos de um determinado país se apoiarem sobre um que fosse a pedra de ângulo de todos, e este era o Arcebispo de Cantuária.

Esse arcebispo tinha muita importância; por outro lado, estava-se num período em que a Revolução — em sua forma absolutamente ancestral e original; nem se pode ainda falar de Revolução —, ou melhor, os germes dos quais futuramente a Revolução nasceria, se exprimiam sob a forma de um desejo do poder temporal. Quer dizer, dos chefes de Estado, em concreto dos reis, de se apoderarem da liberdade, dos atributos da Igreja, transformando-a num instrumento de dominação material.

Os soberanos não queriam, por exemplo, que os bispos os censurassem, porque havia naquele tempo muitos bispos que repreendiam os reis e os poderosos. Eles queriam se assenhorear dos bens com que a Igreja socorria inúmeros pobres e mantinha o esplendor do culto divino.

O medo do Inferno leva muitas pessoas para o Céu

Por outro lado, os bispos eram muitas vezes senhores feudais e constituíam um elemento de imparcialidade dentro do jogo da vida feudal. Certos reis, movidos por mau espírito, queriam se assenhorear dos feudos eclesiásticos para, por esta forma, combater os outros senhores feudais.

E isto tudo fazia com que os reis tivessem uma preocupação constante de nomear, para os cargos importantes, bispos que fossem seus instrumentos.

Então, Santo Anselmo, monge já idoso, com inúmeros serviços prestados à Igreja, era desejado ardentemente pelo rei e pelos bispos para ser Arcebispo de Cantuária.

Pelos bispos porque era um líder natural para defendê-los contra o rei. Pelo rei, porque este já tinha tido dificuldades com a Igreja, mas estava doente e temia morrer. E ele achava que ia para o Inferno se, antes de falecer, não evitasse para a Igreja a catástrofe de uma má nomeação; por isso ele queria nomear um bom arcebispo para Cantuária.

Quer dizer, o rei estava com a espada da ameaça do Inferno colocada no peito, e nós sabemos que o medo do Inferno tem levado muita gente para o Céu. Para a grande maioria dos homens, poucas coisas fecham tanto a porta do Inferno quanto o medo de ir para lá. 

Então todos queriam que Santo Anselmo ficasse Arcebispo de Cantuária.

Uma violência tipicamente medieval

Aí se dá a cena muito curiosa. Os bispos pedem, ele recusa dando um argumento que está à altura de um Santo. Não é um argumento baseado em falsa modéstia, mas é uma coisa verdadeira. Sendo um homem velho, que mal se carrega a si próprio, exausto por anteriores serviços à Igreja, é natural que ele tenha receio de não conseguir desempenhar satisfatoriamente um cargo tão pesado; e, portanto, procure tirar o corpo.

Tanto mais que ele devia conhecer bem o rei e sua entourage, e o Santo poderia conjecturar que o rei, tendo já criado encrenca com a Igreja, criaria outra, caso ficasse curado — como diz o ditado: cesteiro que faz um cesto, faz um cento.

Os sucessores do monarca, que faziam parte daquela entourage do palácio, tinham a mesma mentalidade. Santo Anselmo teria que travar uma luta, portanto, contra o poder temporal, coisa muito mais difícil do que qualquer outra batalha. E ele naturalmente temia por sua própria fraqueza; achava que um homem moço estaria mais em condições de conduzir essa luta.

Mas tal era a força da virtude dele, a confiança que tinham no auxílio que a graça lhe prestaria, que todos queriam que ele ficasse arcebispo.

Então se dá esta cena: Os bispos, não conseguindo nada, levam Santo Anselmo ao quarto onde o rei estava doente. Depois de muita insistência, acaba havendo uma espécie de violência bem medieval.

Pegam uma cruz e dizem ao rei: “Põe na mão dele!” O Santo declara: “Não, não quero!”

Com força, abrem a mão dele, a ponto de doer; ele segura a cruz e levam-no, então, para ser sagrado.

Por meio dessa violência material, que talvez tivesse tido um caráter afetuoso e feita no meio de sorrisos — a crônica é muda a respeito deste particular —, o que houve foi isto. Mas o fato é tão estranho que não é de se repelir como absurda a hipótese deste ter sido feito no meio de sorrisos.

Houve um momento em que Santo Anselmo, pelo extremo desejo dos outros, que chegou até à violência, resolveu ceder. Ceder não mais coagido fisicamente, mas moralmente persuadido de que ele não deveria resistir a um anseio tão unânime.

E, então, ele mesmo aceitou a sagração, a qual não aceitaria se estivesse convencido de que outra era a vontade de Deus. Ele teria certamente — sendo um Santo — morrido mártir, mas não se deixaria sagrar, se tal fosse a vontade do Altíssimo. Seria o primeiro caso de martírio de um padre que se faz matar para não ser bispo.

Uma vez que Santo Anselmo está no Céu, devemos estar persuadidos de que ele de fato quis, em determinado momento e por esta forma, ele foi Arcebispo de Cantuária.

Devemos ser insistentes em nossas orações

Podíamos nos perguntar se essa violência feita na pessoa dele é censurável. Às vezes a graça, na sua sabedoria e imensa liberdade de movimentos, se serve de meios muito estranhos. Meios imorais ou ilegítimos jamais. Meios surpreendentes e desconcertantes, bem possivelmente.

Quem sabe se a graça quis que a insistência chegasse até esse ponto para mostrar o desapego deste homem, e depois lhe dar mais liberdade de lutar contra o rei, mostrando que ele tinha sido forçado a aceitar o cargo?

De qualquer forma, lembramo-nos das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho: “O Reino dos Céus padece violência”(4). É preciso fazer violência para se entrar no Céu.

Às vezes é necessário fazer até uma santa violência com Deus. O próprio Redentor contou aquela parábola admirável de um homem que está deitado na cama junto com seus filhos,

 e um indivíduo cacete bate do lado de fora pedindo pão.

O dono da casa explica que já está deitado e não pode atender. Afinal, o outro é tão cacete que o primeiro se levanta, abre a porta e lhe dá os pães.

E Nosso Senhor afirma que o dono da casa atendeu por causa da importunidade do outro; e acrescenta que isto é o modelo daquele que reza.

Quer dizer, quando não temos méritos, devemos ser muito insistentes. Porque à força de insistência, como que caceteamos a Deus Nosso Senhor e obtemos aquilo que nós queremos.

No caso ocorrido com Santo Anselmo, houve qualquer coisa de parecido com isso, e vemos as vias superiores de Deus, insondáveis, nem sempre inteiramente explicáveis e que formam uma das belezas da História da Igreja.

Mistérios de Deus e da vida da Igreja

Se na História da Igreja tudo fosse explicavelzinho, clarinho, limpinho, não seria a História da Igreja de Deus. Faltaria a ela uma das notas daquilo que é verdadeiramente divino.

Naquilo que é autenticamente divino precisaria haver mistério. E vou dizer mais, quanto mais claro que determinada coisa é divina, tanto mais convém que nela haja mistérios. Porque a presença do mistério é uma marca de superioridade divina, que impõe respeito aos homens.

Aqui também, são os mistérios da vida da Igreja, os fatos misteriosos por onde Deus mostra a sua divina grandeza. Depois as coisas se explicam.

Com certeza, para alguns contemporâneos de Nosso Senhor, a Paixão há de ter parecido um mistério inexplicável, e foi preciso a Ressurreição para que se compreendesse esse mistério.

Atualmente, nós estamos em presença do maior mistério dentro de vinte séculos de vida da Igreja. Creiamos na divindade dela e amemos a Santa Igreja Católica mais do que nunca… eu jamais diria apesar do mistério, mas sim por causa deste mistério.

Só uma Igreja santa e divina pode ter uma fortaleza, uma grandeza tal que nela caiba um mistério tão profundo, tão tenebroso. É preciso ser uma Igreja divina para não morrer deste mistério, para atravessar a era de mistério e, do outro lado, se mostrar gloriosa e resplandecente como se tivesse ressuscitado.

Nós, desse pequeno fato misterioso da vida de Santo Anselmo, devemos voar para regiões muito mais altas dos grandes mistérios da Igreja Católica. E então façamos hoje à noite, a Nossa Senhora, um ato de amor pelo mistério tremendo diante do qual nós vivemos, certos de que os grandes mistérios têm depois as suas grandes explicações.

Nunca um homem se defrontou com um mistério tão terrível quanto São José, mas depois, que explicação, que esclarecimento! É a explicação das explicações.# v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 20/4/1966 e 20/4/1967)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada por Dr. Plinio.

2) Cf. Ef 6, 12.

3) Cf. ROHRBACHER, René François. Vies des Saints pour tous les jours de l’année. Volume II. Paris: Gaume frères, libraires-éditeurs, 1853. p. 401-410.

4) Mt 11, 12.

São Luís Maria Grignion de Montfort e a devoção capaz de renovar a face da Terra

O exemplo do grande apóstolo da devoção mariana, São Luís Grignion de Montfort, inspirou e bafejou a piedade de Dr. Plinio, desde o momento em que este encontrou, numa livraria católica de São Paulo, o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Às vésperas da canonização do santo autor, Dr. Plinio escreveu as palavras transcritas a seguir, exaltando as virtudes e a obra desse ardoroso missionário da Mãe de Deus.

 

Como condição de vitória, sem se desprezar nem de leve as providências concretas, devemos contar essencialmente com os recursos sobrenaturais. A História demonstra que não há inimigos que vençam um país cristão que possua três devoções: ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e ao Papa. Investigue-se bem a queda de nações aparentemente muito fervorosas em sua adesão à Igreja: alguma broca secreta a minava em uma dessas três virtudes-chave.

A vitória, pois, depende de nós. Tenhamos em dia nossa consciência, estejamos tranquilos em Deus, e venceremos.

O livro dos tempos novos

Isto explica o extraordinário relevo que damos a uma notícia apagada, que os jornais reproduziram há pouco: a canonização iminente do Bem-aventurado Luís Maria Grignion de Montfort [ver quadro em destaque].

A notícia nada significa para o comum das pessoas. Ela significa tudo, para os que conhecem o verdadeiro fundo das coisas. A Providência resolveu jogar sua bomba atômica contra os adversários da Igreja. Perto desta bomba, as convulsões de Hiroshima e Nagasaki não passam de inocentes tremedeiras. Há dois séculos que está pronta a bomba atômica do Catolicismo. Quando ela explodir de fato, compreender-se-á toda a plenitude de sentido da palavra da Escritura: “Non est qui se abscondat a calore ejus [Não há quem se esconda de seu calor (Sl 1)]”.

Esta bomba se chama com um nome muito doce. É que as bombas da Igreja são bombas de Mãe. Chama-se O Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Livrinho de pouco mais de cem páginas. Nele, cada palavra, cada letra é um tesouro. Este o livro dos tempos novos que hão de vir. (…)

Por meio de Maria, unir-se a Deus

O Beato Grignion de Montfort expõe em sua obra, no que consiste a perfeita devoção dos fiéis a Nossa Senhora, a escravidão de amor dos verdadeiros católicos à Rainha do Céu. Ele nos mostra o papel fundamental da Mãe de Deus no Corpo Místico de Cristo, e na vida espiritual de cada cristão. Ele nos ensina a viver nossa vida espiritual em consonância com essas verdades. E nos inicia em um processo tão sublime, tão doce, tão absolutamente maravilhoso e perfeito, de nos unirmos a Maria Santíssima, que nada há na literatura cristã de todos os séculos que o exceda neste ponto.

Esta devoção, diz Grignion de Montfort, unindo o mundo a Nossa Senhora, uni-lo-á a Deus. No dia em que os homens conhecerem, apreciarem, viverem essa devoção, nesse dia Nossa Senhora reinará em todos os corações, e a face da Terra será renovada.

De que forma? Grignion de Montfort esclarece que seu livro suscitaria mil oposições, seria caluniado, escondido, negado; que sua doutrina seria difamada, ocultada, perseguida; que ela daria automaticamente uma antipatia profunda nos que não têm o espírito da Igreja. Mas que um dia viria em que os homens por fim compreenderiam sua obra. Nesse dia, escolhido por Deus, a restauração do Reino de Cristo estaria assegurada.

Mais poderoso que todas as forças humanas

Durante séculos, a canonização do Beato Grignion vem caminhando. Por fim, ela chegou a seu termo. É absolutamente impossível que esse fato não tenha um nexo profundo com a dilatação da Verdadeira Devoção no mundo.

E, nós o repetimos, é essa Verdadeira Devoção, a bomba atômica que, não para matar, mas para ressuscitar, Deus pôs nas mãos da Igreja em previsão das amarguras deste século.

Pois bem, nosso otimismo é este: confiamos imensamente mais na bomba atômica de Grignion de Montfort, e em seu poder, do que receamos da ação devastadora de toda as forças humanas. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 21/10/1945) 18, 7).

São Conrado: Abnegado apóstolo porteiro

Quando menino, a simples presença de São Conrado entre seus colegas afugentava aqueles que diziam palavras imorais. Esse Santo, por ser inteiramente abnegado de si mesmo era um homem puro.

O inteiro desapego de nós mesmos é a condição de nossa perseverança e da fecundidade de nosso apostolado.

Sobre  São Conrado de Parzham, em Schamoni, O verdadeiro rosto dos Santos, nós encontramos alguns trechos biográficos.

Meu livro é a Cruz

Conrado de Parzham, no século Johann Birndorfer, nasceu no dia 22 de dezembro de 1818, em Parzham, perto de Passau, na Alemanha, descendente de uma piedosa família de camponeses. Quando menino ainda, seus colegas falavam coisas menos dignas e, ao vê-lo aproximar-se, exclamavam: “Calemos, aí vem o João”. Sentiam já respeito pela majestade de Deus. E nas tarefas do campo, em pleno calor estival, recusava cobrir a cabeça porque, estando continuamente em oração, acreditava que somente com a cabeça descoberta podia rezar.

Aos 31 anos, tendo certeza de sua vocação religiosa, abandonou a casa e a herança e entrou como leigo na Ordem Capuchinha. Depois dos votos,  o Irmão Conrado foi destinado a ao convento de Altötting, junto ao qual há um santuário da Virgem, visitado anualmente por milhares de peregrinos. Em tal mosteiro, que no ambiente do campo não encontra um mo-mento de repouso, o cargo de porteiro é sumamente difícil.

O Irmão Conrado cuidou da portaria do convento por quarenta e um anos e, aplicando-se em sua missão com tato e atenção, teve inalterável paciência, sempre cheio de deferência, humilde, serviçal, piedoso, laborioso. Nunca foi visto mal-humorado, jamais pronunciou uma palavra inútil. Assim converteu–se num pregador silencioso, que infundia respeito aos visitantes, convertia os pecadores, consolava os aflitos e ajudava os pobres.

Escreveu uma vez a um amigo: “Minha regra de vida consiste em amar, sofrer e maravilhar-me em êxtases e orações pelo amor de Deus para conosco, pobres criaturas. Nunca termina esse divino amor. Nada há que me impeça, em minhas  ocupações, de me afastar de minha união com Deus. Meu livro é a Cruz, basta-me um olhar para ela para saber em cada ocasião qual há de ser minha conduta”. Três dias antes de morrer, renunciou a seu cargo de porteiro, falecendo a 20 de abril de 1894.

Ele morreu, portanto, bastante idoso.

A Revolução hoje vai progredindo como um câncer

É muito interessante a figura desse Santo. Eu já vi em livros com gravuras de Santos uma reproduzindo seu perfil, oposto ao de São Leão IX que era um aristocrata, homem de grande formosura e talento. Um varão superior, debaixo do ponto de vista de suas qualidades naturais, no qual se inseriu, como um facho de luz maravilhoso, a vida sobrenatural e a sua própria santidade.

São Conrado de Parzham é o contrário. Um humilde irmão franciscano, que na gravura aparece muito branco, de barba e cabelos brancos, com um maço de chaves na cintura, indicando a sua função de porteiro. Com toda essa inferioridade humana em relação a um São Leão IX, por exemplo, é, entretanto, uma figura esplêndida, de tal maneira que poderia ser colocada como par desse Papa Santo, pois todas as qualidades naturais se eclipsam e desaparecem quando estão em jogo os valores de caráter sobrenatural.

Temos aqui vários dados da vida de São Conrado a considerar.

Em primeiro lugar, como ele afugentava – sendo simples camponês – os colegas que diziam palavras imorais. Vemos aí uma preservação daquela época, ao menos no lugar em que ele vivia. Porque hoje eu duvido que até um Santo consiga afugentar os meninos de colégio que falam palavras obscenas. Vê-se por aí como a Revolução vai progredindo à maneira de um câncer, invadindo tudo. Naquele tempo ainda havia gente amedrontável; hoje não existe mais.

O mal se mostra completamente desatado e inteiramente triunfante. É exatamente um dos elementos que tornam necessários os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. É também digno de nota a intensidade da piedade dele, rezando de tal maneira, de um modo contínuo, que durante o período de trabalho no campo  ele orava também. E por isso não queria cobrir a cabeça porque, como estava falando com Deus, ele preferia receber todo o calor, mas permanecer numa atitude de respeito diante de Nosso Senhor.

Observa-se, por um lado, a falta de respeito humano e, por outro, uma piedade ininterrupta e acendrada, um grande espírito de mortificação. Porque o trabalho manual já é de si penoso; realizá-lo com o sol incidindo na cabeça descoberta o torna mais difícil ainda. E no meio disso ele conseguia se concentrar. É uma capacidade de atenção, de oração, digna de nota. Sobretudo para os homens de nossa época tão fáceis de se dissiparem.

Um porteiro edificante, solícito, digno, respeitoso

Ele entrou como irmão leigo na Ordem Capuchinha aos 31 anos de idade, e foi destinado como porteiro do convento junto a um santuário de Nossa Senhora. E tornou-se aí o contrário dos porteiros de convento que habitualmente se conhecem. Manda-se telefonar, chamar um frade, passa meia hora…; em parte devido à lentidão do porteiro em chamar o frade, em parte à demora deste em vir ao telefone. São as duas coisas que se conjugam: displicência e desinteresse.

Em São Conrado vemos o oposto: era um mero porteiro de convento, mas tão edificante, tão solícito, tão digno, tão respeitoso, que todo mundo se edificava com ele. E então a ficha diz muito bem que, sendo um mero porteiro de convento, pela sua ação de presença, pela sua virtude, ele pregou uma grande lição de quarenta e um anos, se transformou num grande missionário, num grande pregador.

Isso nos faz ver que os homens eficientes para o apostolado de nenhum modo são apenas aqueles que têm capacidades intelectuais, como a de falar em público. Esses também podem ser eficientes, mas a chave da eficiência deles não está no talento, e sim na vida sobrenatural que habita neles e se comunica aos outros.

Por causa disso, vemos um simples porteiro, irmão leigo, ter feito pela Causa Católica um apostolado enorme no mais obscuro dos cargos, um homem com uma ciência mui to pequena. Apostolado de portaria. Como isso indica qualquer coisa de restrito, de circunscrito em matéria de apostolado! Entretanto, o êxito do brilho desse apostolado deve-se à vida interior.

O apostolado seriamente conduzido exige abnegação e renúncia completas

Eis o pensamento dele a respeito da oração contínua: “Minha regra de vida consiste em amar, sofrer e maravilhar-me em êxtases e orações pelo amor de Deus para conosco, pobres criaturas”.

É uma ilustração da tese de Dom Chautard, em seu livro A alma de todo apostolado: Se queremos que nosso apostolado seja fecundo, tratemos de fazê-lo por amor de Deus e não por nosso amor, não para aparecermos nem sermos importantes, mas considerando a Causa de Nossa Senhora e mais nada. Se fizermos isso, nosso apostolado será um canal de graças. Por tentar qualquer forma de desejo de nos mostrar, de recebermos aplausos, nosso apostolado será como um canal obstruído por onde as águas não passam, e as almas terão fome de graça e não serão nutridas por causa de nossa falta de correspondência. Essa é a abnegação inteira, a renúncia completa que o apostolado seriamente conduzido exige. É muito duro isso.

Eu compreendo que, para a natureza humana, a vontade de se mostrar é uma coisa primeira, elementar e veemente, como o desejo de respirar, mas é preciso a todo custo vencer isso. Quem quer ser um verdadeiro apóstolo precisa ser uma pessoa abnegada, cheia de renúncia; se for tirada de qualquer cargo ela não geme, não sofre, não protesta. E que, sendo desconhecida pelo seu chefe, dá graças a Deus, porque assim ela está imitando a Nosso Senhor que também sofreu o desprezo dos outros. Uma pessoa, enfim, inteiramente abnegada de si mesma.

Deem-me um homem inteiramente abnegado de si mesmo e eu lhes darei um homem puro. No fundo, as tentações contra a pureza provêm de orgulho, falta de abnegação, vaidade, apego si mesmo.

Se consideramos um homem abnegado, ele não só será puro, mas um apóstolo perfeito; seu apostolado produzirá resultados por vezes surpreendentes. Mas se ele tiver um apego, o seu apostolado não dá nada; é uma tristeza.

Pode haver uma frustração pior para um apóstolo do que, tendo deixado tudo para dedicar-se ao apostolado, ver que sua vida não teve fecundidade?

Não tenhamos ilusão: nossa vida será estéril, infecunda, nosso apostolado inútil, passam-se os anos sem que conquistemos nada. Tudo isso decorrente de um apego a nós mesmos.

O inteiro desapego de nós mesmos, de que São Conrado de Parzham foi um exemplo, é condição de nossa perseverança e da fecundidade de nosso apostolado.

(Extraído de conferência de 19/4/1967)

Lembranças de uma visita à Catedral de Notre-Dame

Quem foi a Notre-Dame não a esquece jamais. Quem a conheceu, admirou-a e passou a amá-la. E, porque a amou, evoca com saudades sua beleza, sua grandeza, sua importância, sua história…

Foi o que ocorreu com o professor Plinio Corrêa de Oliveira. Ele a conheceu e a amou. Desde então, qualquer oportunidade que tinha, recordava a famosa Catedral de Notre-Dame e transmitia suas impressões sobre ela. Reproduzimos abaixo palavras dele dirigidas a um grupo de jovens:

*   *   *

[…] Eu não posso me esquecer que em uma das viagens que eu fiz a Paris eu cheguei à noitinha. Jantei e fui imediatamente ver a Catedral de Notre-Dame.

Era uma noite de verão, não extraordinariamente bonita, comum, a Catedral estava iluminada, e o automóvel em que eu vinha passava da ‘rive gauche’ para a ilha. E eu via a Catedral assim de lado, e numa focalização completamente fortuita. Ela me pareceu desde logo, naquele ângulo, tomado assim – se acaso existisse, e em algum sentido existe – eu diria que é tomado ao acaso, olhei e achei tão belo, que eu fiquei com vontade de dizer ao automóvel pára, que eu quero ficar aqui!

Eu sei que o resto é muito belo, mas eu creio que poucos olharam essa Catedral desse ângulo e pararam. E eu quero ser dos poucos, para dar a Nossa Senhora o louvor deste ponto de vista aqui, que os outros talvez não tenham louvado suficientemente.

Ao menos se dirá que uma vez um peregrino vindo de longe, amou o que muitos outros por pressa, ou por não terem recebido uma graça especial naquele momento para aquilo, não chegaram a amar. E em todos os grandes monumentos da Cristandade, depois de admirar as maravilhas, eu tenho a tendência a ir admirando os pormenores, num ato de reparação, porque estes pormenores talvez não tenham sido amados como eles deveriam ser amados.

E então, fazer ao menos isto: amar o que deveria ter sido amado e que foi esquecido. É sempre a nossa vocação, de levar a todas as verdades esquecidas que os homens põem de lado.

Eu fiquei encantado com a Catedral naquele ângulo. Depois dei a volta e voltei para o hotel com a alma cheia. E se alguém naquele momento me lembrasse da palavra da Escritura “eis a Igreja de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro”, eu teria dito: Oh!, como está bem expresso! É bem o que eu sinto a respeito da Catedral de Notre-Dame.

E aí do fundo de nossas almas, do fundo de nossas inocências, vem uma outra […] sobe uma coisa que é luz, super luz, mas ao mesmo tempo é penumbra ou é obscuridade sem ser trevas, e é a ideia de todas as catedrais góticas do mundo, as que foram construídas e as que não foram construídas, dando uma ideia de conjunto de Deus. Que entretanto ainda é infinitamente mais do que isso. Aí, o espírito que inspirou todas essas catedrais, nos aparece. E aí realmente mais nós vivemos no Céu do que na terra.

E aí o nosso desejo de uma outra vida, de conhecer um Outro, com “O” maiúsculo, tão interno em mim, que é mais eu do que eu mesmo sou eu, mas tão superior a mim, que eu não sou nem sequer um grão de poeira em comparação com ele, esse meu desejo se realiza e de lá eu compreendo, o Céu deve ser assim.

Nós amamos ainda mais o puríssimo espírito, eterno e lindíssimo, que criou tudo aquilo para dizer: “Meu filho, Eu existo. Ame-me e compreenda, isto é semelhante a Mim. Mas, sobretudo, por mais belo que isto seja, Eu sou infinitamente dissemelhante disso. Por uma forma de beleza tão quintessenciada e superior que é só quando me vires, que verdadeiramente te darás conta do que Eu sou. Vem, meu filho, vem que Eu te espero. Luta por mais algum tempo que Eu estou me preparando para te mostrar no Céu belezas ainda maiores, na proporção em que for grande e dura a tua luta. Espera, que quando estiveres pronto para ver aquilo que Eu tinha intenção de que vísseis quando Eu te criei, Eu te chamarei. Meu filho, sou Eu a tua Catedral, a Catedral demasiadamente grande, a Catedral demasiadamente bela, a Catedral que fez florescer nos lábios da Virgem um sorriso como nenhuma joia fez florescer, nenhuma rosa e nem sequer nenhuma das meras criaturas que Ela conheceu”.

Essa Catedral é Nosso Senhor Jesus Cristo, é o Coração de Jesus, que tirou do Coração de Maria harmonias como nada tirou. Ali tu conhecerás. Ele disse dEle: “serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande”.

Plinio Corrêa de Oliveira

Uma graça que marcou a vida de Dr. Plinio

Em 5 de novembro de 1967, Dr. Plinio compareceu, em lugar de muito destaque, a uma Missa solene celebrada na Catedral de São Paulo. Diversos aspectos da cerimônia e do público foram filmados no interior do templo e nas suas escadarias.

Poucos dias depois, Dr. Plinio foi convidado a assistir ao documentário. Ao ver-se na tela, espantou-se por verificar quanto o seu vigor físico estava minado por alguma grave enfermidade. Ao mesmo tempo, causou-lhe pasmo a falta de percepção dos amigos mais próximos, que nada pareciam ter notado em relação a seu estado de saúde.

A ponto de completar 59 anos, em 13 de dezembro, Dr. Plinio tinha sido até então um homem robusto. Porém, o mal que nesse momento o abalava se agravaria rapidamente nos dias seguintes.

A descrição do que se seguiu é extraída, com ligeiras adaptações, da excelente obra “Dona Lucilia”, de autoria de João Clá Dias:

No dia 1º de dezembro daquele ano, Dr. Plinio cancelou sua costumeira conferência semanal, saindo de casa somente à tarde, para comungar no Santuário do Sagrado Coração de Jesus. Ao descer do automóvel, causou surpresa ao ser visto caminhar com o auxílio de bengala e calçando no pé direito um leve chinelo. Tinha a fisionomia muito abatida. Entretanto, com sua invariável finura, em nada deixava transparecer, aos que o cumprimentavam, seu mal-estar físico.

No dia seguinte, um domingo, não encontrou forças para sair de casa a fim de cumprir o preceito, sendo-lhe levada a Sagrada Comunhão. Uma pessoa que teve a oportunidade de estar com ele de manhã e à tarde, contou ter-se impressionado, ao cumprimentá-lo, com a elevada temperatura de sua mão. Nos dias subsequentes, a febre ultrapassaria a casa dos trinta e nove graus. Apesar disto, Dr. Plinio mantinha inalterável amenidade, nobreza e distinção de trato, tal qual aprendera de sua extremosa mãe, Dona Lucilia.

Narrações feitas por ele próprio, tempos depois, revelam a grande provação que nessa ocasião enfrentava:

“Quando me apareceu esta espécie de abscesso, imediatamente me lembrei do pensamento que tivera assistindo ao documentário. Parecia-me que algo de absurdo se realizava. Vi-me obrigado a passar alguns dias em casa, envidando, porém, todos os esforços para que mamãe nada percebesse. Minha penosa deambulação era feita com o auxílio de alguns apoios. Lembro-me que uma vez mamãe estava sentada à mesa, à minha espera, e eu, ao passar pelo hall, escorreguei e caí. Minha febre já estava altíssima. Pensei: O que eu pressentia está se realizando. Estou com uma grave enfermidade, serei obrigado a chamar médicos, que me apresentarão um terrível diagnóstico…”

De fato, na manhã do dia seguinte, segunda-feira, Dr. Plinio recorreu aos médicos e viu-se introduzido num túnel, à primeira vista, sem saída. Os resultados dos exames de laboratório revelaram uma forte crise de diabetes. Foi-lhe determinado repouso absoluto, regime alimentar restrito, remédios e controle glicêmico para rapidamente serem debelados os distúrbios orgânicos produzidos pela enfermidade. Entretanto, restava um problema não menos trágico: uma gangrena em seu pé direito.

“Deus qui ponit pondus…”

Os primeiros curativos foram feitos pelos médicos na própria residência de Dr. Plinio. Depois chamaram um especialista, que concluiu ser necessária uma urgente cirurgia para extinguir a grave infecção.

Naquela mesma noite, com os devidos cuidados, Dr. Plinio foi transladado ao Hospital Sírio-Libanês, onde foi operado. Ali permaneceria ele para alguns dias de convalescença.

Às vezes, as graças mais insignes nos são dadas em meio aos males que, com a permissão da Providência, sobre nós se abatem: “Deus qui ponit pondus, supponit manum” — “Deus ampara com a mão aquele a quem prova”. Em 16 de dezembro, Dr. Plinio recebeu de um amigo, vindo de Roma, um quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano. Ele próprio descreve, com palavras impregnadas de filial e amorosa gratidão à Santíssima Virgem, esse episódio de transcendente significado para sua vida espiritual:

“Algum tempo antes desses fatos, eu me pusera a ler incidentemente o livro “La Vierge Mère du Bon Conseil” (“A Virgem Mãe do Bom Conselho”), de Mons. Georges F. Dillon 1 . E, durante a leitura, experimentava em minha alma uma sensível consolação.

“Tendo viajado à Itália, antes que eu adoecesse, meu amigo, Dr. Vicente Ferreira, teve a gentileza de me trazer de Genazzano uma estampa representando o venerando quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho. Essa estampa me chegava no momento de uma provação espiritual que me fazia sofrer muito mais do que a enfermidade física. […]

“Circunstâncias que não vêm a propósito mencionar davam-me a certeza de estar nos desígnios da Providência que [nossa] entidade realizasse uma larga ação no Brasil e em toda a América do Sul, e ainda nos demais continentes, em prol da Cristandade.

“De outro lado, estava eu certo de que meu falecimento naquela conjuntura acarretaria a ruína do esforço que começava a vicejar com vigor. E que eu desejava ardentemente levar a cabo para a maior glória de Nossa Senhora, antes de morrer. Daí um estado de verdadeira ansiedade a propósito das incertezas de minha situação clínica e cirúrgica”.

Nesse momento de grande perplexidade é que veio ter às mãos de Dr. Plinio a aludida estampa. Continua ele a narração:

“Quando a fitei, tive a inesperada impressão de que a figura de Nossa Senhora, sem mudar embora em nada, exprimia para comigo inefável e maternal doçura, que Ela me confortava e me incutia na alma — não sei como — a convicção de que a Santíssima Virgem me prometia que eu não morreria sem ter realizado a obra desejada. O que me invadiu de suavidade a alma.

“Hoje em dia conservo intacta essa convicção. E, pelo favor de Nossa Senhora, essa obra tem prosperado admiravelmente, autorizando a esperança de que alcance sua meta.

“Quando fui agraciado com o sorriso-promessa de Nossa Senhora de Genazzano, nada disse aos circunstantes. Só muito mais tarde falei disto a amigos. Dois destes, que me faziam companhia no hospital quando recebera a estampa, ao ouvirem minha narração, disseram que haviam notado que a figura da Mãe do Bom Conselho me fitava com muito comprazimento, o que lhes chamara muito a atenção”.

Pedindo a graça da perseverança

Até aqui, a narração extraída da obra “Dona Lucília”, de João Clá Dias. Eis um dado que convém notar: a devoção a Nossa Senhora do Bom Conselho, que caracterizaria as últimas três décadas de vida de Dr. Plinio, havia lançado muito antes uma semente na alma do virtuoso varão.

Sim, pois já na sua infância, conhecera Dr. Plinio a devoção à Virgem de Genazzano, quando estudava no Colégio São Luís, dos jesuítas. Na capela do estabelecimento se encontrava uma reprodução, aliás milagrosa (ver box 2), do famoso afresco da Mãe do Bom Conselho. Vejamos como, certa vez, Dr. Plinio o recordou:

Eu me lembro de que várias e várias vezes, nos meses de maio, todos os alunos eram convidados a comparecer à capela para festejar o mês de Maria, o que se fazia com uma bênção do Santíssimo Sacramento e cânticos em louvor da Santa Mãe de Deus. Recordo-me ainda bem que um dos hinos começava assim: “Neste mês de alegria, tão lindo mês de flores, queremos de Maria celebrar os louvores…”.

Toda a minha geração de alunos do São Luís passou por essa imagem. E eu numerosas vezes rezei com aflição diante dela, pedindo a graça da minha perseverança.

Contudo, essa devoção de Dr. Plinio a Nossa Senhora do Bom Conselho no tempo de infância não lhe havia marcado a vida como ocorreu cinqüenta anos mais tarde, em dezembro de 1967. Foi uma ação tão profunda da Santíssima Virgem em sua alma, que ele, quando instado por seus discípulos, o recordará cheio de gratidão, sempre aproveitando para incutir em todos a mesma confiança inabalável e filial na Mãe do Bom Conselho. As palavras seguintes são de uma de suas últimas conferências, feita poucos meses antes de falecer:

Aquela foi uma situação estritamente individual, que exigiu de minha parte um ato de confiança todo especial. Há provações que são do gênero do que esperávamos, e por isso achamos natural atravessarem o caminho de nossa vida. Mas há outras que nos perturbam particularmente, porque são de um gênero não axiológico. Tais provações — sempre permitidas por Deus para o nosso bem — cortam nossa vida como um tropel de demônios e parecem arrasar todas as nossas esperanças.

Foi numa situação assim, enquanto eu me encontrava em perigo de vida — de uma vida que me parecia não dever terminar naquele momento, pois ainda teria muito a fazer e realizar — que me defrontei com a imagem de Nossa Senhora de Genazzano no hospital. Esta imagem, em certo momento, sem mover-se, sem que houvesse o menor milagre, entretanto exprimiu algo que me deu a certeza de que a própria Nossa Senhora comunicava estar lá, envolvendo-me com sua celestial proteção.

Mãe e conselheira nas aflições e nas penumbras

Se analisarmos a noção de Nossa Senhora do Bom Conselho, entende-se que ela se refere à Santíssima Virgem enquanto obtendo de Deus, por sua intercessão onipotente, graças para as almas perturbadas, que não sabem o que fazer diante de certa emergência, e precisam, portanto, de um conselho.

E Nossa Senhora do Bom Conselho é a Mãe que se compadece dos homens desorientados, e lhes obtém a graça de uma iluminação interior, de um discernimento especial, de uma palavra que lhes vem de um bom amigo, de um bom diretor espiritual ou da leitura de um bom livro, etc. Enfim, Ela sempre lhes alcança o conselho que se queria, o conselho que se pedia, a solução que se procurava e se julgava impossível encontrar.

Tudo no mundo contemporâneo, no mundo do caos, parece falar contra nós, parece mentir-nos, dizer-nos coisas que nos levarão para o erro e o mal. Que remédio há para isto a não ser um bom conselho? E quem há-de nos dar bom conselho neste mundo desvairado? Ninguém mais e ninguém melhor do que Nossa Senhora do Bom Conselho. Ela é, pois, por excelência a mãe e a conselheira nas aflições e nas penumbras do mundo de hoje.

Assim, em nossos momentos de dúvida e apreensão, saibamos que nos está reservada a alegria — da qual tão poucos homens na terra desfrutam! — de nos voltarmos para Maria e Lhe dizer: “Mãe do Bom Conselho, Vós não me desamparareis. Tende pena de mim e dai-me uma orientação.”

1) Desclée de Brouwer, Bruges, 1885.

2) Plinio Corrêa de Oliveira, prefácio in: João S. Clá Dias, Nossa Senhora do Bom Conselho, Ed. Brasil de Amanhã, São Paulo, 1992, pp. XIX a XXII.

Assim relata Dr. Plinio o essencial da história da augusta imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano:

Na Albânia, no século XV, a religião corria grave risco: de um lado, o fervor da população católica estava em declínio; de outro lado, assaltavam-na com crescente furor as hordas dos invasores maometanos, cujo objetivo era destruir até à raiz a Fé católica em território albanês. Para evitar a catástrofe, a Providência suscitara um herói comparável, pelo destemor e pela Fé, aos pares de Carlos Magno e aos batalhadores mais salientes das Cruzadas e da Reconquista luso-hispânica: Scanderbeg. Enquanto ele viveu, a Albânia resistiu. Ele morto, em seguida a feitos heroicos e gloriosos, a resistência albanesa se esboroou. Explicável castigo para uma população atolada na tibieza.

Além de Scanderbeg — e quão superior a ele! — havia na Albânia outro pilar da Cristandade abalada. Era a Imagem — um afresco — de Nossa Senhora então chamada ‘dos Bons Ofícios’ (invocação análoga à de Nossa Senhora Auxiliadora, hoje generalizada em todo o mundo católico). Essa Imagem, venerada em santuário próximo de Scútari, ocasião de tantas e tão preciosas graças para aquele povo corrompido pela tibieza, cairia nas mãos do invasor maometano?

Era o que se perguntavam com ansiedade dois devotos albaneses, Georgio e De Sclavis, dignos representantes do que a Albânia ainda conservava de fiel.

A resposta a essa pergunta não tardou. A Imagem se destacou lentamente da parede, ante os olhos atônitos dos dois devotos, compatriotas do grande Scanderbeg. Ela se alçou e foi prosseguindo em direção às águas do Mar Adriático. E se foi deslocando sempre em igual direção, ao mesmo tempo que fazia entender aos dois albaneses que queria ser seguida por eles. Com Fé e estofo moral análogos aos de Scanderbeg, ambos os albaneses não hesitaram. Foram caminhando milagrosamente sobre as águas, até que a Imagem atingisse o território da catolicíssima Itália. (…)

Enquanto ambos os albaneses continuavam a seguir a Imagem pelo território italiano, esta… desapareceu. E foi encher de celestes consolações a alma de Petruccia, (…) grande figura de mulher forte do Evangelho, que Nossa Senhora elegera para Lhe erguer o santuário mil vezes abençoado em que a Imagem d’Ela está exposta à veneração de incontáveis fiéis, desde há cinco séculos.

Era ela uma viúva dotada de alguns bens. Muito piedosa, fora favorecida com uma visão na qual a Santíssima Virgem a incumbia de restaurar a igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho, em Genazzano, então ameaçada de ruir.

Para tal fim, Petruccia recorrera à caridade dos fiéis. Mas o atendimento destes deixara a desejar. E as esmolas obtidas por Petruccia de modo nenhum bastavam para a execução da obra. Animosa, resolvera ela então aplicar na construção o restante de seu patrimônio pessoal. Mas até mesmo este fora insuficiente, pelo que as obras ainda estavam longe de ter chegado ao termo.

Tal insucesso atraía sobre a Beata os sarcasmos injustos dessa mesma população que dera tíbio atendimento aos pedidos dela. Mas Petruccia continuava animosa, apesar de seus oitenta anos, confiando com firmeza no auxílio da Santíssima Virgem.

Foi, pois, imensa e maravilhosa a surpresa dela, e a de toda a população de Genazzano, quando, na tarde do sábado 25 de abril de 1467, viram pousar sobre o lugarejo uma nuvem de aspecto admirável, da qual partiam os sons de uma música não menos bela. Aos poucos, destacou-se da nuvem o quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, o qual foi pousar sobre o altar que, na previsão da futura conclusão das obras, Petruccia fizera erguer.

Estava confirmada a visão da Beata Petruccia. Tornava-se manifesto que a Santíssima Virgem desejava a conclusão das obras. E a população, que acorrera enlevada para prestar culto à Imagem, haveria de contribuir generosamente, de então em diante, para a reconstrução da igreja. Esta não tardou em ser concluída. E, enquanto nela os fiéis veneram o quadro da Virgem e do Menino, maravilhosamente transportado de Scútari pelos anjos, nela também dormem o sono da paz os restos mortais da Beata Petruccia, à espera da ressurreição final.

Os dois albaneses, que haviam ficado desconcertados pelo desaparecimento de sua tão querida Imagem, ignoravam o aparecimento desta última em Genazzano. E andavam sem rumo pela Itália, na vã procura de seu tesouro perdido.

Quando lhes chegou aos ouvidos a notícia do ocorrido no lugarejo em que residia Petruccia, para lá se dirigiram. É fácil calcular quanto se maravilharam e se alegraram ao reencontrarem ali o quadro celestial. Estava assim terminada a missão deles, que consistia, neste lance final, em atestar a identidade entre o quadro venerado em Scútari e o que empolgava toda Genazzano.

Um quadro entregue pela Providência

Entre as múltiplas reproduções do santo afresco, uma há que mostra ter sido o Brasil objeto de especial predileção, pois foi a própria Mãe do Bom Conselho quem quis enviá-lo para este país.

Em 1760, o Rei de Portugal expulsou de seus domínios de aquém e além-mar a Companhia de Jesus. Dois noviços brasileiros, os irmãos Miguel e José de Campos Lara, decidiram acompanhar no desterro seus irmãos de vocação, partindo para Roma.

Na Itália, ao terminarem seus estudos, receberam a ordenação sacerdotal. Pouco tempo depois, faleceu Miguel. Quanto a José, foi enviado por seus superiores a vários lugares. Porém, cedendo a fortes pressões dos governos da época, em 1773 o Papa Clemente XIV fechou a Companhia de Jesus.

Era uma situação inesperada para o Pe. José, após treze anos de desterro. A vida não foi fácil desde então. Era preciso ter uma fé alcandorada e um alto heroísmo para perseverar em condições tão adversas. E apesar dos anseios de sua família pelo retorno dele à pátria, o jovem sacerdote não desejava voltar ao Brasil.

Em 1785, fazia doze anos que José de Campos Lara vestira pela última vez a batina da milícia de Santo Inácio. E fazia vinte e cinco anos que deixara o país natal!

Certo dia, passeava ele pensativo por uma praia deserta, onde o rumorejar das ondas era suave lenimento para suas dores e preocupações, quando, de súbito, depara com um jovem que o aborda. O rapaz lhe oferece um quadro a óleo que representa a Mãe do Bom Conselho (acima), dizendo-lhe que o levasse para o Brasil. E lhe anuncia que, no lugar onde ela fosse venerada, erguer-se-ia um dia um grande colégio jesuíta. No fim da conversa, o Pe. Campos Lara vê seu interlocutor desaparecer ante seus olhos, ficando convencido de que se tratava de um Anjo.

Após algumas peripécias, volta ele ao Brasil, indo para a chácara herdada dos falecidos pais, na cidade de Itu (SP). Ali erigiu uma capela onde pudesse ser venerada a imagem. Em 1814, ele ouve comovido a notícia de que Pio VII restaurara a Companhia de Jesus! Mas faleceu em 1820, sem ver cumprida a profecia da volta dos jesuítas à Terra de Santa Cruz. Regressaram, porém. E em 1868 ergueram um colégio exatamente naquela chácara.

Em 1872, o quadro da Mãe do Bom Conselho foi entronizado no altar-mor da igreja recém-construída, anexa ao colégio. Oitenta e sete anos haviam transcorrido desde sua entrega miraculosa, sobre as areias da praia italiana, ao jesuíta brasileiro.

E quando este colégio da Companhia foi transferido para a cidade de São Paulo, em 1918, com ele foi também a cópia da imagem de Genazzano. Toda a minha geração de alunos do São Luís passou pela imagem da Mãe do Bom Conselho….

(O menino Plinio é o primeiro, na terceira fileira, da esquerda para direita)

 

São Marcos e o apostolado no mundo contemporâneo

Ensinando a doutrina de Cristo numa das mais importantes cidades da Antiguidade, São Marcos conseguiu converter pessoas mergulhadas numa vida de prazeres, atraindo-as mais pelo seu exemplo do que por sua pregação.  No mundo de hoje, incomparavelmente mais depravado do que o daquela época, o apostolado é mais difícil e, por isso, mais nobre do que o realizado pelo Evangelista.

 

Comentarei uma ficha a respeito de São Marcos Evangelista, tirada da obra de Jacques de Voragine: “La Légende Dorée”(1).

Enviado por São Pedro para pregar em Alexandria

O Evangelista Marcos, sacerdote da tribo de Levi, foi, pelo Batismo, filho do Apóstolo Pedro de quem era discípulo na palavra divina. Quando ele acompanhou o bem-aventurado Pedro a Roma, onde este pregava, os fiéis da cidade pediram ao beato Marcos que escrevesse o Evangelho de forma a perpetuá-lo na memória de todos.  Ele pôs por escrito tudo o que ouvira de seu mestre, o beato Pedro, que examinou o relato com cuidado e, vendo que era pleno de verdade, aprovou-o e julgou-o digno de ser recebido por todos os fiéis. […]

Marcos foi enviado pelo beato Pedro a Alexandria para pregar a palavra de Deus. Logo depois de entrar na cidade, conforme relata Fílon, judeu muito eloquente, juntou-se uma multidão unida pela fé, pela devoção e pela continência. […] Pedro Damiano(2) diz a seu respeito: “Tão grande foi sua influência em Alexandria, que todos os que acorriam para ser instruídos nos rudimentos da fé logo estavam praticando a continência e todo gênero de boas obras, parecendo uma comunidade de monges. Esse resultado devia-se menos aos milagres e à eloquência de suas prédicas do que a seus exemplos”. E acrescenta que, após a morte, o corpo dele foi levado de volta para a Itália, a fim de que a terra na qual escrevera o Evangelho tivesse a honra de possuir seus sagrados despojos. “Feliz Alexandria, que foi banhada por seu sangue glorioso, feliz Itália, por possuir o tesouro de seu corpo!”

Conta-se que Marcos era dotado de tamanha humildade, que cortou o polegar para que não pudesse ser ordenado sacerdote, mas prevaleceu a autoridade de São Pedro que o escolheu para Bispo de Alexandria. […]

Seu glorioso martírio

Os sacerdotes dos templos planejaram prendê-lo, e no dia de Páscoa, quando o bem-aventurado Marcos celebrava Missa, entraram na igreja, amarraram-lhe uma corda no pescoço e arrastaram-no por toda a cidade, dizendo: “Levemos o búfalo ao Matadouro”. Sua carne e seu sangue espalharam-se pelo chão e cobriram as pedras. Em seguida, foi colocado numa prisão, onde um anjo o consolou e o próprio Senhor Jesus Cristo dignou-se visitá-lo, dizendo para confortá-lo: “A paz esteja contigo! Marcos, meu Evangelista, nada temas, porque estou aqui para levar-te comigo”.

Chegada a manhã, puseram outra vez uma corda no seu pescoço e o arrastaram de um lado para outro, gritando: “Levemos o búfalo ao Matadouro”. No meio desse suplício, Marcos dava graças a Deus dizendo: “Entrego meu espírito em tuas mãos”. E pronunciando estas palavras, expirou. […]

Como os pagãos queriam queimar seu corpo, de repente o ar ficou turvo, começou uma tempestade, caiu granizo, explodiram trovoadas, faiscaram relâmpagos. Todo mundo fugiu, deixando intacto o corpo do santo, que os cristãos recolheram e sepultaram na igreja com toda a reverência.

O beato Marcos tinha nariz comprido, sobrancelhas baixas, belos olhos, ligeiras entradas no cabelo, barba espessa. Era homem de boas maneiras e de meia-idade. Seus cabelos começavam a branquear. Era afetuoso, comedido e cheio da graça de Deus.

O paganismo daquela época e o neopaganismo de hoje

Alexandria era uma das maiores cidades da Antiguidade, famosa por sua cultura, sua riqueza, sua importância política e também pela pompa e pelo luxo da vida que ali se levava.

O paganismo daquele tempo era bem diferente do nosso neopaganismo. Este último está centrado na vulgaridade, na banalidade, no igualitarismo. O paganismo de outrora tinha seu lado vulgar, enquanto era estruturado de tal maneira que as maiores riquezas iam parar, com frequência, nas mãos de pessoas menos dotadas de porte pessoal para ostentá-las. Mas a mania de um luxo desordenado, fabuloso, com orgias extraordinárias, e a ostentação de uma cultura muito requintada davam, ao mesmo tempo, às cidades mais pagãs uma espécie de importância que fazia com que elas brilhassem aos olhos de todo o universo.

Porém essas cidades mais importantes eram também as mais difíceis de converter, precisamente como no mundo contemporâneo. Converter uma aldeia, digamos… Mas obter a conversão de uma grande cidade, ainda que não seja converter a cidade inteira, é uma obra insigne do ponto de vista do apostolado.

Foi, entretanto, o que São Marcos conseguiu. Ele mal chegou a Alexandria e já obteve um número enorme de conversões exímias, porque todas as pessoas convertidas por ele adotaram um estilo de vida quase monástico. Vemos o choque natural entre a postura casta, austera, séria, digna dessa gente e, por outro lado, a atitude depravada das pessoas das elites do Império Romano, que se misturavam com as elites locais para levar aquela vida de prazer exorbitante do paganismo romano.

Eficácia de seu apostolado

Imaginemos chegando a Alexandria — cidade opulenta, magnífica — São Marcos, esse varão assim retratado:

O beato Marcos tinha nariz comprido, sobrancelhas baixas, belos olhos, ligeiras entradas no cabelo, barba espessa. Era homem de boas maneiras e de meia-idade. Seus cabelos começavam a branquear. Era afetuoso, comedido e cheio da graça de Deus.

Alexandria, às quatro horas da tarde, quando o Sol ainda brilha com todas as suas luzes. Pela porta da cidade, entra esse judeu com a sua barba, o seu porte, a sua santidade, a sua piedade, o seu recolhimento, o seu gênio e o Sol vai se pondo…

Ele encontra as primeiras pessoas e começa a pregar. Umas dão risada, outras ficam indiferentes, um outro para e procura ouvir, depois mais outro para também. Dali a pouco está formada uma roda. Ele vai para uma estalagem, hospeda-se, vem mais gente.

Ao cabo de algum tempo, engrossou o contingente e essas pessoas começam a dizer o contrário do que diziam antes. Passam a falar de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos sacrifícios e da Cruz do Redentor, da necessidade que têm todos os homens de imitá-Lo, de seguir um caminho de austeridade, de castidade, de dignidade, condenando os costumes vigentes.

Devemos imaginar um beberrão, uma esposa abandonada, um moço que está abrindo os olhos para todas essas imundícies da sociedade e que talvez esteja seduzido ou horrorizado por elas, uma jovem que está a pique de perder a sua castidade e que passa por ali; todos param e a graça penetra aos borbotões! E aquelas pessoas adquirem, então, a noção de um mundo completamente novo, de uma concepção da vida totalmente diferente que, por isso mesmo, lhes dá tudo o que eles não possuíam.

O dinamismo do apego aos bens terrenos

Todas essas pompas da vida, para quem não as possui, parecem sumamente aprazíveis e dignas de serem cobiçadas. Nós temos em nossa época esta ilusão tão viva. Os povos que não têm progresso se sentem propensos às maiores concessões para consegui-lo. As pessoas que não possuem automóvel se predispõem às maiores loucuras ou aos trabalhos mais árduos, para chegarem a ter um. E depois fazem o mesmo para conseguir um bom emprego, a fim de adquirir uma fortuna média e, em seguida, lançam-se como loucas para ter uma fortuna grande. E, afinal de contas, as pessoas que têm uma fortuna grande acabam sabendo que existe no mundo um grupo de mais ou menos dois ou três mil milionários, os quais residem em grandes hotéis da Europa, dos Estados Unidos e de outros lugares, e que levam uma vida super faustosa, de cuja essência nem as pessoas mais ricas muitas vezes têm noção. Cada um joga-se como louco para o escalão superior e tem a impressão de que, se conseguir alcançá-lo, terá a felicidade. De maneira que tende para aquilo com um dinamismo extraordinário.

E ao adquirirem o que procuravam, as pessoas ficam apegadíssimas e depois depravadíssimas. Por quê? Porque em relação a todas as coisas terrenas, quando as possuímos, o primeiro movimento é o apego, e depois uma espécie de náusea, compreendendo que não dão o resultado esperado. Então, segue-se o desejo de uma depravação maior, que também desinteressa e deixa de nos causar apetência.

A fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo atrai seguidores e suscita ódios

Compreendemos, então, que a palavra de São Marcos abra a perspectiva dos bens eternos, fale de uma felicidade sem fim, de um espírito que sobrevive à matéria, de uma ressurreição dos corpos, de um Inferno, de um Purgatório, de um Deus boníssimo, justíssimo, sapientíssimo, a Quem rezamos e que nos ajuda. Fale de Nossa Senhora e prometa os esplendores da Eucaristia. Aos que conhecem um pouco mais a doutrina, mencione essa coisa incomparável que é a Confissão e a certeza de ter os pecados perdoados. Tudo isso, para um homem que frequentava as orgias de Alexandria, produzia ao mesmo tempo os efeitos mais contrários: desde a suma atração até a suma repulsa. Entende-se, então, que com a ação da graça muitas pessoas se tenham convertido, e que com isso São Marcos se tenha tornado para a cidade de Alexandria um verdadeiro problema.

Surgiram muitos seguidores a ponto de ficar implantada, para todo o sempre, uma cristandade lá. Havia também muitos que o odiavam, e estes, em determinado momento, o prenderam e o mataram. Quer dizer, a questão é clara, explicável: ele dividia, separava, criava para aqueles que não queriam segui-lo uma situação insustentável. O resultado era matá-lo.

Temos, assim, até a consumação dos séculos, o drama de todos aqueles que querem ser fiéis a Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles existem, se apresentam, falam, atraem, deslumbram, criam o ódio. Criando o ódio, sai a luta. E na luta, podem morrer. É natural.

Somos tão inferiores a São Marcos, entretanto chamados a um apostolado ainda mais nobre!

Podemos nos perguntar se é possível comparar o mundo em que viveu São Marcos e o de hoje.

Para termos um pouco a ideia da comparação do nosso pobre apostolado com o grande apostolado de São Marcos, o mundo contemporâneo é incomparavelmente mais depravado do que o do Evangelista. Porque se ele viesse hoje ao mundo, tudo leva a crer que não obteria o mesmo resultado. E uma das provas disso é a insensibilidade deste mundo aos milagres de Lourdes e de Fátima; as pessoas não se incomodam, tudo fica na mesma.

Contudo, São Marcos deve ter tido santa inveja de nós. Porque quanto mais difícil é o trabalho que temos a felicidade de realizar por Nossa Senhora, tanto mais ele é nobre. E quanto mais nobre, mais é invejável.

Se no mundo de hoje é mais difícil propagarmos a doutrina de Nosso Senhor, fazê-lo atualmente é ainda mais nobre do que naquele tempo. E a nossa vocação é mais bela do que a de outrora. E, então, devemos nos dar conta do imenso valor de termos nascido nessa época de luta, de contradição e de perseguição.

Entretanto, somos tão inferiores a São Marcos, a perder de vista completamente, a ponto de não poder haver comparação! Nisto há uma beleza especial. Nossa Senhora elegeu para aqueles tempos um São Marcos; para a nossa época, uns pigmeus. Isso significa que Ela quer fazer através de nós um milagre muito maior do que o operado por meio de São Marcos. A nossa miséria é um atestado de grandeza da ação d’Ela.

Quando vier o Reino de Maria, nos lembraremos desta meditação e compreenderemos como éramos pequenos e desproporcionados, e como, portanto, aquilo que saiu de nós foi obra exclusiva da misericórdia de Nossa Senhora.

São Marcos, cuja fortaleza é tal que ele entra numa cidade, enfrenta-a de peito aberto e cria nela um rio de luz e de graças santificantes magníficas, nos serve de contraste!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/4/1971)

1) VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea­: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 371-373.

2) São Pedro Damião, Doutor da Igreja.

 

 
   

São Fidelis de Sigmaringa: Coragem e serenidade diante da morte

Pela palavra e pelo exemplo, esse heroico missionário combateu tenazmente os erros espalhados pela primeira Revolução.

Tais foram seus êxitos que os inimigos da Igreja, consumidos pelo ódio, o martirizaram.

Em 24 de abril comemora-se a festa de São Fidelis de Sigmaringa, sobre o qual me enviaram uma ficha com alguns dados biográficos.

Viveu de 1577 a 1622. Ingressou nos capuchinhos aos 35 anos de idade.

Nascido em Sigmaringa, Alemanha, distinguiu-se como estudante de Filosofia e Direito, em Friburgo.

A seguir foi nomeado tutor de três jovens príncipes, com quem viajou por toda a Europa durante seis anos, e, depois de ter exercido a profissão de advogado, resolveu abandonar o mundo.

No testamento que fez, a certa altura, diz o seguinte: “Quero viver, daqui para o futuro, na maior pobreza, castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, numa penitência austera e humildade profunda. Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me de tudo para entregar-me aos braços do Salvador”.

O Padre Fidelis possuía grandes dotes oratórios, pregou em numerosas cidades alemãs e suíças, e em muitas igrejas do campo.

Como o protestantismo estava a se espalhar pela Suíça, especialmente nos Grisões(1), a Santa Sé encarregou os capuchinhos de combatê-lo. O Padre Fidelis foi nomeado chefe dessa missão.

“Dentro em breve não me tornareis a ver — disse ele aos seus amigos —, pois fui chamado a dar o sangue pela Fé”. Ao escrever uma carta a seu superior, encerrou-a assim: “Seu amigo Fidelis, que em breve será pasto dos vermes”.

Em janeiro de 1622, entrou na região ocupada pela Áustria e começou a pregar a Fé, com grande êxito.

Furiosos, os protestantes prepararam uma revolta, e o missionário avisou os austríacos. Os Grisões levantaram-se, então, em massa.

No dia de 24 de abril, estando o Padre Fidelis a pregar, ouviu-se o grito: “Às armas!” Os Grisões saíram ao encontro das tropas imperiais, que tinham forçado seus postos avançados, convencidos de que o Padre Fidelis fora quem chamara os austríacos. Ainda o deixaram sair da cidade, mas, como daí a pouco regressasse, vinte soldados caíram sobre ele. Trataram-no de sedutor e quiseram forçá-lo a abraçar a sua seita.

“Que me propondes? — respondeu Fidelis. Vim até vós para refutar vossos erros e não para abraçá-los. A Doutrina Católica é a Fé de todos os séculos. Não renunciarei! Ademais, sabei que não temo a morte.”

Eles, então, mataram-no a golpes de sabre.

Varão sobrenatural, enérgico e batalhador

É interessante notarmos bem qual foi a atuação deste Padre, deste grande pregador, para que depois o comentário hagiográfico possa se fazer adequadamente.

Ele era um missionário famoso, um grande orador que pregava em vários lugares. A Santa Sé, desejando impedir a expansão do protestantismo na região da Suíça, denominada Grisões, incumbiu a Ordem religiosa da qual ele fazia parte, que era a dos capuchinhos, de mandar pregadores para aquela zona bons oradores, a fim de converterem os que se tinham pervertido para o protestantismo, e para impedir que novos católicos fossem objeto do proselitismo protestante.

Então nosso Santo, que já transformara inteiramente uma cidade importante da Alemanha por seus sermões, dirigiu-se à Suíça, sabendo que iria morrer, pois teve uma revelação de que lá seria martirizado.

Mas, homem sobrenatural, enérgico e batalhador, ele não recuou diante dessa ameaça. Pelo contrário, enfrentou a martírio com uma espécie de prazer em considerar a hipótese de sua morte próxima. Ele até assinava: “Frei Fidelis, que em breve será pasto dos vermes”. Quer dizer, sabendo que seria mártir e a sua alma iria para o Céu, isto lhe dava então uma grande alegria.

A essa demonstração de tenacidade, ele juntou outra prova de força, de valor, que foi o fato de ter irritado sobremaneira os protestantes. Ninguém se torna irritante para o adversário sem ter conquistado êxitos contra ele. Portanto, ele alcançou resultados importantes como, aliás, se refere na nossa ficha. A tal ponto, que os protestantes resolveram assassiná-lo, e prepararam um encontro em que ele, afinal de contas, acabou morto.

Foi, portanto, um orador audacioso, valoroso, forte; um missionário vigoroso que não recuou diante do holocausto do martírio; um homem que nos dá um admirável exemplo de fortaleza, porque esta virtude atinge um alto grau em cada mártir que leva a abnegação e o desejo de lutar até o ponto de imolar efetivamente a sua existência.

Devemos nos precaver contra o sentimentalismo religioso do século XIX

Por outro lado, considerem esta fórmula que São Fidelis empregou:

“Quero viver, para o futuro, na maior pobreza, na castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, numa penitência austera e humildade profunda. Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me de tudo para entregar-me aos braços de Nosso Salvador.”

Isso poderia ser pronunciado, segundo um estilo sentimental de piedade difundido principalmente no século XIX, entre suspiros e com tanta moleza que seríamos levados a não tomar a sério essas palavras.

Compreendemos, assim, o equívoco tremendo que a piedade eivada de sentimentalismo do século XIX criou em torno de fórmulas como essa, e o quanto é necessário que não nos deixemos vencer por esse engano. Porque, embora o estado de espírito que eu apontei seja muito ruim, a fórmula é muito boa, em si mesma considerada. É uma fórmula empregada por um santo e, portanto, não pode deixar de ser boa, porque tudo quanto um santo faz é bom.

De maneira que, sendo essa fórmula susceptível de ser pronunciada e considerada de outro modo, não devemos permitir que o besuntado sentimentalismo religioso do século XIX nos torça a visão do que ela tem de bom, e de sua coerência com algumas das virtudes que nós fomos mais chamados a praticar: a fortaleza de ânimo, a resolução e a combatividade.

É um engano pensar que quem pronuncia essa fórmula é incompatível com essas virtudes que nós tanto apreciamos. Não pode ser, porque entre virtudes não há incompatibilidade. Ora, isto tem que ser virtude, porque foi pronunciado por um santo. Logo, não pode haver incompatibilidade.

Por isso, o valor dessa fórmula é muito grande. É evidente que um homem dotado da verdadeira virtude da sabedoria, que compreenda como todas as coisas deste mundo são nada — na medida em que obstem a aquisição da virtude e o amor de Deus —, deseje retirar-se desta Terra.

Fidelidade à vocação religiosa

Quando Nossa Senhora deseja que alguém abrace uma vocação, em geral Ela torna difícil a vida para essa pessoa fora da vocação. Portanto, um santo, nessas condições, é levado pelas circunstâncias à seguinte alternativa: ou se perde, ou adota o estado de vida para o qual foi chamado.

Ademais, independentemente do perigo de se perder, ele tem um atrativo da graça para estar meditando as coisas da sabedoria, para unir-se a Deus por essa forma, naquele estado de vida e, por amor do Altíssimo, ele adota aquela fórmula. Então se faz, como São Fidelis, um capuchinho, por exemplo.

O que quer dizer fazer-se capuchinho?

É adotar a pobreza completa, renunciando a toda forma de apego às coisas materiais, despreocupando-se com os bens deste mundo, não só não querendo tê-los para si, mas não se entusiasmando com as pessoas pelo fato de os possuírem. Não admira ninguém porque tem um bonito automóvel, um bom apartamento ou uma fábrica importante. Absolutamente não! Mas, dá valor aos homens e às coisas, na medida em que se aproximam da sabedoria.

Uma pessoa assim possui um estado de espírito varonil, combativo, e poderia dizer: “Eu quero viver daqui para o futuro na maior pobreza, castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, porque quero imitar Nosso Senhor Jesus Cristo que sofre; e, por isso, serei um lutador, vou batalhar e sofrer, porque na guerra se sofre”.

Isso nada tem de “heresia branca”(2). É piedade de boa lei que o homem mais valoroso e mais combativo deve ufanar-se em ter.

Assim também, dizer com coragem que daqui a pouco vai ser pasto dos vermes, é uma prova de que ele não tinha medo de morrer e ria a respeito disso: “Eu agora estou vivo, esta carne que estou vendo vai ser comida pelos vermes; através destas órbitas vão entrar vermes e comer estes olhos; destes ouvidos, desta boca, sairão vermes como que engendrados pelo meu próprio corpo. Mas não me incomodo, porque a minha alma vai para o Céu. Terei o martírio, que vale muito mais. E, no último dia, o meu corpo ressuscitará e se juntará à minha alma no Céu”.

É uma atitude de força de alma completamente oposta ao faniquito que o sentimental tem diante da morte.

Lutou arduamente contra a Revolução de seu tempo

Portanto, bem interpretada, bem entendida, essa fórmula nada tem de “heresia branca”. É uma fórmula esplêndida! É “heresia branca” estar no estado temperamental estúpido com que a escola dos sentimentais do século XIX repetia isso; escola essa que está, mais ou menos, viva até nossos dias.

Em São Fidelis temos a prova concreta: um homem que empregava fórmulas dessas deu exemplo de uma admirável coragem, vendo chegar até ele a morte com a serenidade que os maiores heróis não saberiam sobrepujar, e que lutou arduamente contra a Revolução em seu tempo, foi um verdadeiro contrarrevolucionário, porque o protestantismo era a Revolução em sua época. Homem completo, portanto, e digno de toda a nossa veneração.

Uma relíquia deste santo se encontra em nossa capela; de maneira que faremos uma boa coisa pedindo-lhe que nos dê a graça de compreender como fórmulas dessas se compaginam bem com a nossa piedade, desde que expurgadas dos péssimos eflúvios do sentimentalismo religioso do século XIX, vivo até hoje, infelizmente.

O século XIX foi um século de grandes santos, santos admiráveis, mas que estavam isentos disso, e até eram modelos do contrário.

É bem o que se poderia dizer de Santa Teresinha do Menino Jesus. A pequena via, inaugurada por ela, tão cheia de candura, de suavidade, é uma via de grande força e combatividade, para quem sabe ver a vida de Santa Teresinha.

Percebe-se isso nos desejos da Santa de Lisieux. Ela dizia que tinha desejos infinitos, entre os quais o de brandir o ferro no combate contra os inimigos da Igreja. Vê-se nisso uma manifestação de combatividade que chega até o cruzado. E isso da parte desta Santa tão suave na sua pequena via.

Vemos, portanto, como as virtudes são inteiramente compatíveis entre si.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/4/1971)

 

1) Um dos cantões da Suíça, o de maior extensão territorial.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor. São Fidelis deu exemplo de uma admirável coragem: vendo chegar a morte com a serenidade que os maiores heróis não saberiam sobrepujar, foi um verdadeiro contrarrevolucionário.