Embora a ideia de uma civilização cristã, constituída por almas em estado de graça, possa parecer utopia para a mentalidade hodierna, Dr. Plinio demonstra, com base na biografia de São Raimundo de Peñafort, que uma época na qual a graça de Deus habite as almas é inteiramente realizável.
É possível ter passado pela cabeça de qualquer pessoa o seguinte problema: é muito difícil permanecer em estado de graça, e não se pode esperar que uma população inteira faça coisas muito difíceis. Então, a civilização católica é praticamente impossível, pois ela só pode ser concebida com pessoas na graça de Deus.
A refutação desse raciocínio suporia uma grande tese, mas através da vida de São Raimundo de Peñafort se pode chegar a uma convicção a esse respeito.
A civilização cristã é possível
Como se pode saber se numa civilização, um país ou uma cidade tem a maior parte de seus habitantes em estado de graça, o qual é um estado interno da alma? Vendo uma cidade, pode-se afirmar: a maior parte dos seus habitantes está em estado de graça? Existe para isso um teste?
Essas são dificuldades que parecem rochedos sem solução. Entretanto, elas se resolvem facilmente.
Quando os habitantes de uma cidade não estão em estado de graça, eles formam uma espécie de cone virado para baixo. Há alguns que são ruins porque não estão em estado de graça; abaixo dos que estão em estado de pecado mortal simplesmente, há alguns que têm grande apego ao pecado mortal no qual se encontram. Depois, mais embaixo, há alguns que antipatizam com os que estão em estado de graça. E, no fundo do cone, há os que têm ódio dos que permanecem em estado de graça.
Mas há uma coisa curiosa: todos os que são ruins têm uma espécie de conaturalidade, de afinidade entre si, de maneira que constituem facilmente uma frente contra os bons. E o resultado é que, na cidade em que muitos não estão em estado de graça, os bons são impopulares.
Pelo contrário, numa cidade onde muita gente está em estado de graça, os bons são populares. Nas épocas em que os santos são objeto de entusiasmo geral, pode-se dizer que a maioria da população vive na graça de Deus. E se os santos não são objeto de simpatia geral, é prova de que a maior parte do povo vive fora da graça divina. Portanto, o modo pelo qual uma época trata um santo, mostra como ela trata Deus, ou seja, como está a maioria dos habitantes em face do Criador.
Para resumir, o santo é uma imagem de Deus; quem o odeia, odeia também a Deus.
Então, quando estudamos a vida dos santos, que formam um longo cortejo de luz, de sangue e de lágrimas dentro da História, podemos ir vendo como foram tratados nas épocas em que viveram. Se uma época os tratou bem, nesta a maior parte dos homens estava em estado de graça; se os tratou mal, não estavam em estado de graça.
Assim, através da vida de São Raimundo de Peñafort podemos fazer o balanço de uma época e constatar como é possível uma civilização católica, em que milhões de pessoas vivam em estado de graça.
Nesse espírito analisemos a biografia.
Aos vinte anos de idade, professor de Filosofia
Terceiro Geral de sua Ordem — Ordem de São Domingos —, São Raimundo de Peñafort nasceu na Catalunha, no castelo de Peñafort, de pais ricos e nobres, descendentes da família real de Aragão — portanto, era de uma alta nobreza. Quando jovem, percorreu com tão grande brilho o curso de seus primeiros estudos, que com vinte anos foi encarregado de ensinar Filosofia em sua cidade natal.
Era um sucesso extraordinário, pois naquela época, século XIII, os estudos eram muito apertados; e Filosofia era uma matéria que despertava enorme atenção, apaixonava, porque as pessoas tinham elevação de alma, espírito metafísico. Aos vinte anos, lecionar Filosofia representava o auge do prestígio intelectual.
A formação de sua mentalidade o preocupava muito mais do que a de sua mera inteligência. Daí o zelo que tinha em inspirar uma sólida piedade a todos os seus discípulos.
Pode‑se então imaginar o quadro: a universidade, com o misto de vivacidade um tanto turbulenta e de solenidade das universidades medievais, uma alta cátedra, um jovem, ainda não religioso, não seminarista, mas leigo, que leciona Filosofia, causando admiração nos alunos, às vezes, mais velhos do que ele. Mas, ao mesmo tempo em que lecionava Filosofia, ele estava mais preocupado em que seus alunos tivessem uma mentalidade certa, portanto, uma verdadeira formação espiritual, do que fossem bons filósofos.
Hoje em dia isso causaria raiva, inveja e protesto. Naquele tempo dava o resultado que estamos vendo.
Apaziguar as discórdias
O tempo que ele podia subtrair às suas ocupações, o santo empregava em socorrer os infelizes e eliminar as discórdias na cidade.
Em si, apaziguar as discórdias é uma das obras da Igreja, e na Idade Média especialmente necessária. Porque nessa época os homens descendiam proximamente dos bárbaros, e a agressividade de uns contra os outros era muito grande. Tornava-se necessário estar continuamente tentando reconciliar uns com os outros, para ir aos poucos pacificando o temperamento daquela gente exageradamente agressiva. Isso tinha um enorme alcance, pois, ao mesmo tempo em que lutavam entre si, os homens tendiam a combater os inimigos da Igreja. Esses últimos tiravam proveito dessa divisão. Então, reconciliar os católicos entre si era fazer uma frente única contra o adversário.
A compaixão para com os pobres é inviscerada na alma do católico. Mas naquele tempo era muito mais necessária. Porque não havia grandes hospitais como atualmente; obras assim estavam apenas começando a se formar; eram muito menos numerosas do que hoje. Então, atender os pobres em casa era uma coisa necessária para a sobrevivência deles.
Podemos imaginar a alegria de um pobre velho chagado, estendido num catre, quando vê entrar em sua casa, para conversar com ele, um rapaz na flor de sua idade, o qual é um dos jovens mais célebres da cidade, e que se senta à beira do leito, conversa consigo, dá-lhe um bom conselho e deixa um auxílio. É uma esmola mais para a alma do que para o corpo. Podemos imaginar a edificação que isso trazia.
A virtude e o talento conduziam à glória
Resolvido a fazer um curso de Direito Civil e Canônico, aos trinta anos deixou sua pátria e foi para Bolonha, na Itália, para as famosas lições dos célebres professores daquela cidade. Em muito pouco tempo ele se tornou doutor.
Notem que se tornou doutor em Direito, e já era professor de Filosofia. Matérias diversas; ele voava de matéria em matéria.
Para se tornar doutor, era necessário defender uma tese com todos os catedráticos e alunos presentes, trajando roupa de gala; o indivíduo ficava no centro da sala e era interrogado. Essa defesa de tese se fazia depois do curso de pós-graduação.
E a primeira cátedra de Direito Canônico lhe foi atribuída com aclamação de toda a Universidade.
Naquele tempo o Direito Canônico, que são as leis internas da Igreja, gozava de mais prestígio do que o Direito Civil, porque tudo quanto dizia respeito à Esposa de Cristo era considerado mais importante do que os temas relacionados à vida temporal.
O Senado de Bolonha, com a intenção de reter na cidade um jovem tão eminente, desejou dar-lhe retribuição, com o dinheiro público. Mas, de nada adiantou. Ele foi chamado para a Espanha, por ordem do Papa Honório III, para ser professor do jovem Rei Tiago I de Aragão.
É um jovem que voa de honra em honra, porque alia grande inteligência a uma Fé profunda.
Vemos que naquele tempo a virtude e o talento conduziam à glória, ao contrário de outros períodos, onde o vício é premiado.
As épocas muito ruins perdem os seus chefes naturais, pois os desviam, os adulam, os subornam e os levam para o mal, como condição para uma brilhante carreira. No século XIII vemos o contrário: a ambição e a virtude, como que, andavam juntas. Como era mais fácil o caminho do Céu!
Autor de livros sobre casos de consciência
Tendo recebido um canonicato e logo depois o título de arcediago, na igreja de Barcelona, tornou‑se o modelo dos sacerdotes do Senhor. A festa da Anunciação era então muito negligenciada nas igrejas da Espanha. Com piedosa insistência, conseguiu do Bispo de Barcelona que se celebrasse essa grande festa com Ofício Solene, e uma parte do dinheiro que ganhou destinava exatamente para isso.
São Raimundo de Peñafort conheceu São Domingos de Gusmão e se tornou testemunha de suas grandes virtudes. De tal maneira ele admirava a vida angélica dos primeiros dominicanos, que pediu o hábito e o recebeu, em abril de 1222. Seu exemplo atraiu para a Ordem muitos grandes personagens.
Bastou São Raimundo entrar na Ordem dominicana para pessoas importantes quererem abandonar tudo a fim de se tornar simples frades. Isso só é possível numa boa época.
Tendo pedido uma severa penitência a fim de expiar as vãs complacências que, segundo ele, tivera quando ensinava, ordenaram-lhe que compusesse um conjunto de livros sobre os casos de consciência mais difíceis, que costumavam aparecer para os confessores na Espanha.
Quer dizer, ele alegava que tinha tido alguma vaidade quando lecionava, e pediu para ser tratado com rijeza.
Essa obra foi elogiada pelo Papa Clemente VIII, como sendo igualmente útil aos penitentes e confessores; foi o primeiro trabalho no gênero existente na Igreja Católica.
Harmonia entre variadas virtudes
Em 1229, o Papa São Gregório IX enviou para a Espanha o Cardeal Sabino, a fim de exortar os príncipes da região a continuar valentemente a luta contra os mouros.
Era a guerra da Reconquista, para a expulsão dos mouros da Península Ibérica.
O Cardeal, que já conhecia São Raimundo, o tomou para seu primeiro-assistente. Iniciou-se, então, a pregação de São Raimundo para a Cruzada.
Notem o bonito contraste: é um santo de uma bondade angélica, que se senta junto ao catre de um doente e cuida dele com suma suavidade. Entretanto, convocado para defender a Fé católica, torna-se uma tocha ardente, estimulando todo mundo a lutar.
Um ato de virtude pode ser muito diferente de outro ato de virtude, mas não o contrário, pois as virtudes não são contrárias entre si.
Assim, um homem de ação por amor a Deus pode ser um guarda-doentes extraordinário; e um homem verdadeiramente caridoso pode tornar-se um guerreiro insigne.
Quando ouvimos falar que um santo era muito bom para com os enfermos, queria os pequeninos, devemos pensar: Que grande guerreiro! E de um santo que lutou contra hereges, numa guerra de religião, pensemos: Que esplêndido enfermeiro deveria dar! Assim é que se entende a verdadeira harmonia da alma católica, que é feita dessas riquezas, dessa fabulosa diversidade de todas as virtudes. Então, vemos São Raimundo, homem de inteligência, de estudo, e ao mesmo tempo de ação, que passa a ser homem de luta.
Para dar aos homens a vontade de lutar, a técnica de São Raimundo de Peñafort consistia em incutir-lhes o desejo de se sacrificarem, porque a luta séria é um sacrifício. Para dar a vontade de sacrificar‑se era preciso provar que ele se sacrificava. E ele caminhava de um lugar para outro, percorrendo distâncias enormes, o tempo inteiro a pé, com um bordão e descalço.
O santo entrava nas cidades e anunciava que o Cardeal chegaria um ou dois dias depois, a fim de conceder a indulgência da Cruzada.
Era uma indulgência especial que a Santa Sé dava para os que lutavam contra os mouros.
Depois, ele ouvia as confissões e assim dispunha as almas para a chegada do Cardeal, que encontrava os espíritos dóceis aos mínimos desejos do Vigário de Jesus Cristo.
Ao regressar a Roma, o Legado não deixou de falar ao Papa a respeito dos méritos de São Raimundo de Peñafort. Impressionado com o relato, o Soberano Pontífice mandou que o santo viesse a Roma, e lhe pediu para ser seu capelão, penitenciário e confessor.
O homem de Deus impunha como penitência ao Papa despachar, com caridade e imediatamente, a causa dos pobres que não tinham protetor. O Sumo Pontífice pediu, então, ao santo que o ajudasse a despachar.
Roma era muito pequenina, e as viagens muito difíceis. O número de peregrinos que iam a Roma e, sobretudo, as complicações diplomáticas, eram muito menores do que em nossos dias. Um Papa tinha bastante tempo livre e o que ele podia fazer de melhor era dar a todo mundo o exemplo das virtudes. Daí o fato de São Raimundo ter dito ao Soberano Pontífice: “Dou a Vossa Santidade a penitência de não atender só aos poderosos, mas também aos humildes”; assim, o Papa passou a trabalhar intensamente.
Tratado a respeito da prática do comércio
O Arcebispado de Tarragona veio a vagar pela morte do Arcebispo Metropolitano da Coroa de Aragão.
Era a principal diocese da Coroa de Aragão.
O Papa conferiu tal Arcebispado a São Raimundo de Peñafort, ordenando que o aceitasse, embora este não o quisesse. Mas Raimundo ficou gravemente doente e Gregório IX, temendo que este morresse, dispensou-o do Arcebispado.
Extenuado por tanto trabalho, São Raimundo caiu novamente doente, num estado que inspirou sérias preocupações. Os médicos o aconselharam a voltar para a Espanha. Tendo regressado ao seu convento de Barcelona, ele observava todos os pontos da regra. A pedido de vários Bispos, São Raimundo redigiu um tratado a respeito da conduta que deveriam ter os comerciantes para não roubarem o público, e especificando os casos em que os comerciantes tinham que fazer restituição.
Aqui está o ponto dolorido em matéria de furto de dinheiro. Quem comete um pecado e pede perdão fica absolvido. Mas quem se apropria do dinheiro de outro, só será absolvido sob a condição de restituir o que roubou. E um comerciante que roubou, cobrou demais, não tem a consciência tranquila; não poderá receber a absolvição se ele não fizer a restituição. Então, esse é um ponto duríssimo, porque se trata de abandonar as riquezas. São Raimundo de Peñafort colocou esse ponto delicado em toda a evidência. Isso seria próprio para que ele fosse odiado. Pelo contrário, era cada vez mais estimado. Vemos assim a boa intenção com que aquele comércio era praticado.
Ordem religiosa para a redenção dos cativos
Todos os dias, salvo aos domingos, ele não tomava senão uma ligeira refeição. Nosso Senhor lhe tinha dado, como familiar, um de seus anjos, que conversava com ele.
O que comentar sobre uma coisa dessas?
Um pouco antes do sino do convento tocar para as Matinas, o anjo o acordava e o convidava para fazer oração.
Um dos mais brilhantes raios de sua glória foi ter tomado parte na instituição da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, para a redenção dos cativos, fundada pelo Rei Tiago I de Aragão, graças a uma revelação do alto; tal revelação foi feita simultaneamente, numa mesma noite, a esse monarca, a São Raimundo de Peñafort e a São Pedro Nolasco, um gentil-homem francês, que também fora preceptor do Rei.
Esse ponto merece uma explicação.
Uma das muito grandes dificuldades para um homem ser cruzado era exatamente a questão dos cativos. Nas batalhas, os mouros frequentemente aprisionavam muitos católicos, que eram transformados em escravos e iam viver para sempre em lugares onde não havia padres. Nessa circunstância, caso um deles cometesse um pecado, não havendo sacerdote para os absolver, corriam o risco de morrer fora do estado de graça.
De onde as pessoas mais católicas, ao mesmo tempo, queriam ser cruzadas, mas temiam perder suas almas. Assim, para que os melhores católicos fossem cruzados, era preciso resgatar os cativos; para isso tornava-se necessário arranjar dinheiro a fim de comprar dos mouros os que estes haviam escravizado nas batalhas. E muitas vezes os padres ficavam escravos para poder dar a absolvição aos outros homens. E resgatavam prisioneiros, que voltavam para o meio dos católicos. Eram, portanto, atos heroicos que esses sacerdotes faziam.
Então, Tiago I, São Raimundo de Peñafort e São Pedro Nolasco tiveram um sonho numa mesma noite, e logo depois foi fundada uma Ordem religiosa para tratar da redenção dos cativos, evitando em primeiro lugar que muitas almas se perdessem e também estimulando muitas Cruzadas.
O Rei, acompanhado de toda a corte e dos magistrados, foi para a igreja catedral, chamada da Santa Cruz de Jerusalém. O Bispo Berenger oficiou pontificalmente. São Raimundo subiu à cátedra e professou, diante de todo o povo, que tinha sido milagrosamente revelado a ele, ao Rei e a São Pedro Nolasco, a vontade de Deus sobre a Ordem. Por ocasião do Ofertório, o Rei e São Raimundo apresentaram São Pedro Nolasco ao Bispo, que o revestiu do hábito da Ordem. Terminada a Missa, o monarca conduziu São Pedro Nolasco e seus frades para seu próprio palácio, numa parte que ele tinha reservado para ser mosteiro.
Que coisa linda! Como se amava a virtude! Nada disso seria possível sem que muitíssima gente se encontrasse em estado de graça. Acrescenta a ficha que treze jovens fidalgos, ou seja, moços dos mais importantes da cidade, seguiram São Pedro Nolasco, isto é, deixaram tudo para se tornarem escravos.
Isso sim é verdadeiramente dedicação! Que heroísmo é maior: combater os mouros de espada na mão, ou ser mercedário, pertencer à Ordem das Mercês?
São Raimundo empregou, então, o resto de sua vida a propagar e favorecer a Ordem religiosa de São Pedro Nolasco.
Maravilhosa viagem marítima: o manto como vela e o bordão como mastro
A ficha descreve os benefícios que a Ordem das Mercês proporcionou: milhares de cativos soltos, inúmeros atos de heroísmo e abnegação; e narra o fato talvez o mais bonito da vida de São Raimundo de Peñafort.
Esses homens eram bons, mas no meio deles de vez em quando estalava o pecado, porque eram homens. Depois vinham as penitências. O número e os tipos de penitências que os padres impunham, durante a Idade Média, eram extraordinários. Por exemplo, a um homem que morava em Estocolmo ir a pé até Compostela.
Veremos agora um fato lamentável e o que se lhe seguiu.
Numa viagem à ilha de Maiorca, uma das Baleares, Tiago I fez-se acompanhar pelo bem-aventurado e, esquecendo o respeito que tinha para com o santo, embarcou clandestinamente uma mulher pública no mesmo navio.
Na ilha de Maiorca, São Raimundo, avisado do fato, fez pressão junto ao soberano para mandar embora essa mulher. O Rei prometeu, mas não cumpriu a promessa. O santo, descontente, pediu para voltar a Barcelona. O Rei lhe negou a licença e proibiu secretamente, sob pena de morte, a todos os marinheiros que permitissem que o santo saísse do porto da ilha de Maiorca.
São Raimundo não queria fazer parte de uma viagem onde estava uma mulher de má vida; mas estava preso numa ilha. Como poderia ele fugir? E quem lhe desse embarque seria morto, por ordem do Rei. O que fez ele? Saiu-se como um homem que conversava continuamente com um anjo.
O santo se apoderou do manto de um companheiro, chegou até a ponta de um pequeno promontório deserto e disse: “O Rei da Terra nos impede a passagem, o Rei do Céu suprirá.” Pronunciando essas palavras, estendeu o manto sobre as ondas, tomou seu bordão, fez o sinal da cruz e pisou solidamente sobre o manto. Pediu a seu companheiro que o seguisse, fazendo a mesma coisa. Mas esse não teve coragem, e ficou.
São os pequenos homens…
O santo suspendeu a metade do manto para servir de vela e prendeu-a no bordão, como mastro. Um vento favorável o levou em pleno mar, enquanto os marinheiros que estavam por ali se entreolhavam pasmados. Seis horas depois ele chegava a Barcelona, tendo percorrido 53 léguas marítimas.
Quer dizer, uma velocidade extraordinária. Eu acho esse quadro encantador; foi a mais maravilhosa viagem que se fez, depois daquela realizada por Nosso Senhor no lago de Tiberíades. Não pode haver coisa mais bonita do que, num mar agitado e convulso, aquele “barquinho” deslizando. Na história náutica não se realizou uma coisa tão bela! Era o prêmio da intransigência de São Raimundo de Peñafort: “Deus fará um milagre para mim, mas numa ilha onde há uma mulher de má vida não fico. Vou embora”.
Os homens de verdadeira Fé movem até montanhas. Imaginem a linda cena: na solidão do mar, os anjos contemplando São Raimundo de Peñafort singrando. Se eu fosse pintor, faria esse quadro. Ele desembarcou no porto, revestiu-se do seu manto, o qual estava seco, e tomando seu bordão dirigiu-se imediatamente para o convento. As portas do convento estavam fechadas, mas ele as atravessou e apareceu de repente no meio de seus irmãos e ajoelhou-se aos pés do Prior, para pedir-lhe a bênção. O Rei, informado do que se tinha passado, caiu em si mesmo e daí por diante seguiu mais fielmente as diretrizes de São Raimundo.
O fim da vida de um grande santo
São Raimundo chegou à extrema velhice, sem nenhuma outra doença a não ser a muita idade. Ele dormiu suavemente nos braços do Senhor no dia 6 de janeiro — festa da Epifania — de 1275. Nesse lindo dia, em que Deus foi revelado a todos os povos, inclusive pagãos, morreu São Raimundo de Peñafort, que tanto havia trabalhado pela conversão dos pagãos.
Nos seus últimos momentos, os Reis de Castela e Aragão o visitaram com suas cortes, e tiveram a alegria de receber a sua última bênção.
Aí temos um quadro bem medieval: dois Reis, com diadema de ouro na cabeça, cetro na mão, grande manto, outros emblemas da realeza, sendo conduzidos por lacaios, acompanhados por toda a corte, ajoelhados junto ao catre de um pobre frade — que nada possuía, dependia da vontade de um outro, e estava moribundo — para receberem sua última bênção. Era a última viagem de São Raimundo de Peñafort. Estava encerrada a vida de um grande santo e um grande homem.
O Reino de Maria não é uma quimera, mas uma promessa de Nossa Senhora de Fátima
Vemos que essa foi uma época na qual o estado de graça era geral. Constatamos, portanto, como a civilização cristã é realizável. Assim, nós, trabalhando pelo Reino de Maria, não vamos atrás de uma quimera nem de uma fantasia, mas de uma promessa. Qual é essa promessa?
É a de Nossa Senhora de Fátima, que disse: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará.” O que é o Coração de Maria? É um órgão do seu corpo imaculado, mas que simboliza a mentalidade de Nossa Senhora. Essa é a doutrina católica. E quando Ela afirma que seu Coração triunfará, quer dizer que sua mentalidade triunfará.
O triunfo da mentalidade da Mãe de Deus significa que virá uma época, na qual, muito mais do que na nossa, os santos vão dirigir a humanidade. Nossa Senhora a governará através de seus santos; porque eles vão influenciar os Reis, os Papas, os grandes e pequenos desta Terra, e levar a todos para Deus. Será o Reino de Maria.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/10/1974)